ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
GARANTIAS DE DEFESA DO ARGUIDO
CRIMES SEXUAIS
MENOR
ESPECIAL VULNERABILIDADE DA VÍTIMA
Sumário

I. A alteração factual que se constata como introduzida pelo despacho e comunicação em questão apenas se prende com os exactos dias úteis da semana em que os actos sexuais ocorreram traduz-se em que o tribunal recorrido não acrescentou factos novos ao libelo acusatório, apenas especificou as concretas circunstâncias temporais em que tais factos ocorreram, mantendo todo o demais contexto imputado ao arguido (a mesma construção e identificação factual e a mesma valoração social), e assegurando todas as garantias de defesa do arguido - comunicação, concessão de palavra para contraditório ou, no dizer da lei processual, “para a preparação da defesa”-, pelo que não se pode falar em violação do principio da vinculação temática, mas apenas em alteração não substancial dos factos para os efeitos do art.º358º CPP.
II. Não configura qualquer violação do disposto no art.º 355º do Código de Processo Penal quando a testemunha relata e confirma a existência de «(…) áudios em que se ouvia claramente o padrasto dela a falar com ela e a tentar persuadi-la a ter actos sexuais (…)» -, sem que qualquer gravação tenha sido exibida/ouvida em audiência, e o Tribunal a quo apreciou e valorou livre e licitamente todo o depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha, enquanto corroborativa da versão dos factos apresentada pela vítima, sendo apenas aquela gravação referida como sendo a razão de ciência de aspectos concretos do depoimento da referida testemunha.
III. Nos processos por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores mostra-se necessário ter presente a especial vulnerabilidade da vítima, em razão da sua idade e da natureza dos actos de que foi vítima, perturbadores da sua intimidade e integridade sexual, pelo que nos encontramos perante a excepção prevista no art.º 271º CPP com utilização de declarações para memória futura como meio probatório.
IV. Sendo tais declarações prestadas com o cumprimento de todas as devidas formalidade legais e com o exercício do contraditório pelo arguido, as mesmas merecem inteira credibilidade pela forma como foram prestadas, não revelando a menor segurança e objectividade, não existindo o mínimo indício de discursos efabulados ou afastados da lógica e experiência comum, mesmo quando confrontados com os resultados evidenciados nos relatórios que o recorrente invoca.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I.
No processo comum n.º 918/18.4JALRA do Juízo Central Criminal ..., Comarca ..., o arguido AA foi submetido a julgamento, após ter sido pronunciado da prática, como autor material e em concurso real, dos seguintes crimes:
- Vinte crimes de coação sexual agravada, p. e p. nos artigos 163.º, n.º 1 e 177, n.º 1, alínea b), n.º 6 e n.º 8, ambos do Código Penal;
- Um crime de violação agravado, p. e p. nos artigos 164.º, n.º 1, alínea a) e 177, n.º 1, alínea b), n.º 6 e n.º 8, ambos do Código Penal;
- Um crime de violação agravado na forma tentada, p. e p. nos artigos 22.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), 164.º, n.º 1, alínea a) e 177, n.º 1, alínea b), n.º 6 e n.º 8, todos do Código Penal;
- Um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1 e n.º 2, este referido ao artigo 132.º, n.º 2, alíneas c) e g), todos do Código Penal.
Realizada a audiência, na qual foi comunicada ao arguido uma alteração não substancial dos factos e uma alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP, e facultado o exercício do direito ao contraditório nos termos e para os efeitos previstos no artigo 82.º-A do CPP no sentido de que a matéria factual da acusação é susceptível de consubstanciar a prática pelo arguido, em autoria material, não de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. peio artigo 171°, n°. 1, do Código Penal e de três crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artigos 171.°, n.ºs 1 e 3, al. a) e 170°, ambos do Código Penai, conforme o mesmo se encontrava acusado, mas de, pelo menos, dois crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171°, n°. 1, do Código Penal e de seis crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artigos 171.°, n.ºs 1 e 3, al. a) e 170°, ambos do Código Penal.
A final, foi proferido acórdão em que foi decidido, na parte que ora releva:
1. Absolver o arguido da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1 e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alíneas c) e g), todos do Código Penal.
2. Convolar o crime de violação agravado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, nº 1 e 2, al. b), 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 1, al. b), n.ºs 6 e 8, todos do Código Penal, num crime de violação agravada na forma consumada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal [na redação em vigor à data dos factos].
3. Condenar o arguido pela prática de quinze crimes de coação sexual agravada, p. e p. pelos artigos 163.º, n.º 1 e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal [na redação em vigor à data dos factos], absolvendo-o dos demais, nas penas parcelares de 2 (dois) anos de prisão e nas penas acessórias parcelares de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, cada uma por um período de 5 (cinco) anos.
4. Condenar o arguido pela prática de dois crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal [na redação em vigor à data dos factos], nas penas parcelares de 5 (cinco) anos de prisão e nas penas acessórias parcelares de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, e de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, cada uma por um período de 5 (cinco) anos.
5. Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de prisão efetiva de 12 (doze) anos, na pena acessória única de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, por um período de 6 (seis) anos, e na pena acessória única de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, por um período de 6 (seis) anos.
6. Condenar o arguido no pagamento à vítima BB de uma indemnização arbitrada no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos desde a presente data e até efetivo e integral pagamento – arts. 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09, 67.º-A e 82.º-A, do CPP.”

Deste acórdão condenatório veio o arguido interpor recurso, com os fundamentos constantes da respectiva motivação que aqui se dá por reproduzida e as seguintes conclusões:
“1. O art.º 32.º n.º 5 da Constituição, ao violar, como se demonstrou nas alegações o princípio do acusatório, princípio estruturante do processo penal português, bem como do seu corolário o princípio da delimitação do objecto do processo, que ocorre com a acusação ou com o despacho de pronúncia, sendo inconstitucional na interpretação que faz ao entender que pode condenar o arguido por factos não provados, nomeadamente, os 15 crimes de coacção sexual agravada e os dois de violação agravada, quando as provas objectivas, para além das declarações para memória futura da menor BB demonstram que a violação não ocorreu.
2. O art.º 32.º n.º 10 da Constituição ao entender que o arguido podia ser condenado pela prática de 15 crimes de coacção que nos termos da acusação, do despacho de pronúncia e das declarações para memória futura da menor BB, foram cometidos às 4.ªs e 5.ªs feiras de cada semana. Ao ser demonstrado que tal não seria possível, pela junção do horário escolar da menor, o tribunal alterou a acusação, incluiu-lhe outros factos e condenou o arguido sem que este tivesse tido oportunidade de se defender, de exercer o contraditório. Entendeu o tribunal que se os crimes de coacção sexual agravada não ocorreram às 4.ªs e 5.ªs feiras entre as 10 e as 12h é porque ocorreram noutros dias e a outras horas, sem determinar quais e condena o arguido em qualquer dos casos. Sem prova, sem determinação das circunstâncias, sem que o arguido tivesse tido oportunidade de se defender destes novos factos. Tal interpretação do n.º 10 do art.º 32.º da Constituição é inconstitucional.
3. O art.º 355.º do CPP, que determina que não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. Ora o tribunal a quo valorizou, como se viu, prova não produzida em juízo, nomeadamente a de, alegadamente, incriminador áudio, que não foi ouvido em juízo e com o qual o arguido não foi confrontado, para saber o que este contém e para se defender sendo caso disso.
4. Violou também o art.º 355.º, n.º 1 do CPP, que proíbe a valoração de provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. Seja, como já se referiu tanto pelo áudio, como pelos dias e horas em que ocorreram os alegados crimes de coacção sexual agravada.
5. Violou o art.º 410.º n.º 2, al c) por erro notório na apreciação da prova, tudo como se demonstrou durante o DESENVOLVIMENTO.
6. Violou o art.º 163.º n.º 1 e art.º 177.º n.º 6, ambos do Código Penal, ao condenar o arguido por 15 crimes de coacção sexual agravada dado que não se produziu prova que permitisse integrar a conduta do arguido no tipo de crime previstos nestas disposições legais.
