REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PRESSUPOSTOS
DIREITO DE AUDIÇÃO
Sumário

I – Se no decurso da suspensão da execução da pena de prisão, o condenado, de forma grosseira ou repetida, viola os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de readaptação, ou comete crime pelo qual venha a ser condenado e assim revele que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por intermédio desta ser alcançadas, a suspensão é revogada, cumprindo o condenado a pena de prisão estabelecida na sentença, conforme decorre do artigo 56.º, n.º 1, do CPenal.
II - São assim três os fundamentos da revogação da suspensão: infração grosseira dos deveres, das regras de conduta ou do plano de reinserção social; infração repetida dos deveres, das regras de conduta ou do plano de reinserção social; cometimento de crime durante o período de suspensão.
III – Desta feita, para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão é o bastante uma violação decorrente de um estar e de um atuar contínuo censurável / indesculpável de desleixo / descuido / desinteresse / desprendimento e / ou apatia, não praticável pelo cidadão comum, e por isso não tolerável, perante uma obrigação decorrente de uma condenação que constitui uma advertência solene que aplica tal medida.
IV- Por isso, impõe-se que o tribunal indague da culpa do condenado procedendo à sua audição a fim de, ponderadas as razões apresentadas por este para o desrespeito ocorrido, poder concluir se a possibilidade de atingir as finalidades que levaram à suspensão da execução da pena ficou irremediavelmente inquinada.
V – Na presença de algumas falhas, a maior parte delas relacionadas com o uso e manuseamento de equipamento técnico, de posicionamento positivo do arguido relativamente a outros aspetos, de faltas a programa que ficou suspenso como medida para evitar a propagação da doença COVID-19, aliado a quadro atual de sem-abrigo do arguido, mantendo o mesmo a consciência de que tem a obrigação de cumprir determinados deveres, não há dados suficientes e bastantes que permitam concluir, sem mais, que o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão da execução da pena se mostra definitivamente infirmado, inexistindo segurança de que o arguido não voltará a delinquir.
VI – Necessário se torna antes que o tribunal recorrido desencadeie todos os mecanismos necessários e possíveis, mormente aqueles que possam ser sugeridos pelos Serviços de Reinserção Social, a apurar o grau / intensidade da culpa do arguido, se houve ou não causa de incumprimento a ser-lhe exclusivamente imputada ou antes a verificação e / ou concorrência de outras suficientemente justificativas do seu atuar.

Texto Integral


Acordam em Conferência na Secção Criminal (2ª subsecção)

I – Relatório

1. Por Acórdão datado de 10 de setembro de 2019, e transitado em julgado em 10 de outubro do mesmo ano, foi o arguido AA, melhor identificado nos autos, condenado, em cúmulo jurídico, resultante das penas parcelares de prisão que lhe haviam sido aplicadas nos processos nº 584/18...., do Juízo Local Criminal ...- J..., e 24/17...., do Juízo Local Criminal ...- J..., na pena única de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova assente em plano de reinserção social e no cumprimento das seguintes sanções acessórias:

a) Proibição de contactos durante o período correspondente à suspensão da execução da pena, por qualquer meio, com BB, salvo no que for estritamente necessário ao exercício das responsabilidades parentais relativas aos filhos comuns menores de idade, bem como proibição de permanência na residência da ofendida, no respetivo local de trabalho e em qualquer local onde esta se encontre, a menos de 200 (duzentos) metros de distância da mesma. O cumprimento de tal pena acessória será fiscalizado através de meios eletrónicos de controlo à distância.
b) Obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD) desenvolvido pela DGRSP, com a duração de 24 (vinte e quatro) meses.
c) No pagamento a BB da quantia de € 900 (correspondente à soma das indemnizações parcelares fixadas em € 300 e € 600).

2. Por despacho com a Referência Citius ...03, proferido em 18 de junho de 2022, foi determinada a revogação da suspensão da execução daquela pena de prisão e o cumprimento efetivo da mesma pelo arguido.

3. O Digno Mº Pº, notificado de tal decisão, veio interpor o presente recurso pedindo a sua revogação, defendendo que, ao invés da revogação, deverá antes o Tribunal impor uma advertência solene ao condenado, nos termos da alínea a) do artigo 55º do CPenal, mantendo a suspensão da execução da pena de prisão, para o que apresenta as seguintes conclusões que extrai da sua motivação: (transcrição)

