OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
RISCO PERMITIDO
TUTELA SUBSIDIÁRIA DE BENS JURÍDICOS
Sumário

I. Não há crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto no artigo 148.º, n.ºs 1 e 3, ex vi als. a) e c) do artigo 144.º, al. a), se a lesão surge como o resultado produzido por uma ação empreendida com observância das leges artis da medicina e que não ultrapassou o limite do risco juridicamente permitido.
II. A vida social comporta uma multidão ineliminável de riscos e perigos que são tolerados pela própria sociedade, associados a conquistas civilizacionais e a modelos de desenvolvimento de que a sociedade não pode, nem quer prescindir.
III. Cumpre à ordem jurídica definir quais as regras a observar, quais as precauções e cuidados a ter na prática das atividades que por si mesmas comportam perigos para bens jurídicos, como sucede p. ex. no âmbito da circulação rodoviária, no uso de pesticidas na atividade agrícola, no uso de explosivos em pedreiras e construções, no manuseamento de vírus, de bacilos, de energia atómica, etc.
IV. Dada a sua natureza de ultima ratio, de tutela subsidiária de bens jurídicos, o direito penal não sanciona os comportamentos decorrentes de uma ação que não tendo ultrapassado o limite do risco juridicamente permitido, ainda assim produz uma lesão ao bem jurídico.

Texto Integral


Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No ... Juízo do Tribunal Judicial ... - Juízo Local Criminal ... - Juiz ... - correu termos o processo comum singular supra numerado no qual é arguido:

AA, filho de BB e de CC, nascido em .../.../1979, nacionalidade portuguesa, solteiro, médico, residente na Av. ..., ... ..., titular do cartão de cidadão n.º ...,

pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo n.º 1 e 3 do art. 148.º ex vi al. a) e c) do art. 144.º, al. a) do art. 15.º e art. 26.º do Código Penal.


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A final e por sentença lavrada e depositada a 19 de Maio de 2022 veio a decidir o tribunal recorrido absolver o arguido AA da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência; p. e p. pelo n.º 1 e 3 do art. 148.º ex vi al. a) e c) do art. 144.º, al. a) do art. 15.º e art. 26.º do Código Penal.

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A assistente DD, não se conformando com a decisão, interpôs recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