7. Violou o art.º 164.º, n.º 1 al. a) e art.º 177.º n.º 6, ambos do Código Penal ao condenar o arguido pela prática de dois crimes de violação agravada dado que não se produziu prova que permitisse integrar a conduta do arguido no tipo de crime previsto nestas disposições legais.
8. Violou o art.º 69.º - B, n.º 2 e art.º 69.º - C n.º 2, ambos do Código Penal ao condenar o arguido nas penas parcelares de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou provadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, bem como a proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pois não tendo cometido os crimes de que foi acusado e deles devendo ser absolvido, não se justifica a aplicação das penas acessórias parcelares.
9. Violando também o art.º 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09 e o art.º 67.º-A e art.º 82-A, ambos do Código de Processo Penal, ao condená-lo no pagamento à menor BB uma indemnização arbitrada no valor de € 5000,00 (cinco mil euros), pois não causou dano algum à menor por não ter cometido os crimes de que vem acusado.”
Conclui no sentido de a sentença recorrida ser declarada nula por falta de fundamentação, e o arguido absolvido dos crimes pelos quais foi condenado.

O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu, concluindo:
“1. O princípio da vinculação temática do processo penal aos factos constantes da acusação/pronúncia, um dos corolários do princípio do acusatório constitucionalmente consagrado, sofre as derrogações previstas na lei, nomeadamente, a do artigo 358.º do CPPenal.
2. O regime previsto no citado preceito legal foi estritamente observado em julgamento, tendo o arguido declinado exercer, como podia e devia, o seu direito de defesa quanto aos factos e qualificação jurídica novos que então lhe foram dados a conhecer, redundando a presente alegação, nesta fase processual, em manifesto abuso desse direito.
3. No parecer do recorrente, os factos novos que, concretamente, põem em crise a validade da decisão prendem-se com os exactos dias úteis da semana em que os actos sexuais ocorreram.
4. O tribunal a quo, e bem, desvalorizou tal elemento, não essencial, dos convocados tipos de crime, fazendo fé, com base essencialmente no depoimento esclarecido e coerente da jovem, que os factos com relevância criminal ocorreram com determinada cadência, sendo-lhe perfeitamente indiferente – como tinha de ser, porque não revelador de falta de credibilidade do testemunho de BB, mas, porventura, de confusão associada à erosão da memória – se o arguido manteve com ela comportamentos de cariz sexual às quartas e quintas-feiras ou às segundas e terças-feiras.
5. AA aproveitou as ausências matutinas da residência comum, no trabalho, da sua companheira e mãe de BB, para praticar os crimes, sendo manifestamente insignificante em que precisos dias úteis da semana essa oportunidade se “proporcionou”.
6. O acórdão recorrido não violou o princípio do acusatório.
7. No que concerne a crítica do arguido ao impugnado acórdão quanto à decisão de dar como assente a factualidade descrita no segmento dos FACTOS PROVADOS, com base num “incriminador áudio, que não foi ouvido em juízo e com o qual o arguido não foi confrontado, para saber o que este contém e para se defender sendo caso disso”, o mesmo mais não pretende do que, ao arrepio do princípio da livre apreciação da prova, fazer prevalecer aquilo que entende que deveria ter sido dado como não provado, a partir de uma sua muito pessoal interpretação dos factos trazidos à apreciação do tribunal.
8. Uma modalidade de ponderação discricionária da prova é a utilizada pelo recorrente, ao destacar uma gravação a que o tribunal aludiu incidentalmente na motivação da decisão de facto, sem lhe atribuir significado de tomo, e fazer tábua rasa da prova emergente dos depoimentos da vítima, BB, e das testemunhas CC, DD e EE, dos elementos documentais – auto de notícia de fls. 41, comunicação de notícia crime de fls. 56-57, reportagem fotográfica de fls. 72-79 e relatório de fls. 108 – e do relatório pericial de Psicologia, em lugar de proceder a uma análise objectiva e a uma crítica imparcial e contextualizada de todos esses elementos, análise que, pelas razões aduzidas na fundamentação, à luz das regras da experiência comum, foi decisiva para formar a convicção do tribunal.
9. A decisão recorrida não se escorou em prova produzida fora da audiência, inexistindo qualquer violação do artigo 355.º do CPPenal.
10. Examinada a decisão recorrida, não foram dados como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica do homem médio, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena não arguidos de falsos.
11. O acórdão sob apreciação não padece de erro notório na apreciação da prova.
12. O acórdão recorrido não violou quaisquer normas, nem está ferido de qualquer nulidade.”

Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta elaborou parecer em que se pronuncia sobre todas as questões suscitadas no recurso e termina com o entendimento de que o recurso interposto deve ser julgado totalmente improcedente.
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º n.º 2 CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta ao parecer.


II.
Colhidos os vistos legais, procedeu-se à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art.º 410º n.º 2 do C.P.P. (cfr. Ac. STJ para fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95).
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões suscitadas são:
- Violação do princípio do acusatório consagrado no art.º 32.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa;
- Violação do disposto no art.º 355º do Código de Processo Penal
- Vício de erro notório na apreciação da prova.

Do acórdão recorrido consta o seguinte:
Factos provados
Discutida a causa e com relevância para a sua boa decisão, resultaram provados os seguintes factos:
DA PRONÚNCIA
1. BB nasceu no dia .../.../2006 e é filha de FF e de CC.
2. A mãe de BB e o arguido AA viveram em condições análogas às dos cônjuges entre o ano de 2012 e outubro de 2018.
3. À data dos factos, BB residia com a mãe e o arguido no Bairro ..., ..., ....
4. Em datas concretamente não apuradas, mas situadas entre o verão de 2016 e o dia .../.../2018, AA dirigiu comportamentos de cariz sexual à filha da sua companheira.
5. Tais comportamentos começaram nas férias do verão de 2016, a pretexto da necessidade de alertar BB para “as relações com os rapazes”.
6. O arguido encetou conversas versando sobre sexualidade, levando BB a crer que estava verdadeiramente preocupado consigo, mas tais conversas evoluíram para outras, de teor pornográfico, chegando mesmo o arguido a obrigar a criança a ver fotografias e filmes pornográficos.
7. Seguidamente, com frequência, sempre que havia oportunidade e ninguém pudesse dar conta, o arguido começou a tocar nas mamas e na zona genital de BB e a obrigá-la a tocar-lhe no pénis.
8. Quando BB resistia com mais veemência a ceder aos intentos do arguido, este encostava-a contra a parede e apertava-lhe o pescoço, magoando-a.
9. Assim, com uma periodicidade de cerca de duas vezes por semana, preferencialmente às quartas e quintas-feiras, entre as 10 e as 12 horas, aproveitando a ausência da mãe de BB no trabalho, cujo horário matutino era entre as 9 e as 13 horas, o arguido abordava a menor para manter com ela comportamentos de cariz sexual.
10. O arguido ia ao encontro de BB no quarto ou na sala e executava gestos masturbatórios, ejaculando para cima da barriga da menor.
11. Bem como, quis e tentou que fosse BB a manipular o seu pénis e que praticasse consigo sexo oral, mas tais intentos nunca se consumaram
12. Situações como a acabada de descrever aconteceram pelo menos quinze vezes.
13. Tal situação manteve-se até ao início do ano de 2018, altura em que, em data e circunstancialismo concretamente não apurados, apesar de BB oferecer resistência física, procurando libertar-se do arguido, este introduziu o pénis no ânus da menor.
14. Bem como, numa outra ocasião, em data e circunstancialismo também concretamente não apurados, o arguido foi ter com BB e introduziu parcialmente o pénis na vagina daquela, de forma a que lhe desse prazer, mas que não tirasse a virgindade à menor.
15. Depois de todos e em cada um dos episódios referidos, o arguido exigiu a BB que não os revelasse a ninguém, anunciando que lhe batia, que a matava, que fazia mal à família e aos amigos e que deixava a sua mãe sem dinheiro, caso contasse o que se passara.
