VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
RESIDÊNCIA COMUM
BUSCA DOMICILIÁRIA
Sumário

I. No âmbito do crime de violência doméstica, as vitimas têm o direito a retirar da residência todos os seus bens de uso pessoal e, ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os bens pertencentes a filhos menores e a pessoa maior de idade que se encontre na direta dependência da vítima em razão de afetação grave, permanente e incapacitante no plano psíquico ou físico (artigo 21. n.º 4 da Lei 112/2009, de 16 de setembro).
II. Perante a recusa do agressor em permitir que a ofendida proceda à recolha dos seus bens, logo que esta forneça a lista em que os identifica, deve proceder-se a busca domiciliária para proceder à sua recolha.

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida

No Proc. 248/21.4GCSTB, que corre termos nos serviços da Ministério Público – Procuradoria da República da Comarca ..., ..., por esta entidade foi, por despacho de 09/11/22, requerida a emissão de mandados de busca domiciliária àquela que outrora fora a casa de morada de família dos ofendidos AA e BB no âmbito de inquérito e que é arguido CC pela prática de factos susceptíveis de integrarem dois crimes de violência doméstica.

Em tal despacho, solicitava-se a apreensão do telemóvel do arguido e dos bens essenciais e pessoais das duas vítimas que o arguido, por ali viver, retinha, impedindo o acesso e fruição dos mesmos a tais objetos.

Foi este requerimento objecto do seguinte despacho judicial (transcrição):

Vem o Ministério Público requerer que se autorize busca ao domicílio de CC, sito na Estrada ..., ..., em ... para apreensão de:
a) Telemóvel do arguido, usado para enviar mensagens à ofendida;
b) Diversos bens pessoais das duas vítimas, id. a fls. 148, que este recusa a entregar, pese embora já tenha sido notificado para tal;
c) Quaisquer outros elementos de prova relevantes para a investigação.
Nos termos do disposto no artigo 174º do Código de Processo Penal, quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer animais, coisas ou objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista. Quando houver indícios de que esses animais, coisas ou objectos, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca.
Ainda, e nos termos do disposto no artigo 178º do mesmo diploma, são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova. Os instrumentos, produtos ou vantagens e demais objetos assim apreendidos são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto, devendo os animais apreendidos ser confiados à guarda de depositários idóneos para a função com a possibilidade de serem ordenadas as diligências de prestação de cuidados, como a alimentação e demais deveres previstos no Código Civil.
Temos assim que a busca prevista no Código de Processo Penal tem por objectivo permitir a apreensão de animais, coisas ou objectos que possam servir de prova





é um meio de obtenção de prova.
Não tem, por outro lado, escopo de permitir a apreensão de bens cuja propriedade pode até ser controvertida, e cuja apreensão não se destina à produção de prova, mas antes a (re)integrar na posse aquele que se arroga a legítimo proprietário. Para fazer operar tal entrega, de forma expedita, prevê o direito civil a providência cautelar comum (artigo 379º do Código de Processo Civil), que pode decorrer, inclusive, sem audição do requerido.
No âmbito do presente inquérito é investigada a prática de, além do mais, prática pelo denunciado de dois crimes de violência doméstica, tipo legal previsto e punível no artigo 152º, número 1, al. a) do C. Penal.
Do teor dos elementos de prova enunciados na promoção de fls. ref. 95860971, resulta que o arguido possui pelo menos um telemóvel, o qual utiliza na prática do crime investigado, e possivelmente mantém na residência para a qual é solicitada a busca. Mostra-se ser essencial a apreensão de tal objecto, ou outros que possua, para o esclarecimento dos factos indiciados e respectiva prova.
Assim, com o intuito de serem apreendidos objectos que possam servir de prova dos factos investigados nos autos (artigo 178º, do Código de Processo Penal), e ao abrigo do disposto no artigo 174º, número 2, do mesmo diploma, ordeno que, com as formalidades a que se reportam os artigos 176º e 177º número 1, do aludido código, se proceda a busca domiciliária na(s) seguinte(s) residência(s), respectivo(s) anexo(s), arrecadação(ões), e garagem(ns), quintal(ais), espaço(s) adjacente(s) à residência(as) e caixa(s) postal(ais), se necessário com arrombamento de portas:
- residência de CC, sita na Estrada ..., ....
Sublinha-se, porém, na sequencia do supra consignado, que na presente busca, todas as apreensões de objectos efectuadas que não tenham por objectivo a produção de prova, mas tão só a restituição dos bens apreendidos a quem deles se arrogar proprietário (sendo o direito de propriedade disputado) estarão vedadas, por se inserirem fora do escopo da norma que permite a ingerência nos direitos do buscado, i.e., o artigo 178º do Código de Processo Penal, - que apenas autoriza a apreensão de objectos para efeito de prova (ou no caso de suscetibilidade de perda a favor do estado, o que não ocorre neste caso).
Não presidirei, atento o elevado volume de serviço.
Passe e entregue os respectivos mandados de busca ao Ministério Público, os quais deverão ser cumpridos no prazo máximo de 30 dias (artigo 174º, número 4, do Código de Processo Penal).
Regressem os autos ao Ministério Público.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):