a) O presente recurso tem como objecto a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos, a qual absolveu o arguido AA como autor material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo nº 1 e 3 do art. 148º ex vi al a) e c) do art. 144º al a) do art. 15º e artº 26º do Código Penal, cometido na pessoa da assistente aqui recorrente DD;
b) O Tribunal “a quo” considerou provado que:
12. A assistente, já com os óculos de protecção adequadamente colocados, anuiu que fosse dado início ao tratamento, tendo sido alertada de que iria sentir os referidos “flashes de calor” e o contacto com aplicador.
16. Logo após o arguido informou a assistente de que havia ficado com queimaduras na face.
23. A assistente sabia que, no dia 28.02.2017, iria realizar um tratamento à pele da sua face com recurso a máquina de luz.
c) Na formação da sua convicção o Tribunal “a quo” O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e conjugada, ponderada com juízos retirados da experiência comum e critérios de razoabilidade, dos meios de prova constantes dos autos e daqueles produzidos em julgamento.”
“…. Já o arguido, nas declarações prestadas em Tribunal, descreveu com segurança e assertividade o tratamento que realizou na assistente, negando perentoriamente que tivesse mal nalgum momento violado alguma regra de cuidado a que estivesse obrigado. Aliás, o arguido, não negou que as consequências verificadas na face da assistente fossem resultado directo do tratamento com LIP.
Explicou, contudo, o arguido que tal resultado teve origem em reacção da pele da assistente ao tratamento, sendo que tal decorrência estava abrangida pelo risco inerente ao próprio tratamento.
Admitiu também o arguido que a assistente não assinou qualquer documento formal de consentimento informado, o que considerou ter sido um erro de procedimento, ainda que o consentimento escrito não fosse obrigatório.
Por seu turno, a assistente, compreensivelmente revoltada, disse em julgamento que nunca foi informada pelo arguido qual o tratamento que iria realizar — com LIP. Disse, também, a assistente, que imediatamente após tal tratamento, realizado no dia 28.02.2017, donde resultaram queimaduras na sua face, o arguido também não a informou que tipo de tratamento a mesma havia sido sujeita.
Esta conclusão é ademais solidificada pelo facto da assistente ser pessoa esclarecida, com recurso financeiros suficientes para recorrer a clínicas privadas para tratamentos cosméticos. Realça-se, também nesta parte, que a assistente é empresária, com actividade transnacional.”….sic
d) Declarações da assistente DD (audiência de Julgamento 17.03.2022 Este depoimento foi gravado em suporte digital, disponível de 00h00m00s a 00h50m18s), resultando das suas declarações que não só o arguido não lhe explicou o tipo de tratamento que iria ser feito tanto quando foi à consulta ao Hospital ..., como quando foi à consulta na ..., como também no dia do tratamento nada lhe foi explicado, e muito menos os riscos para a sua saúde deste tipo de tratamento em peles negroides;
e) O arguido não referiu à assistente que esta tinha queimaduras no rosto, e não lhe fez qualquer explicação acerca do tratamento que iria efectuar, o que também é corroborado pela testemunha EE (declarações prestadas no dia 17.03.2022 gravado em suporte digital, disponível de 00h00m00s a 00h13m29s);
f) Depoimento do Dr. FF prestado no dia 22.03.2022 Este depoimento foi gravado em suporte digital, disponível de 00h00m00s a 00h39m21s.
g) O mesmo se diga O Tribunal “ a quo” também invocou o depoimento da testemunha FF, médico que seguiu a assistente após o tratamento do Dr. AA, para descredibilizar as declarações da assistente no que respeita ao facto desta sempre ter afirmado que desconhecia o tratamento que o Dr. AA, quando na douta sentença ora colocada em crise o Tribunal refere que e cita-se:
h) “Aliás, a testemunha arrolada pela assistente, FF, médico dermatologista que seguiu aquela após as queimaduras verificadas na face, disse em julgamento que, quando a assistente procurou os seus serviços, lhe comunicou que havia sido submetida a tratamento com disparos de luz, contrariando a versão apresentada em julgamento pela própria assistente.”
i) A assistente quando foi à consulta do Dr. FF e depois deste a ter observado, é natural que ela já soubesse (no dia do Julgamento) o tipo de tratamento que o arguido Dr. AA lhe tinha feito no rosto, aliás qualquer leigo que não perceba nada de dermatologia, após ter ficado com a cara com as manchas queimadas como a assistente tinha, esta tivesse tomado consciência do tratamento que o arguido fez no seu rosto, mas coisa diferente é esta saber ao que ia, quando foi à consulta na Clinica ....
j) O Tribunal “a quo” não considerou quer as declarações da assistente, quer os depoimentos prestados pelo marido EE, que a acompanhou no dia do tratamento na Clinica ..., quer as declarações da testemunha GG, a qual esteve presente na 1ª consulta tida no Hospital ... e onde nada foi referenciado à assistente pelo arguido Dr. AA no que ao tipo de tratamento que iria ser feito, bem assim como a assistente HH que esteve presente no decurso do tratamento na Clinica ..., tendo sido ela quem preparou a assistente na sala de tratamento;
k) Da conjugação de toda a prova produzida em audiência de julgamento, forçoso será concluir que o arguido não informou a assistente que tipo de tratamento é que lhe iria realizar, não lhe tendo entregue o consentimento relativamente ao tipo de tratamento que iria realizar, o que ficou demonstrado pelos depoimentos transcritos, concluindo-se que não poderia o Tribunal 2 a quo” ter dado como provado os factos constantes dos números 12, 15 e 23 da douta sentença;
m) O marido da assistente que foi quem a acompanhou na consulta que teve lugar na Clinica ..., onde o arguido lhe fez o tratamento, referiu que a assistente desconhecia que tipo de tratamento é que iria ser submetida, conforme resulta do seu depoimento;
n) Depois da análise da prova produzida não podemos aceitar que o Tribunal “ a quo” não tenha dado credibilidade aos depoimentos quer por parte da assistente DD, quer da filha que esteve presente na 1ª consulta quer o marido que esteve no dia em que o tratamento foi feito pelo arguido Dr. AA, mas pelo contrário o Tribunal apenas considerou as declarações do arguido, e a prova documental, não dando qualquer relevância à prova testemunhal apresentada pela assistente;
o) Consta da sentença que o “Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise critica e conjugada, ponderada nom juízos retirados da experiência comum e critérios de razoabilidade, dos meios de prova constantes dos autos e daqueles produzidos em Julgamento”;
p) No nosso modesto entendimento, o “Tribunal a quo” não fez um exame crítico da prova testemunhal, não fazendo uma análise crítica dos depoimentos prestados, pois se o tivesse feito, não teria dado como provados factos vertidos nos pontos 12. 15 e 23 cuja prova testemunhal foi oposta à interpretação e analise feita pelo Tribunal;
q) O “Tribunal a quo” na sua aliás douta sentença aqui colocada em crise afirma que fez uma analise critica da prova, mas que no caso concreto dos autos, não houve uma analise critica e a livre apreciação da prova que o Tribunal “ a quo” fez limitou-se somente a valorar as declarações do arguido, o facto deste afirmar que a assistente sabia que tratamento é que ia realizar e que a tinha informado acerca do tipo de tratamento e as consequências do mesmo, as quais não foram corroboradas nem pela assistente nem pelas outras testemunhas;
r) O Tribunal “ a quo” não justificou porque é que atendeu apenas aos depoimentos prestados pelo arguido, pelo perito, pela testemunha FF e não considerou as declarações da assistente porque as considerou frágeis;
s) O Tribunal “a quo” não atendeu aos depoimentos de testemunhas que estiveram presentes, a assistente do arguido que esteve presente na sala do tratamento no dia dos factos, o marido que esteve na clinica e que só não presenciou o tratamento, porque não poderia alegadamente estar presente na sala, mas foi esteve no exterior, testemunhou o que aconteceu quando a assistente saiu do consultório, nada destes depoimentos foram atendidos pelo Tribunal;
t) Esta omissão constitui fundamento de nulidade da sentença recorrida, nos termos previstos no artigo 379.°,n° 1, alínea a), com referência ao artigo 374.°, n° 2, ambos do CPP.
u) Outra situação distinta prende-se com o facto de o arguido ter decidido aplicar um tratamento de luz intensa pulsada à assistente, pessoa de tez negra, quando resulta dos factos dados como provados que este método é um tratamento de recurso e apenas é aplicado em último caso, mas o arguido nas suas declarações referiu que foi a assistente quem lhe solicitou este tipo de tratamento e o Tribunal “ a quo” ter considerado as suas declarações quando afirmou que foi a assistente quem lhe solicitou este tratamento, tese que não deveria ter sido aceite pelo Tribunal “a quo”;
v) Resulta da prova produzida que foi o arguido Dr. AA quem entendeu fazer este tipo de tratamento à assistente DD, pelo que ele assumiu as consequências do tratamento a levar a cabo na cara da assistente DD, mas este nas suas declarações e mais uma vez atendidas pelo Tribunal “ a quo” referiu que foi a assistente quem lhe pediu este tipo de tratamento..
w) Sabendo o arguido que a assistente é negra, assumiu o risco bem como as eventuais consequências que este tipo de tratamento pudesse causar na pele da cara da assistente;
x) Resulta da prova documental em que estado é que o rosto da assistente ficou após o tratamento feito pelo arguido, o qual não informou a assistente quais os riscos que esta corria e que tipo de tratamento é que lhe iria fazer;
y) O arguido sendo médico dermatologista nunca deveria ter feito este tipo de tratamento numa pele com as características da assistente, mesmo que esta lhe tivesse solicitado, o que não o caso, pelo que este quis assumir o risco e as consequências que poderiam advir para a pele da assistente;
z) Por toda a prova produzida o Tribunal “a quo” teria que atender a todas as circunstâncias em que os factos foram perpetrados, o que não fez, pois apenas atendeu a uns depoimentos em detrimento de outros;
aa) O Tribunal “a quo” deveria ter feito uma análise critica a toda a prova produzida e nessa sequência deveria ter condenado o arguido pelo crime pelo qual vinha acusado de ofensas à integridade física por negligência;
bb) Ao absolver o arguido o Tribunal “a quo” violou o disposto além dos artigos 379.°,n° 1, alínea a), com referência ao artigo 374.°, n° 2, ambos do CPP.
Termos em que e nos mais de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, seja proferida nova decisão nos termos indicados, com análise critica da prova

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O MP junto do tribunal recorrido não apresentou resposta.