16. Nas vezes em que BB, desesperada, disse ao arguido que o ia denunciar, o mesmo chegou a bater-lhe por todo o corpo e apertar-lhe o pescoço.
17. A últimas das situações sucedeu no dia .../.../2018, desta feita por volta da hora do jantar, encontrando-se o arguido sozinho em casa com BB, porque a mãe desta tinha ido ao Hospital ... por causa de uma indisposição.
18. O arguido alcançando BB, atirou-se a ela e sobre o tapete da cozinha, onde esta se debateu, executou gestos masturbatórios, até ejacular para cima da barriga de BB.
19. Ao atuar pela forma descrita em «7.» a «11.», «17.» e «18.», em pelo menos quinze ocasiões, livre, voluntária e conscientemente, o arguido quis e conseguiu satisfazer os seus instintos libidinosos, sabendo que BB era filha da sua companheira, que coabitava consigo, que quando a abordou pela primeira vez contava apenas dez anos de idade, que, dada a desproporção de forças com a menor, lograria constrangê-la a com ele praticar atos sexuais e que a ofendia na sua autodeterminação e desenvolvimento sexuais.
20. O arguido AA ainda agiu com o propósito concretizado de, pela atuação descrita em «13.», forçar BB, como efetivamente forçou, a sofrer introdução anal do seu pénis, contra a vontade daquela e pondo em crise a sua liberdade sexual, o que representou.
21. De igual modo, ao agir do modo narrado em «14.», o arguido agiu com o propósito de forçar BB, como efetivamente forçou, a sofrer introdução vaginal do seu pénis, contra a vontade daquela e pondo em crise a sua liberdade sexual, o que representou.
22. Por outro lado, sempre que bateu na BB ou lhe apertou o pescoço, AA agiu livre, voluntária e conscientemente e com a intenção de molestar fisicamente BB, conhecendo que a menor tinha apenas dez, onze ou doze anos e que, por isso, a sua capacidade de defesa era, em relação à dele arguido, manifestamente desproporcional e que, por esse modo, a silenciaria quanto às agressões sexuais.
23. Em todo o circunstancialismo narrado, o arguido AA sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, sendo capaz de as orientar de harmonia com esse conhecimento.
*
DO PERCURSO, CONDIÇÕES DE VIDA E ANTECEDENTES CRIMINAIS DO ARGUIDO
24. AA é oriundo de um núcleo familiar (pais e uma irmã) de condição social e económica mediana, tendo vivido num ambiente afetivamente coeso, que lhe proporcionou a transmissão de normas e valores socialmente aceites, conforme dados recolhidos junto das fontes contactadas.
25. A frequência escolar decorreu com fraco investimento, tendo após a conclusão do 6.º ano de escolaridade abandonado a escola, com cerca de 16 anos.
26. Ingressou no mercado de trabalho com essa idade, por sua opção, iniciando um percurso profissional que caracteriza com hábitos de trabalho e sem períodos significativos de inatividade laboral. No seu trajeto exerceu diversas atividades, nomeadamente nas áreas da padaria, canalização e jardinagem. Durante alguns anos trabalhou também no armazém da empresa dos avós paternos da ofendida do presente processo, sendo amigo de infância do pai da menor.
27. Os períodos de inatividade laboral correspondem a situações de baixa médica em que AA esteve após ter sofrido diversos de acidentes de viação, nos anos de 1998, 2000 e 2002. Um destes acidentes provocou sequelas significativas ao nível da face, tendo sido sujeito a várias cirurgias de reconstrução.
28. O arguido situa a sua iniciação sexual no início da idade adulta, em experiências a que não atribui especial significado, do ponto de vista afetivo, manifestando algum constrangimento na abordagem deste assunto. Refere a primeira experiência de relacionamento marital, com cerca de 38 anos, iniciada com CC, mãe de BB, com quem iniciou uma relação amorosa, após a separação desta do pai da menor.
29. A relação marital, que durou cerca de 6 anos, é descrita, quer pelo próprio, quer pela mãe da ofendida como positiva e gratificante, incluindo ao nível das relações de intimidade. Coabitaram com a filha da companheira, BB, contexto familiar onde se inscrevem os factos pelos quais está acusado no presente processo.
30. No período temporal dos factos pelos quais está acusado, AA integrava o agregado familiar constituído pela companheira CC e a enteada, BB.
31. O relacionamento do arguido com a enteada era afetivo e descontraído, participava em atividades lúdicas com a menor, nomeadamente nas festas de aniversário, bem como com outras crianças da vizinhança.
32. Não obstante, AA não exercia um papel educativo significativo junto da enteada, optando por ser a companheira a agir nessa dimensão, assim como o pai da menor que tinha um papel importante e presente no quotidiano da filha.
33. Na sequência do presente processo, o arguido saiu da habitação do agregado familiar que integrava, passando a residir junto dos pais, após alguns dias de permanência na habitação da irmã, a residir noutra localidade, dado o conhecimento público da situação na zona de residência dos pais.
34. No presente, AA reside com os pais, na localidade onde residem, igualmente, o pai e os avós paternos da menor.
35. A nível familiar, a interação do arguido com os pais, irmã e cunhado é positiva.
36. Trabalha desde há cerca de 2 anos na empresa C..., com sede em ..., auferindo um salário de €665.
37. Indica como despesas fixas a quantia de €40,90 referente a telecomunicações e €200 que entrega mensalmente aos pais para contribuir nas despesas familiares.
38. No plano pessoal AA apresenta competências para distinguir o lícito do ilícito, surgindo como uma pessoa tímida e com alguma dificuldade em expressar os seus sentimentos.
39. No meio de residência, de características rurais, o envolvimento no presente processo é conhecido, sendo o arguido percecionado como pessoa discreta e de bom relacionamento com os outros.
40. O arguido não tem antecedentes criminais.
*
Factos não provados
Não resultaram provados, com relevo, os seguintes factos:
a. Que, no contexto descrito em «8.» dos factos provados, o arguido empurrava a BB contra os móveis ou para o chão.
b. Que, o episódio descrito em «13.» dos factos provados, tenha ocorrido de manhã, quando BB encontrava-se no seu quarto, ainda deitada a dormir, e o arguido a tenha acordado e colocando-a de barriga para baixo, puxou-lhe as calças e as cuecas que vestia e colocou-se em cima dela.
c. Que o facto descrito em «14.» dos factos provados tenha sucedido na cama da BB e após a despir.
d. Que no contexto descrito em «10.» dos factos provados, o arguido deitava-a, postava-se em cima de si, obrigava-a a puxar a roupa – camisa, camisola, t-shirt, etc. – até descobrir o soutien e tirava o pénis para fora das calças.
e. Que no contexto descrito em «17.» dos factos provados, o arguido após encetar conversa de cariz pornográfico com BB, esta tentou fugir de casa, sendo que, antecipando essa possibilidade, o arguido trancara a porta.
f. Que, no contexto descrito em «18.» dos factos provados, AA apertou-lhe o pescoço e bateu-lhe.
g. Que depois do acontecimento descrito em «18.», o arguido mandou-a tomar banho, mudar de roupa e preparar a roupa e a mochila para o dia seguinte.
*
Não resultaram provados ou não provados quaisquer outros factos com relevo à boa decisão da causa.
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Motivação:
A formação da convicção do Tribunal assentou na apreciação conjunta realizada aos diferentes meios de prova carreados para os autos e produzidos em Audiência de Discussão e de Julgamento, analisados em si, entre si e de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
A factualidade descrita em «1.» a «3.» resultou do assento de nascimento da menor BB, de fls. 117-118, e do declarado a respeito pelo arguido em sede de audiência de discussão e de julgamento, que o confirmou, em consonância com o que já havia sido declarado pela menor em sede de declarações para memória futura e com o deposto pela testemunha CC, mãe da menor e ex-companheira do arguido, em sede de audiência de discussão e de julgamento.
