LIBERDADE CONDICIONAL
DEFESA DA ORDEM JURÍDICA E DA PAZ SOCIAL
Sumário

I. O requisito da defesa da ordem e da paz social, que a libertação não pode colocar em crise, deve ter interpretação compaginável com o disposto no artigo 40º, nº 1 do Código Penal.
II. Assim, o que deve ser ponderado é se a pena já cumprida protege suficientemente o bem jurídico violado, tendo em conta o facto cometido e a personalidade do agente que o cometeu na sua evolução em face da pena sofrida ou se defraudará as expectativas comunitárias na validade da norma.
III. Com efeito, a prática dos tipos de crime em causa, pelos quais foi o recorrente condenado em pena que vem cumprindo, causa alarme e indignação na sociedade em geral. Este tipo de ilícitos, pela sua natureza, pelo tipo de consequências que acarreta, e pelo seu significado ético, são tidos como graves, sendo a sua punição efetiva, equivalente ao cumprimento efetivo da pena, uma exigência de prevenção geral óbvia.
IV. Está em causa a perceção por parte da comunidade da mensagem que representaria a libertação do recorrente e do que tal possa representar quanto ao papel pedagógico do sistema penal na perspetiva da defesa de bens jurídicos importantes. Nesta fase do cumprimento da pena a liberdade condicional frustrava o sentimento geral de vigência das normas punitivas que o recorrente violou com a prática dos crimes por que foi condenado, não se revelando compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

Texto Integral


Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal de Execução de Penas ... foi, em 27 de outubro de 2022, proferida decisão que não concedeu a liberdade condicional a AA.

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Inconformado com o assim decidido, recorreu AA, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1. Por decisão proferida no Proc. 50/18.... da Secção Criminal (Juiz ...) da Instância Central ..., o recluso foi condenado, pela prática dos crimes de resistência e coacção sobre funcionário, crime contra a preservação da fauna e espécies cinegéticas e detenção de arma proibida, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

2.Tendo atingido o meio da pena, sendo apreciada a Concessão da liberdade condicional, a qual foi indeferida.

3.Contudo, somos de opinião não se demonstrar provado que a sua liberdade condicional perturbe a paz social, nem coloque em causa as expectativas comunitárias na validade da norma violada; senão vejamos,

4. O Recorrente tem 72 anos e sofre de Cancro; tem como objectivo reconstruir a sua vida, apoiar a sua esposa, também ela de vetusta idade.

5. A conduta da recorrente tem sido exemplar ao nível da integração em ambiente prisional.

6. Tem como objectivo tornar – se um cidadão exemplar, ao mesmo tempo que pretende que o seu caso seja uma lição de vida.

7. É vontade do recorrente ultrapassar os erros cometidos no passado bem como do estigma que o acompanha pela prática dos mesmos.

8. A concessão da liberdade condicional depende da formulação de um juízo de prognose positiva no sentido em que, de forma consolidada, seja de esperar que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer crimes, tendo-se para tanto em atenção as circunstâncias do caso, a sua vida anterior, a respectiva personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, como estatui a al.a)donº2doart.61ºdoCP,aspectos estes que servirão como índices de ressocialização a ponderar na formulação do referido juízo de prognose.

9. O arguido tem uma adequada inserção social e familiar e não regista qualquer outro contacto com as instâncias formais de controlo.

10.As exigências de prevenção especial, não são suficientemente fortes ao ponto de inviabilizar a formulação de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento do condenado em meio livre.

11.Tal como refere Figueiredo Dias (As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 539), o juízo de prognose a realizar (por comparação com aquele que é formulado no âmbito da suspensão da execução da pena de prisão) “(…) para efeito de concessão da liberdade condicional deve, numa certa medida, ser «menos exigente» (o que não deixa de compreender-se, porque o condenado já cumpriu uma parte da pena e dela se esperará que possa, em alguma medida, ter concorrido para a sua socialização); se ainda aqui deve exigir se uma certa medida de probabilidade de, no caso da libertação imediata do condenado, este conduzir a sua vida em liberdade de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, essa medida deve ser a suficiente para emprestar fundamento razoável à expectativa de que o risco da libertação já possa ser comunitariamente suportado.”.