1 — Requerida a emissão de mandados de busca à residência do arguido, e que outrora constitui a casa de morada de família dos ofendidos, para apreensão dos bens pessoais destes últimos, nos termos do disposto nos artigos 152.0 do Código Penal (na sua mais recente Redação, Lei n.0 57/2021 de 16-08 , entrada em vigor em 17-08-2021) em conjugação com os artigos 174.0, n.01, 2, 177.0 do Código de Processo Penal e artigo 21.0, n.0 4 da Lei n.0 112/2009 de 16 de setembro, foi tal requerimento indeferido por despacho de M.mo. Juiz de Instrução Criminal, porquanto "Ainda, e nos termos do disposto no artigo 178 0 do mesmo diploma, são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionadas com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova. Os instrumentos, produtos ou vantagens e demais objetos assim apreendidos são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto, devendo os animais apreendidos ser confiados à guarda de depositários idóneos para a função com a possibilidade de serem ordenadas as diligências de prestação de cuidados, como a alimentação e demais deveres previstos no Código Civil. Temos assim que a busca prevista no Código de Processo Penal tem por objectivo permitir a apreensão de animais, coisas ou objectos que possam servir de prova — é um meio de obtenção de prova. Não tem, por outro lado, escopo de permitir a apreensão de bens cuja propriedade pode até ser controvertida, e cuja apreensão não se destina à produção de prova, mas antes a (re)integrar na posse aquele que se arroga a legítimo proprietário. Para fazer operar tal entrega, de forma expedita, prevê o direito civil a providência cautelar comum (artigo 3790 do Código de Processo Civil), que pode decorrer, inclusive, sem audição do requerido (...);
2- Salvo o devido respeito, o despacho viola o disposto nos artigos 152.0 do Código Penal (na sua mais recente Redação, Lei n.0 57/2021 de 16-08, entrada em vigor em 17-08-2021) em conjugação com os artigos 174.0, n.0 1 , 2, 177.0 do Código de Processo Penal e artigo 21.0, n.0 4 da Lei n.0 112/2009 de 16 de setembro.
3-Sucede que, após o abandono da casa de morada de família por parte da ofendida, e do filho maior acompanhado, aquela viu-se na necessidade de aí regressar para recolher bens pessoais e essências, solicitando várias vezes ao arguido que disponibilizasse a residência para o efeito, o que este sempre negou, recusando-se inclusivamente a abrir a porta do imóvel.
4- A vítima veio aos autos indicar a lista de todos os bens pessoais que o arguido retém na sua posse, e o Ministério Público, por despacho datado de 27.07.202, autorizou a deslocação da vítima àquela residência para retirada dos bens de uso pessoal próprios, assim como os do filho, maior acompanhado, que padece de anomalia psíquica, com incapacidade de 81%, acompanhado pelo OPC competente. E conforme informação elaborada pelo OPC, apesar das múltiplas insistências e diligências realizadas para o efeito, o arguido recusa-se a permitir o acesso à sua residência, local onde se encontram guardados os referidos bens essenciais da ofendida e do filho maior.
5-Por despacho datado de 9.11.2022, o Min. Público veio requerer a emissão de mandado de busca domiciliária, àquela que outrora fora a casa de morada de família dos ofendidos AA e BB (maior acompanhado, portador de incapacidade física), local que os mesmos tiveram de abandonar, refugiando-se em casa abrigo. Em tal residência, permanece unicamente, e actualmente, o arguido CC, o qual tem recusado reiteradamente o acesso ao imóvel pelos dois ofendidos, mesmo que acompanhados por OPC responsável pela investigação.
6- A busca domiciliária requerida tem por objeto após a apreensão dos objetos, bens pessoais e de primeira necessidade dos ofendidos, relacionados com a prática do crime em investigação, dar-lhes o destino adequado, in casu, a posterior devolução aos seus legítimos proprietários, que necessitam dos mesmos, conforme proteção conferida às vítimas de violência doméstica, nos termos do disposto no artigo 21.0, n.0 4 da Lei 112/2009 de 16 de setembro: «Independentemente do andamento do processo, à vítima é reconhecido o direito a retirar da residência todos os seus bens de uso pessoal e, ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os bens pertencentes a filhos menores e a pessoa maior de idade que se encontre na direta dependência da vítima em razão de afetação grave, permanente e incapacitante no plano psíquico ou físico, devendo os bens constar de lista disponibilizada no âmbito do processo e sendo a vítima acompanhada, quando necessário, por autoridade policial».
7-Citamos a este respeito o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de janeiro de 2013, proferido no processo 3513/10.2TAMTS-A.P1, relatado por Melo Lima e disponível para consulta com último acesso a 23 de Novembro de 2022] em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/f6671f3142cc690080
257b09005a4c63 :«I- Os meios de obtenção da prova só podem ser autorizados se, após juízo de ponderação dos direitos conflituantes feito à luz do princípio da concordância prática, se concluir que o sacrifício dos direitos lesados é necessário, adequado e proporcional à salvaguarda do direito do direito a preservar.
II— O art. 0 40 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, reconhece à vitima de violência doméstica o direito de retirar da residência de família todos os seus bens de uso pessoal e exclusivo e ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os dos filhos ou adoptados menores de idade.
III— Se o arguido retém e sonega bens à ofendida, sobre a qual mantinha uma prática de violência psicológica, que é objecto do processo, deve ser ordenada a busca para efeitos de apreensão desses bens.
IV— A medida tem de ser considerada como meio necessário, adequado e proporcional à salvaguarda dos direitos da vítima