O arguido apresentou resposta, concluindo:

A.OpresenterecursotemporobjectoaSentençade19.05.2022emque:“Nostermosepelos fundamentos expostos, o Tribunal decide absolver o arguido AA da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência; p. e p. peto nº 1 e 3 do art. 14ºº, ex vi al. a) e c) do art. t44,e, al. a) do art. 15.e e art. 26.e do Código penal”.

B. No entender da Recorrente, a Sentença padece de censura, seja no julgamento que faz da matéria de facto, concretamente dos factos 12, 15 e 23, seja na aplicação que faz do Direito, por considerar que o Tribunal a quo não fez um exame e uma análise críticos da prova testemunhal, tendo apenas considerado as declarações do Arguido, ora Recorrido.

C. Ora, o Recorrido discorda em absoluto deste entendimento.

D. Com efeito, e como resulta de todo o exposto na presente peça processual, a sentença é clara e fundamentada, permitindo aos seus destinatários compreender perfeitamente o juízo e ponderação efectuados pelo Tribunal e o raciocínio que levou à formação da sua convicção e correspondente decisão.

E. E da motivação de facto resulta claro que o Tribunal formou a sua convicção com base numa análise crítica de toda a prova produzida nos autos, nomeadamente documental, onde se incluem relatórios periciais, ponderada de acordo com o que é a experiência comum e a razoabilidade, obviamente no âmbito dos princípios da prova livre e da discricionariedade do juiz na apreciação probatória.

F. A prova livre pressupõe uma interpretação da prova pelo juiz que estará na base da respectiva valoração, juntamente com a convicção que este formar, traduzindo-se na interpretação da prova para lhe atribuir um valor.

G. Para que a fundamentação do juiz seja válida, é necessário que seja objectivável, para poder ser oponível a terceiros, o que aconteceu no caso dos presentes autos.

H. Não está, pois, ferida de nulidade, a sentença do Tribunal a quo, que discrimina todos os motivos, de facto e de direito que levaram à decisão final, bem como os elementos de prova atendidos, permitindo compreender cabalmente o raciocínio efectuado para assim decidir.

I. Nem padece de qualquer outro vício.

J. O Tribunal a quo entendeu, e bem, que as declarações da Assistente revelavam fragilidade, pelas contradições e insegurança que as caracterizaram, e que ficaram expressas nas transcrições supra (depoimento prestado em 17.03.2022 e gravado em suporte digital).

K. Já as declarações da testemunha EE (depoimento prestado em 17.03.2022 e Gravado em suporte digital) foram consideradas inócuas pelo Tribunal a quo, mais uma vez bem, dado que a mesma, nomeadamente sobre a informação prestada à Assistente após o procedimento, depois de um discurso confuso e contraditório, acabou por dizer que não se lembrava dos factos.

L. Por fim, a testemunha GG (depoimento prestado em 22.03.2022 e gravado em suporte digital) não só contrariou as declarações da Assistente, ao afirmar taxativamente que a mãe tinha conhecimento do que eram tratamentos a laser, e até dos riscos dos mesmos para as peles mais escuras, como contrariou também as próprias declarações prestadas em sede de inquérito, numa clara tentativa de condicionar a valoração do tribunal, induzindo-o em erro.

M. A verdade é que o Mmo. Juiz do Tribunal a quo terá entendido a falta de congruência desta testemunha, não considerando também as respectivas declarações.

N. Por sua vez, andou bem o Tribunal a quo ao relevar as declarações prestadas pelo Recorrido, absolutamente consonantes com o que foram os esclarecimentos técnicos do Sr. Perito e também da testemunha FF, ambos médicos com a especialidade de dermatologia.

O. Sendo que a decisão de condenação ou absolvição está dependente exclusivamente da actuação técnica do médico e da correctude da mesma, estes testemunhos e esclarecimentos eram fundamentais.

P. E assim os considerou, mais uma vez bem, o Tribunal a quo.

Q. Tendo resultado dos mesmos que o tratamento realizado era indicado para as patologias diagnosticadas, mesmo para peles mais escuras, exigindo nessas um maior cuidado, que o Recorrido demonstrou ter tido, saindo dos parâmetros da máquina, baixando-os.

R. Ou seja, o Recorrido poderia ter utilizado mais energia e menos filtros, e adaptou a máquina, com prudência, demonstrando cuidado e zelo na sua actuação.

S. Ambos explicaram que todas as peles reagem de forma diferente e que há características genéticas determinantes para a resposta dos doentes.

T. E, apesar de descrita, esta complicação é bastante rara, mesmo em peles mais escuras.

U. No entanto, é sabido que a pele da Assistente teve outra reacção, anos mais tarde, que a Testemunha FF classificou como bizarra, sendo o primeiro e único caso que conhece, e que é demonstrativa da respectiva hipersensibilidade e imprevisibilidade de resposta.

V. De onde resulta que as lesões sofridas pela paciente não representavam uma consequência expectável, normal ou típica da conduta do Recorrido, pelo que não é possível fazer um juízo de imputação objectiva, pois seria necessário que, em abstrato, essa conduta fosse adequada a produzi-lo, tornando-o previsível.

W. Ambos os médicos foram, por isso, taxativos ao afirmar que não houve violação da leges artis ou má prática.

X. Tendo o Sr. Perito esclarecido que a ocorrência de um efeito adverso como estes é independente da actuação médica, ou seja, pode acontecer mesmo que cumpridas todas as regras de arte impostas decorrendo da resposta pessoal dos indivíduos, que os médicos não controlam nem podem controlar.

Y. O Recorrido vinha pronunciado pela prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.

Z. Os factos provados tinham, por isso, que preencher a tipicidade do crime em apreço, a saber: a violação de um dever objectivo de cuidado, a produção de um resultado lesivo típico, objectivamente previsível (imputação subjectiva), e a verificação de um nexo de imputação objectiva do resultado à conduta violadora do agente.