12.Por todas as razões supra expostas, coadunadas com os princípios de prevenção imanentes às penas de prisão (prevenção geral e especial),do qual faz parte a inserção social, a recorrente considera-se merecedora de uma reavaliação por esse egrégio Tribunal, a qual certamente e sabiamente será positiva no deferimento da sua liberdade condicional.

Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser concedida a liberdade condicional.

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O recurso foi admitido.

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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:

1 – Por sentença proferida no âmbito dos autos à margem referenciados, não foi concedida a liberdade condicional a AA, tendo este atingido metade do cumprimento da pena de quatro anos de prisão, que lhe foi aplicada no processo n º 50/18.... da ... – J... – da Comarca ..., pela prática de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, um crime de resistência e coacção sobre funcionário e de um crime de detenção de arma proibida.

2 – Tal decisão baseou-se nos elementos constantes dos autos, designadamente nos relatórios juntos a fls. 84 a 86 e 98 a 100, na ficha biográfica de fls. 87 a 89, no CRC de fls. 77 a 80 e nas declarações do recluso de fls.111, encontrando-se a sentença recorrida devidamente fundamentada de facto e de direito.

3 – A esses elementos estão subjacentes fortes razões de prevenção especial que se fazem sentir em relação ao condenado, derivadas de uma reduzida interiorização crítica relativa às suas condutas criminosas e suas consequências e de um percurso de ressocialização/reaproximação ao meio livre que não se mostra minimamente consolidado, e bem assim dos seus antecedentes criminais.

4 – Tanto vale por dizer, que não é razoável efectuar um juízo de prognose positivo de que aquele uma vez em liberdade adopte um comportamento conforme à lei penal e afastado da prática de novos ilícitos criminais.

5 – Acresce, que em face da natureza, gravidade e ressonância social dos crimes em causa são, também, muito elevadas as exigências de prevenção geral positiva, pelo que tal libertação antecipada não se mostra compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

6 – Por estas razões quer o Conselho Técnico (por unanimidade dos seus membros), quer o Ministério Público emitiram pareceres desfavoráveis à concessão da liberdade condicional.

7 – Consequentemente e não estando verificados os pressupostos materiais/substanciais previstos nas alíneas a) e b) do n º 2 do artigo 61 º do CP, não é legalmente admissível a concessão da liberdade condicional ao condenado.

8 – Pelo que bem andou o Tribunal “a quo” ao não conceder a liberdade condicional a AA, sendo evidente que na decisão recorrida foi feita uma correcta e adequada ponderação dos factos e aplicação do direito.

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No Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta ao Parecer.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente- cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice o objeto do recurso centra-se na existência de fundamentos para a concessão da liberdade condicional.

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É do seguinte teor a decisão recorrida (transcrição):

“I - Relatório

O presente processo de concessão de liberdade condicional reporta-se a AA (melhor identificado nos autos), recluído no Estabelecimento Prisional ....

Para apreciação dos pressupostos da liberdade condicional ao meio da pena que cumpre, foram juntos aos autos os relatórios previstos no art.º 173 do Código de Execução das Penas.

O Conselho Técnico reuniu, emitindo o respectivo parecer, e foi ouvido o recluso. Também o MºPº emitiu o seu parecer.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A – OS FACTOS

Julgo provados os seguintes factos, com relevância para a causa:

1 - Por decisão proferida no Proc. 50/18.... da Secção Criminal (Juiz ...) da Instância Central ..., o recluso foi condenado, pela prática dos crimes de resistência e coacção sobre funcionário, crime contra a preservação da fauna e espécies cinegéticas e detenção de arma proibida, na pena de 4 (quatro) anos de prisão (em suma, apurou-se neste processo que, em 12/7/2018, pretendendo caçar javalis em local onde tal não era permitido e para o que não dispunha de autorização, e tendo sido surpreendido por cinco militares da GNR, o recluso apontou-lhes a carabina que segurava, municiando-a, e ameaçou-os a todos de morte, razão por que estes, receosos que aquele disparasse, tiveram que o deixar sair do local, de onde fugiu; no dia 10/8/2018 são apreendidas na residência do recluso duas armas consideradas proibidas – a carabina que usara anteriormente, e uma faca borboleta);

2 – Iniciando o cumprimento da pena em 13/10/2020, liquidou-se a sua execução da seguinte forma: meio em 12/10/2022; 2/3 em 12/6/2023; e termo previsto para 12/10/2024;