A factualidade descrita em «4.» a «18.» foi atestada pelas declarações para memória futura prestadas no dia .../.../2020, na fase de inquérito, pela vítima BB (transcritas para os autos), à data com 13 anos de idade. Nessa sede, diante do Sr. Juiz de Direito que presidiu à referida diligência, de forma bastante segura, eloquente, lógica, pormenorizada e sentida, a menor atestou os referidos factos, com relação ao arguido, companheiro da sua mãe e com quem coabitava desde os seus 6 anos de idade, nos termos em que o Tribunal deu como provados.
De facto, foi possível extrair dessas declarações, com a segurança necessária, toda a referida factualidade, contextualizada no espaço e no tempo nos termos declarados pela menor e que, por isso, assim se deram como provados. Destarte, qualquer elemento de prova foi trazido aos autos que pudesse infirmar o aí declarado por BB.
O arguido, manifestando vontade em prestar declarações, apenas confirmou a factualidade descrita em «1.» a «3.», negando toda a demais, não tendo, contudo, sido capaz de apresentar qualquer explicação plausível sobre o motivo que terá levado a menor a denunciar os factos em causa, limitando-se a ponderar a circunstância de os pais estarem separados, apesar de admitir que todos se davam bem.
Por outro lado, as testemunhas arroladas pela defesa, GG e HH, para quem o arguido trabalhou como jardineiro, pese embora tenham revelado surpresa pelos factos imputados ao arguido, porquanto nunca se aperceberam de qualquer comportamento semelhante por parte do arguido, descrevendo-o como sendo uma pessoa trabalhadora, séria, respeitada e confiável, não presenciaram qualquer facto relativo à referida factualidade. Pelo que, não tiveram a virtualidade de fragilizar as declarações para memória futura prestadas pela vítima.
De referir, quanto ao relevo dado às referidas declarações prestadas pela vítima, conforme é entendimento uniforme na Jurisprudência e na Doutrina, nas situações de abuso sexual de crianças e similares, por força das circunstâncias, a prova é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, sendo regra geral apenas terem conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, baseada nos conhecimentos que sobre a matéria vêm sendo transmitidos pelas investigações psicológicas, pois só nesse caso é suscetível de formar a convicção do julgador, como, de resto, o foi no presente caso. Destarte, em matéria de “crimes sexuais” as declarações da vítima têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante; pelo que, não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta, como são os crimes sexuais.
A par, da perícia psicológica realizada à menor, cujo relatório se encontra a fls. 176-179, resultou a conclusão de que «Ao longo da avaliação pericial, as respostas de BB pareceram ser genuínas e credíveis, uma vez que demonstraram elevada compatibilidade com a expressão emocional facial e corporal observadas e que os seus relatos não revelaram grandes contradições e inconsistências. A elevada maturidade emocional e linguística observadas, configuram-se como factores positivos e que contribuem para a boa qualidade formal do seu depoimento e credibilidade associadas aos relatos da Menor.» (sic).
Assim, com base nas declarações da vítima BB, com o dito relatório pericial, bem como com a prova documental carreada para os autos, a saber: auto de notícia de fls. 41; comunicação de notícia crime de fls. 56-57; reportagem fotográfica de fls. 72-79 e relatório de fls. 108, bem ainda com os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela acusação, CC, EE e DD, que nos mereceram total credibilidade atenta a forma colaborante, tranquila e segura como depuseram, o Tribunal formou a sua convicção quanto à referida factualidade.
De notar ainda o resultado da perícia de natureza sexual em direito penal, a que a menor foi sujeita no dia .../.../ 2018, cujo relatório se encontra a fls. 50-52: apesar de não terem sido observados sinais objetivos de lesões traumáticas ou seus vestígios, a nível de região genital ou anal, tal não significa que não tenham sido exercidas sobre BB as práticas sexuais por si relatadas, resultado esse expectável, diga-se, em consonância com o declarado por ela em sede de declarações para memória futura, quando aí afirmou que o arguido tinha a preocupação de não deixar vestígios dos atos sexuais sobre si empreendidos, tal como sucedeu com o coito vaginal e coito vaginal ocorridos: «(...) porque ele sabia se me tirasse a virgindade ou se deixasse algum tipo de marcas... impressões digitais, não usasse preservativo... que eu iria ter prova em como ele fez aquilo... então ele enfiava muito pouco... de forma a que lhe desse prazer mas que não me... modificasse o corpo, pronto.» (sic).
Por outro lado, da circunstância de o horário escolar da BB na época escolar 2017/2018, junto aos autos no decurso da audiência de julgamento, resultar que a mesma tinha aulas nos períodos da manhã, às 4.ªs e 5.ªs feiras, tal não nos permite, por si só, concluir que a menor faltou à verdade quando disse que os factos ocorriam nesse contexto temporal e que os comportamentos do arguido não tenham sido praticados nesses dias da semana ou noutros, tal como declarado pela menor. Conforme a mesma também referiu nas declarações para memória futura que prestou, os factos iniciaram-se em período de férias escolares, mais concretamente, no verão de 2016, perdurando até outubro de 2018. Por outro lado, a mesma referiu que os factos ocorriam «duas vezes por semana, mais ou menos» (sic), o que significa, portanto, que os mesmos poderão ter ocorrido também em dias da semana distintos das 4.as e 5.as feiras, designadamente no período escolar, mas com uma periodicidade bissemanal por regra.
Por outra banda, não foi relatado por qualquer testemunha uma qualquer razão para que BB fantasiasse o por si declarado e que quisesse por qualquer motivo prejudicar o arguido, tanto que, conforme mais uma vez por ela declarado, tinha um bom relacionamento com ele, descrevendo-o como sendo muito simpático para consigo, tratando-a como se fosse sua filha até aos seus 10 anos de idade, altura em que começou a dirigir-lhe comportamentos de cariz sexual, sob o pretexto de que, face à sua idade, precisaria de aprender como lidar com os rapazes, sobre sexualidade.
Com efeito, CC, mãe da BB e, à data dos factos, companheira do arguido, de modo muito emotivo, mas tranquilo, explicou o contexto em que tomou conhecimento dos mesmos, através da psicóloga da escola, tendo descrito o sucedido como a maior desilusão, tristeza, da sua vida, porque nada aparentava o que estava a suceder, existindo uma boa relação entre todos. Mais afirmou que, quando confrontou a filha com os factos, dados a conhecer pela psicóloga da escola, a mesma estava muito assustada, amedrontada, com receio do que pudesse suceder a si e à sua família, nunca tendo, em momento algum, duvidado da sua filha, porque a conhece muito bem. Disse ainda que, após os relatos da filha, compreendeu o mal-estar observado na filha por duas ocasiões, em que a mesma demonstrou repulsa pelo arguido, o que, na altura, associou apenas a eventuais ciúmes da sua relação com ele e nada mais. Atestou ainda o seu horário de trabalho e, assim, os períodos em que se encontrava ausente da habitação, conforme descrito no facto «9.». Por fim, referiu que a filha ainda hoje dorme consigo, do receio que sente em andar sozinha e de que algo de mal aconteça com ela e consigo.
DD e EE, amiga e colega de escola da BB, e sua mãe, respetivamente, atestaram o contexto em que tomaram conhecimento dos factos, pela própria BB, e da decisão de comunicar à psicóloga da escola o que estaria a suceder, a qual, por seu turno, contou á mãe da menor. Assim, DD explicou que, quando frequentava o 7.º ano de escolaridade juntamente com a BB, esta, de modo perturbado, contou-lhe que o padrasto abusava sexualmente dela há já algum tempo, quando estavam sozinhos em casa, tendo visto a BB com nódoas negras nos braços e no tronco, causadas, segundo ela, pela resistência que BB oferecia aos intentos do arguido, corroborando, assim, o declarado pela menor e levado à factualidade provada nos pontos «8.» e «16.». Mais declarou ter ouvido um áudio do padrasto, pessoa que conhecia, gravado pela BB, a tentar persuadi-la a ter atos sexuais com ele, em tom agressivo. Disse ainda, por fim, que a amiga andava perturbada com tudo o sucedido.