AA. Como refere a sentença, “O crime de ofensa à integridade física negligente constitui, assim, um crime material, traduzindo-se o resultado na ofensa corporal, daí que tenhamos de atender, no plano do ilícito típico, à violação do dever objectivo de cuidado e à previsíbilidade objectiva da realização típica. Com o dever objectivo de cuidado visa-se acautelar o perigo para o bem jurídico protegido, resultante da conduta ou da omissão concreta, devendo ser aferido como cuidado a tomar perante a situação de perigo por um homem médio com a capacidade do agente, podendo este, segundo a experiência geral, prever o resultado como consequência possível do seu acto ou omissão.” (negrito nosso)

BB. Explica ainda que “A previsibilidade do agente há-se estender-se, pois, ao nexo causal entre a acção e aquele resultado. (…) Ou seja, para que exista um nexo causal entre o resultado e a conduta não basta que aquele não se possa conceber sem esta (teoria da conditio sine qua non), é necessário que a conduta, em abstracto, seja idónea a causar o resultado, isto é, que seja uma consequência normal e típica daquela conduta (teoria da causalidade adequada). Só os resultados anómalos ou de verificação inusítada e/ou absolutamente imprevisível ficam fora deste nexo causal.

CC. O juízo de adequação é levado a cabo mediante uma prognose posterior objectiva:

DD. O aplicador do direito, situado no momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado não se tivesse ainda verificado (ex ante), deverá ajuizar - de acordo com as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas do caso (juízo objectivo, enquanto juízo de experiência ou probabilidade), levando ainda em conta as circunstâncias que o agente conhecia efectivamente (a sua perspectiva) -, se aquele homem poderia e deveria ter previsto o resultado típico. Em tal juízo de prognose póstuma, haverá que indagar se era previsível, para uma pessoa média naquela situação, prever determinado acontecimento, tendo em atenção o resultado em concreto, tal como ocorreu; isto é, não se irá indagar se poderia ou não, por exemplo, advir o resultado lesão corporal por um processo possível, mas vai analisar-se se a lesão, tal como ocorreu, deverá ou não ser previsível, ou considerada consequência de determinado comportamento.”

EE. Em suma, quando o agente, naquelas circunstâncias, podia ou devia, segundo as regras da experiência comum e as suas qualidades e capacidades pessoais (e profissionais), ter representado como possíveis as consequências da sua conduta, poder-se-á afirmar o conteúdo da culpa própria da negligência e punir-se quem, não obstante a sua capacidade pessoal, não usou o cuidado necessário para evitar o resultado cuja produção ele teve como possível ou podia ter previsto

FF. Ou seja, para responsabilizar um agente criminalmente é necessário que esse agente, para além de ter praticado uma ação penalmente relevante, também mereça um juízo de censura, de culpa, sendo esta o fundamento e o limite da medida da pena, não sendo possível a aplicação de uma pena a quem não tenha agido com culpa.

GG. No caso dos autos, o Recorrido actuou de acordo com as leges artis, com o cuidado e zelo a que estava obrigado, tendo sido particularmente cauteloso ao parametrizar a máquina abaixo do que era protocolado e, por isso, permitido e tido como bom para aquele Foto tipo.

HH.Nãoestão,porisso,reunidososrequisitosparaaimputaçãodapráticadocrimedeofensas à integridade física por negligência ou de qualquer outro.

II. Citando uma vez mais a sentença, “os factos provados não preenchem a tipicidade do crime ora em apreço, pelo que cumprirá absolver o arguido do crime de ofensa à integridade física por negligência”.

JJ. Motivo pelo qual, a decisão não poderia ter sido outra que não a absolvição do Arguido.

KK. Uma nota para a questão do consentimento informado, invocada pela Recorrente para sustentar o seu alegado desconhecimento, carece a mesma de fundamento legal, na medida em que não era obrigatória a assinatura de qualquer documentação formal de consentimento informado, e isso decorre directamente do ponto 6 da Norma 015/2013, da Direcção-Geral da Saúde, onde são elencados os procedimentos que exigem consentimento dado por escrito, não sendo o caso dos tratamentos a laser ou com luz pulsada.

LL. Assim, não existia qualquer exigência legal nesse sentido, pelo que a respectiva omissão nunca consubstanciaria má prática ou erro médico.

MM. Nem tão pouco é sinónimo de que a Recorrente não tenha sido informada ou esclarecida, ou estaríamos a assumir que todos os procedimentos ou actos médicos que dispensam o consentimento escrito são efectuados sem o conhecimento e anuência dos pacientes, o que não pode aceitar-se.

NN. O que mais releva, na prática, da informação e do consentimento informado é o diálogo entre médico e doente, isto é, o processo comunicacional e interacção estabelecida entre ambos, que forma no doente a capacidade para anuir na realização do acto médico que lhe é proposto.

OO. Sendo certo que, mesmo que não tivessem sido dados como provados os factos 12, 15 e 23, aqui em causa, tal não influenciaria a decisão pois não seria suficiente para a responsabilização criminal do Arguido.

PP. Pelo exposto, entende o aqui Recorrido que andou bem o Tribunal a quo, carecendo o presente recurso de fundamento, porquanto resulta de toda a prova produzida que a actuação do Recorrido foi correcta, não lhe sendo imputável qualquer má prática.

QQ. Não pode confundir-se duas coisas absolutamente distintas: a ocorrência de um efeito adverso da violação das leges artis.

RR. Punir-se um médico pela ocorrência de um efeito adverso a um tratamento, que é algo que depende da resposta individual e genética do paciente e não está na disponibilidade do profissional, seria abrir um precedente grave que condicionaria toda a prática médica.

SS. Aos médicos cabe fazer tudo o que está ao seu alcance e dentro das suas possibilidades, de acordo com os meios disponíveis e com a respectiva experiência e conhecimento, não lhes podendo ser exigido mais.

TT. E foi exactamente isso que o Recorrido fez.

UU. Ficou provado que parametrizou correctamente o aparelho deluz pulsada, de acordo com a sua vasta experiência, concretamente com peles escuras ou negras, cumprindo todos os protocolos, adaptando-os de forma zelosa, e mesmo assim o resultado não correspondeu ao preconizado e expectável.