8- Resulta das mais recentes alterações introduzidas pela Lei n.0 57/2021 de 1608, entrada em vigor em 17-08-2021, ao artigo 152.0, n.0 1 do Código Penal, que pratica o crime de violência doméstica: «Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos fisicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns». (sublinhado nosso):
9- Foi intenção do legislador introduzir no elemento do tipo objetivo do crime de violência doméstica, as condutas do agressor que visam impedir, sonegar ou proibir a fruição de recursos económicos, tal como contas bancárias ou quantias pecuniárias, ou recursos patrimoniais próprios ou comuns, entendendo-se para este efeito todo o tipo de bens, objetos suscetíveis de integrar o património pessoal ou em comum com o outro membro do casal, tal como se retira no explanado na exposição de motivos e vários pareceres emitidos na Proposta de Lei 28/XIV/1 que introduziram as últimas alterações ao artigo 152.0 do Código Penal, disponíveis:
https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID =44766
10- Ao abrigo das disposições conjugadas no artigo 152.0 do Código Penal e nos artigos 174.0, n.01, 2, 177.0 do Código de Processo Penal e artigo 21.0, n.0 4 da Lei n.0 112/2009 de 16 de setembro, resulta claro que se determinados objetos relacionados com um crime e que possam servir de prova se encontram na residência do arguido, é ordenada a busca para a apreensão dos mesmos, pelo que não se entende que a requerida busca domiciliária nos presentes autos tenha sido parcialmente indeferida, por despacho do Mm. Juiz de Instrução Criminal, no que se refere aos bens essências e pessoais a apreender para posterior devolução aos ofendidos, pelas seguintes razões:
i) Os bens pessoais cuja apreensão no decurso da busca domiciliária se requer são elementos de prova e diretamente relacionados com a prática do crime;
ii) Os bens pessoais em causa são por isso objetos da prática do crime;
iii) O crime em causa é o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.0, n.0 1 do Código Penal, na sua mais recente redação.
iv) A busca domiciliária é o único meio ao dispor para a realização da apreensão, uma vez que outros meios menos intrusivos da reserva da vida privada e intimidade revelaram-se infrutíferas;
v) Pelo que a requerida busca domiciliária para apreensão de bens pessoais e essências dos ofendidos respeita o princípio da adequação, o princípio da exigibilidade e o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito.