Ora, diante da análise acabada de expor, pese embora o arguido tenha negado a factualidade cuja prática lhe é imputada, o Tribunal não teve dúvidas em dar a mesma como provada, nos termos em que o fez.
Os factos descritos nos pontos «19. a 23.» da factualidade evidenciada, de índole subjetiva, porque insuscetíveis de prova direta, dada a sua natureza, extraem-se dos factos objetivos provados, os quais, tendo em conta as regras da lógica e da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal factualidade.
Os factos elencados sob os pontos «24. a 39.» da factualidade provada, referentes ao trajeto e condições de vida do arguido, resultaram do teor do relatório social determinado realizar e junto aos autos, corroborado que foi em parte com o deposto a respeito pelas testemunhas arroladas pelo arguido, GG e HH, nos termos precedentemente já aludidos.
O facto «40.» referente à ausência de antecedentes criminais do arguido, adveio do seu CRC incólume, também junto aos autos.
Os factos não provados, elencados sob os pontos «a.» a «g.» resultaram da sua falta de prova.
Destarte, das declarações para memória futura prestadas pela BB, única testemunha que os poderia asseverar nos termos aí descritos, os mesmos não resultaram assim demonstrados, mas apenas de acordo com o que o Tribunal deu como provado e que, assim, levou à factualidade provada.“

Apreciando.
Violação do princípio do acusatório consagrado no art.º 32.º n.ºs 5 e 10 da Constituição da República Portuguesa:
A primeira das questões elencadas como sendo suscitadas pelo recorrente mostra-se fundada na alegação, enquanto fonte geradora da violação das normas constitucionais indicadas, de que o tribunal a quo deu como provados factos que a acusação não conseguiu provar, vinha acusado de 20 crimes de coacção sexual agravada, tendo terminado o julgamento por ser condenado por 15 crimes de coacção sexual agravada, em outros dias que não as 4.ºs e 5.ºs feiras da semana. Factos de que o arguido não vinha acusado, violando assim o princípio da delimitação do objecto processual, agindo como se o sistema processual penal português estivesse subordinado ao princípio inquisitório – em que o julgador acusa e condena, sem dar ao arguido a oportunidade de se defender. E nesta circunstância violou tanto o n.º 5 art.º 32.º, como também o n.º 10 do mesmo artigo da Constituição; em suma, por factos distintos dos que constavam na pronúncia e com tipificação diversa da que nessa decisão foi considerada.
Na leitura que fazemos do alegado pelo recorrente, os factos novos que, concretamente, põem em crise a validade da decisão prendem-se com os exactos dias úteis da semana em que os actos sexuais ocorreram.
Havendo-se obtido o horário de BB no ano lectivo de 2017/2018, propugna o arguido que às quartas e quintas-feiras, entre as 10 e as 12 horas, a menor estava a ter aulas, pelo que, ao contrário do que figurava na pronúncia, ele não podia ter perpetrado os factos no ínterim temporal desses dias úteis.
O M.º P.º defende que não houve qualquer violação do princípio do acusatório.
Vejamos.
O Código de Processo Penal estabelece no seu art.º 379º o regime da nulidade da sentença. Esta patologia, nos termos do n.º 1 do artigo citado, só ocorre nas situações previstas nas suas três alíneas, a saber [tendo em vista a forma comum do processo penal]: a) a ausência das menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do art.º 374º portanto, e além do mais, a inexistência de fundamentação; b) a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, e c) a omissão ou o excesso de pronúncia.
In casu, relevaria como consequência inevitável do que afirma o recorrente, a nulidade da alínea b), a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358.º e 359.º.
O art.º 32º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa confere ao nosso processo penal estrutura, essencialmente, acusatória. Essencialmente, na medida em que essa estrutura se mostra temperada, a espaços, pelo princípio da investigação apresentando, portanto, alguns elementos de natureza inquisitória.
Resumidamente, diremos que o princípio do acusatório significa que só se pode ser julgado pela prática de um crime mediante prévia acusação que o contenha, deduzida por entidade distinta do julgador e constituindo ela, acusação, o limite do julgamento. Trata-se de uma garantia fundamental do julgamento imparcial, do processo equitativo, do due process of law (art. 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa), pela qual se confere ao tribunal a tarefa de julgar os factos da acusação (ou pronuncia se a houver, como no caso) e não, de proceder oficiosamente à sua investigação (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 522).
Num sistema processual penal de estrutura essencialmente acusatória, o exercício pleno de todas as garantias de defesa (cfr. art.ºº 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) exige a necessária correspondência ou correlação entre a acusação [e a pronúncia, quando exista] e a sentença, vista a necessidade de preservar a imutabilidade do objecto do processo por ela, acusação [ou pronúncia], fixado.
Esta correspondência não é, no entanto, absoluta e imutável. A lei admite que na sentença, seja por razões de economia processual, seja por razões da paz do arguido, possam ser considerados factos novos, resultantes da discussão da causa [ou por esta tornados relevantes] ainda que constituam alteração dos constantes da acusação [ou da pronúncia], observadas que sejam determinadas formalidades e verificados que sejam determinados pressupostos, matéria que o CPP regula nos art.ºs 358º e 359º.
Estaremos perante factos novos e, portanto, perante uma alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quando se modifica – substitui ou adita – o concreto «pedaço de vida» que constitui o objecto do processo, dando-lhe uma outra imagem. E aqui, a primeira distinção a fazer é entre alteração substancial e alteração não substancial de factos.
O art.º 1º, f) do CPP define «alteração substancial dos factos» como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Assim, primeiro requisito é que ocorra uma modificação dos factos, considerando-se facto o acontecimento ou ocorrência, passada ou presente, susceptível de prova. Depois, é necessário que a modificação ocorra em factos relevantes para a imputação de um crime ou para a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
A alínea a) do mesmo artigo define «crime» como o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais. O crime que para este efeito releva, é o crime diverso, entendido, não como diferente tipo legal, em sentido substantivo, mas no sentido de facto diferente, situado para além dos limites do «pedaço da vida» que constitui o objecto do processo e, portanto, um crime novo. A autonomia dos critérios estabelecidos no art.º 1º, f) do C. Processo Penal determina que não deixa de ser crime diverso o que, face à alteração dos factos, passa a ser punido com sanção menos grave.
A «alteração não substancial dos factos» define-se por exclusão de partes, comungando desta qualidade toda a alteração de factos que, não sendo substancial, tenha relevo para a decisão da causa (cfr. art.º 358º, nº 1 do C. Processo Penal).
A disciplina da alteração substancial dos factos encontra-se fixada no art.º 359º do CPP, cujas linhas gerais podem traçar-se em torno de duas realidades: acordo dos sujeitos processuais e falta dele. Existindo acordo entre o Ministério Público, o arguido e o assistente quanto à continuação do julgamento pelos novos factos, e não determinando estes a incompetência do tribunal, prossegue o julgamento, devendo aqueles serem considerados para efeitos de condenação (n.º 3 do artigo citado). Não existindo acordo, os novos factos não podem ser considerados pelo tribunal para o efeito de condenação, nem implica a extinção da instância (n.º 1 do artigo citado). Quando tal sucede, quando não existe acordo, ou os novos factos são autonomizáveis em relação ao objecto do processo e a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para o respectivo procedimento (n.º 2 do artigo citado) ou não são autonomizáveis, situação em que e porque não podem ser considerados para efeito de condenação, se tornam irrelevantes.
A disciplina da alteração não substancial dos factos encontra-se fixada no art.º 358º, n.º 1 do C. Processo Penal e consiste, basicamente, na sua comunicação ao arguido e na concessão do tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, considerada em toda a sua amplitude.