VV. Actuando assim, como actuou o Recorrido, não existe fundamento para a imputação da prática de qualquer crime.

WW. Confia, por isso, o Recorrido que face à prova documental e testemunhal produzidas, manter-se-á a sentença recorrida, garantindo-se a aplicação de uma justiça que não é cega aos factos provados e aos princípios e normas subjacentes a uma condenação penal.


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Não foi emitido, em tempo, parecer pelo MP pelo que se ordenou em 03-12-2022 a cobrança dos autos. Em 05-12-2022, foi aposto “visto” nos autos.

Razões pelas quais se não deu cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. O arguido desempenha actividade profissional como médico da especialidade de dermatologia, prestado serviço no Hospital ..., nas unidades de ... e ....
2. No dia 9 de Janeiro de 2017 a assistente DD dirigiu-se ao Hospital ... - unidade de ... onde foi consultada na especialidade de dermatologia pelo arguido AA devido a queixa de aparecimento de manchas na pele.
3. O arguido informou a assistente de que lhe havia diagnosticado rosácea inflamatória e manchas hiperpigmentadas difusas.
4. Mais concretamente, o quadro clínico que apresentava a assistente, e que motivou a sua consulta, era de pápulas e pústulas inflamatórias da região malar bilaterais, eritema e queixas de ardor e sensação de “repuxamento” cutâneos, que foram interpretados no contexto de pele sensível e rosácea, com componente inflamatório.
5. O arguido prescreveu à arguida tratamento com os seguintes produtos:
- neotrata skin active pescoço;
- azelac ru;
- sensibio tolerance +;
- doxiciclina 40 mg.
6. Foi então programada consulta subsequente para reavaliação da referida condição clínica no dia 13 de Fevereiro de 2017, igualmente na mesma ....
7. Na consulta de dia 13 de Fevereiro de 2017 foi agendada nova consulta para o dia 28 de Fevereiro de 2017 na unidade de ..., a fim da assistente ser submetida a tratamento facial com luz intensa pulsada.
8. Na consulta do dia 28 de Fevereiro de 2017 foi aplicada à assistente “terapêutica luz não coerente pulsada <5cm2” (ou seja, luz intensa pulsada, doravante, apena LIP).
9. Tratando-se de um tratamento versátil que utiliza uma fonte de luz não-coerente, policromática com comprimento de onda entre os 500 e os 1200 nm, tornou-se necessária a adequada seleção de filtros de cut-off para que o comprimento de onda fosse o adequado aos alvos (cromóforos a tratar) com menor dano dos tecidos adjacentes.
10. O arguido optou por um filtro de 560 nm, com uma fluência inicialmente reduzida de 13 J/cm2 e pulso de 10 ms, de acordo com o protocolo e princípios técnicos do dispositivo de IPL da clínica: BTL 6000 Exilite e selecionados de acordo com o Fototipo da doente (Fototipo V).
11. O arguido procedeu à activação do dispositivo, sua calibração, colocação do referido filtro e seleção dos referidos parâmetros de fluência e pulso para o respectivo Fototipo.
12. A assistente, já com os óculos de protecção adequadamente colocados, anuiu que fosse dado início ao tratamento, tendo sido alertada de que iria sentir os referidos “flashes de calor” e o contacto com aplicador.
13. Foi iniciado então o tratamento através do contacto do aplicador em várias áreas da face com o gel de ecografia adequadamente aplicado em ângulos diferentes.
14. Durante o tratamento, ministrado pelo próprio arguido, a assistente sentiu ardor na face, tendo o arguido observado o branqueamento das áreas tratadas, pelo que este suspendeu o tratamento e aplicou à assistente um gel.
15. Logo após, o arguido informou a assistente de que havia ficado com queimaduras na face.
16. Na sequência da aplicação de procedimento com luz intensa pulsada e como consequência directa do mesmo a assistente sofreu:
- fortes dores e ardor na face e região frontal;
- múltiplas queimaduras de 1.º e de 2.º grau de configuração rectangular e padrão aleatório em toda a face e região frontal.
17. Tais lesões determinaram para a ofendida 431 dias de doença, dos quais 10 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e 431 dias com afectação da capacidade de trabalho profissional.
18. De tais lesões resultaram para a assistente as seguintes sequelas:
- lesões de queimaduras residuais pigmentadas, de padrão aleatório, na região frontal da face, de carácter permanente.
19. A assistente é de tez negra, à data dos factos tinha 52 anos de idade e residia em ....
20. O tratamento com luz pulsada intensa traduz-se numa luz não coerente, de alta intensidade mas em pulsos, na qual podem ser utilizados filtros vários de modo a atingir cromóforos diferentes, como a melanina, a hemoglobina ou mais profundamente a derme superficial e o colagénio.
21. O tratamento com luz pulsada intensa é adequado tanto no tratamento da rosácea inflamatória como das manchas hiperpigmentadas.
22. O tratamento com luz pulsada intensa deve ser reservado para opção de recurso em doentes de cor ..., como é o caso da assistente.
23. A assistente sabia que, no dia 28.02.2017, iria realizar um tratamento à pele da sua face com recurso a máquina de luz.
24. A assistente não assinou qualquer documento formal de consentimento informado.
25. As lesões verificadas na assistente são uma consequência directa do tratamento com luz pulsada intensa e foram produzidas devido à quantidade e à qualidade da energia que atingiu a sua pele.
26. O arguido aufere o rendimento mensal médio de €35.000,00 e vive em casa arrendada, pela qual paga a renda mensal de €5.600,00.
27. O arguido não tem antecedentes criminais.

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B.1.2 - E como não provados os seguintes factos:

i) Ao agir da forma descrita o arguido não observou os procedimentos adequados para o uso da máquina de luz pulsada intensa tendo em consideração o tipo de pele da assistente como sabia e como se lhe impunha, ou seja, não observou as precauções e regras que pela mais elementar prudência de conduta profissional que lhe era exigida e que era capaz de adoptar para impedir a produção de um resultado que sabia ser previsível, mas que não previu, dando daí causa às lesões acima referidas;
ii) O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida e era punida por lei.
iii) A assistente, após ser submetida a tratamento com LIP, expôs a sua face ao sol, de forma não adequada face ao tratamento realizado.