1. Nestes autos veio o Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 56º nº1 al. a)do Código Penal, decidir a revogação da suspensão da pena de prisão que foi aplicada ao arguido AA.
2. Entende o Ministério Público que foi aplicado o disposto no artigo 56º do Código Penal sem que estivessem reunidas as condições para o efeito, por se entender que não se mostram verificados os pressupostos de aplicação da revogação da pena suspensa, tudo isto em detrimento do disposto no artigo 55º do Código Penal.
3. Entende ainda o Ministério Público que o Tribunal a quo decidiu sem que estivesse reunida toda a prova relevante para a decisão, conforme impunha o disposto no nº2 do artigo 495º do Código de Processo Penal.
4. Para aplicação da suspensão da pena de prisão, o Tribunal entendeu que se verificava que o arguido se encontrava profissional e socialmente inserido, não possuindo quaisquer outros antecedentes criminais para além dos que aqui se apreciavam nos autos, e pelo exposto, considerou que a mera ameaça do cumprimento da prisão era suficiente para potencializar a sua ressocialização na comunidade, sendo igualmente adequada às necessidades de prevenção especial que arguido demonstrava carecer, tanto mais que tinha vindo a cumprir a pena acessória de proibição de contactos em que foi condenado, sendo legitimo ao Tribunal perspectivar que tal cumprimento se verificasse no futuro, pelo que fixou a pena numa única de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, acompanhada de regime de prova assente num plano de reinserção social.
5. O Plano da reinserção social identificou objetivos a alcançar pelo condenado: manter-se abstinente do consumo de bebidas alcoólicas, o reconhecimento dos fatores de risco associados à prática do comportamento violento e motivação para a mudança, aprendizagem e utilização de estratégias alternativas ao comportamento violento, nomeadamente nas relações de intimidade, e consolidar as estratégias de gestão de risco individuais e desenvolver um plano de prevenção de recaída do comportamento violento.
6. Para atingir estes objetivos, o condenado, segundo este mesmo plano, deveria marcar e comparecer em consultas de alcoologia para diagnóstico e eventual tratamento, se for prescrito, e com a periodicidade determinada; Comparecer com assiduidade às entrevistas com técnico de reinserção social, colaborando pró-ativamente nos conteúdos abordados; Adotar condutas de relacionamento intrafamiliar adequadas no contexto vivencial atual, abster-se de novos comportamentos violentos, físicos e/ou verbais, em eventuais contactos a estabelecer com a vítima, participar de modo adequado no acompanhamento das filhas menores, cumprindo o que vier a ser determinado pelo Tribunal de família e menores; Participar com assiduidade e cumprir o regulamento de frequência da fase psico educacional de PAVD; Comparecer com assiduidade às entrevistas com o técnico de reinserção social, colaborando pró-ativamente na identificação de potenciais desencadeadores do comportamento violento e de estratégias de prevenção e gestão do mesmo.
7. Para além do incumprimento qualificado previsto no artigo 56º do C. Penal (face ao mero incumprimento culposo a que se refere o artigo 55º), a revogação da pena de prisão suspensa depende ainda de aquele incumprimento revelar que “…as finalidades que estavam na base da suspensão já não poderão, por meio dela, ser alcançadas”, condição esta que constitui um verdadeiro critério material da revogação da suspensão da pena (cfr Pinto de Albuquerque, Comentário do C. Penal 2008 p. 202).
8. A revogação não é automática e só deve ter lugar quando o incumprimento dos deveres ou o cometimento do facto ilícito que determinou a condenação posterior revelarem que as finalidades que estavam na base da suspensão já não podem ser atingidas através dessa suspensão.
9. Mal andou o Tribunal a quo, porquanto do facto de o condenado ter demonstrado um uso incorreto dos meios de controle de distância da proibição de contactos com a vítima, e do facto de ter faltado a algumas consultas de alcoologia, não se pode inferir que o arguido será incapaz de cumprir com as finalidades que o plano da DGRSP propunha alcançar.
10. O douto Tribunal a quo não relevou a postura do arguido ao longo de todo o processo.
11. O Tribunal a quo partiu de uma premissa errada dando por verificado o incumprimento das sanções acessórias, quando na verdade o arguido foi a várias consultas e deu início ao cumprimento do programa PAVD, que, entretanto, ficou suspenso como medida para evitar a propagação da doença COVID-19, ou seja por motivo não imputável ao arguido.
12. Mal anda o Tribunal ao não dar qualquer relevo a parte importante da prova produzida nos autos, desde logo, os Relatórios da DGRSP que focam de forma positiva a postura do arguido, o facto de o arguido se encontrar atualmente em situação de sem-abrigo, e a circunstância de manter consciência da sua obrigação de permanecer afastado da vítima.
13. Apenas o último Relatório se mostra mais preocupante, e como tal, afigura-se ao Ministério Público que uma advertência solene, nos termos do disposto no artigo 55º do Código Penal e que nunca foi feita ao condenado teria tido um efeito útil e responsabilizante na atitude do condenado.
14. Os Relatórios demonstram no geral uma vontade em colaborar com os técnicos da DGRSP, pois não estamos, na verdade, perante uma pessoa que tenha demonstrado uma total falta de vontade em cumprir com as obrigações que lhe foram impostas, nem uma pessoa que se mostre totalmente adversa ao cumprimento do Plano.
15. É notório nos autos que parte do plano não teve o devido seguimento, não por culpa do condenado AA, mas sim, porque estiveram suspensas diversas atividades (tais como a que devia cumprir o condenado do PROGRAMA PAVD) durante o período da pandemia, não podendo o arguido ser agora prejudicado por conta das suspensões do Plano devido ao estado pandémico mundial.
16. Também facilmente se infere que, caso não estivessem suspensas as atividades durante quase dois anos devido à pandemia, o condenado há muito teria decerto cumprido com as suas obrigações no que concerne às atividades grupais do Programa PAVD.
17. O Ministério Público entende que da prova existente nos autos, se retira que o condenado AA não colocou definitivamente em causa as finalidades da suspensão da pena, sendo assim, mal andou o Tribunal a quo.
18. Os Relatórios da DGRPS existentes nos autos, não apontam um comportamento repetido de incumprimento dos deveres ou regras de conduta, nem indicam uma violação grosseira desses mesmos deveres.
19. Repare-se que dos Relatórios retiramos sempre uma informação positiva, tal como: “apesar de adotar uma atitude recetiva face às orientações e advertências dos serviços da reinserção social, e de até à data não ter efetuado qualquer tentativa de contacto e/ou aproximação da vítima, o condenado AA tem evidenciado ligeiras dificuldades quanto à utilização do equipamento de vigilância eletrónico (..)” ; “Embora AA cumpra as obrigações a que se encontra sujeito e adira, formalmente, às atividades previstas no plano de reinserção social (..)”.