Nesta matéria o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20.01.2009, disponível em www.dgsi.pt, decidiu que «O objecto do processo penal é, essencialmente, o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (actividade cognitória) e a extensão do caso julgado (actividade decisória). É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal» (Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol. 1º, pág. 145), nele se consubstanciando os princípios da identidade (o objecto do processo deve manter-se, em princípio, o mesmo desde a acusação até ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (o objecto do processo deve ser conhecido e julgado pelo Tribunal na sua totalidade, é indivisível) e da consumpção (o objecto do processo deve considerar-se irrepetivelmente decidido na sua totalidade).».
Voltando ao caso concreto, fazendo uma regressão ao momento processual relativo à audiência de julgamento, após ter sido produzida toda a prova na audiência de discussão julgamento do mesmo dia, foi proferido em 12.05.2022, antecedentemente à leitura da decisão condenatória, despacho com o seguinte conteúdo: «Da produção da prova realizada em audiência de julgamento, com relevo para as declarações para memória futura prestadas pela menor BB, resulta a seguinte alteração não substancial dos factos:
«[...]
a. Quando BB resistia com mais veemência a ceder aos intentos do arguido, este encostava-a contra a parede e apertava-lhe o pescoço, magoando-a.
b. Assim, com uma periodicidade de cerca de duas vezes por semana, preferencialmente às quartas e quintas-feiras, entre as 10 e as 12 horas, aproveitando a ausência da mãe de BB no trabalho, cujo horário matutino era entre as 9 e as 13 horas, o arguido abordava a menor para manter com ela comportamentos de cariz sexual.
[...]
c. Tal situação manteve-se até ao início do ano de 2018, altura em que, em data e circunstancialismo concretamente não apurados, apesar de BB oferecer resistência física, procurando libertar-se do arguido, este introduziu o pénis no ânus da menor.
d. Bem como, numa outra ocasião, em data e circunstancialismo também concretamente não apurados, o arguido foi ter com BB e introduziu parcialmente o pénis na vagina daquela, de forma a que lhe desse prazer, mas que não tirasse a virgindade à menor.
[...]
e. De igual modo, ao agir do modo narrado em «14.», o arguido agiu com o propósito de forçar BB, como efetivamente forçou, a sofrer introdução vaginal do seu pénis, contra a vontade daquela e pondo em crise a sua liberdade sexual, o que representou.
[...]»
Por seu turno, a referida alteração factual importa uma alteração da qualificação jurídica dos factos, porquanto entende-se que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, um crime de violação agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, do Código Penal, na redação em vigor à data dos factos, isto é, de acordo com a Lei n.º 83/2015, de 05 de agosto, impondo-se, assim, a convolação do crime de violação agravado na forma tentada, pelo qual o arguido vinha pronunciado, no referido crime.
Diante do exposto, faculta-se ao arguido o exercício do seu direito ao contraditório, nos termos do disposto no art. 358.º, n.º 1 e 2, do CPP. ».
Após ter sido proferida tal decisão, foi dada a palavra ao ilustre Mandatário do arguido, que nada requereu quanto ao despacho proferido.
O cumprimento destas formalidades - comunicação, concessão de palavra para contraditório ou, no dizer da lei processual, “para a preparação da defesa” - tendo assim sido asseguradas todas as garantias de defesa do arguido.
Na realidade, a alteração factual que se constata como introduzida pelo despacho e comunicação em questão apenas se prende com os exactos dias úteis da semana em que os actos sexuais ocorreram e que deriva da obtenção do horário de BB no ano lectivo de 2017/2018 do qual o arguido propugnava que às quartas e quintas-feiras, entre as 10 e as 12 horas, a menor estava a ter aulas, pelo que, ao contrário do que figurava na pronúncia, ele não podia ter perpetrado os factos no íntervalo temporal desses dias úteis, mas que o tribunal desvalorizou tal elemento, não essencial, dos convocados tipos de crime, fazendo fé, com base essencialmente no depoimento esclarecido e coerente da jovem, que os factos com relevância criminal ocorreram com determinada cadência, sendo-lhe perfeitamente indiferente – como tinha de ser, porque não revelador de falta de credibilidade do testemunho de BB, mas, porventura, de confusão associada à erosão da memória – se o arguido manteve com ela comportamentos de cariz sexual às quartas e quintas-feiras ou às segundas e terças-feiras.
Concluímos então, tal como no parecer da Exma. PGA, que o tribunal recorrido não acrescentou factos novos ao libelo acusatório, apenas especificou as concretas circunstâncias temporais em que tais factos ocorreram, mantendo todo o demais contexto imputado ao arguido (a mesma construção e identificação factual e a mesma valoração social), e assegurando todas as garantias de defesa do arguido, razão pela qual não se pode falar em violação do principio da vinculação temática, mas apenas em alteração não substancial, cujo procedimento legalmente estabelecido foi escrupulosamente respeitado.
Improcede esta questão.

Violação do disposto no art.º 355º do Código de Processo Penal:
A linha argumentativa do recorrente relativa à violação do apontado preceito processual [1-Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.] consiste na alegação de que foi tida em conta, para formar a convicção do tribunal, prova produzida fora da audiência, designadamente, a resultante de uma gravação ouvida por uma testemunha, da voz do arguido a tentar persuadir a vítima a praticar consigo actos sexuais, gravação que nunca foi trazida a juízo e com a qual AA jamais foi confrontado.
Valemo-nos aqui e mais uma vez da esclarecida argumentação desenvolvida no Parecer da Exma. PGA, que seguiremos de perto: Como refere o Professor Paulo Pinto Albuquerque, no Comentário CPP, 2ª edição, pag. 891 e ss, «Esta disposição é a sede do princípio da imediação no processo penal Português. São inutilizáveis as provas que não tiverem sido produzidas em audiência. Ela é completada pelas duas disposições excepcionais seguintes, onde se ressalvam as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição são permitidas
Sucede, contudo, que a questão suscitada pelo arguido recorrente não é suscetível de se enquadrar neste normativo legal, uma vez que o Tribunal a quo não apreciou nem valorou nenhum meio de prova produzido fora da audiência, designadamente e em concreto, qualquer gravação áudio feita ao arguido a tentar persuadir a vítima a praticar consigo actos sexuais.
Na verdade, essa utilização não se mostra revelada na motivação da decisão da matéria de facto, sendo apenas aí referida como sendo a razão de ciência de aspectos concretos do depoimento da testemunha DD. Socorrendo-nos dessa motivação da decisão da matéria de facto do acórdão recorrido, resulta que o tribunal a quo valorou todo o depoimento da testemunha DD, amiga e colega de escola da vítima BB, prestado na audiência de discussão e julgamento realizada no dia .../.../2022, relatando que a vítima «BB (…) de modo perturbado, contou-lhe que o padrasto abusava sexualmente dela há já algum tempo, quando estavam sozinhos em casa, tendo visto a BB com nódoas negras nos braços e no tronco, causadas, segundo ela, pela resistência que BB oferecia aos intentos do arguido, corroborando, assim, o declarado pela menor e levado à factualidade provada nos pontos «8.» e «16.». Mais declarou ter ouvido um áudio do padrasto, pessoa que conhecia, gravado pela BB, a tentar persuadi-la a ter atos sexuais com ele, em tom agressivo. Disse ainda, por fim, que a amiga andava perturbada com tudo o sucedido.».
Com efeito, apesar da testemunha DD ter relatado e confirmado a existência de «(…) áudios em que se ouvia claramente o padrasto dela a falar com ela e a tentar persuadi-la a ter actos sexuais (…)» - aos 9minutos e 14 segundos), o Tribunal a quo apreciou e valorou livre e licitamente todo o depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha, e que veio corroborar a versão dos factos apresentada pela vítima BB.
Conclui-se daqui que o que foi valorado para a formação da convicção do tribunal foram as declarações da referida testemunha – o que se mostra admissível face ao disposto nos art.ºs 125º, 126º, a contrario, e 128º CPP - e não qualquer gravação em concreto.
Inexiste, pois, qualquer violação do disposto no art.º 355º do Código de Processo Penal.

