ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS
NO INÍCIO DA AUDIÊNCIA
Sumário

I – A comunicação de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação não constitui alteração substancial, nem não substancial de factos, ainda que dela resulte a prática de crime a que corresponda moldura penal abstrata mais grave. Porque não ocorreu alteração dos factos constantes da acusação, que eram já do conhecimento do arguido. E porque o arguido, em primeira linha, se defende de factos e não do enquadramento jurídico deles.
II – Depois de recebida a acusação e antes da prolação da sentença [após realização da audiência de discussão e julgamento], o juiz não pode conhecer do mérito da acusação, mas tão-só de questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa — artigos 338.º, n.º 1 e 368.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.
III – É desocasionada a decisão de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, imediatamente após a abertura da audiência de julgamento e sem que tenha sido produzida prova, que não se alicerça em lapso ou erro passível de correção. E a comunicação dessa alteração não se revestindo de qualquer préstimo, equivale a não ter ocorrido.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora


I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 747/21.8GBABF do Juízo Local Criminal de ... [Juiz ...] da Comarca ..., o Ministério Público acusou
AA, solteiro, trabalhador da construção civil, nascido a 15 de abril de 1995, em ..., filho de BB e de CC, residente na ..., ..., em ...,
pela prática
- de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelas disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 292.º, da alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º, e da alínea a) do n.º 1 e alínea c) do n.º 2 do artigo 101.º, todos do Código Penal;
- de uma contraordenação prevista e punível pelos n.ºs 1 e 3 do artigo 4.º do Código da Estrada.

O Arguido apresentou contestação escrita, invocando não ter cometido o crime de condução de veículo em estado de embriaguez e oferecendo o merecimento dos autos quanto à prática da contraordenação que também lhe é imputada.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular e após comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, por sentença proferida e depositada em 9 de março de 2022, foi decidido:
«a) condenar o arguido AA pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo art.º 291.º, n.º 1, al. b) do código Penal, na pena de UM ANO E OITO MESES DE PRISÃO EFECTIVA;
b) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de um ano e seis meses;
c) condenar o arguido AA pela prática da contraordenação de desobediência a ordem de paragem emanada de autoridade fiscalizadora do trânsito, infração prevista e punível pelo artigo 4.º, n.º 1 e n.º 3, do Código da Estrada, na coima de € 500,00 (quinhentos euros);
d) condenar o arguido AA no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC's - art.º 513.º do CPP e art.º 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais (RCP).»

Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«III – A) QUESTÃO PRÉVIA
I. Dando cumprimento ao disposto no artigo 412.º, n.º 5 do CPP, o recorrente refere que mantém interesse no recurso por si interposto a fls… (que deu entrada em Juízo em 09-12-2021, com a Ref.ª CITIUS 9569640), recurso esse que se encontra retido, a aguardar o presente e com o mesmo deverá subir a este Venerando Tribunal.

III – B) OBJECTO DO RECURSO
II. Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. (…), que condenou o arguido Recorrente pela prática de um crime condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º nº 1, al. b) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão efetiva e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de um ano e seis meses.
III. Salvo o devido respeito, o Recorrente não se conforma com a decisão de facto e de direito, exarada pelo douto tribunal “a quo”, nos termos e pelas razões que de seguida passa a enunciar.

III – C) DA NULIDADE DA SENTENÇA
IV. O douto tribunal “a quo” não fundamenta os factos que julgou provados nos pontos 13 a 22 da decisão de facto, incorrendo assim em nulidade por violação do disposto no artigo 374.º, nº 2 do CPP conjugado com o artigo 379.º, nº 1 al. a) do mesmo diploma legal.
V. A sentença sub judice também afastou a aplicação ao arguido do regime de permanência na habitação consagrado no artigo 43.º do Código Penal sem ponderar/analisar/fundamentar essa preterição, incorrendo assim na nulidade prevenida no artigo 374.º, nº 2 do CPP conjugado com o artigo 379.º, nº 1 al. a) do mesmo diploma legal.
VI. O douto tribunal “a quo” também afastou a aplicação ao recorrente da pena de substituição prevista no artigo 58.º do Código Penal, prestação de trabalho a favor da comunidade referindo, sucintamente, que “uma vez que os factos praticados pelo arguido ocorreram quando este estava sujeito a um período de suspensão de execução de pena de prisão” essa pena substitutiva não satisfaz as necessidades de prevenção especial que ao caso cabem.
VII. Com a devida vénia, entende o Recorrente que essa fundamentação é insuficiente para os efeitos pretendidos pela norma contida no artigo 374.º, nº 2 do CPP, sendo, por conseguinte, nula a douta sentença por aplicação do disposto no artigo 379.º, nº 1 al. a) do mesmo compendio legal.