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B.1.3 – E fundamentou a sua apreciação de facto da forma seguite:

«O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e conjugada, ponderada com juízos retirados da experiência comum e critérios de razoabilidade, dos meios de prova constantes dos autos e daqueles produzidos em julgamento.
Assim, desde logo o Tribunal considerou toda a documentação junta aos autos, nomeadamente, a documentação junta com a queixa crime de fls. 2 e ss.
Foi tido em consideração, também, os relatórios periciais de fls. 88 e 89; 142 e 143; 171 e 172; 195 e 196; e Pareceres periciais de fls. 217 a 220; 240 a 241, com esclarecimentos escritos de fls. 581 a 584.
Já o arguido, nas declarações prestadas em Tribunal, descreveu com segurança e assertividade o tratamento que realizou na assistente, negando peremptoriamente que tivesse em algum momento violado alguma regra de cuidado a que estivesse obrigado.
Aliás, o arguido, não negou que as consequências verificadas na face da assistente fossem resultado directo do tratamento com LIP.
Explicou, contudo, o arguido que tal resultado teve origem em reacção da pele da assistente ao tratamento, sendo que tal decorrência estava abrangida pelo risco inerente ao próprio tratamento.
Admitiu também o arguido que a assistente não assinou qualquer documento formal de consentimento informado, o que considerou ter sido um erro de procedimento, ainda que o consentimento escrito não fosse obrigatório.
No final da produção de prova em julgamento foi solicitado ao arguido que efetuasse um juízo de prognose póstuma, ou seja, se o arguido, hoje, realizaria o tratamento na assistente da forma que o realizou, tendo o conhecimento que detinha à data do mesmo. A esta questão o arguido disse, com segurança, que tem continuado a tratar doentes com as mesmas características de pele e de diagnóstico semelhantes aos apresentados pela assistente, da mesma forma com que tratou a assistente.
Por seu turno, a assistente, compreensivelmente revoltada, disse em julgamento que nunca foi informada pelo arguido qual o tratamento que iria realizar – com LIP. Disse, também, a assistente, que imediatamente após tal tratamento, realizado no dia 28.02.2017, donde resultaram queimaduras na sua face, o arguido também não a informou que tipo de tratamento a mesma havia sido sujeita.
Ora, tal descrição da realidade é completamente desrazoável, pois não é minimamente consentâneo com regras de experiência comum que alguém esteja a realizar um tratamento à face com recurso a feixes de luz, e que pense, por exemplo, que lhe estejam simplesmente a aplicar um creme.
Esta conclusão é ademais solidificada pelo facto da assistente ser pessoa esclarecida, com recurso financeiros suficientes para recorrer a clínicas privadas para tratamentos cosméticos. Realça-se, também nesta parte, que a assistente é empresária, com actividade transnacional.
Aliás, a testemunha arrolada pela assistente, FF, médico dermatologista que seguiu aquela após as queimaduras verificadas na face, disse em julgamento que, quando a assistente procurou os seus serviços, lhe comunicou que havia sido submetida a tratamento com disparos de luz, contrariando a versão apresentada em julgamento pela própria assistente.
Também, contrariamente ao referido pela assistente em julgamento, esta testemunha disse que aquela nunca lhe referiu que lhe havia sido diagnosticado, anteriormente, rosácea na face.
Ou seja, para o que importou decidir – se o arguido violou algum dever de cuidado, com inerente consequência física na assistente – o contributo das declarações da assistente mostrou-se bastante frágil.
Indo, agora, mais directamente, ao que importou decidir – se o arguido observou, ou não, as precauções e regras de prudência profissional que lhe era exigida e que era capaz de adoptar para impedir a produção das lesões ocorridas na assistente -, o Tribunal considerou fulcrais os esclarecimentos peremptórios prestados em julgamento pelo perito, Professor II.
Ora, o perito esclareceu, de forma objectiva e clara, o seguinte:
- Que o arguido utilizou na máquina de LIP, filtros com maior capacidade de filtragem que os indicados para o caso em apreço, segundo os parâmetros da máquina de LIP;
- Que o arguido utilizou menos energia na luz do que os ditados pelos próprios parâmetros da máquina;
- Que a realização de teste prévio em zona da pele, que não na face, não é ditado pelas regras da legis artis médica, tanto que a resposta da pele a tal teste poderia ser diferente, não evitando, por isso, a decorrência verificada no caso em concreto;
- Que o arguido, ao invés de utilizar na assistente a LIP, poderia ter utilizado outra terapêutica, mas que a opção tomada pelo arguido não é errada do prisma médico;
- Que a sensação de ardor na pele durante o tratamento de LIP é normal.
Concluiu o perito que, o sucedido resultou de uma variável incontrolável pelo arguido – a resposta da pele da assistente, sempre dotada de alguma imprevisibilidade.
As conclusões do perito e esclarecimentos prestados pelo mesmo em julgamento, resultaram de algum modo, também, corroborados pelo depoimento da testemunha arrolada pela assistente, FF, supra indicado.
Referiu este médico dermatologista que o tratamento de LIP em casos como o da assistente é viável, desde que sejam alterados os parâmetros da máquina de LIP, de forma adequada, diminuindo a intensidade da luz – o pulso – e adequando os filtros utilizados
Concluiu esta testemunha que, se os parâmetros supra indicados forem devidamente considerados, a utilização da LIP em casos como o da assistente é considerado uma boa prática médica.
Quanto à imprevisibilidade da resposta da pele de qualquer pessoa à LIP, ainda que utilizados os parâmetros correctos, esta testemunha referiu que tal imprevisibilidade é incontrolável.
Aliás, no caso em concreto, a testemunha referiu que a pele da assistente apresenta um quadro, mais do que raro, único de resposta a tratamentos dermatológicos, tanto mais que apresentou o caso da assistente em congresso da especialidade de dermatologia.
Este dado reforça, assim, a conclusão do perito, segundo a qual o sucedido na pele da assistente, após o tratamento com LIP resultou de uma variável incontrolável pelo arguido.
Os depoimentos demais testemunhas inquiridas em julgamento mostraram-se inócuos para a decisão da causa.
O facto não provado elencado no item iv) resultou de insuficiência de prova.
As condições socioeconómicas da arguida resultaram demonstradas através das suas próprias declarações e de caderneta predial de fls. 653 a 656.
O Tribunal considerou, por último, o CRC de fls. 853».