Vício de erro notório na apreciação da prova:
O vicio suscitado mostra-se previsto no art.º 410º n.º 2 al. c) CPP, cujo conhecimento também se pode ser feito oficiosamente, pode-se traduzir sinteticamente como constituindo uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
A respectiva invocação, a par dos também vícios referidos nas al.s a) - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – e b) - contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão -, constitui um dos modos possíveis de sindicar pelo Tribunal de Recurso a matéria de facto fixada na instância recorrida, sendo a outra das vias a chamada de impugnação ampla nos moldes e condicionalismos que se mostram estabelecidos no art.º 412º n.ºs 3 e 4 CPP.
Os termos em que se mostra efectuada a invocação do vicio reconduz-se a um correcto cumprimento do seu requisito pois o recorrente vale-se do texto da decisão recorrida, seja por relação aos factos provados, seja por relação ao que se mostra inserido na motivação que se lhes segue. Esta apreciação não se mostra posta em causa com uma breve referência quando, a propósito do abuso sexual, do dia ... de ... de 2018, cita parcela das declarações para memória futuro da menor BB, a fls. 222 dos autos, isto malgrado essas declarações para memória futura terem sido valoradas pelo Colectivo mas não se mostra ali, no texto da decisão, feita a citação concreta que o recorrente transporta para a motivação.
De qualquer modo, voltando à concreta questão, na mesma o recorrente faz uma série de apreciações valorativas sobre diversos meios de prova que o tribunal ponderou na sua convicção, apontando-lhes que.
- as declarações para memória futura prestadas pela ofendida: não deveria ter merecido nenhuma credibilidade, avançando explicações que pretende que sejam plausíveis para todas as contradições das declarações da menor BB com a realidade dos factos, aceitando-as acriticamente, qualifica-as como fantasias de uma gravidade extrema valendo-se da alegação de desconhecimento total por parte da mãe que nunca se apercebeu de nada..
- o testemunho da mãe da menor BB: o conhecimento dos factos constituíram uma surpresa para a mãe, pois nada aparentava o que estava a suceder, existindo uma boa relação entre todos; Só agora, no julgamento, e com todo o circunstancialismo, fazendo a retrospectiva, é que veio entender o que no momento não viu e que associou apenas a eventuais ciúmes da sua relação com ele [o arguido] e nada mais em duas ocasiões, em 2 anos de alegados abusos sexuais, que explicasse essas duas ocasiões de desarmonia.
- os Relatório de Perícia de Natureza Sexual em Direito Penal, de fls. 50 a 52 dos autos, e o Pericial n.º ..., junto a fls. 148 e 149 dos autos: a narrativa da menor não encontra qualquer suporte nesses relatórios, citando-os parcelarmente a nível da não visibilidade de lesões traumáticas ou seus vestígios na região anal e peri-anal, região genital e peri-genital, os vestígios não detectados de sémen e de acordo com a análise de ADN obteve-se um perfil de maior contribuidor do indivíduo de sexo feminino (por relação ao episódio de ... de ... de 2018.)
- a determinação da quantidade de crimes com base apenas nas declarações para memória futura da ofendida prestadas nos autos, .
- testemunho duma testemunha, amiga da menor BB, quando esta testemunha declarou ter ouvido um áudio do padrasto, pessoa que conhecia, gravado pelo BB, a tentar persuadi-la a ter actos sexuais com ele, em tom agressivo, áudio esse que não foi ouvido em juízo.
De tudo isto retira o recorrente que não deveria ter sido conferida qualquer credibilidade às declarações da ofendida pelo que deveria ter sido absolvido.
Nos termos do art.º 271.° do Código de Processo Penal, as declarações para memória futura de menor vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual em inquérito constituem acto obrigatório e a documentar através de registo áudio ou audiovisual, valendo plenamente como prova de julgamento, tal como a prova testemunhal, independentemente do menor vir a ser novamente ouvido durante a audiência.
Na verdade, as declarações para memória futura constituem uma excepção ao princípio da imediação e são diligências de prova realizadas pelo juiz de instrução na fase do inquérito, sujeitas ao princípio do contraditório, que visam a sua valoração em fases mais adiantadas do processo como a instrução e o julgamento, mesmo na ausência das pessoas que as produziram, assegurando que no decurso dessa diligência, esteja obrigatoriamente presente defensor do arguido constituído ou a constituir, por forma a garantir o princípio do contraditório que vigora em processo penal.
No regime processual penal atinente à produção e à valoração das provas, por princípio, valem apenas as provas produzidas na audiência de discussão e julgamento, mas tal comporta raras excepções, uma delas, prevista no art.º 271.° do Código de Processo Penal, permitindo que, nos processos por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, os ofendidos sejam ouvidos apenas no decurso do inquérito, sem ulteriores repetições de tais inquirições.
Conforme explicita RUI DO CARMO, in Declarações para Memória Futura. Crianças Vítimas de Crimes Contra a Liberdade e a Autodeterminação Sexual, Revista do Ministério Público n.º 134, Abril- Junho 2013, pág. 155 e 156: “Relativamente às crianças [8] vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, a assunção de medidas para que a tomada de declarações se realize no mais curto espaço de tempo possível após a ocorrência ou o conhecimento dos factos, tendo em conta o seu nível de desenvolvimento e em condições adequadas, decorre da necessidade de se terem em consideração as especificidades dos factos e da testemunha, para que o relato seja recolhido nas melhores condições e a vítima seja protegida. O seu possível condicionamento pela proximidade física e/ ou relacional com o suspeito ou arguido, as influências e pressões a que pode estar sujeita, o risco de incorporação no relato de narrativas e de elementos que entretanto lhe tenham sido transmitidos e a necessidade de a proteger de eventuais efeitos vitimizadores da participação no processo, assim como a influência que a condução da inquirição e as condições em que é realizada podem ter sobre o depoimento, impõem a adoção de regras e cuidados especiais para a audição destas vítimas. ”
No caso concreto estão em causa crimes de natureza sexual e a vítima era menor de idade, sendo, assim, necessário ter presente a especial vulnerabilidade da vítima, em razão da sua idade e da natureza dos actos de que foi, perturbadores da sua intimidade e integridade sexual.
Acresce que as declarações para memória futura foram prestadas com o cumprimento de todas as devidas formalidade legais e com o exercício do contraditório pelo arguido.
As declarações para memória futura merecem inteira credibilidade pela forma como foram prestadas, revelando a menor segurança e objectividade, não existindo o mínimo indício de discursos efabulados ou afastados da lógica e experiência comum, mesmo quando confrontados com os resultados evidenciados nos relatórios que o recorrente invoca.
Como bem se explicita no acórdão recorrido, “diante do Sr. Juiz de Direito que presidiu à referida diligência, de forma bastante segura, eloquente, lógica, pormenorizada e sentida, a menor atestou os referidos factos, com relação ao arguido, companheiro da sua mãe e com quem coabitava desde os seus 6 anos de idade, nos termos em que o Tribunal deu como provados.
De facto, foi possível extrair dessas declarações, com a segurança necessária, toda a referida factualidade, contextualizada no espaço e no tempo nos termos declarados pela menor e que, por isso, assim se deram como provados. Destarte, qualquer elemento de prova foi trazido aos autos que pudesse infirmar o aí declarado por BB.” ou “quanto ao relevo dado às referidas declarações prestadas pela vítima, conforme é entendimento uniforme na Jurisprudência e na Doutrina, nas situações de abuso sexual de crianças e similares, por força das circunstâncias, a prova é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, sendo regra geral apenas terem conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, baseada nos conhecimentos que sobre a matéria vêm sendo transmitidos pelas investigações psicológicas, pois só nesse caso é suscetível de formar a convicção do julgador, como, de resto, o foi no presente caso. Destarte, em matéria de “crimes sexuais” as declarações da vítima têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante; pelo que, não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta, como são os crimes sexuais.