SEM CONCEDER
III – D) DO ERRO DE JULGAMENTO DOS PONTOS 11 E 21 DOS FACTOS PROVADOS
VIII. No ponto 11 deu o tribunal “a quo” como provado “em julgamento, o arguido não demonstrou qualquer tipo de autocensura pelos seus atos.”
IX. Com o devido respeito, esse ponto de facto não encontra suporte nas declarações prestadas pelo arguido em audiência e que se encontram gravadas em sistema digital, com início pelas 14:03:09 e termo pelas 14:31:00. - cfr. ata de audiência de julgamento de 17-12-2021.
X. Desde logo, o juízo de autocensura é um processo interno, impossível de ser apreendido por um observador externo.
XI. Externamente, esse juízo de autocensura pode e deve aferir-se por determinados elementos objetivos, tais como a confissão do arguido e pela sua postura em audiência que, in casu, não foi de desculpabilização, antes de assunção da responsabilidade pelos factos que lhe vinham imputados, (com uma ou outra exceção é certo), conforme se extrai cristalinamente das suas declarações.
XII. O arguido quis e prestou declarações nas quais admitiu a factualidade vertida no libelo acusatório, explicando, a instâncias do Mmº Juiz “a quo”, que não obedeceu ao sinal de paragem da GNR porque receava ser multado (minuto 3:57), tendo admitido que fez mal por ter fugido à GNR (minuto 4:26).
XIII. A sua conduta processual foi de colaboração com o tribunal na descoberta da verdade material.
XIV. Na sentença recorrida o Mmº Juiz “a quo” teceu duras críticas ao comportamento do arguido aquando das declarações prestadas que, salvo o devido respeito, merecem ser sindicadas pelo douto tribunal “ad quem”.
XV. Da audição das mesmas (declarações) mostra-se patente que o arguido, estrangeiro e pouco fluente na língua portuguesa, estava nervoso e não percebeu cabalmente as perguntas/afirmações que o Mmº Juiz “a quo” lhe colocava, sendo esse o fundamento da sua hesitação e pouca segurança nas respostas apresentadas. Veja-se a título de exemplo, que ao minuto 10:40 o Mmº Juiz “a quo” perguntou: Fez uma ultrapassagem regular? O arguido não respondeu porque não entendeu a pergunta, e tanto assim é que o Mmº Juiz foi reformulando a mesma pergunta usando sinónimos mais simples, tais como “bem feita” referindo-se à ultrapassagem.
XVI. Nas suas instâncias, o Mmº Juiz foi fazendo perguntas e observações que, nitidamente, o arguido não percebia e às quais ia respondendo, perdoe-se o plebeísmo, “à toa”, dentro da sua limitada compreensão sobre o que estava a ser perguntado, levando o tribunal “a quo” a apodar de surreal, ridícula e desrazoável a sua versão dos factos.
XVII. Das suas declarações não resulta que o arguido tenha apresentado uma versão dos factos diferente da que constava no libelo acusatório, e isso é facilmente percetível pela audição das mesmas.
XVIII. O que resulta sim, mas a gravação não mostra, é que na audiência de julgamento o arguido, além de pouco fluente, mesmo básico no discurso, usava máscara.
XIX. Pelo que, sem se pretender sindicar o princípio da livre apreciação da prova, o uso da máscara, a par do limitado entendimento da língua pelo arguido, colocou em causa a eficácia do princípio da imediação e da oralidade.
XX. Destarte, à luz do que ficou dito, e por apelo às declarações do arguido, requer-se a V. Exas., ao abrigo do disposto no artigo 412.º, nºs 3 e 4 do CPP, a reapreciação desse ponto de facto, devendo o mesmo passar a ter a seguinte redação: 11. “o arguido confessou parcialmente os factos que lhe vinham imputados, mostrando arrependimento.”
XXI. Quanto ao ponto 21 deu o tribunal “a quo” como provado que o arguido tem como encargos fixos a renda da casa (300€) e mensalidade da ama da descendente menor (150€);
XXII. Acontece que nas declarações que prestou e que se encontram gravadas em sistema digital, com início pelas 14:03:09 e termo pelas 14:31:00 - cfr. ata de audiência de julgamento de 17-12-2021 - o arguido, instado pelo Mmº Juiz respondeu como segue:
MMº Juiz (Minuto 17:20): O senhor vive com a sua família em casa de quem?
Arguido (minuto 17:22): arrendada
MMº Juiz (minuto 17:28): quanto paga de renda?
Arguido (minuto 17:29): 400 euros.
Mmª Juiz (minuto 17:30): e a criança, menino, é um menino, não é?
Arguido (minuto 17:33): não. É uma menina.
MMº Juiz (minuto 17:37: está na creche, no infantário
Arguido (minuto 17:39): no infantário.
MMº Juiz (minuto 17:40): e paga infantário ou é…
Arguido (minuto 17:42): não
XXIII. Verifica-se, assim, contradição da matéria vertida nesse ponto de facto com as declarações prestadas pelo arguido, ocorrendo assim erro de julgamento quanto a esse concreto ponto, que ao abrigo do disposto no artigo 412.º, nºs 3 e 4 do CPP deve ser reapreciado, passando a ter a seguinte redação: “21. o arguido tem como encargos fixos a renda da casa (400€). “

III – E) DA OPÇÃO PELA PENA DE PRISÃO
XXIV. O crime de condução perigosa de veículo p. e p. pelo artigo 291.º, nº 2 do Código Penal de que vem condenado, prevê penas alternativas de prisão até 3 anos ou multa até 340 dias.
XXV. O tribunal “a quo” optou pela pena de prisão em detrimento da de multa com fundamento no facto de o ilícito dos autos ter sido cometido no período de execução de uma pena suspensa.
XXVI. Ora, dos autos resulta que resulta que a anterior condenação do arguido foi por ilícito de natureza totalmente diferente da dos presentes autos, que os factos aí em causa remontam ao mês de janeiro do ano de 2016 (ou seja, há mais de 6 (seis) anos) e a idade e as circunstâncias de vida do arguido nessa época eram outras.
XXVII. Mais resulta que no âmbito da pena aplicada nesse processo o arguido tem sido acompanhado pela DGRS que elaborou o relatório social de fls. 191 e 192, aí fazendo constar que o arguido, “tem aderido responsavelmente e de forma motivada às estratégias de intervenção propostas e cumprido os objetivos do respetivo plano de inserção Social delineado” no âmbito daquele processo (cfr., aliás, resulta do ponto 22 dos factos provados).
XXVIII. Evola ainda dos autos que da conduta do arguido nestes autos não resultaram quaisquer danos físicos ou materiais de terceiros,
XXIX. e que o arguido se encontra social, familiar e laboralmente inserido (cfr. pontos 13 a 21 dos factos provados.
XXX. O arguido confessou grande parte da factualidade que lhe vinha imputada, revelando por via do seu comportamento processual, arrependimento.
XXXI. Logo, salvo o devido respeito por melhor e douta opinião impunha-se que o tribunal «a quo» tivesse optado pela pena de multa, pois no que respeita à natureza do crime em causa nestes autos podemos afirmar que o arguido/Recorrente é primário, logo, não se afigura que sobre o mesmo incidam particulares exigências de prevenção geral ou especial.
XXXII. Pois, como é consabido, as penas “visam a proteção de bens jurídicos (no caso vertente o bem jurídico afetado é a segurança rodoviária) e a reintegração do agente na sociedade” cfr. artigo 40.º nº 1 do CP.
XXXIII. In casu, atento o facto de o arguido não averbar qualquer delito de natureza estradal, ou equiparado no seu certificado de registo criminal, e encontrar-se perfeitamente inserido na sociedade, quer ao nível familiar, quer laboral, entendemos, salvo melhor opinião, que a pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
XXXIV. Optando, como fez o tribunal «a quo» pela pena de prisão, violou a douta decisão o disposto no artigo 70.º do Código Penal, que dispõe que deve ser dada preferência à pena não privativa de liberdade, se esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. “O que vale logo por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efetiva aplicação.” [Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências jurídicas do crime, pág. 331].
XXXV. É o que exige o princípio da intervenção mínima do sistema penal.
Sem conceder,
Por dever de patrocínio,
XXXVI. Ainda que se entenda acertada a opção do julgador pela pena de prisão, sempre se dirá que face aos factos em apreço nestes autos o quantum da pena é excessivo, impondo-se a sua reapreciação para uma pena mais próxima do mínimo da moldura legal.
UMA VEZ MAIS
SEM CONCEDER NEM PRESCINDIR