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Cumpre conhecer

B.2.1 – O objecto do recurso

As balizas do objecto do recurso encontram-se, como se sabe, no teor das suas conclusões, por isso que a questão suscitada pela assistente se resume à invocação de nulidade de sentença por ausência do exame crítico da prova, o que se depreende da leitura de todas as suas conclusões t) a bb), não obstante o fundamento divirja [conclusões b) a t) e u) a bb)].

Cabe ainda salientar que na conclusão b) ocorre lapso pois a assistente refere sempre nas suas motivações a sua insatisfação quanto aos factos provados 12), 15) e 23) mas ali refere o facto provado 16), apesar de transcrever o facto provado 15). Entende-se, portanto, que a inconformidade da recorrente se centra nos factos dados como provados em 12), 15) e 23).


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B.2.2 – Nulidade de sentença por ausência do exame crítico da prova

A base argumentativa da recorrente para a alegação de inexistência de exame crítico da prova assenta nos seguintes considerandos:

a) – o arguido não informou a assistente do tratamento a que iria ser submetida – conclusões d) a i);

b) - o tribunal não considerou as declarações da assistente nem os depoimentos do seu marido, filha e assistente do próprio arguido – conclusões j) a t);

c) – o tribunal não atendeu ao facto de o tratamento aplicado pelo arguido ser de risco, considerando as características físicas da assistente – conclusões u) a aa).

a) - Relativamente ao primeiro ponto de inconformidade da recorrente o mesmo não altera a matéria dada como provada pois que o respectivo facto se encontra já provado no facto 24), nos seguintes termos: “A assistente não assinou qualquer documento formal de consentimento informado”.

Ademais o próprio arguido reconhece, no dizer do próprio tribunal recorrido, esse erro de procedimento quando ali se afirma que «Admitiu também o arguido que a assistente não assinou qualquer documento formal de consentimento informado, o que considerou ter sido um erro de procedimento, ainda que o consentimento escrito não fosse obrigatório.»

Logo, provada a inexistência de consentimento médico por escrito e a aceitação desse facto pelo arguido, não se vê como o tribunal recorrido – para além da sua própria inexistência e aceitação do principal interessado na sua apresentação – poderia fundamentar a inexistência de algo claramente assente pelas próprias declarações do arguido (que, aliás, são referidas na fundamentação factual).

O que nos dispensa de entrar na análise, neste ponto, sobre a existência de consentimento tácito para a sujeição a tratamento.

De qualquer forma, a existência de consentimento não é pressuposto do tipo de crime imputado, pelo que insistir num ponto claramente provado e fundamentado é despiciendo para o fim pretendido pela assistente.

Provado e fundamentado o facto, ausente uma exigência de forma para o consentimento, a sua irrelevância jurídica é patente. Bem se pode afirmar que é manifesto que o recurso, nesta parte, não tem objecto.


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b) – De outra banda assevera a recorrente que o tribunal não considerou as declarações da assistente nem os depoimentos do seu marido, filha e assistente do próprio arguido.

O conceito de “consideração” assume aqui dois contornos, um quanto às declarações da assistente, outro quanto às três testemunha indicadas.

Quanto às declarações da assistente o tribunal recorrido explica de forma cristalina as razões que sustentaram a sua não “consideração”, no sentido de aceitabilidade probatória, indicando de forma expressa tais razões:

«Por seu turno, a assistente, compreensivelmente revoltada, disse em julgamento que nunca foi informada pelo arguido qual o tratamento que iria realizar – com LIP. Disse, também, a assistente, que imediatamente após tal tratamento, realizado no dia 28.02.2017, donde resultaram queimaduras na sua face, o arguido também não a informou que tipo de tratamento a mesma havia sido sujeita.
Ora, tal descrição da realidade é completamente desrazoável, pois não é minimamente consentâneo com regras de experiência comum que alguém esteja a realizar um tratamento à face com recurso a feixes de luz, e que pense, por exemplo, que lhe estejam simplesmente a aplicar um creme.
Esta conclusão é ademais solidificada pelo facto da assistente ser pessoa esclarecida, com recurso financeiros suficientes para recorrer a clínicas privadas para tratamentos cosméticos. Realça-se, também nesta parte, que a assistente é empresária, com actividade transnacional.
Aliás, a testemunha arrolada pela assistente, FF, médico dermatologista que seguiu aquela após as queimaduras verificadas na face, disse em julgamento que, quando a assistente procurou os seus serviços, lhe comunicou que havia sido submetida a tratamento com disparos de luz, contrariando a versão apresentada em julgamento pela própria assistente.»

Vistas as transcrições das declarações da assistente nas suas motivações de recurso, nada inculca a ideia de que a apreciação probatória efectuada pelo tribunal recorrido seja incorrecta, pois que as mesmas – ainda que se considasse que a recorrente pretende impugnar os factos dados como provados nos termos do disposto no art. 412º, nsº 3 e 4 do C.P.P. em 12), 15) e 23) – não impõem diversa decisão de facto.

Relativamente aos depoimentos das outras três testemunha indicadas pela recorrente, o seu marido, sua filha e a assistente do arguido – lida a fundamentação de facto do tribunal recorrido – é evidente que as mesmas se inserem no trecho fundamentador dai constante, isto é, que «Os depoimentos das demais testemunhas inquiridas em julgamento mostraram-se inócuos para a decisão da causa».

Pode considerar-se que tal texto é excessivamente genérico e que melhor ficaria a indicação precisa e concreta dos nomes das testemunhas, mas não pode concluir-se que tal corresponda a uma ausência ou, sequer, insuficiência de fundamentação.

E, repetimo-nos, mesmo a considerar-se que a recorrente pretenderia impugnar os factos dados como provados nos termos do disposto no art. 412º, nsº 3 e 4 do C.P.P. em 12), 15) e 23), não se vislumbra que os mesmos imponham diversa decisão de facto.


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c) – O tribunal não atendeu ao facto de o tratamento aplicado pelo arguido ser de risco, considerando as características físicas da assistente

O apelo ao “risco” suscita uma prévia questão, a de saber se a recorrente se está a referir à análise factual, se está a invocar uma questão de direito, a saber, da inserção neste tipo de crime da teoria do “incremento do risco” de Roxin.