11- O raciocínio supra exposto aplica-se a qualquer um dos crimes previstos no Código Penal para apreensão de objetos relacionados com a sua prática, não se concebendo que um raciocínio divergente seja aplicado por em causa estar o crime de violência doméstica.
12-A este respeito e por mera hipótese, se investigação recaísse sobre a prática de crime contra o património, nomeadamente furto ou abuso de confiança de objetos propriedade dos ofendidos, havendo indícios fortes de que o arguido estaria na posse do mesmos, guardando-os no interior da sua residência, o Min. Publico requereria, sem hesitar, a realização da busca domiciliária à residência do denunciado para apreensão dos referidos bens, a qual seria legalmente admissível, uma vez que pretender-se-ia apreender os objetos relacionados com a prática do crime em investigação.
13- Não se concebe que ao crime de violência doméstica, p. e P., pelo artigo 152.0 do Código Penal, como é o caso nos presentes autos, seja aplicado raciocínio diferente daquele que se adoptaria para um ilícito contra bens jurídicos patrimoniais.
14-Nesta senda, deverá ser julgado procedente o presente recurso, devendo ser ordenada a emissão de mandados de busca domiciliária a residência do arguido para os efeitos requeridos, assim se fazendo a inteira e Acostumada Justiça

Tendo em conta a natureza do recurso, dele não foi dado conhecimento ao arguido, razão pela qual inexiste qualquer resposta ao mesmo.

D – Tramitação subsequente

Recebidos os autos nesta Relação, foram os mesmos com vista à Exª Procuradora-Geral Adjunta, que emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso
De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, importa tão só apreciar se existe razão ao recorrente quando entende haver fundamentos, factuais e legais, para que a requerida busca englobe, também, os bens pessoais dos ofendidos e que o arguido se recusa a devolver.