III – F) DAS PENAS DE SUBSTITUIÇAO
A) DA PENA SUSPENSA
XXXVII. Se o tribunal “ad quem” doutamente entender que a opção pela pena de prisão feita pelo julgador «a quo» é adequada e proporcional, hipótese que se equaciona por dever de patrocínio, essa pena deve ser suspensa na sua execução nos termos do disposto no artigo 50.º do CP, ainda que mediante regime de prova nos termos prevenidos no artigo 53.º do mesmo compendio legal.
XXXVIII. Nesse sentido, resulta dos autos que o arguido se encontra socialmente integrado, contribuindo de forma determinante para a sobrevivência do seu agregado familiar, constituído pelo próprio, pela companheira e pela filha de ambos, de 3 anos de idade, porquanto nascida em .../.../2018, sobre a qual exerce as responsabilidades parentais e que dele também depende.
XXXIX. Com efeito, o arguido trabalha auferindo cerca de € 700,00 mensais, a companheira também trabalha auferindo idêntica quantia (cfr. ponto 20 da matéria assente), pagando de renda a quantia de € 400,00 (quatrocentos euros) (ou 350,00 de renda mais 150 euros da ama, caso o ponto da 21 matéria de facto não seja reapreciado nos termos acima peticionados)
XL. Ora, a condenação do arguido em pena de prisão efetiva acarretará como consequência imediata a perda do seu posto de trabalho, restando apenas o vencimento da sua companheira na ordem dos 700,00 euros para fazer face a todas as despesas com habitação, alimentação, saúde, transportes, etc., o agregado familiar.
XLI. Além de que a perda do vínculo laboral, implica o comprometimento da integração socio-laboral do arguido.
XLII. A sentença recorrida não suspendeu a pena aplicada, com fundamento no facto deste ilícito ter sido cometido no decurso de uma pena suspensa. Note-se que de o ilícito averbado é de natureza diferente ao dos presentes autos.
XLIII. Desde então, o arguido está perfeitamente integrado, quer profissional, quer familiar, quer socialmente. Constituiu família e teve uma filha.
XLIV. Ora, é consabido que a pena de prisão é a último ratio do sistema penal e que a suspensão da pena de prisão, constitui uma verdadeira pena autónoma, que in casu pode ser cumulada com imposição de regras de conduta, mormente a de frequentar certos programas, tais como de prevenção de sinistralidade rodoviária, como bem prevê o artigo 52.º nº 1 al. b) do Código Penal
XLV. Com a devida vénia, face à matéria dada como provada nos autos, e no deferimento da que se deixou impugnada, estamos em crer ser possível fazer um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido, assente numa expectativa razoável de que a simples ameaça da pena de prisão será suficiente para realizar as finalidades da punição e não cometerá crimes no futuro.

Sem conceder,
Por cautela e dever de patrocínio

B) DO TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
XLVI. Estipula do artigo 58.º do Código Penal que “1 – Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
XLVII. In casu os requisitos formais mostram-se reunidos. A quantum da pena aplicada e o tipo de crime em análise, pode ser objeto da pena não privativa da liberdade do trabalho a favor da comunidade prevista no artigo 58.º do CP, ainda que condicionada, para além de horas de trabalho, ao cumprimento de programa de prevenção da sinistralidade rodoviária, que realizará uma função pedagógica de dissuasão da prática de futuros crimes e conseguirá o reforço da crença coletiva na validade e eficácia das normas, em ordem à defesa da ordem jurídica penal.
XLVIII. Uma vez que o Recorrente, pugna pela aplicação desta pena de substituição, vale o mesmo que dizer que dá o seu consentimento.
AINDA SEM CONCEDER
POR CAUTELA E DEVER DE PATROCINIO,

III – G) DA EXECUÇÃO DA PENA EM REGIME DE PERMANENCIA NA HABITAÇÃO
XLIX. Na hipótese de, doutamente, se decidir ser de manter a pena de prisão aplicada ao arguido pelo tribunal «a quo», e tendo presente a factualidade dos autos, mormente, a situação familiar do recorrente, essa pena pode e deve ser cumprida na habitação com recurso a vigilância eletrónica.
L. Para o efeito, dispõe o art.43º do Código Penal, na redação introduzida pela referida Lei nº94/2017, sob a epígrafe “Regime de permanência na habitação” que 1 - Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância: a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;
LI. Por seu turno o nº 3 do mesmo preceito estabelece que “O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado.” Enquanto que o nº 4 dessa norma prescreve que “O tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente: a) Frequentar certos programas ou atividades;”
LII. O regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica (RPHVE) não constitui uma pena de substituição em sentido próprio, mas uma modalidade mista de execução da pena.
LIII. As alterações introduzidas no Regime de Permanência na Habitação (RPH) pela Lei 94/2017 de 23.08, traduz o entendimento generalizado de que as penas curtas de prisão devem ser evitadas por não contribuírem necessariamente para a ressocialização efetiva do condenado.
LIV. Ora, no caso em apreço nestes autos, se a intenção do julgador é impedir que o arguido incorra no cometimento de crimes de idêntica natureza à dos autos, e reafirmar as expectativas da comunidade na validade da norma, o confinamento do arguido na habitação, com recurso a vigilância eletrónica, afigura-se suficiente, adequado e proporcional a esses fins, contribuindo ainda para a manutenção da ressocialização do Recorrente.
LV. Destarte, estamos em crer que o cumprimento da pena neste regime de permanência na habitação (ao qual o arguido, desde já, dá a sua concordância) ainda que cumulado com uma obrigação de frequentar determinados programas, realizará de forma adequada e suficiente as exigências de prevenção geral e especial que a situação sub judice requer.