20. Nestes autos encontra-se ainda concretamente identificada uma necessidade de o condenado frequentar consulta de psicologia e psiquiatria. Ora, tal circunstância leva o Ministério Público a emitir algumas reservas acerca do estado psicológico em que se encontrará atualmente o condenado e o que o terá levado a dizer aos técnicos de que não necessita do acompanhamento nas consultas de CRI.
21. Diz o artigo 495º nº2 do Código de Processo Penal que o Tribunal decide, depois de recolhida a prova e acerca da necessidade de o arguido recorrer às consultas de psicologia e psiquiatria e não foi pelo Tribunal a quo diligenciado no sentido de apurar o estado da frequência dessas consultas.
22. Não se mostrando recolhida toda a prova, no Tribunal a quo encontra-se na impossibilidade de decidir, nos termos do artigo supra exposto, o que aqui sucedeu, e em consequência não se encontrava em condições de proferir despacho acerca da falta de cumprimento das condições de suspensão.
23. Foram três as sanções acessórias a que o arguido foi condenado.
24. Ora, a sanção acessória de “Proibição de contactos durante o período correspondente à suspensão da execução da pena, por qualquer meio, com BB, salvo no que for estritamente necessário ao exercício das responsabilidades parentais relativas aos filhos comuns menores de idade, bem como proibição de permanência na residência da ofendida, no respetivo local de trabalho e em qualquer local onde esta se encontre, a menos de 200 (duzentos) metros de distância da mesma” a que AA foi condenado nunca esteve posta em causa, antes pelo contrário, sempre foi cumprida, ainda que o arguido não tenha convenientemente usado a unidade de posicionamento móvel.
25. De facto, tudo indica que o arguido se encontra a cumprir a sanção acessória de proibição de contactos, o que não se mostra cumprido é o meio de fiscalização.
26. Como tal, não poderia o Tribunal a quo considerar que o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão da execução da pena mostra-se definitivamente infirmado, pois está demonstrado o cumprimento da sanção acessória.
27. O mesmo acontece com a obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência doméstica desenvolvido pela DGRSP, com a duração de 24 (vinte e quatro) meses, pois, encontra-se demonstrado nos autos que o arguido frequentou em parte este programa, que durante um largo período de tempo esteve suspenso devido às regras impostas à população para impedimento de prorrogação da pandemia COVID-19.
28. Quanto à indemnização devida à vítima, tidas as circunstâncias atuais e pessoais de vida do arguido(sem atividade profissional e aem estado de sem-abrigo), facilmente concluímos também que o condenado não revelou qualquer infração grosseira das suas obrigações.
29. Entendo o Ministério Público que não se encontram reunidos os pressupostos a que alude a alínea a) do nº1 do artigo 56º do Código Penal, e como tal, fez o Tribunal a quo um uso indevido e reprovável desta norma.
30. Ao invés, o Tribunal a quo devia ter equacionado melhor a aplicação de alguma ou algumas das possibilidades que oferece o artigo 55º do Código Penal, e não o fez. O Tribunal a quo não aplicou o disposto neste artigo, quando tinha o dever de o aplicar.
31. Tem a jurisprudência afirmado que, «a revogação da suspensão da pena só deve ter lugar como última ratio, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as restantes providências previstas no art.º 55.º» (cfr. Ac. da RP de 16-11-2005, proferido no processo n.º 0542196, pelo relator António Gama, in www.dgsi.pt).
32. Entende o Ministério Público que no caso em apreço não foram esgotadas, nem se revelam de todo ineficazes, as providências previstas no artigo 55º do Código Penal.
33. A favor do condenado, podemos referir que de modo geral, todos os relatórios de incidentes acabam por relatar que AA cumpre, pelo menos em parte, as obrigações a que se encontra sujeito, e adere, formalmente, às atividades previstas no plano de reinserção social.
34. Note-se que o Plano apresentado ao arguido AA, assinala como objetivos a as estratégias de gestão de risco individuais e desenvolver um plano de prevenção de recaída do comportamento violento.
35. A conduta do condenado tem demonstrado que parte destes objetivos estão alcançados, e quanto ao restante, tal como manter-se abstinente do consumo de bebidas alcoólicas, nada nos permite inferir que está irremediavelmente comprometido esse objetivo.
36. Acerca do comportamento violento, temos de assinalar que desde a condenação em causa nestes autos, o arguido AA nunca mais foi condenado por qualquer crime, sendo certo que as condenações que deram origem a estes autos são do ano 2018 (isto no que concerne aos factos mais recentes, sendo os restantes factos anteriores a essa data).
37. Tal conduta devia ter sido ponderada e valorada pelo Tribunal a quo, o que não aconteceu.
38. Resume-se em bom rigor, atualmente, o incumprimento do condenado AA à falta de uso da UPM, e à sua ausência injustificada à consulta do CRI que lhe fora agendada, e como tal, mostra-se em conformidade com o Direito penal, aplicar-lhe alguma ou algumas das medidas insertas no artigo 55º do Código Penal.
39. Estão em causa duas condenações por crime de violência doméstica, tendo sido vítima BB em ambas as condenações, sendo certo que os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra.
40. No caso concreto, no que a estes bens diz respeito, não poderemos deixar de manter um juízo de prognose positivo.
41. De facto, nos autos, encontra-se demonstrado pelos diversos Relatórios apresentados pela DGRSP que o arguido AA nunca se aproximou da vitima, e como tal, nunca assumiu qualquer postura que pusesse em perigo a vitima, nem qualquer comportamento que demonstrasse que o arguido não se consciencializou do crime praticado e dos bens jurídicos por si ofendidos. Mal andou o Tribunal a quo ao não relevar suficientemente esta circunstância.
42. Discorda-se da posição assumida pelo Tribunal a quo quando defende que ao não ter ultrapassado a sua dependência de bebidas alcoólicas, o arguido “poderá agir de forma imponderada, como muitas vezes acontece”.
43. Ora ao Tribunal compete analisar a prova concreta recolhida nos autos e não fazer um juízo assente em incertezas. Pois, sempre se poderá dizer que, a prova concreta recolhida nos autos, aponta no sentido oposto ao defendido pelo Tribunal a quo.
44. Violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 55º e 56º do Código Penal, e ainda a obrigação de recolha de toda a prova relevante, nos termos do disposto no artigo 495º nº2 do Código de Processo Penal.
45. Deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida por outra que determine a aplicabilidade do artigo 55º do Código Penal, impondo-se uma advertência solene ao condenado, nos termos da al. a) do artigo 55º do Código Penal e, com vista a uma eventual ponderação de modificação dos deveres, nos termos do artigo 51º nº3 do Código Penal e do disposto no nº2 do artigo 495º do Código de Processo Penal, que a vítima BB seja ouvida.