3 – O recluso regista a anterior prática de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, um crime de detenção de arma proibida e um crime de exercício perigoso de caça, sendo esta a primeira vez que cumpre pena efectiva de prisão;

4 – O recluso declarou aceitar a liberdade condicional, bem como compreender o seu significado;

5 – O Conselho Técnico emitiu, por unanimidade dos seus elementos, parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional;

6 – Também o MºPº foi desfavorável à libertação condicional do recluso;

***

7 – O recluso ainda não gozou de licenças de saída jurisdicional, tendo sido colocado em regime aberto para o interior em 30/8/2022;

8 – Não regista reparos disciplinares;

9 – Por motivos de saúde (doença do foro oncológico), não desenvolve actividade laboral, ocupando-se com a leitura, permanecendo a maior parte do tempo na sua cela, por opção;

10 – Em liberdade irá viver com a companheira, subsistindo o casal da reforma do recluso (de cerca de 700 euros) e de alguma agricultura de subsistência em terreno próprio;

11 – Não assume a prática dos factos tal como se lhe imputam, dizendo não se recordar de parte, e explicando o seu comportamento com o facto de estar fora de si, por via de medicação que tomava na sequência de cirurgia, meses antes, a um tumor maligno. Refere saber ser errado agir contra agente de autoridade, pois que este actua no âmbito das suas funções, mas não sabe explicar porque é grave a posse de arma proibida (diz que é proibida porque não é legalizada).

B – CONVICÇÃO DO TRIBUNAL

Para prova dos factos supra descritos o tribunal atendeu aos seguintes elementos constantes dos autos, analisados de forma objectiva e criteriosa:

a) Certidão da decisão condenatória e da liquidação da pena;

b) Certificado do Registo Criminal do recluso;

c) Relatório dos serviços de educação e ensino e ficha biográfica do recluso; d) Relatório dos serviços de reinserção social;

e) Declarações do recluso, ouvido em 7/10/2022.

C – O DIREITO

Segundo o n.º 9 do Preâmbulo do D.L. nº 400/82 de 23 de Setembro, a liberdade condicional (doravante LC) tem como objectivo “…criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão”. Este instituto tem, pois, uma “finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização” (1).

Segundo o art.º 61 do Código Penal, são pressupostos (formais) de concessão da LC:

1 - Que o recluso tenha cumprido metade da pena e, no mínimo, 6 meses de prisão, ou dois terços da pena e, no mínimo, 6 meses de prisão, ou ainda 5/6 da pena, para os casos de penas superiores a 6 anos;

2 - Que aceite ser libertado condicionalmente;

São, por outro lado, requisitos (substanciais) indispensáveis:

A) Que fundadamente seja de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes;

B) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social (este requisito não se mostra necessário para os casos de liberdade condicional aquando dos 2/3 da Pena, conforme resulta expressamente do disposto no nº 3 do preceito em causa).

Relativamente a estes requisitos, resulta claro que o primeiro se prende com uma finalidade de prevenção especial, visando o segundo satisfazer exigências de prevenção geral (2).

Assim, e considerando que a condução da vida do libertado condicionalmente de modo socialmente responsável e sem o cometimento de novos crimes constitui o objectivo da liberdade condicional, a possibilidade de, no caso concreto, tal escopo ser efectivamente alcançado há-de revelar-se através dos seguintes aspectos:

1) As circunstâncias do caso (valoração do crime cometido - seja quanto à sua natureza, seja quanto às circunstâncias várias que estivera na base da determinação concreta da pena, nos termos do art.º 71 do Código Penal – e da medida concreta da pena em cumprimento);

2) A vida anterior do agente (relaciona-se com a existência ou não de antecedentes criminais); 3) A sua personalidade (para além de uma valoração fundamentalmente estatística decorrente dos antecedentes criminais [quantos mais, mais se indicia uma personalidade não conforme ao direito e potencialmente não merecedora da liberdade condicional], considera-se a possibilidade de o recluso ter enveredado para um percurso criminoso por a isso ter sido conduzido, ou não, por circunstâncias que não controlou ou não controlou inteiramente);

4) A evolução desta durante a execução da pena de prisão (essa evolução deve ser perceptível através de algo que transcenda a esfera meramente interna psíquica do recluso, ou seja, através de padrões comportamentais temporalmente persistentes que indiciem um adequado processo de preparação para a vida em meio livre).