III – H) DA PENA ACESSÓRIA
LVI. A pena acessória de 1 ano e 6 (seis) meses de inibição de conduzir aplicada ao Recorrente pelo douto tribunal «a quo» mostra-se excessiva face à factualidade dada como provada e não provada, mormente que com a sua conduta o recorrente não provocou qualquer lesão física ou patrimonial a terceiros.
LVII. O único acidente de viação reportado nos autos refere-se ao próprio arguido e à viatura em que seguia (cfr. se alcança do auto de participação de acidente de viação de fls. 43 a 45.)
LVIII. Destarte e com a devida vénia, tratando-se da única infração estradal cometida pelo Recorrente, a pena acessória a aplicar deverá ser mais coincidente com o mínimo legal consagrado no artigo 69.º, nº 1 do Código Penal.
LIX. NORMAS E DISPOSITIVOS LEGAIS VIOLADOS: Artigos 40.º, 43.º, 50.º, 52.º, 53º, 58.º, 69.º, 70.º, 71.º, 291.º todos do Código Penal; Artigos 374.º, nº 2, 375.º e 379.º nº 1 alíneas a) e c), 410.º e 412.º do Código de Processo Penal; Artigos 1.º, 2.º, 18.º, 32.º, 202.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos, e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência,
a) Proceder-se à reapreciação da prova produzida em audiência, relativa aos pontos 11 e 21 matéria provada;
b) Ser revogada a douta sentença recorrida, substituindo-se por outra que aplique pena de multa;
c) ou quando assim se não decida, se aplique ao recorrente uma pena de prisão mais próxima do mínimo legal que é de um mês, suspensa na sua execução ainda que acompanhada de regime de prova (artigos 50.º, 51.º, 52.º e 53.º do Código pena), ou,
d) quando assim doutamente se não entenda, seja a pena substituída por Prestação de trabalho a favor da comunidade ainda que cumulada com obrigações, ou
e) que a pena aplicada seja cumprida em Regime de Permanência na Habitação com recurso aos meios técnicos de controlo à distância nos termos prevenidos no artigo 43.º do Código Penal, regime este que poderá ser cumulado com imposição de deveres, regras de condutas e/ou proibições.
f) Ser revista a pena acessória de 1 ano e 6 meses aplicada, decidindo-se por uma mais próxima do mínimo legal.
No entanto, V. Exas. farão, como sempre, JUSTIÇA!»

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1. O Tribunal a quo fundamentou adequadamente os factos que julgou provados nos pontos 13 a 22 da decisão de facto.
2. Com efeito, na sentença recorrida o tribunal a quo referiu, especificamente, os elementos de prova em que se baseou para a factualidade provada e enunciada nos pontos 1 a 7, 8 a 10 e 11, e no mais, considerou os elementos de prova: auto de notícia de fls. 40 a 41, auto de participação de acidente de viação de fls. 43 a 45, CRC de fls. 96, sentença e acórdão de fls. 146 a 186, e relatório social de fls. 191 e 192.
3. A prova considerada para a fundamentação de factualidade dada como provada e enunciada nos pontos 13 a 22, deduz-se, pois, que é documental, bem como assente nas declarações do próprio arguido.
4.OTribunal a quo também justificou o afastamento da aplicação do mencionado regime previsto no art.º 43º do Código Penal, com “os mesmos fundamentos relativos às necessidades de prevenção“, nomeadamente a prevenção especial, que tinha anteriormente referido para justificar o afastamento da suspensão da execução da pena de prisão, concluindo que “a execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação não realiza adequadamente as finalidades da execução da pena de prisão”.
5. Ainda, entendemos, ao contrário do recorrente, que a fundamentação utilizada pelo Tribunal a quo, tendo em vista o afastamento da aplicação ao arguido da pena de substituição prevista no art.º 58.º do Código Penal se mostra suficiente para os efeitos pretendidos pela norma contida no art.º 374.º, n.º 2, do CPP.
6. Pelo que, não se deteta qualquer omissão de fundamentação como causa de nulidade da sentença recorrida, conforme determina o artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
7. Em discordância com o Recorrente, consideramos que a fundamentação factual constante da sentença recorrida. resulta, face á prova devidamente submetida a contraditório, serem seguros os factos dados como provados nos pontos 11. e 21.
8. O Tribunal a Quo optou, e bem, pela pena de prisão, tendo em conta, não só o facto de o arguido ter praticado o crime pelo qual foi condenado no decurso do período de suspensão de uma pena de prisão que lhe havia sido aplicada, como também a gravidade da conduta do arguido, ao ter provocado várias situações de perigo concreto
9. Afigura-se-nos justa, adequada e proporcional a pena concreta de 1 ano e 8 meses de prisão, aplicada ao arguido, quanto ao seu quantum, considerando os factos apurados, incluindo o facto de o arguido ter sido interveniente em acidente de viação do qual, por sorte, não resultaram vítimas; a culpa elevada do arguido; a falta de juízo crítico do arguido, manifestada em julgamento, e as referidas exigências de prevenção geral e especial.
10. Ao contrário do recorrente, concordamos, ainda, que a pena substitutiva prevista no art.º 58º do Código Penal (prestação de trabalho a favor da comunidade) não satisfaz as necessidades de prevenção, nomeadamente especial, que ao caso cabem, porquanto o arguido terá praticado os factos em pleno período de suspensão de execução da pena de prisão a que tinha sido anteriormente condenado;
11. Por outro lado, entendemos que não se aplica o instituto da suspensão da execução da pena de prisão a que o arguido foi condenado nos presentes autos, uma vez que a simples censura do facto e a ameaça do cumprimento da pena de prisão em que o arguido foi condenado não serão suficientes para o afastar da prática da criminalidade.
12. Com efeito, o arguido praticou o crime pelo qual foi condenado nos presentes autos no período de suspensão de execução de uma pena de prisão que lhe tinha sido aplicada noutro processo, o que permite concluir que a suspensão prevista no art.º 50.º do Código Penal não é um mecanismo inibitório do arguido para o cometimento de crimes.
13. Olhando à reinserção social do arguido, e tendo em conta o seu antecedente criminal, não se vislumbra razão para que se opte pela execução da prisão em RPH-VE:
14. É que, como já antes referido na sentença recorrida, olhando ao facto provado n.º 12, há que concluir que a condenação anterior do arguido pela prática de um crime de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 1, al. a) do CP, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, com regime de prova, não constituiu obstáculo nem demoveu o arguido de voltar a praticar novo ilícito típico que protege um mesmo bem jurídico: a integridade física.
15. Por último, a decisão recorrida não merece qualquer reparo, quando condenou o recorrente na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 1 ano e 6 meses, porquanto o Tribunal recorrido atendeu aos critérios definidos no art.º 71.º do CP, designadamente às elevadíssimas exigências de prevenção geral, e à gravidade da conduta do arguido no caso concreto.

***
Pelo exposto, deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida, nos seus precisos termos, por ser totalmente conforme à lei, no que farão V.as Ex.as JUSTIÇA.»
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Na sessão de julgamento que decorreu no dia 9 de novembro de 2021, teve lugar a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.
A esta alteração o Arguido apontou o vício de nulidade, que veio a ser julgada improcedente.