Nesta conformidade, deverão V.Exas. revogar o despacho que revoga a suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido AA, proferido pela Meritíssima Juiz e datado de 18 de junho de 2022.

4. O arguido, em resposta, pronunciando-se sobre o recurso interposto pelo Digno Mº Pº, defendeu a sua procedência, tendo assim concluído: (transcrição)


A omissão de notificação da promoção do Ministério Público e dos meios de prova enunciados naquela proposta ao arguido, constitui a nulidade prevista na alínea c) do artigo 119º do CPP.

Efetivamente, é inconstitucional a norma interpretativamente extraída do artigo 495º, nº 2, e do artigo 119º, ambos do Código de Processo Penal, que permite a revogação da suspensão da pena de prisão, com omissão de notificação da promoção do Ministério Público e dos meios de prova enunciados naquela proposta ao arguido, por esta preterição redundar em mera irregularidade, por violação das garantias constitucionais de defesa, consagradas no artigo 32º, nº 1 e 5, da Constituição.

Na verdade, o período de suspensão da pena única termina em 22 de Dezembro de 2022 e deve ser tido em conta o tempo entretanto decorrido desde o momento em que o arguido cometeu o crime.
Nestes termos e demais de direito deverá o recurso interposto pelo Ministério Público obter provimento e em consequência decidir-se em conformidade.
V. EXAS. FARÃO CONTUDO MELHOR JUSTIÇA!

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que se passa a designar de CPPenal), aderiu ao posicionamento assumido pelo Mº Pº em primeira instância - acompanhamos tal posição e aderimos à respectiva argumentação, também opinando no sentido da procedência do recurso, mostrando-se supérfluo o aditamento de qualquer outro comentário.

Não houve resposta ao Parecer.

6. Efetuado exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1.Questões a decidir

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que neste momento possam ser ainda conhecidas, o âmbito do recurso é dado, nos termos do artigo 412º, nº 1 do CPPenal, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, nas quais sintetiza as razões do pedido - jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95..
Assim, a questão que importa apreciar e decidir tem a ver com a legalidade do despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado e, bem assim, face ao invocado pelo arguido apurar da existência da nulidade inserta no artigo 119º, alínea c) do CPPenal.