De referir que esta evolução positiva da personalidade do recluso durante a execução da pena de prisão não se exterioriza, nem se esgota necessariamente através de uma boa conduta prisional, muito embora haja uma evidente identidade parcial. Assim, os referidos padrões poderão revelar-se quer em termos omissivos (através da ausência de punições disciplinares ou de condutas especialmente desvaliosas, como o consumo de estupefacientes, quando não motive as referidas punições), quer activamente (através do empenho no aperfeiçoamento das competências pessoais – laborais, académicas, formativas) ao longo do percurso prisional do recluso.

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No caso dos autos os pressupostos formais de que depende a concessão da liberdade condicional estão reunidos: o recluso já cumpriu metade da pena de prisão em execução, e aceita a liberdade condicional.

Já quanto aos requisitos substanciais se não pode, a nosso ver, formular idêntica conclusão. É certo que o recluso tem mantido conduta regular em meio prisional.

Mas, apenas isso se pode afirmar de positivo, sendo que essa forma de estar será a normal e exigível a qualquer um.

De facto, o recluso já havia antes sido condenado também por exercício ilegal ou perigoso de caça e por posse de arma proibida. Claramente não compreendeu o sentido das anteriores condenações, tendo voltado a delinquir, e de forma grave, gravidade depois reflectida na pena efectiva de prisão que cumpre.

Acresce que a justificação que agora avança (mas que surpreendentemente não invocou em sede de audiência de julgamento) não foi objecto de prova no momento certo. Parecendo-nos também que, mesmo admitindo que o recluso se pudesse sentir algo desorientado emocionalmente por via de medicação que tomava, nunca isso seria razão para passar a cometer crimes (sendo que já antes da intervenção cirúrgica referida havia cometido crimes da mesma natureza), menos ainda para atentar contra agentes de autoridade. Decorridos mais de 4 anos sobre os factos, verificamos que o recluso ainda não realiza adequado juízo de autocensura sobre o seu comportamento, não se tendo demorado a reflectir sobre o desvalor de tudo o que fez, designadamente na perspectiva dos danos/vítimas provocados. Sinal da sua fraca consciência crítica é, aliás, a própria abordagem que faz quanto aos seus antecedentes criminais, omitindo dois crimes relacionados com o exercício ilegal/perigoso de caça.

Existe, pois, caminho a percorrer neste âmbito, sendo também finalidade (preventiva) da pena imposta que o condenado se preocupe em reflectir no erro cometido, em compreendê-lo, e em trabalhar mecanismos para, ultrapassando fragilidades, não voltar a incorrer no mesmo (ou noutro) tipo de desvio.

O recluso não usufruiu de licenças de saída jurisdicional, não tendo sido ainda possível avaliar o seu comportamento em meio livre, após período de reclusão.

Tudo conjugado, considero que ainda subsistem pontos a trabalhar, que exigem maior evolução e investimento da parte do recluso, sendo que, e enquanto tal não suceder, se mostra ainda inviável formular juízo positivo acerca do seu futuro comportamento em meio livre.

Para além do referido, há que ter presente a natureza dos crimes em causa (designadamente do crime de resistência e coacção sobre funcionário, tipo de ilícito que, infelizmente, vem sendo cometido com elevada frequência, em desrespeito da autoridade e de um democrático dever de obediência), a medida da pena fixada e ainda os antecedentes criminais que o recluso apresenta. Aspectos que acentuam as exigências de prevenção geral ao ponto de não ser ainda exigível à comunidade suportar o risco inerente à libertação antecipada do recluso. Antes se impõe a continuação da prisão como meio necessário à reposição da confiança na vigência das normas jurídicas que violou de forma grave.

III – DECISÃO

Pelo que, não concedo a liberdade condicional a AA.

X

Renovação da instância aos 2/3 da pena (isto é, em 12/6/2023).

X

Informe os serviços de reinserção social e o Estabelecimento Prisional que, 60 (sessenta) dias antes da data indicada, deverão juntar aos autos os relatórios previstos no art.º 173 n.º 1-a) e b) do Código de Execução das Penas, juntando ainda o Estabelecimento Prisional a ficha biográfica do recluso – elementos que desde já se solicitam.

X

Dispenso novo Certificado do Registo Criminal do recluso.

*

Desde já notifique também o recluso para, querendo, até 60 dias antes da data acima indicada requerer o que tiver por conveniente (cfr. art.º 173 n.º 1-c) do Código de Execução das Penas).