B – Apreciação

Exposta a questão em discussão, eminentemente jurídica, afigura-se-nos que assiste razão ao recorrente, devendo a decisão recorrida ser revogada nos termos por si propostos.
Nos presentes autos investiga-se a prática, por parte de CC, de dois crimes de violência doméstica agravados, p.p., pelo Artº 152 nsº1 als. a) e d) e 2 do C. Penal, perpetrados sobre a sua mulher, AA e o seu filho, BB, maior acompanhado, portador de incapacidade física e psicológica.
Pretendia o MP, na busca - àquela que foi a casa de morada de família e hoje apenas ocupada pelo arguido - cuja realização promoveu, a apreensão do telemóvel deste – através do qual continua a enviar inúmeras mensagens aos ofendidos de teor humilhante a atemorizador, as quais colocam em causa a paz e o sossego das vítimas – bem como, a apreensão de bens pessoais dos ofendidos, como vestuário, calçado, produtos de higiene, material escolar e outros, bens estes, que o arguido retém, impedindo, por parte dos ofendidos, o acesso e respectiva fruição.
O Mmº Juiz a quo entendeu que a pretendido busca apenas poderia ser levada a cabo no que toca ao telemóvel ou a quaisquer outros elementos de prova que esclarecessem os factos indiciados, mas já não quanto aos alegados bens pessoais dos ofendidos, porquanto, não se destinando os mesmos à produção da prova dos crimes em causa e podendo, até, a sua propriedade, ser controvertida, o meio legal para operar tal restituição não é a busca operada em sede criminal, mas antes, a providencia cautelar comum, estatuída no Artº 379 do C. Civil, que pode até decorrer sem audição do requerido.
Compulsados os autos, constata-se que a ofendida AA apresentou queixa contra o arguido, então seu marido, por violência, sobretudo psicológica, exercida sobre si e o filho de ambos, BB, maior acompanhado, que tem uma profunda deficiência mental (no processo fala-se, a este nível, de 81% de incapacidade), não sabendo ler nem escrever e do qual aquela ofendida é a tutora, ou, em linguagem actual, a acompanhante designada pelo tribunal.
Em consequência de tal situação, os ofendidos abandonaram a casa de morada de família, tendo sido colocados numa casa de abrigo, tendo, desde então, a ofendida manifestado a vontade de não mais voltar a viver com o arguido e dele se divorciar.
A ofendida solicitou, por diversas vezes, ao arguido, a entrega/devolução dos bens próprios seus e do seu filho, alguns de primeira necessidade, mas aquele sempre se recusou a proceder a tal entrega, nem sequer permitindo que a ofendida entre na residência que foi do casal para a respectiva recolha.
Nessa medida, a ofendida apresentou nos autos a lista de todos os bens pessoais e de primeira necessidade que necessita de retirar da residência e que são os seguintes: documentos pessoais, roupa, calçado, bijuteria, 2 imagens religiosas, 1 jarra em vidro com conchas pintadas à mão, 1 quadro da mãe pintado a carvão, 4 figuras de anjo, álbuns de fotos, consola XBOX, cd's de filmes e músicas, terços, peluche, caixa com 3 gavetas em plástico com materiais de escola, caixa com materiais de pintura e desenho e 1 caixa com jogos, na sequência do que o MP autorizou a sua deslocação àquela residência para retirada dos indicados bens acompanhada pelo órgão polícia criminal competente, ao abrigo do disposto no Artº 21 nº4 da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro.
No entanto, conforme informação junta pela GNR, apesar das múltiplas insistências e das diligências realizadas para o efeito, o arguido continua a não permitir o acesso à residência, casa de morada de família do agregado familiar, local onde se encontram guardados os referidos bens essenciais da ofendida e do filho maior acompanhado, demonstrando uma conduta de profundo desrespeito para com a autoridade policial e judiciária.
Diz o Artº 174 nº1 do CPP que:
1- Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer animais, coisas ou objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista.
2 - Quando houver indícios de que os animais, as coisas ou os objetos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca.”
A busca domiciliária requerida nos presentes autos tem como já referiu, duas finalidades: a primeira, servir de meio de obtenção de prova para apreensão dos objetos relacionados com a prática do crime em investigação, e a segunda, garantir a apreensão de bens/recursos patrimoniais próprios dos ofendidos, cujo acesso e fruição o arguido impede, na esteira das mais recentes alterações legislativas introduzidas ao Artº 152 nº1 do C. Penal, onde consta que pratica o crime de violência doméstica: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns”. (sublinhado nosso)
Por sua vez, nos termos da especial proteção conferida às vítimas de violência doméstica, prevê-se no Artº 21 nº4 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, que “Independentemente do andamento do processo, à vítima é reconhecido o direito a retirar da residência todos os seus bens de uso pessoal e, ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os bens pertencentes a filhos menores e a pessoa maior de idade que se encontre na direta dependência da vítima em razão de afetação grave, permanente e incapacitante no plano psíquico ou físico, devendo os bens constar de lista disponibilizada no âmbito do processo e sendo a vítima acompanhada, quando necessário, por autoridade policial”.
Ora, esta é, salvo melhor opinião, precisamente, o quadro sub judice.