2. Apreciação

2.1. O Tribunal recorrido decidiu da seguinte forma: (transcrição)

Pelos motivos que amplamente expôs na douta promoção que antecede, conclui o Digno Magistrado do Ministério Público que não resulta preenchido nenhum dos pressupostos de aplicação da revogação da suspensão da execução da pena nos termos do artigo 56.º do Código Penal, mais dizendo que, porém, e perante os diversos e comprovados episódios de incumprimento do Plano de Reinserção Social por parte de AA, entende que é necessário fazer uma advertência solene ao condenado, nos termos da alínea a) do artigo 55.º do mesmo diploma legal, o que promoveu.
Apreciemos.
Pelas razões plasmadas no despacho proferido em 26 de outubro de 2021 (ref. ...56), foi decidido ouvir o condenado em declarações, o que aconteceu no dia 24 de fevereiro de 2022, na presença do Dr. CC, técnico da Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (ref. ...12).
Na sequência das declarações prestadas pelo condenado e dos esclarecimentos prestados pelo Dr. CC, bem como na sequência da promoção do Digno Magistrado do Ministério Público, o Tribunal decidiu que, apesar de o plano elaborado pelos serviços de reinserção social não estar a ser cumprido pelo arguido (sendo que este reconheceu não ter procedido ao pagamento à vítima, não ter voltado a comparecer nas sessões do programa para agressores de violência doméstica e não se encontrar a cumprir as consultas de alcoologia no Centro de Resposta Integradas, nem de psiquiatria e psicologia), poderia ser-lhe dada nova oportunidade para o efeito, na medida em que advertido das consequências da falta do cumprimento, declarou-se disposto a retomar o cumprimento das obrigações, dando prioridade ao cumprimento da frequência de consultas de alcoologia.
Sucede, porém, que o condenado, ao contrário do que referiu aquando da sua audição, não retomou cabalmente o cumprimento das obrigações.
Vejamos.
Através de relatório junto aos autos em 22 de março de 2022, os serviços de reinserção social informaram que o condenado havia comparecido no dia 14 do mesmo mês e ano na consulta que lhe tinha sido agendada no Centro de Resposta Integradas, e que tinha ficado agendada nova consulta para o dia 18 de abril de 2022, mais informando que no caso de estarem reunidas todas as condições para a frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, AA poderia retomar o referido programa no final do mês de maio (ref. ...93).Contudo, em 17 de maio de 2022 foi junto novo relatório pelos serviços de reinserção social (ref. ...10), onde se dá conta que:
O sistema de vigilância eletrónica registou vinte e três alarmes relacionados com a utilização do equipamento, nenhum deles com comprometimento da segurança da vítima, que foi sempre contactada;
Em seis das situações de alarme tal aconteceu porque o condenado não transportou consigo a unidade de posicionamento móvel (UPM), equipamento de que deve ser portador permanentemente, o mais longo durante 5 horas e 46 minutos;
Nos restantes casos de alarme, tal aconteceu por falta de carga na bateria da UPM, o mais longo durante mais de 15 horas.
Os serviços de reinserção social continuam a ter dificuldade em estabelecer contactos telefónicos com o condenado, que não atendeu as chamadas telefónicas realizadas, quer para a unidade de posicionamento móvel (UPM), quer para o seu telemóvel pessoal, nem as devolveu;
Quando responde aos contactos telefónicos dos serviços de reinserção social, o condenado aparenta estar alcoolizado e, por vezes, mantém um discurso imperceptível e arrastado;
O condenado não compareceu à consulta de alcoologia no Centro de Resposta Integradas de ... agendada para o dia 18 de abril de 2022, e não reagendou nova consulta, tendo justificado tal falta com o facto de entender que não ter necessidade de tratamento.
Apreciemos, atendendo ao preceituado no artigo 56.º, 1, a), do Código Penal, se os relatados incumprimentos devem ou não conduzir à revogação da suspensão da execução da pena de prisão.
Diz-nos a referida norma legal que a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social. Ou seja, não se exige que a infracção pelo arguido dos deveres que lhe são impostos seja dolosa, bastando que resulte de um comportamento censurável, desinteressado e/ou leviano.
No caso que nos ocupa, o arguido foi condenado, por acórdão transitado em julgado em 10 de outubro de 2019, na pena de prisão de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova assente em plano de reinserção social.
Mais ficou proibido de, durante o período da suspensão da execução da pena, contactar por qualquer meio com a vítima do crime de violência doméstica, BB, de permanecer na residência da ofendida, no respectivo local de trabalho e em qualquer local onde esta se encontre, a menos de 200 (duzentos) metros de distância da mesma, sendo o cumprimento desta pena acessória fiscalizado através de meios eletrónicos de controlo à distância, ficou obrigado a frequentar o Programa para Agressores de Violência Doméstica desenvolvido pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, com a duração de 24 (vinte e quatro) meses, e ficou obrigado a pagar a BB a quantia total de 900,00€ (correspondente à soma das indemnizações parcelares fixadas em 300,00€ e 600,00€).
Perante o que ficou supra exposto, verificamos que quase três anos após o trânsito em julgado do acórdão condenatório o arguido não cumpriu qualquer das regras de conduta que lhe foram impostas, a não ser de forma parcial, mas totalmente ineficaz, apesar de os vários serviços envolvidos, seja o Tribunal, os serviços de reinserção social ou o Centro de Resposta Integradas, se terem empenhado em ajudarem o arguido a cumprir o Plano de Reinserção Social.
Por outro lado, o arguido não demonstra ter qualquer interesse em cumprir tal plano, conclusão que se retira da sua falta de resposta aos contactos dos serviços de reinserção social, à falta de comparência à consulta do Centro de Resposta Integradas, que não reagendou, e à justificação que apresenta para o efeito, no sentido de que não necessita de tal acompanhamento.
O arguido sabe que só a abstinência do consumo de bebidas alcoólicas e a comparência nas consultas de alcoologia permitirão que inicie a frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, mas não se empenha de todo nesta obrigação.
O facto de viver numa situação social e habitacional precária não justifica totalmente os alarmes relacionados com a utilização da unidade de posicionamento móvel (UPM), atendendo ao levado número de incidência num curto espaço de tempo, vinte e três alarmes, e ao facto de muitos deles se deverem não à impossibilidade de carregamento, mas sim à falta de transporte da unidade, apesar de saber que tem que a ter permanentemente na sua posse, e por falta de carga da bateria, sendo que o arguido nunca deu qualquer explicação aos serviços de reinserção social sobre as situações relatadas, que inviabilizam a monitorização da sua localização permanente.
Se é certo que nenhuma dessas situações comprometeu a segurança de BB, também é certo que, porque foi sempre contactada, as mesmas lhe causam instabilidade emocional e sentimentos de insegurança, estados de espírito que são atendíveis atendendo ao tipo de crime de que foi vítima e que o arguido ainda não ultrapassou a sua dependência de bebidas alcoólicas, estado em que pode agir de forma imponderada, como muitas vezes acontece.
Por tudo o que ficou exposto, o Tribunal entende que o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão da execução da pena mostra-se definitivamente infirmado, não estando convencido que o arguido não voltará a delinquir.
Em consequência, entende-se que não é adequado advertir novamente o arguido, sendo que a única medida ajustada ao caso em apreço é a revogação da suspensão da pena, o que se decide ao abrigo do disposto no artigo 56.º, 1, a), do Código Penal, devendo o arguido cumprir a pena de prisão que lhe foi aplicada nestes autos.
Notifique.