X

Instruídos os autos e decorrido o prazo supra, abra vista ao MºPº para os mesmos efeitos.

X

Registe, notifique e comunique ao Estabelecimento Prisional e aos serviços de reinserção social.

X

Pague-se aos serviços de reinserção social.

(…)

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1 Neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, página 528.

2 Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Direito Prisional Português e Europeu, Coimbra Editora, 2006, p. 356; e também António Latas – Intervenção Jurisdicional na Execução das Reacções Criminais Privativas da Liberdade – Aspectos Práticos, in Direito e Justiça, Vol. Especial, 2004, p. 223 e 224, nota 32.”

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Apreciando

Vejamos, então, se se verificam os pressupostos que determinam que o ora recorrente beneficie do regime de liberdade condicional.

“A liberdade condicional tem como escopo criar um período de transição entre a reclusão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, de forma equilibrada, não brusca, recobrar o sentido de orientação social necessariamente enfraquecido, por efeito do afastamento da vida em meio livre e, nesta medida, a sua finalidade primária é a reinserção social do cidadão recluso, sendo certo que até serem atingidos os dois terços da pena, esta finalidade está limitada pela exigência geral preventiva de defesa da sociedade” (cfr. Anabela Rodrigues, in “A fase de Execução de Penas e Medidas de Segurança no Direito Português, BMJ nº380, pág.26).

O instituto da liberdade condicional é regulado pelos artigos 61º e 63º do Código Penal e tem em vista a liberdade antecipada, mas não definitiva, do recluso, após cumprimento de uma parte da pena de prisão em que foi condenado.

Nos termos do art.61º, nº2, do Código Penal, o tribunal coloca o condenado em prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:

a) for fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes;

b) a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

E nos termos do nº1 do mesmo art.61º do Código Penal, a aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.

Ora, o recorrente, cumpre pena á ordem do Proc.50/18.... da Secção Criminal (Juiz ...) da Instância Central ..., onde foi condenado, pela prática dos crimes de resistência e coacção sobre funcionário, crime contra a preservação da fauna e espécies cinegéticas e detenção de arma proibida, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

O referido crime ocorreu em 12/7/2018, quando o ora recorrente, pretendendo caçar javalis em local onde tal não era permitido e para o que não dispunha de autorização, e tendo sido surpreendido por cinco militares da GNR, apontou-lhes a carabina que segurava, municiando-a, e ameaçou-os a todos de morte, razão por que estes, receosos que aquele disparasse, tiveram que o deixar sair do local, de onde fugiu, sendo que no dia 10/8/2018 são apreendidas na residência do recluso duas armas consideradas proibidas – a carabina que usara anteriormente, e uma faca borboleta.

A pena foi liquidada nos seguintes termos:

- Início – 13 de outubro de 2020;

- Metade – 12 de outubro de 2022;

- Dois terços (2/3) – 12 de junho de 2023;

- Termo – 12 de outubro de 2024;

Prestou consentimento à concessão do regime de liberdade condicional.

A modalidade de liberdade condicional em causa é a facultativa, que assenta em vários pressupostos, de natureza formal e material.

Estão verificados, os pressupostos formais de concessão do regime de liberdade condicional, de acordo com o citado art.61º, nºs 1 e 2, do Código Penal, atento o período de prisão já cumprido, e o condenado manifestou a sua concordância.

Constituem pressupostos substanciais ou materiais da concessão de liberdade condicional de acordo com o citado nº2 do art.61º do Código Penal, por um lado, que seja de esperar fundadamente que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes, tendo-se para tanto em atenção as circunstâncias do caso, a sua vida anterior, a respetiva personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão; e, por outro lado, a compatibilidade da libertação com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

O primeiro destes pressupostos é relativo à prevenção especial, positiva e negativa, à perigosidade do agente e à sua reinserção social.

Exige-se, pois, a viabilidade de um juízo de prognose favorável em relação ao condenado, no sentido de que este, caso seja colocado em liberdade condicional, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.

Ou seja, neste caso, a concessão da liberdade condicional depende não só de um juízo de prognose favorável especial-preventivamente orientado, assente na ponderação de razões de prevenção especial, mas também de exigências de tutela do ordenamento jurídico, consubstanciadas na reafirmação da validade e vigência da norma penal violada com a prática do(s) crime(s), com as quais se tem em vista a realização do fim de prevenção geral (de integração).