Inconformado com esta decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«1. Vem o presente recurso interposto do, aliás douto, despacho proferido pelo Mmº Juiz “a quo” em 09-11-2021, com o seguinte teor: “Analisada a documentação dos autos, o Tribunal comunica à defesa do arguido a seguinte alteração da qualificação jurídica dos factos constantes na acusação, nos termos do art.º 358.º, n.º 3 do CPP: - os factos constantes da acusação consubstanciam a prática, não de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, antes de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo art.º 291.º, n.º 1, al. b) do Código Penal. Mantém-se a qualificação jurídica relativamente à contraordenação.” – cfr. ata de audiência de 09-11-2021 com a Ref.ª Citius 122110576.
2. Discorda o Recorrente da douta decisão pelos razões que de seguida passa expor perante V. Exas.
3. O arguido vinha acusado, em processo abreviado, como autor material, na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º do Código Penal.
4. Aberta a audiência de discussão e julgamento no dia 09-11-2021, foi comunicado ao arguido o teor do despacho de que se recorre e que se deixou transcrito na conclusão n.º 1 supra.
5. Por discordar com o seu teor, a defesa arguiu de imediato a sua nulidade ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 1.º al. f), 118.º, 120.º e 122.º todos do Código de Processo Penal.
6. O Tribunal «a quo» indeferiu a arguida nulidade por entender não se verificar.
7. Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, discorda-se com a douta decisão, porquanto, diz a jurisprudência que “I - Da estrutura acusatória do processo penal decorre que impende sobre o acusador a exposição total dos factos e do crime que imputa ao arguido, cabendo-lhe, assim, a iniciativa de definir o objeto do processo. E, nesta tarefa, não pode ser ajudado nem corrigido pelo juiz, enquanto terceiro imparcial e supra partes, sob pena de violação do modelo acusatório estruturante do processo penal.
II) Assim, os poderes do juiz sobre a acusação, antes do julgamento, são limitadíssimos, confinando-se à valoração jurídica dos factos tidos como suficientemente indiciados pelo acusador, mas, ainda assim, com uma margem de atuação bastante restrita, uma vez que apenas a pode rejeitar quando for manifestamente infundada, ou seja, quando for inequívoco e incontroverso que os factos nela descritos não constituem crime” - Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 17-12-2020 consultável em www.dgsi.pt.
8. Vale isto por dizer que estava o tribunal impedido de proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação nos termos e no momento processual em que o fez - início da audiência de julgamento - cfr. ata de 09-11-2021 – antes da produção de prova - e já após ter prolatado o despacho de saneamento ao abrigo do disposto no artigo 311.º do CPP.
9. E muito menos podia o tribunal “analisar a documentação dos autos” antes da produção de prova. Tendo-o feito, incorreu na violação do princípio geral da imparcialidade do Tribunal que constitui um requisito fundamental do processo justo – art.º 10.º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), art.º 14.º n.º 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e art.º 6.º n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e artigo 20.º, nº 4 da CRP..
10. Pois, na perspetiva das partes, as garantias de imparcialidade referem-se à independência do juiz e à sua neutralidade perante o objeto da causa, fixado aquando da prolação da acusação.
11. Ora, no caso vertente o tribunal procedeu à comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ao abrigo do n.º 3 do artigo 358.º do CPP.
12. Esta disposição legal, subordinada à epigrafe Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, prescreve que: “O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”
13. Por seu turno o n.º 1 desse preceito legal estabelece que “Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.” – sublinhado nosso.
14. Da conjugação desses preceitos legais resulta claramente que tal comunicação ou alteração apenas poderá ter lugar após a produção de prova e não antes da mesma se verificar.
15. Acresce que o arguido vinha acusado do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º do C.Penal com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
16. Oficiosamente, no início do julgamento e antes de se iniciar a produção de prova o Mmº Juiz proferiu despacho de alteração da qualificação jurídica operada na acusação, imputando ao arguido o crime de condução perigosa de veículo p. e p. pelo artigo 291.º n.º 1, al. b) do Código Penal, punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
17. Fê-lo ao abrigo do disposto no artigo 358.º, nº 3 do CPP que trata da alteração não substancial.
18. É jurisprudência pacífica que a alteração prevista pelo artigo 358.º do C.P. Penal há-de ocorrer em julgamento, e já no cotejo das provas aí disponibilizadas e produzidas e não antes como sucedeu no caso vertente.
19. Ademais, a convolação levada a cabo pelo Mmº Juiz dos factos constantes da acusação para outro tipo legal de crime cuja moldura penal é mais gravosa para o arguido, ocorrendo flagrante violação do princípio do acusatório consagrado no n.º 5 do artigo 32.º da CRP e consubstancia uma alteração substancial nos termos da alínea f) do artigo 1.º do CPP, que a define como sendo “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;
20. Nesse sentido o artigo 359.º n.º 1 do Código de Processo Penal estabelece que uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso.
21. A douta decisão recorrida viola, assim, o princípio do acusatório (artigo 32.º, n.º 5 da CRP) e o princípio da vinculação temática do processo (thema decidendum), e reflexamente do direito de audição e do contraditório consagrados no n.º 1 do artigo 32.º da CRP.
22. Perante o exposto, o douto despacho violou os artigos 311.º, 358.º, 359.º e artigo 1.º al. f) todos do CPP, logo é nulo nos termos conjugados dos artigos 118.º, 120.º e 122.º do mesmo diploma legal.

NESTES TERMOS
E nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser julgado procedente o presente recurso e consequentemente, ser declarado nulo o douto despacho recorrido, com as legais consequências.
Todavia, V. Exas., Venerandos Desembargadores, farão a habitual Justiça.»

Na resposta que, sem conclusões, foi apresentada pelo Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, concluiu-se pela improcedência do recurso.
û
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu o parecer que se transcreve:
«Na resposta apresentada, o Ministério Público, em termos bem fundamentados e com o sólido apoio da doutrina e jurisprudência dos nossos tribunais superiores, rebateu integralmente as pretensões do recorrente, em termos que se sufragam sem reserva, nada mais, com relevo, se oferecendo acrescentar.
(…)
Em conformidade, somos de parecer que ao recurso interposto deve ser negado provimento, confirmando-se integralmente a sentença recorrida

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[[2]]