2.2. Das questões a decidir

O artigo 50º, nº 1, do Código Penal (doravante designado de CPenal) estabelece: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Por seu turno, indica o artigo 40.º, nº 1 do CPenal que as finalidades da punição são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
A suspensão da execução da pena constitui uma verdadeira pena autónoma (a propósito dos elementos relevantes sobre a natureza de pena autónoma, de substituição, da pena suspensa, veja-se o Acórdão da Relação de Évora, de 10.07.2007, Proc. n.º 912/07-1, www.dgsi.pt)[1].
Entende-se como pacífico que a suspensão da execução da pena de prisão é a mais importante das penas de substituição e não se apresenta como um mero incidente ou uma simples modificação da execução da pena[2].
Com a revisão do Código Penal, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março e, bem assim a resultante da Lei nº 59/2007, de 4 de setembro, reforçou-se o princípio da ultima ratio da pena de prisão, valorizou-se o papel da multa como pena principal e veio alargar-se o tipo e o âmbito de aplicação das penas de substituição.
Apesar de inexistir qualquer dispositivo contendo como classificações legais, as designações de pena principal e de pena de substituição, do ponto de vista dogmático, penas principais são as que constam das normas incriminadoras e podem ser aplicadas independentemente de quaisquer outras e penas de substituição são as penas aplicadas na sentença condenatória em substituição da execução de penas principais concretamente determinadas. Existem ainda as penas acessórias que são as que só podem ser aplicadas conjuntamente com uma pena principal.
Dentre as penas de substituição exorbitam ainda as qualificativas de penas de substituição em sentido próprio – todas aquelas não privativas da liberdade, onde se insere a que ora se examina – e as penas de substituição em sentido impróprio – todas as que assumem caráter detentivo/de privação da liberdade.
Neste quadro concetual, em termos de suspensão da execução de pena de prisão, há pressupostos a observar que decorrem da lei, os quais, são de natureza formal e de natureza substantiva / material.
O primeiro prende-se com a pena aplicada – prisão aplicada em medida não superior a 5 anos. O segundo reclama que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime a às circunstâncias deste, o tribunal conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza no seguinte axioma: a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O regime jurídico da pena de suspensão da execução da pena de prisão encontra-se previsto nos artigos 50.º a 57.º do CPenal.
Da análise do regime legal resulta que a suspensão da execução da pena de prisão pode assumir três modalidades: suspensão simples; suspensão sujeita a condições (cumprimento de deveres ou de certas regras de conduta); suspensão acompanhada de regime de prova.
O artigo 51.º do CPenal, visando a reparação do mal do crime, prevê de forma exemplificativa, os deveres a que pode ser sujeito o condenado. Por seu turno o artigo 52.º do mesmo complexo normativo, enuncia também de modo exemplificativo as regras de conduta que podem ser impostas.
Os deveres e as regras de conduta podem ser modificados até ao termo do período de suspensão, sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento- artigos 51º, n.º 3, 52º, n.º 4 do CPenal.
Cumpre ainda referir as situações a ponderar no caso de incumprimento das condições de suspensão.
Quando no decurso do período de suspensão, o condenado, com culpa, deixa de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta, ou não corresponde ao plano de reinserção, como decorre do previsto no artigo 55º do CPenal, pode o tribunal optar pela aplicação de uma das seguintes medidas: fazer uma solene advertência; exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação; prorrogar o período de suspensão.
Por sua vez, se no decurso da suspensão, o condenado, de forma grosseira ou repetida, viola os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de readaptação, ou comete crime pelo qual venha a ser condenado e assim revele que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por intermédio desta ser alcançadas, a suspensão é revogada, cumprindo o condenado a pena de prisão estabelecida na sentença -cf. artigo 56.º, n.º 1, do CPenal.
São assim três os fundamentos da revogação da suspensão: - infração grosseira dos deveres, das regras de conduta ou do plano de reinserção social; - infração repetida dos deveres, das regras de conduta ou do plano de reinserção social; - cometimento de crime durante o período de suspensão[3].
No que concerne ao crime cometido no decurso da suspensão, porque a lei não distingue, ele pode ser doloso, como pode ser negligente[4].
Porém, nem mesmo o cometimento de crime desencadeia, de forma automática a revogação da suspensão, pois nos termos da alínea b), do n.º1, do aludido artigo 56.º, mesmo a condenação por um crime cometido no decurso do período de suspensão da execução da pena de prisão só implica a revogação da suspensão se tal facto abalar, de modo definitivo, o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão, quer dizer, se revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas[5].
Com efeito, “O acento tónico passou a estar colocado, não no cometimento de crime (…) durante o período de duração da suspensão e correspondente condenação em pena de prisão, mas no facto de o cometimento de um crime e respectiva condenação revelarem a inadequação da suspensão para através dela serem ainda alcançadas as finalidades da punição” [6].
Olhando a todos os expendidos considerandos, importará então no caso vertente, verificar pela existência ou não das condições necessárias para a revogação da suspensão da execução da pena, como foi entendido pelo tribunal a quo, o que vem questionado pelo Digno Mº Pº.
Surge óbvio, crê-se, não estar desenhada a situação enunciada na alínea b) do nº 1 do artigo 56º .
Nesse seguimento, há que debruçar a análise sobre o fundamento alicerce do despacho em sindicância e que determinou a revogação da suspensão da execução da pena, cabendo assentar que se entende que a infração grosseira ou repetida dos deveres, regras de conduta ou do plano de reinserção, não tem que ser dolosa.
Na realidade, é o bastante uma violação decorrente de um estar e de um atuar contínuo censurável / indesculpável de desleixo / descuido / desinteresse / desprendimento e / ou apatia, não praticável pelo cidadão comum, e por isso não tolerável, perante uma obrigação decorrente de uma condenação que constitui uma advertência solene que aplica tal medida[7].
E, para tanto, impõe-se que o tribunal indague da culpa do condenado procedendo à sua audição a fim de, ponderadas as razões apresentadas por este para o desrespeito ocorrido, poder concluir se a possibilidade de atingir as finalidades que levaram à suspensão da execução da pena ficou irremediavelmente inquinada.
Tal decorre da necessidade de respeitar o direito de audiência do arguido consagrado no artigo 32.º, nº da CRP e vertido, na lei processual penal – artigo 61.º, nº1, alínea b) do CPPenal e, bem assim, do princípio do contraditório. Assumindo-se que a revogação da suspensão da pena como a aplicação de uma outra pena já determinada – a pena de prisão -, com efeitos na esfera jurídica do visado, a mesma terá que operar seguindo os cânones que enformam o processo penal, designadamente aqueles que merecem consagração constitucional, como é o caso do consagrado no artigo 32.º, nº1 da CRP – o processo penal assegura todas as garantias de defesa.
Ora uma dessas garantias de defesa “(…) consubstancia-se na observância do direito de audiência, que implica que a declaração do caso penal concreto não seja apenas tarefa do juiz ou do tribunal (concepção “carismática” do processo), mas tenha de ser tarefa de todos os que participam no processo (concepção democrática do processo) e se encontrem na situação de influir naquela declaração de direito, de acordo com a posição e funções processuais de cada um”[8].
A imposição de audição do visado advém da necessidade do pleno exercício do princípio do contraditório expresso no artigo 32.º, nº5 da CRP, sendo que a inobservância destes comandos constitucionais, desencadeia nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea c) do CPPenal[9].