Estamos na presença de uma situação de violência doméstica, em que, independentemente do andamento do processo, à vitima é reconhecido o direito a retirar da residência todos os seus bens de uso pessoal e, ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os bens pertencentes a filhos menores e a pessoa maior de idade que se encontre na direta dependência da vítima em razão de afetação grave, permanente e incapacitante no plano psíquico ou físico, sendo que a ofendida já forneceu aos autos a lista de tais bens e não se vislumbra que seja possível, a não ser por via da pretendida busca domiciliária,





concretizar a respectiva recolha, porquanto foram já accionados todos os meios ao nível da investigação criminal, mantendo o arguido a sua recusa em permitir que a ofendida proceda a tal recolha.
Não permitir a busca, nos termos promovidos, ou restringi-la, como fez o despacho recorrido, ao telemóvel do arguido, será, in casu, esvaziar de conteúdo o plasmado no Artº 21 nº4 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, sendo por isso evidente, como corolário deste raciocínio, que a dita busca se configura como o único mecanismo processual penal legal ao dispor para efetivação daquele direito de duas vítimas de violência doméstica.
Neste sentido, há que citar o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/01/13, proferido no Proc. nº 3513/10.2TAMTS-A.PI, onde se plasmou o seguinte:
“I- Os meios de obtenção da prova só podem ser autorizados se, após juízo de ponderação dos direitos conflituantes feito à luz do princípio da concordância prática, se concluir que o sacrificio dos direitos lesados é necessário, adequado e proporcional à salvaguarda do direito do direito a preservar.
II- O art. 0 4 0 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, reconhece à vitima de violência doméstica o direito de retirar da residência de família todos os seus bens de uso pessoal e exclusivo e ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os dos filhos ou adoptados menores de idade.
III- Se o arguido retém e sonega bens à ofendida, sobre a qual mantinha uma prática de violência psicológica, que é objecto do processo, deve ser ordenada a busca para efeitos de apreensão desses bens.


IV- A medida tem de ser considerada como meio necessário, adequado e proporcional à salvaguarda dos direitos da vítima.”
Por outro lado, a acrescer à bondade deste entendimento, sempre seria de que configurar a possibilidade de a conduta do arguido, em recusar o acesso da ofendida a bens essenciais, seus e do seu filho, consubstanciar, em si mesmo, a prática de um crime de violência doméstica, atenta a previsão normativa, onde, como se referiu, se englobar a circunstância de impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns.
Como se disse no Acórdão de 28/09/11, também da Relação do Porto, proferido no Proc. nº 179/10.0GAVLC e em relação a uma situação, como a presente, de violência psicológica:
“Desta forma, o que prevalece é que os maus tratos psíquicos estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretende exercer em relação à vitima, derivada da maior vulnerabilidade desta, razão pela qual na Declaração das Nações Unidas respeitante á eliminação da violência contra a mulher (art. I da Resolução 48/104, de 20.12.1993), considera-se como acto de "violência "todo aquele que possa ter como resultado um dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para a mulher, assim como as ameaças de tais actos, a coacção, a privação arbitrária da liberdade, tanto aquela que se produza na vida pública como na vida privada: os maus tratos psíquicos serão todo o constrangimento, seja realizado de modo directo ou expresso, seja de modo indirecto ou implícito, temporalmente concentrado ou distribuído que, de modo ostensivo, atemorize ou desestabilize a vítima com vista a afectar a sua integridade psicológica, em suma, todo o seu modo de vida.
…Contrariando as soluções mais correntes, afigura-se-nos que a retenção e recusa de entrega pelo sujeito activo do crime, o arguido, dos bens essenciais á satisfação das necessidades diárias da assistente — alimentares, de vestuário, estéticas, de saúde, de poupança, etc — colocando-a numa situação previsível, de inferência lógica à generalidade dos cidadãos, captável de acordo com as regras da experiência comum, de menosprezo pelos seus direitos e integridade moral, causando-lhe transtornos e incómodos desnecessários, prejudicando-a na sua integridade psíquica, podendo afectar a sua saúde e causar-lhe ou podendo causar despesas desnecessárias, nomeadamente, a substituição desses bens, corno muito bem se diz no despacho ora recorrido, …, é ainda uma consequência jurídica do crime, no sentido de que ainda o realizam, conservam-no, perpetuam-no, na vertente dos maus tratos, senão físicos, pelo menos psíquicos,