Posto isto, e vistas as conclusões do recurso da decisão final, a esta Instância são colocadas as questões:
- da nulidade da sentença por ausência de fundamentação;
- da nulidade da sentença por insuficiência de fundamentação;
- da incorreta valoração da prova;
- da desadequação, por excesso, da pena principal imposta;
- da desadequação, por excesso, da pena acessória imposta;
- da desadequação do modo de cumprimento da pena principal imposta.
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Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:
«1. No dia 13 de junho de 2021, pelas 1h e 40 m, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ...-AI-..., na Rua ..., em ..., em direção à rotunda ..., tendo feito inversão de marcha antes da rotunda transpondo a linha longitudinal contínua M1 e estacionado o veículo no parque do lado oposto.
2. Desta feita, a patrulha da GNR composta pelos militares DD e EE, estacionou o veículo de patrulha à frente do veículo no qual seguia o arguido, ligando as luzes de aviso, sendo que os militares deram ordem ao arguido para desligar o veículo.
3. O arguido seguiu marcha com o veículo por si conduzido, contornando os militares e o veículo de patrulha, colocando-se em fuga na mesma artéria na direção de ....
4. O arguido entrou com o veículo por si conduzido na rotunda ... sem ceder a passagem aos veículos que aí circulavam, obrigando a que um veículo que circulava na rotunda tivesse de fazer uma travagem e paragem de modo a evitar a colisão com o veículo conduzido pelo arguido.
5. Uns metros após a saída dessa rotunda, antes do entroncamento com a praia de ..., o arguido efetuou uma ultrapassagem ao veículo onde seguia a testemunha FF, num local em que a estrada descreve duas curvas seguidas, obrigando-o a desviar-se na direção do passeio para evitar a colisão.
6. O arguido prosseguiu a fuga realizando, pelo menos duas ultrapassagens em local de linha longitudinal contínua ML, circulando a uma velocidade demasiado elevada para as características da via (área urbana) e as pessoas e veículos que na mesma circulava, tendo ainda realizado curvas entrando com o veículo na faixa de rodagem destinada à circulação em sentido oposto ao qual seguia.
7. O veículo conduzido pelo arguido despistou-se em frente ao restaurante "O A..., Ldª", embatendo num sinal vertical e no muro do restaurante.
8. Ao atuar do modo descrito teve o arguido o claro e firme propósito conseguido conduzir do modo descrito violando as regras da circulação rodoviária, nomeadamente quanto às regras da limitação da velocidade, circulação em rotundas, à ultrapassagem e à obrigatoriedade de circular pela faixa da direita, colocando em perigo bens e a integridade física e vida de pessoas que circulavam na mencionada artéria, apeados ou em veículos, encontrando-se ciente desse mesmo perigo.
9. O arguido teve ainda o propósito de não acatar a ordem de paragem que lhe foi dirigida pelos militares da GNR, com o intuito de se furtar à ação de fiscalização que os mesmos pretendiam realizar sobre si sobre o veículo por si conduzido, o que logrou conseguir.
10. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
11. Em julgamento, o arguido não demonstrou qualquer tipo de autocensura pelos seus atos.
12. O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 15.06 2020, pela prática de um crime de violação, p.p. pelo art.º 164.º, n.º 1, al. a), do CP, na pena de dois anos de prisão, cuja execução foi suspensa pelo mesmo período, com regime de prova.
13. O arguido reside com a companheira, GG e a filha menor de ambos, atualmente com dois anos de idade, em apartamento arrendado de tipologia T2, com adequadas condições de habitabilidade;
14. É natural de ... provindo de um grupo familiar constituído por cinco elementos e inscrito num quadro sócio económico estável/equilibrado, enquanto alicerçado na empresa agrícola familiar;
15. Em termos formativos o arguido concluiu doze anos de escolaridade, no país de origem, após o que veio para Portugal para frequentar curso de formação profissional de Multimédia, mediante a atribuição de uma bolsa de estudo, na Escola Profissional ... (...) em ...;
16. Em 2017, o arguido abandonou os estudos, por alegados motivos de estigma pessoal e social, integrando o agregado familiar de uma prima, em ...;
17. Pouco tempo depois, o arguido encetou vivência marital com atual companheira, sua conterrânea, após um curto período de namoro;
18. Neste contexto, o arguido viria a iniciar percurso laboral como indiferenciado no ramo da restauração e hotelaria e como cabeleireiro em sociedade com um amigo (verão de 2020), contexto que viria a pautar-se por crescente instabilidade devido à pandemia do país, não obstante a manutenção de uma postura ativa na procura de trabalho, desenvolvendo trabalho indiferenciado e por empreitada na construção civil;
19. Em finais de 2O21, o arguido obteve posto de trabalho mediante contrato de trabalho na empresa de construção "V... Lda";
20. Economicamente e após algumas dificuldades a este nível, pelos constrangimentos laborais do arguido, mas também da companheira, nos últimos dois anos, atualmente o casal movimenta-se, num quadro de crescente estabilidade, enquanto alicerçado nos rendimentos de trabalho do arguido (700€/média/mês) e no da companheira de similar valor, também profissionalmente ativa no ramo hoteleiro;
21. O arguido tem como encargos fixos mensais a renda da casa (300€) e a mensalidade da ama da descendente menor (150€);
22. No âmbito do PIRS, delineado na sequência da condenação sofrida pelo arguido, este tem aderido responsavelmente e de forma motivada às estratégias de intervenção propostas e cumprido os objetivos do respetivo plano de inserção Social.»

Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]:
«Não se provou que, aquando da ultrapassagem descrita no ponto 5 da factualidade provada, circulassem peões no passeio, no exato momento em que a viatura ultrapassada pelo arguido se viu obrigada a galgar o passeio para evitar uma colisão.»