Quanto a saber se a audição do arguido antes da prolação da decisão sobre a eventual revogação da suspensão da execução da pena de prisão tem que ser presencial e pessoal, ou se basta a mera notificação para pronunciamento, a jurisprudência tem-se dividido, sustentando-se em alguns arestos que o regime constante do artigo 495.º, nº 2 do CPPenal impõe que a audição pessoal do arguido só se aplica nos casos em que este deixou de cumprir alguma ou algumas das condições a que se encontrava subordinada aquela suspensão.
Entende-se mais consentâneo com a matriz constitucional vigente e até com o que vem sendo defendido pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, na interpretação do artigo 6º da Convenção, que deve ser concedida ao arguido a possibilidade de, pessoalmente e na presença do juiz se pronunciar / justificar, em momento preparatório ao ato que constitui a decisão de revogação[10]. Parece ser também o que resulta da literalidade do nº 2 do citado artigo 495.º do CPPenal[11].
Posto isto, atente-se ao caso em apreciação.
Assenta a decisão recorrida em aspetos circunscritos em determinado período de recorte incomum para a generalidade das pessoas, a saber: (…) relatório junto aos autos em 22 de março de 2022, os serviços de reinserção social informaram que o condenado havia comparecido no dia 14 do mesmo mês e ano na consulta que lhe tinha sido agendada no Centro de Resposta Integradas, e que tinha ficado agendada nova consulta para o dia 18 de abril de 2022, mais informando que no caso de estarem reunidas todas as condições para a frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, AA poderia retomar o referido programa no final do mês de maio (ref. ...93).
Contudo, em 17 de maio de 2022 foi junto novo relatório pelos serviços de reinserção social (ref. ...10), onde se dá conta que:
O sistema de vigilância eletrónica registou vinte e três alarmes relacionados com a utilização do equipamento, nenhum deles com comprometimento da segurança da vítima, que foi sempre contactada;
Em seis das situações de alarme tal aconteceu porque o condenado não transportou consigo a unidade de posicionamento móvel (UPM), equipamento de que deve ser portador permanentemente, o mais longo durante 5 horas e 46 minutos;
Nos restantes casos de alarme, tal aconteceu por falta de carga na bateria da UPM, o mais longo durante mais de 15 horas.
Os serviços de reinserção social continuam a ter dificuldade em estabelecer contactos telefónicos com o condenado, que não atendeu as chamadas telefónicas realizadas, quer para a unidade de posicionamento móvel (UPM), quer para o seu telemóvel pessoal, nem as devolveu;
Quando responde aos contactos telefónicos dos serviços de reinserção social, o condenado aparenta estar alcoolizado e, por vezes, mantém um discurso imperceptível e arrastado;
O condenado não compareceu à consulta de alcoologia no Centro de Resposta Integradas de ... agendada para o dia 18 de abril de 2022, e não reagendou nova consulta, tendo justificado tal falta com o facto de entender que não ter necessidade de tratamento.
Surge desde já questionável se perante tais dados objetivos e imediatamente apreensíveis do todo o processado, se pode, sem mais, concluir pela verificação de infração grosseira ou repetida dos deveres impostos.
Toda a factualidade apontada em relação à postura do arguido nestes autos, denotando algumas falhas – a maior parte delas relacionadas com o uso e manuseamento de equipamento técnico -, a verdade é que na sua generalidade, os relatórios elaborados pela DGRSP apontam para um posicionamento positivo do arguido, revelando apenas o último algumas notas menos abonatórias.
Parece despontar, de todo o existente, que o arguido foi a várias consultas, iniciou o cumprimento do programa PAVD, que, entretanto, ficou suspenso como medida para evitar a propagação da doença COVID-19, portanto, por motivo que lhe não é imputável, sendo que não há qualquer notícia de ter causado algum transtorno / constrangimento / pressão à vítima.
Exubera, ainda, crê-se, que estando agora o arguido numa situação de sem-abrigo o mesmo mantém a consciência de que tem como obrigação permanecer afastado da vítima – nenhum relatório de suspensão de execução da pena com regime de prova refere e / ou aponta que o arguido violou tal dever.
Diga-se, ainda, que o posicionamento vertido nos diversos relatórios elaborados pelos serviços da DGRSP, mormente o último, não sugerindo a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, apenas refere consideramos que as execuções, tanto da suspensão da pena, como da pena acessória se encontram comprometidas, pelo que sugerimos a intervenção do Tribunal junto do condenado.
Todo o quadro exibido, ao que se pensa, não fornece dados suficientes e bastantes que permitam concluir, sem mais, nos termos em que o fez o tribunal recorrido, mas antes, que se tomem medidas no sentido de uma intervenção que ajude o arguido a superar algumas das dificuldades existentes, nomeadamente criar condições que fortaleçam e sedimentem, como o afirma o Digno Mº Pº, o intento daquele em continuar a demonstrar vontade em cumprir com as obrigações que lhe foram impostas pois aquele não se assumiu, até agora, como uma pessoa que se mostre totalmente adversa ao cumprimento do Plano.
Parece claro que importa enfrentar e apurar qual o melhor caminho a encetar para ultrapassar e mitigar que motivos específicos estiveram na origem das falhas havidas e, depois então concluir com segurança, se a causa da dificuldade de adesão completa ao plano traçado se pode imputar exclusivamente ao aqui visado, ou foi motivada por qualquer circunstância que lhe é alheia ou justificativa.
Entende-se claramente imprescindível que se tivesse feito uma ponderação mais aturada de todo o sucedido de menos positivo e tentado formas de intervenção mais presente e efetiva – atente-se no declarado pelo Técnico de Reinserção Social, aquando da audição do arguido, o primeiro passo a dar deverá ser o arguido retomar as consultas no CRI com vista a controlar os seus consumos de álcool.
Importa na verdade perceber se o posicionamento do arguido, em determinados momentos, se deveu a comportamento torpe e / ou desafiador do significado da sanção imposta e da solene advertência que a mesma encerra, ou antes teve na sua origem alguma razão ponderosa que o pudesse justificar, nomeadamente as dificuldades relacionadas com o manuseamento dos equipamentos, a sua fragilidade decorrente de situação de sem abrigo, todo o contexto de pandemia que ao determinar a ausência de respostas imediatas e prontas possa ter causado maiores dificuldades de empenho a quem já apresenta limitações.
Apresenta-se também claro que o tribunal ouviu presencialmente o arguido a propósito dos incumprimentos tidos – o que aconteceu em 24 de fevereiro de 2022 - , tendo este tido oportunidade de se pronunciar sobre os aspetos que se lhe apontavam, tendo inclusivamente assumido vontade de retomar a consultas no CRI bem como a frequência do curso referente à violência doméstica.
Todo este retrato factual permite afirmar, pensa-se, que se não pode concluir que, in casu, opera a nulidade prevista no artigo 119.º alínea c) do CPPenal. Houve audição do arguido, pessoal e presencialmente e, nessa medida, efetivamente facultada a possibilidade do contraditório ser exercido.
Em presença de todo o expendido, não resultando com certeza e segurança quadro factual que ilustre infração grosseira e / ou repetida dos deveres impostos ao arguido por, como acima se concluiu, não ter sido cabalmente determinado e tal não se extrair dos elementos carreados, o grau / intensidade da culpa daquele e se houve ou não causa de incumprimento a ser-lhe exclusivamente imputada ou antes a verificação e / ou concorrência de outras suficientemente justificativas do seu atuar, entende-se dever o tribunal recorrido desencadear todos os mecanismos necessários e possíveis a tal apuramento, nomeadamente e, antes de mais, tomar as medidas imediatas que foram sugeridas pelo Técnico de Reinserção Social e / ou ponderar, como o proposto pelo Digno Mº Pº, fazer uma solene advertência ao arguido.
Na verdade, há que esgotar todas as diligências possíveis no sentido de se encontrarem todos os elementos concretos e detalhados que permitam o tribunal a quo aferir da potencial infração grosseira ou repetida dos deveres impostos.
Tudo visto e ponderado, considera-se que a decisão recorrida não é de acolher, devendo antes o tribunal recorrido desenvolver todos os passos adequados e necessários para, de modo seguro e densificado se poder concluir pela verificação da existência de infração grosseira e / ou repetida dos deveras impostos.