“Defesa da ordem jurídica” e “paz social” são conceitos que se ligam às exigências da prevenção geral positiva e da “proteção de bens jurídicos”, ou seja, da necessidade de reafirmação da validade e vigência da norma penal violada com a prática do crime, correspondendo a “proteção dos bens jurídicos” ao reforço da confiança comunitária na validade da ordem jurídica e na proteção que esta assegura aos bens que estruturam a vida social. Diante da violação da ordem jurídica e da agressão a esses valores, a consciência jurídica comunitária poderá ficar abalada se o sistema jurídico-penal não reagir a tal violação, ficando comprometida a referida confiança. A pena exerce, assim, uma função pedagógica de interpelação social que veicula uma mensagem cultural de chamada de atenção para a relevância de valores e bens jurídicos e, nessa medida, traduz-se numa forma de proteção desses bens jurídicos e da ordem jurídica em geral (cfr. neste sentido, Código Penal – Atas e Projeto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, ed. Rei dos Livros, 1993, pág.62).

Assim sendo, porque as razões de prevenção, tanto geral como especial, continuam presentes na fase da execução da pena de prisão, é manifesto que para a aferição do preenchimento dos referidos requisitos, não pode a decisão recorrida deixar de levar em conta a natureza e as circunstâncias em que o recorrente praticou os crimes por que foi condenado, a vida anterior do mesmo e a sua personalidade.

Entende a decisão recorrida que :

“No caso dos autos os pressupostos formais de que depende a concessão da liberdade condicional estão reunidos: o recluso já cumpriu metade da pena de prisão em execução, e aceita a liberdade condicional.

Já quanto aos requisitos substanciais se não pode, a nosso ver, formular idêntica conclusão. É certo que o recluso tem mantido conduta regular em meio prisional.

Mas, apenas isso se pode afirmar de positivo, sendo que essa forma de estar será a normal e exigível a qualquer um.

De facto, o recluso já havia antes sido condenado também por exercício ilegal ou perigoso de caça e por posse de arma proibida. Claramente não compreendeu o sentido das anteriores condenações, tendo voltado a delinquir, e de forma grave, gravidade depois reflectida na pena efectiva de prisão que cumpre.

Acresce que a justificação que agora avança (mas que surpreendentemente não invocou em sede de audiência de julgamento) não foi objecto de prova no momento certo. Parecendo-nos também que, mesmo admitindo que o recluso se pudesse sentir algo desorientado emocionalmente por via de medicação que tomava, nunca isso seria razão para passar a cometer crimes (sendo que já antes da intervenção cirúrgica referida havia cometido crimes da mesma natureza), menos ainda para atentar contra agentes de autoridade. Decorridos mais de 4 anos sobre os factos, verificamos que o recluso ainda não realiza adequado juízo de autocensura sobre o seu comportamento, não se tendo demorado a reflectir sobre o desvalor de tudo o que fez, designadamente na perspectiva dos danos/vítimas provocados. Sinal da sua fraca consciência crítica é, aliás, a própria abordagem que faz quanto aos seus antecedentes criminais, omitindo dois crimes relacionados com o exercício ilegal/perigoso de caça.

Existe, pois, caminho a percorrer neste âmbito, sendo também finalidade (preventiva) da pena imposta que o condenado se preocupe em reflectir no erro cometido, em compreendê-lo, e em trabalhar mecanismos para, ultrapassando fragilidades, não voltar a incorrer no mesmo (ou noutro) tipo de desvio.

O recluso não usufruiu de licenças de saída jurisdicional, não tendo sido ainda possível avaliar o seu comportamento em meio livre, após período de reclusão.

Tudo conjugado, considero que ainda subsistem pontos a trabalhar, que exigem maior evolução e investimento da parte do recluso, sendo que, e enquanto tal não suceder, se mostra ainda inviável formular juízo positivo acerca do seu futuro comportamento em meio livre.

Para além do referido, há que ter presente a natureza dos crimes em causa (designadamente do crime de resistência e coacção sobre funcionário, tipo de ilícito que, infelizmente, vem sendo cometido com elevada frequência, em desrespeito da autoridade e de um democrático dever de obediência), a medida da pena fixada e ainda os antecedentes criminais que o recluso apresenta. Aspectos que acentuam as exigências de prevenção geral ao ponto de não ser ainda exigível à comunidade suportar o risco inerente à libertação antecipada do recluso. Antes se impõe a continuação da prisão como meio necessário à reposição da confiança na vigência das normas jurídicas que violou de forma grave.”