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:
«O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada com base na análise crítica e conjugada, ponderada com juízos retirados da experiência comum e critérios de razoabilidade, dos meios de prova constantes dos autos e daqueles produzidos em julgamento.
O Tribunal considerou os depoimentos assertivos, seguros, espontâneos, e por isso dotados de elevada credibilidade, das testemunhas DD e EE, militares da GNR que procederam à detenção do arguido, após encetarem perseguição ao mesmo, durante a ação que descreveram da forma enunciada em sede de factualidade provada.
Do depoimento destas testemunhas resultou que, após os militares pararem a viatura policial de frente à viatura do arguido, após transpor uma linha longitudinal contínua, e determinarem que aquele cessasse o funcionamento da viatura, o arguido, de imediato encetou fuga a alta velocidade pelas ruas de ..., aos comandos da viatura por si conduzida.
Quanto à velocidade empreendida pelo arguido, durante a fuga, os militares da GNR elucidaram o Tribunal que, em muitos momentos a mesma seria superior a 100 Km/hora, uma vez que a viatura policial chegou a circular a essa velocidade e, ainda assim, por momentos chegou a perder a viatura do arguido de vista.
Referiram os ditos militares que em muitas artérias por onde o arguido encetou fuga, estavam repletas de pessoas, tanto mais que era hora de fecho de bares em ..., em pleno verão.
Destes depoimentos também resultou que, se por exemplo a viatura que circulava na rotunda, indicada no ponto 4 da factualidade provada, não tivesse parado, a mesma teria colidido com a viatura do arguido. o mesmo perigo ocorreu, segundo estes depoimentos, aquando da ultrapassagem descrita no ponto 5 da factualidade provada.
Ainda destes meios de prova resultou que as ultrapassagens realizadas pelo arguido nos termos descritos no ponto 6 da factualidade provada, só não ocorreu colisão frontal entre a viatura do arguido e outras viaturas, por mero acaso, na medida em que circulavam viaturas em sentido contrário ao seguido pelo arguido.
Conforme referiram os militares, a fuga do arguido apenas cessou quando este, perdendo o controle da viatura, embateu num muro, destruindo-o parcialmente.
Por último, referiram os militares que estiveram sempre no encalço do arguido, acionando a luzes de emergência e sinais sonoros.
Já a testemunha FF, condutor da viatura indicada no ponto 5 da factualidade provada, confirmou em julgamento, o facto de ter tido necessidade de sair da estrada para evitar a colisão. Porém, esta testemunha não demonstrou ter memória de, na parte do passeio que se viu obrigado a colocar a sua viatura, estivessem nesse momento transeuntes. Daí, o Tribunal ter considerado tal facto como não provado. Isto apesar do militar DD ter referido que no tal passeio circulavam pessoas apeadas. Sucede que, provavelmente, as pessoas que ali circulavam não estavam a ocupar o exato local onde a viatura de FF se imobilizou.
Por contraponto com os meios de prova supra elencados, a descrição dos factos realizada pelo arguido, durante as declarações prestadas em julgamento, pode ser caracterizada por surreal; ridícula, e por isso completamente desrazoável, não merecedora de qualquer credibilidade. Vejamos.
Ora, segundo o arguido, os militares da GNR “apenas” pararam a viatura policial à sua frente, e como aquele teve receio de ser “multado”, foi-se embora.
No seu discurso hesitante, e muitas vezes sem nexo lógico, ora dizendo que não sabia que estava a ser perseguido pelo GNR, ora dizendo que lá se apercebeu que estava a concretizar uma autêntica fuga, o arguido negou que tivesse provocado qualquer tipo de perigo.
O arguido chegou a dizer que a ultrapassagem que realizou à viatura indicada no ponto 5 da factualidade provada, foi regularmente efetuada.
Até quanto ao facto de ter perdido o controle da viatura e ter embatido e destruído um muro, o arguido justificou tal ocorrência com a suposta circunstância de se ter distraído, por efeito do seu telemóvel ter caído na base do habitáculo da sua viatura, enquanto conduzia,
Também disse o arguido que no dia 13 de junho de 2021, pelas 1 h e 40 m, as ruas de ... estavam desertas. ou seja, segundo o arguido, que circulou em fuga, a mais de l00Km/hora, por ruas onde existem vários bares, em noite de verão, em ..., não havia ninguém na rua. Surreal, portanto. Atente-se que em junho de 2021 não existia qualquer obrigação de recolhimento por efeito da pandemia coVlD-19.
Quanto à velocidade que imprimiu à sua viatura o arguido disse que seguia a uma velocidade normal, talvez um pouco mais de 50Km/hora.
As declarações do arguido, não lograram, pois, afetar a força probatória retirada dos demais meios de prova. Pelo contrário, fortaleceram a força probatória dos mesmos.
As declarações do arguido lograram, isso sim, demonstrar a total falta de auto censura daquele perante o perigo criado com a sua conduta.

No mais, o Tribunal considerou os seguintes elementos de prova, ainda não referidos supra:
- Auto de notícia (fls. 0 a a1);
- Auto de participação de acidente de viação (fls. 43 a 45);
- CRC de fls. 96;
- Sentença e Acórdão de fls. 146 a J.B6;
- Relatório social de fls. 191 e 192.
Por último, quanto aos factos enunciados nos pontos 8 a 10, no que respeitam ao conhecimento do arguido dos atos por si realizados, e com tal conhecimento ter tido o propósito de realmente agir como agiu, o Tribunal considerou os atos objetivos desenvolvidos pelo arguido, conjugados com normas de lógica e senso comum.
Também, qualquer Homem médio saberia, como o arguido sabia, que a sua conduta era proibida por lei.»
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Conhecendo.

1. Do recurso interlocutório
Insurge-se o Recorrente contra a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação formulada pelo Ministério Público, que lhe foi comunicada na sessão do julgamento que decorreu no dia 9 de novembro de 2021.
Porque entende que tal comunicação consubstancia alteração substancial de factos.
E porque entende, ainda, que tal comunicação deveria ter ocorrido após produção de prova.

Vejamos se lhe assiste razão.

Com interesse para a decisão a proferir, o processo fornece os seguintes elementos:
(i) O Ministério Público alicerçou nos factos que se vão transcrever a acusação que formulou contra o Arguido AA pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, e de uma contraordenação prevista e punível pelo artigo 4.º, n.º 1 e n,º 3 do Código da Estrada:

« 1.º
No dia 13 de junho de 2021, pelas 1h e 40 m, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ...-AI-..., na Rua ..., em ..., em direção à rotunda ..., tendo feito inversão de marcha antes da rotunda transpondo a linha longitudinal contínua M1 e estacionado o veículo no parque do lado oposto.
2.º
Desta feita, a patrulha da GNR composta pelos militares DD e EE, estacionou o veículo de patrulha à frente do veículo no qual seguia o arguido, ligando as luzes de aviso, sendo que os militares deram ordem ao arguido para desligar o veículo.
3.º
O arguido seguiu marcha com o veículo por si conduzido, contornando os militares e o veículo de patrulha, colocando-se em fuga na mesma artéria na direção de ....
4.º
O arguido entrou com o veículo por si conduzido na rotunda ... sem ceder a passagem aos veículos que aí circulavam, obrigando a que um veículo que circulava na rotunda tivesse de fazer uma travagem e paragem de modo a evitar a colisão com o veículo conduzido pelo arguido.
5.º
Uns metros após a saída dessa rotunda, antes do entroncamento com a praia de ..., o arguido efetuou uma ultrapassagem ao veículo onde seguia a testemunha FF, num local em que a estrada descreve duas curvas seguidas, obrigando-o a desviar-se na direção do passeio para evitar a colisão, sendo que no passeio circulavam peões.
6.º
O arguido prosseguiu a fuga realizando, mais três ultrapassagens em local de linha longitudinal contínua M1, circulando a uma velocidade demasiado elevada para as características da via (área urbana) e as pessoas e veículos que na mesma circulava, tendo ainda realizado curvas entrando com o veículo na faixa de rodagem destinada à circulação em sentido oposto ao qual seguia.
7.º
O veículo conduzido pelo arguido despistou-se em frente ao restaurante "O A..., Ldª", embatendo num sinal vertical e no muro do restaurante.
8.º
Ao atuar do modo descrito teve o arguido o claro e firme propósito conseguido conduzir do modo descrito violando as regras da circulação rodoviária, nomeadamente quanto às regras da limitação da velocidade, circulação em rotundas, à ultrapassagem e à obrigatoriedade de circular pela faixa da direita, colocando em perigo bens e a integridade física e vida de pessoas que circulavam na mencionada artéria, apeados ou em veículos, encontrando-se ciente desse mesmo perigo.
9.º
O arguido teve ainda o propósito de não acatar a ordem de paragem que lhe foi dirigida pelos militares da GNR, com o intuito de se furtar à ação de fiscalização que os mesmos pretendiam realizar sobre si sobre o veículo por si conduzido, o que logrou conseguir.
10.º
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.»