Tal teoria defende que, se não for possível determinar com certeza que o risco criado pelo agente determinou o resultado, este ser-lhe-á imputado se tiver ultrapassado o risco permitido, aumentando a probabilidade da ocorrência de tal resultado, quando a acção tenha “criado, aumentado ou incrementado um risco proibido para o bem jurídico” tutelado pela norma.

Sem consagração legal no ordenamento jurídico português, tal teoria enfrenta ainda as dificuldades de neste estar consagrada a teoria da causalidade adequada e de – como é opinião doutrinalmente consagrada – a imputação objectiva do resultado ao comportamento alternativo estar limitada à punibilidade pela tentativa, algo não inserível no caso concreto por se tratar de crime negligente e neste ser inviável a imputação por tentativa negligente – cf. art. 10º do CP.

O que nos remete para a adequada fundamentação jurídica da decisão recorrida.

Mas, vistas as conclusões da recorrente é evidente que esta centra a sua insatisfação na fundamentação de facto, o que decorre principalmente das suas conclusões y) e z).

Recordemos que:

§ 24 (2) A imputação deverá ter-se igualmente por excluída quando o resultado tenha sido produzido por uma acção que não ultrapassou o limite do risco juridicamente permitido. Este critério está relacionado com o facto (já acima mencionado) de a vida social comportar uma multidão ineliminável de riscos e perigos tolerados pela própria sociedade, pois que estão associados a conquistas civilizacionais e a modelos de desenvolvimento de que a sociedade não pode, nem quer prescindir. Daí resulta que não pode o direito penal, dada a sua natureza de ultima ratio, sancionar comportamentos que tenham produzido a lesão de bens jurídicos em virtude da materialização de riscos que são tolerados de forma geral.
Cumpre à ordem jurídica definir quais as regras a observar, quais as precauções e cuidados a ter na prática dessas actividades que por si mesmas comportam perigos para bens jurídicos. E nesse sentido surgem normas que regulam, por exemplo, a circulação rodoviária, o uso de pesticidas na actividade agrícola, o uso de explosivos em pedreiras e construções. o manuseamento de vírus, de bacilos, de energia atómica. Pode acontecer que a ordem jurídica nada disponha ou disponha insuficientemente acerca dos procedimentos a seguir em certas actividades perigosas. Assim, em áreas como a medicina, são determinantes as chamadas leges artis; na falta de regulação legal devem ser observadas aquelas regras que os agentes do respectivo sector do tráfico seguem de forma habitual, por a ordem jurídica considerar que desse modo se contêm de forma satisfatória e razoável os riscos inerentes à respectiva actividade.» - Prof. Figueiredo Dias, in «Direito Penal – Parte Geral», Tomo I, 2ª Ed., Combra Editora, 2007, pag. 333.


E nesta sede, de fundamentação de facto efectuada pelo tribunal recorrido quanto ao risco permitido, a decisão recorrida não pode ser atacada com fundamento em ausência de análise crítica dos factos que permitam sustentar ou afastar que a conduta do arguido foi a adequada ao caso concreto da assistente, pois que de forma expressa se pronuncia sobre a adequação da conduta às legis artis aplicáveis e acrescenta-lhe um factor de imprevisibilidade raro que afasta a ocorrência de um risco proibido e previsível que permita a imputação do mesmo ao arguido.


Recorde-se, do texto da sentença recorrida:

«Indo, agora, mais directamente, ao que importou decidir – se o arguido observou, ou não, as precauções e regras de prudência profissional que lhe era exigida e que era capaz de adoptar para impedir a produção das lesões ocorridas na assistente -, o Tribunal considerou fulcrais os esclarecimentos peremptórios prestados em julgamento pelo perito, Professor Américo Figueiredo.
Ora, o perito esclareceu, de forma objectiva e clara, o seguinte:
- Que o arguido utilizou na máquina de LIP, filtros com maior capacidade de filtragem que os indicados para o caso em apreço, segundo os parâmetros da máquina de LIP;
- Que o arguido utilizou menos energia na luz do que os ditados pelos próprios parâmetros da máquina;
- Que a realização de teste prévio em zona da pele, que não na face, não é ditado pelas regras da legis artis médica, tanto que a resposta da pele a tal teste poderia ser diferente, não evitando, por isso, a decorrência verificada no caso em concreto;
- Que o arguido, ao invés de utilizar na assistente a LIP, poderia ter utilizado outra terapêutica, mas que a opção tomada pelo arguido não é errada do prisma médico;
- Que a sensação de ardor na pele durante o tratamento de LIP é normal.
Concluiu o perito que, o sucedido resultou de uma variável incontrolável pelo arguido – a resposta da pele da assistente, sempre dotada de alguma imprevisibilidade.
As conclusões do perito e esclarecimentos prestados pelo mesmo em julgamento, resultaram de algum modo, também, corroborados pelo depoimento da testemunha arrolada pela assistente, FF, supra indicado.
Referiu este médico dermatologista que o tratamento de LIP em casos como o da assistente é viável, desde que sejam alterados os parâmetros da máquina de LIP, de forma adequada, diminuindo a intensidade da luz – o pulso – e adequando os filtros utilizados
Concluiu esta testemunha que, se os parâmetros supra indicados forem devidamente considerados, a utilização da LIP em casos como o da assistente é considerado uma boa prática médica.
Quanto à imprevisibilidade da resposta da pele de qualquer pessoa à LIP, ainda que utilizados os parâmetros correctos, esta testemunha referiu que tal imprevisibilidade é incontrolável.
Aliás, no caso em concreto, a testemunha referiu que a pele da assistente apresenta um quadro, mais do que raro, único de resposta a tratamentos dermatológicos, tanto mais que apresentou o caso da assistente em congresso da especialidade de dermatologia.
Este dado reforça, assim, a conclusão do perito, segundo a qual o sucedido na pele da assistente, após o tratamento com LIP resultou de uma variável incontrolável pelo arguido.»

O que nos permite concluir que se não ultrapassou o limite do risco permitido, como aliás se conclui das legis artis aplicáveis ao caso concreto.

Razões que reconduzem à improcedência do recurso.


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C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso.

Évora, 24-01-2023.

(processado e revisto pelo relator).

João Gomes de Sousa

Carlos Campos Lobo

Ana Bacelar