A par, da perícia psicológica realizada à menor, cujo relatório se encontra a fls. 176-179, resultou a conclusão de que «Ao longo da avaliação pericial, as respostas de BB pareceram ser genuínas e credíveis, uma vez que demonstraram elevada compatibilidade com a expressão emocional facial e corporal observadas e que os seus relatos não revelaram grandes contradições e inconsistências. A elevada maturidade emocional e linguística observadas, configuram-se como factores positivos e que contribuem para a boa qualidade formal do seu depoimento e credibilidade associadas aos relatos da Menor.» (sic).
Assim, com base nas declarações da vítima BB, com o dito relatório pericial, bem como com a prova documental carreada para os autos, a saber: auto de notícia de fls. 41; comunicação de notícia crime de fls. 56-57; reportagem fotográfica de fls. 72-79 e relatório de fls. 108, bem ainda com os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela acusação, CC, EE e DD, que nos mereceram total credibilidade atenta a forma colaborante, tranquila e segura como depuseram, o Tribunal formou a sua convicção quanto à referida factualidade.
De notar ainda o resultado da perícia de natureza sexual em direito penal, a que a menor foi sujeita no dia .../.../ 2018, cujo relatório se encontra a fls. 50-52: apesar de não terem sido observados sinais objetivos de lesões traumáticas ou seus vestígios, a nível de região genital ou anal, tal não significa que não tenham sido exercidas sobre BB as práticas sexuais por si relatadas, resultado esse expectável, diga-se, em consonância com o declarado por ela em sede de declarações para memória futura, quando aí afirmou que o arguido tinha a preocupação de não deixar vestígios dos atos sexuais sobre si empreendidos, tal como sucedeu com o coito vaginal e coito vaginal ocorridos: «(...) porque ele sabia se me tirasse a virgindade ou se deixasse algum tipo de marcas... impressões digitais, não usasse preservativo... que eu iria ter prova em como ele fez aquilo... então ele enfiava muito pouco... de forma a que lhe desse prazer mas que não me... modificasse o corpo, pronto.» (sic).
Por outro lado, da circunstância de o horário escolar da BB na época escolar 2017/2018, junto aos autos no decurso da audiência de julgamento, resultar que a mesma tinha aulas nos períodos da manhã, às 4.ªs e 5.ªs feiras, tal não nos permite, por si só, concluir que a menor faltou à verdade quando disse que os factos ocorriam nesse contexto temporal e que os comportamentos do arguido não tenham sido praticados nesses dias da semana ou noutros, tal como declarado pela menor. Conforme a mesma também referiu nas declarações para memória futura que prestou, os factos iniciaram-se em período de férias escolares, mais concretamente, no verão de 2016, perdurando até outubro de 2018. Por outro lado, a mesma referiu que os factos ocorriam «duas vezes por semana, mais ou menos» (sic), o que significa, portanto, que os mesmos poderão ter ocorrido também em dias da semana distintos das 4.as e 5.as feiras, designadamente no período escolar, mas com uma periodicidade bissemanal por regra.
Por outra banda, não foi relatado por qualquer testemunha uma qualquer razão para que BB fantasiasse o por si declarado e que quisesse por qualquer motivo prejudicar o arguido, tanto que, conforme mais uma vez por ela declarado, tinha um bom relacionamento com ele, descrevendo-o como sendo muito simpático para consigo, tratando-a como se fosse sua filha até aos seus 10 anos de idade, altura em que começou a dirigir-lhe comportamentos de cariz sexual, sob o pretexto de que, face à sua idade, precisaria de aprender como lidar com os rapazes, sobre sexualidade.”
No caso subjudice, percorrendo os argumentos e correlações que o recorrente faz dos diversos meios de prova que entendeu eleger para afirmação do vicio, constata-se que o alegado vício de erro notório na apreciação da prova decorre tão só de uma diferente e pessoal apreciação da prova produzida em audiência, impugnando dessa forma a convicção assim adquirida e pondo em causa a regra da livre apreciação da prova.
Se o recorrente alega vícios da decisão recorrida a que se refere o nº 2 do art. 410º do CPP, mas fora das condições previstas nesse normativo, afinal impugna a convicção adquirida pelo tribunal “a quo” sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecido da regra da livre apreciação da prova inserta no art. 127º” (Ac. do STJ de 13FEV91, AJ nºs 15/16,7).
Em termos simples e sintéticos, o princípio da livre apreciação da prova pretende exprimir a ideia de que no ordenamento jurídico que o acolhe, e particularmente no processo penal, não existe prova tarifada (portanto, não há regras de valoração probatória que vinculem o julgador, como acontecia no sistema da prova legal), pelo que, por regra, qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com a livre convicção do julgador (também designada por íntima convicção).
Por isso, o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g. por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos de testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Os limites da liberdade valorativa da prova no âmbito penal são as regras da lógica e da razão, as máximas da experiência e os conhecimentos técnicos e científicos.
Por isso é fundamental que o juiz, ao explicar e fundamentar a sua decisão, se preocupe em ser claro, racional e objetivo, não se escude em meras impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, de modo que se perceba o raciocínio seguido e este possa ser objeto de controlo.
In casu, porém, nenhum erro transparece do texto da decisão recorrida, quer por si só, quer conjugada com as regras da experiência comum, nem se vislumbra o desrespeito por prova legalmente vinculativa ou tarifada que tivesse sido desprezada, ou não investigada pelo tribunal recorrido.
O Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto provada e não provada, de forma minuciosa, enumerando os elementos probatórios em que se baseou para formar a sua convicção, com indicação dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência, e do porquê da relevância/credibilidade que lhe foi atribuída, com critérios lógicos e objectivos, e alicerçada nos elementos de prova obtidos em audiência, bem como nos documentos juntos aos autos e invocados na motivação da matéria de facto, encontrando-se a matéria de facto fixada de acordo com um raciocínio lógico e coerente, tendo esclarecidamente dado, na citação supra, resposta às objecções interpretativas da prova que o recorrente desfilou a propósito do vicio.
Nesta conformidade, improcede também este fundamento de recurso.

Nota final:
Nas conclusões 6 e seguintes manifesta o recorrente que o acórdão “Violou o art.º 163.º n.º 1 e art.º 177.º n.º 6, ambos do Código Penal, ao condenar o arguido por 15 crimes de coacção sexual agravada”, “Violou o art.º 164.º, n.º 1 al. a) e art.º 177.º n.º 6, ambos do Código Penal ao condenar o arguido pela prática de dois crimes de violação agravada” isto tendo por base o fundamento de que “não se produziu prova que permitisse integrar a conduta do arguido no tipo de crime previsto nestas disposições legais”.
Não se mostrando, pela leitura integral da motivação, que as afirmações citadas acerca da qualificação jurídica que o tribunal verteu na decisão recorrida sejam também feitas naquela, extraímos daí que nenhuma concreta impugnação da matéria de direito se mostra feita, mas tão somente a indicação de uma consequência da eventual procedência das questões elencadas, o que não mereceu acolhimento.
Daí, não se ter elegido essa concreta alegação à natureza de questão suscitada no recurso.
Acresce que na conclusão 8ª – “Violou o art.º 69.º - B, n.º 2 e art.º 69.º - C n.º 2, ambos do Código Penal ao condenar o arguido nas penas parcelares [queria dizer acessórias] – e 9ª – “Violando também o art.º 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09 e o art.º 67.º-A e art.º 82-A, ambos do Código de Processo Penal” -, o recorrente faz depender essa violação do argumento “não ter cometido os crimes de que vem acusado”, argumento último este que decorria do que já apontava nas conclusões antecedentes, sem que exista correspondente alegação na motivação do recurso.
Por esse motivo, também esta concreta alegação não mereceu da nossa parte a sua integração no elenco das questões suscitadas no recurso.
De qualquer modo, face ao decaimento das questões elencadas, mormente do vicio de decisão invocado, das quais resulta a estabilização da matéria de facto dada como provada na instância recorrida, o conhecimento destes concretos aspectos acabados de referir mostram-se prejudicados.

III.
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas a cargo do recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC.
Feito e revisto pelo 1º signatário.
Évora, 24 de Janeiro de 2023.
João Carrola (Relator)
Maria Leonor Esteves
Gomes de Sousa