Deste modo, julgamos que a decisão recorrida fez uma adequada interpretação e aplicação do art.61º, nº2, als.a) e b) do Código Penal.

Com efeito, o regime de liberdade condicional em face dos pressupostos de que depende, excecionando evidentemente a obrigatória aos cinco sextos da pena, se o condenado nisso consentir, tem carácter excecional.

E maior será o grau de exigência para a sua concessão quando está em causa uma modificação substancial da condenação consistente no encurtamento da pena, compreendendo-se que assim seja porque a pena já é fixada tendo em consideração as molduras legais cabíveis aos crimes em função da sua gravidade e cuja medida concreta é determinada atentando nas exigências concretas de prevenção.

Daí que apenas deverá ter lugar nas situações excecionais em que se revele patentemente que o condenado está apto a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a que acresce, no caso da concessão atingida que seja metade da pena, o requisito de que a defesa da ordem e da paz pública não sejam postas em causa.

O disposto no artigo 61º, nº 2 do Código Penal exige, pois, que se efetue um prognóstico individualizado e favorável de reinserção social, assente, essencialmente, na probabilidade séria de que o condenado em liberdade adote um comportamento socialmente responsável, sob o ponto de vista criminal.

Para além da vontade subjetiva do condenado, o que releva é a capacidade objetiva de readaptação, de modo que as expectativas de reinserção sejam manifestamente superiores aos riscos que a comunidade deverá suportar com a antecipação da sua restituição à liberdade.

E, assim sendo, tão decisivo não é o bom comportamento prisional em si ou apenas a verbalização de arrependimento, mas os índices de ressocialização revelados pelo condenado, que devem ser aferidos de acordo com as circunstâncias concretas de cada caso, mormente a sua conduta anterior e posterior à sua condenação, os motivos desta e da conduta que a determinou, bem como a sua personalidade, designadamente a sua evolução ao longo do cumprimento da respetiva pena de prisão no sentido de interiorizar o desvalor da sua conduta.

Impõe-se que o recluso consolide o seu percurso prisional e que evolua favoravelmente ao nível da consciência crítica relativamente ao seu comportamento criminoso, por forma e não repetir condutas criminosas.

E, assim sendo, não se poderia considerar integralmente preenchido, com um mínimo de segurança, o requisito da alínea a) do nº2 do art.61º do Código Penal, porquanto o juízo fundado no disposto nesta alínea do transcrito preceito exige a formulação de uma prognose inteiramente favorável que não contenha pontos de descontinuidade.

Mais se dirá que o requisito da defesa da ordem e da paz social, que a libertação não pode colocar em crise, deve ter interpretação compaginável com o disposto no artigo 40º, nº 1 do Código Penal.

Assim, o que deve ser ponderado é se a pena já cumprida protege suficientemente o bem jurídico violado, tendo em conta o facto cometido e a personalidade do agente que o cometeu na sua evolução em face da pena sofrida ou se defraudará as expectativas comunitárias na validade da norma.

Com efeito, a prática dos tipos de crime em causa, pelos quais foi o recorrente condenado em pena que vem cumprindo, causa alarme e indignação na sociedade em geral. Este tipo de ilícitos, pela sua natureza, pelo tipo de consequências que acarreta, e pelo seu significado ético, são tidos como graves, sendo a sua punição efetiva, equivalente ao cumprimento efetivo da pena, uma exigência de prevenção geral óbvia.

Está em causa a perceção por parte da comunidade da mensagem que representaria a libertação do recorrente e do que tal possa representar quanto ao papel pedagógico do sistema penal na perspetiva da defesa de bens jurídicos importantes.

Nesta fase do cumprimento da pena a liberdade condicional frustrava o sentimento geral de vigência das normas punitivas que o recorrente violou com a prática dos crimes por que foi condenado, não se revelando compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

Impõe-se, assim, negar provimento ao recurso.

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Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.

- Condenar o recorrente em 3 (três) UCs de taxa de justiça.

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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 24 de janeiro de 2023


Laura Goulart Maurício

J. F. Moreira das Neves

Maria Clara Figueiredo