III - Dispositivo

Nestes termos, acordam os Juízes Secção Criminal – ... Subsecção - desta Relação de ... em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Digno Mº Pº revogando-se a decisão recorrida, determinando-se que o tribunal a quo proceda ao apuramento adequado de elementos concretos e detalhados que demonstrem a existência de infração grosseira e / ou repetida dos deveres impostos ao arguido, decidindo então de novo, em conformidade, perante os mesmos, o caminho a prosseguir.

Sem custas.

Évora, 24 de janeiro de 2023
(o presente acórdão, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)

Carlos de Campos Lobo - Relator
Ana Bacelar – 1ª Adjunta
Renato Barroso – 2º Adjunto


______________________
[1] No mesmo sentido foi entendido pelo Prof. Eduardo Correia, autor do Projeto do Código Penal (Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, Separata do B.M.J.) e bem assim pelo Prof. Figueiredo Dias.
A este propósito refere este insigne Professor «(…) as “novas” penas, diferentes da de prisão e da de multa, são “verdadeiras penas” – dotadas, como tal, de um conteúdo autónomo de censura, medido à luz dos critérios gerais de determinação da pena (art.º 72.º) -, que não meros “institutos especiais de execução da pena de prisão” ou, ainda menos, “medidas de pura terapêutica social”. E, deste ponto de vista, não pode deixar de dar-se razão à concepção vazada no CP, aliás continuadora da tradição doutrinal portuguesa segundo a qual substituir a execução de uma pena de prisão traduz-se sempre em aplicar, na vez desta, uma outra pena» (Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 90).
[2] Neste sentido, DIAS, Jorge de Figueiredo, ibidem, p. 339.
[3] Neste sentido, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2021, 4ª edição atualizada – Universidade Católica Editora, p. 343.
[4] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, ibidem, p. 344.
[5] ALBUQUERQUE, ibidem e ainda neste sentido os acórdãos de Tribunal da Relação de Coimbra de 28.03.2012 e 11.05.2011 e Tribunal da Relação do Porto de 02.12.2009.
[6] OLIVEIRA, Odete - Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, II - CEJ, 1998, p. 105).
[7] Neste sentido Acórdão da Relação de Coimbra de 17/10/2012, proferido no processo 91/07.3 IDCBR.C1, também o Acórdão da Relação do Porto de 5/05/2010, proferido no processo 259/06.0 GBMTS.P1, disponíveis em www.dgsi.pt
[8] Acórdão da Relação de Lisboa de 24/09/2015, proferido no processo 4/01.6 GDLSB.L1-9, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Ver neste sentido, entre outros, Acórdão da Relação de Lisboa de 29/11/2011, proferido no processo 434/05.4 GTCSC.L1, Acórdão da Relação de Coimbra de 19/06/2013, proferido no processo 464/10.4 GBLSA.C1, Acórdão da Relação de Guimarães de 22/02/2011, proferido no processo 150/03.1 TAGMR.G1, disponíveis em www.dgsi.pt.
[10] BARRETO, Irineu Cabral – A Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Anotada, 2005, p. 132 a 136.
[11] No mesmo sentido ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, - Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição actualizada, Lisboa 2009, pg. 1240, nota 2 ao artigo 495.º.