Pois que a estrutura do crime de violência doméstica não se queda pela produção de palavrões, de ofensas à integridade fisica, de ameaças, antes estende-se a um conjunto de situações que arbitrariamente persistem e pretendem acentuar o estado de humilhação da vítima - designadamente através da privação dos bens pessoais - colocando-a numa posição de inferioridade económica, reduzindo-a a um infinito de sofrimento material, a um estado de infâmia semelhante à atroz evolução de um pesadelo: tornando-a indefesa, falida, economicamente dependente, sem esperança, impossibilitada ou diminuída no direito à felicidade, à demolição do passado, a arquitectar um novo modo de vida, em suma, numa criatura privada de possíveis, semelhante a uma desmobilizado pobre e servil, apta a encontrar e ingressar numa comunidade de oprimidos.
…consideramos que a recusa de entrega dos bens pertença da assistente tem uma relação directa, expressa, com a implícita intenção do arguido em acentuar e prolongar a humilhação da assistente, em subsistir no desprezo pela sua condição humana, em inferiorizá-la económica e psiquicamente, determinado- a a um sofrimento material inútil e desnecessário, privando-a da dignidade inerente a qualquer ser humano em aceder à satisfação de necessidades essenciais e diárias, mormente em utilizar bens e objectos que lhe pertencem e que deles carece!
…Daí, de resto, a preocupação do legislador, ao consagrar no art. 21.º n o 4 da Lei n.º 12/2009, de 16/09, tenha consagrado que "Independentemente do andamento do processo, à vítima é reconhecido o direito a retirar da residência todos os seus bens de uso pessoal e exclusivo e ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os dos filhos ou adoptados menores de idade, os quais devem constar de lista disponibilizada no âmbito do processo sendo a vítima acompanhada, quando necessário, por autoridade policial.”
Como bem diz o recorrente, “Foi intenção do legislador introduzir no elemento do tipo objetivo do crime de violência doméstica, as condutas do agressor que visam impedir, sonegar ou proibir a fruição de recursos económicos, tal como contas bancárias ou quantias pecuniárias, ou recursos patrimoniais próprios ou comuns, entendendo-se para este efeito todo o tipo de bens, objetos suscetíveis de integrar o património pessoal ou em comum com o outro membro do casal”, razão pela qual a “norma incriminadora do crime de violência doméstica integra as condutas do agressor que visam proibir, impedir ou de alguma forma dificultar os ofendidos acederem ou recuperaram a posse ou a fruição dos seus bens pessoais e de primeira necessidade.”
Nesta medida, seja por esta via - do eventual preenchimento da conduta do arguido, ao inviabilizar o acesso das vítimas aos seus bens próprios no crime de violência doméstica – seja pela directa aplicação da situação sub judice ao estatuído no nº4 do Artº 21 da lei 112/2009 de 16 de Setembro, há que concluir que, in casu, sempre seria admissível a emissão de mandado de busca domiciliária para apreensão dos referidos bens dos ofendidos, devendo a mesma ser objecto de deferimento, revogando-se, em consequência, o despacho recorrido.
Procede, pois, o recurso.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e em consequência, revogando-se o despacho recorrido, autoriza-se a realização de promovida busca domiciliária à residência do arguido, id. nos autos, para apreensão, também, dos bens pessoais de AA e BB, descritos no requerimento junto a Fls. 148 do processo principal e 45 do presente recurso.
Sem custas.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.
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Évora, 24 de Janeiro de 2023
Renato Barroso (Relator)
Maria Fátima Bernardes (Adjunta)
Fernando Pina (Adjunto)