(ii) Acusação que foi recebida, em 29 de setembro de 2021, «pelos factos e incriminações dela constantes»

(iii) Na sessão de julgamento que decorreu no dia 9 de novembro de 2021,
Após ter sido declarada aberta a audiência de julgamento, o Senhor Juiz que a essa diligência presidiu proferiu o seguinte despacho:
«(…)
Analisada a documentação dos autos, o Tribunal comunica à defesa do arguido a seguinte alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, nos termos do art.º 358.º, n.º 3 do CPP:
- os factos constantes da acusação consubstanciam a prática, não de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, antes de um crime de condução perigosa de veículo rodoviária, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.
Mantém-se a qualificação jurídica relativamente à contraordenação

Nessa mesma ocasião, disse a Defensora do Arguido:
«Face à comunicação ora efetuada pelo Tribunal a respeito de uma alteração da qualificação jurídica, ao abrigo do disposto no artigo 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não prescinde a defesa de prazo para melhor se pronunciar sobre essa mesma alteração que foi comunicada pelo Tribunal, requerendo, desde já, que seja fixado prazo para tanto.
(…)
Tudo isto, sem prejuízo da nulidade que, desde já, fica arguida, por considerar a defesa não ser este momento processual adequado legalmente para a comunicação de qualquer alteração, ainda que seja da qualificação jurídica.
O Tribunal age enquadrando esta alteração como alteração não substancial e de mera qualificação jurídica. Entende a defesa que tal comunicação só legalmente seria admissível após a produção de prova na audiência de julgamento e, portanto, vai arguida a nulidade desta comunicação, por violação do disposto nos artigos 311.º, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, com os efeitos fixados nos artigos 118.º, 119.º e 122.º do Código de Processo Penal.

E o Ministério Público promoveu:
«O Ministério Público considera inexistir a nulidade arguida, uma vez que não se encontra prevista nem no artigo 119.º, nem no artigo 120.º do Código de Processo Penal

Pelo Senhor Juiz foi, então, proferido o seguinte despacho:
«Julgo improcedente a nulidade arguida, na medida em que a alteração da qualificação jurídica comunicada à defesa do arguido resultou da análise da documentação já constante dos autos.
Concede-se o prazo de 10 dias à defesa do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, na sequência da alteração da qualificação jurídica comunicada.
(…)»

A lei impõe conteúdos obrigatórios a determinadas peças do processo, concretamente à acusação e à pronúncia, conforme decorre dos artigos 283.º, n.º 3, e 308.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Exigência que deriva das finalidades que se reconhecem a tais peças processuais, entre as quais se destaca a delimitação do objeto do processo e a garantia de possibilidade de exercício efetivo, por banda do arguido, de todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para defender a sua posição e contrariar a acusação.
A estrutura acusatória do nosso processo penal, consagrada no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa[[3]], significa, desde logo, que é pela acusação [ou pela pronúncia, havendo-a] que se define o objeto do processo [thema decidendum].
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira[[4]], «O princípio acusatório (…) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório)
Esta vinculação temática do Juiz do julgamento – à matéria constante da acusação – constitui para o arguido uma garantia de defesa, na qual se inclui claramente o princípio do contraditório, que traduz[[5]] «o dever e o direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afetados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efetiva no desenvolvimento do processo; em particular, direito do arguido de intervir no processo e de pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo; a proibição por crime diferente do da acusação, sem o arguido ter podido contraditar os respetivos fundamentos
Todavia, as preocupações de justiça subjacentes ao processo penal fazem com que tal estrutura acusatória não tenha sido consagrada de forma absoluta.
Efetivamente, como decorre do disposto no artigo 124.º e no n.º 4 do artigo 339.º, em julgamento devem ser apresentados todos os factos invocados pela acusação, pela defesa, e pelo demandante civil, quando o haja, produzidas e examinadas todas as provas e explanados todos os argumentos, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa.

Os factos descritos na acusação, entendidos em articulação com as normas desrespeitadas com a sua prática, definem e fixam o objeto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado.
Atente-se ser a lei que não se satisfaz com a simples narração dos factos constitutivos do crime, sendo certo que exige, sob pena de nulidade, a indicação expressa das disposições legais aplicáveis na acusação – artigo 283.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.
Atente-se, ainda, que a importância da qualificação jurídica se revela ao longo do processo, nomeadamente quanto ao preenchimento dos elementos constitutivos do crime, à forma do processo, à competência do Tribunal, à aplicação de medidas de coação.
Importa, ainda, sublinhar que a alteração da qualificação jurídica dos factos, constituindo, in casu, mera modificação do enquadramento jurídico dos factos constantes da acusação, não se confunde com a alteração – substancial ou não substancial – de factos.
A disciplina contida no n.º 1 do artigo 358.º do Código de Processo Penal – atinente a alteração não substancial de factos – é, apenas, por extensão aplicada à alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.

Isto posto, para melhor compreensão das questões que somos chamados a decidir, vale a pena recordar a evolução do entendimento sobre a alteração da qualificação jurídica ou convolação.
O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 27 de janeiro de 1993 – Assento n.º 2/93, publicado na 1.ª Série-A do Diário da República, de 10 de março de 1993 – fixou a seguinte jurisprudência obrigatória:
«Para os fins dos artigos 1.º, alínea f), 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.º 1 e 2 e 379.º, alínea b), não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, a simples alteração da respetiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na subsunção de tais factos a uma figura criminal mais grave
Deste Acórdão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
Que, no Acórdão n.º 279/95, de 31 de maio de 1995, decidiu:
«Julgar inconstitucional - por violação do princí­pio constante do artigo 32º, nº 1 da Constituição - o disposto no artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, al. b), e interpretado nos termos constantes do Assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples altera­ção da respetiva qualificação jurídica (ou con­vola­ção), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportuni­dade de defesa.»
Entretanto, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 445/97, de 25 de junho de 1997 (publicado na 1.ª Série-A do Diário da República, de 5 de agosto de 1997), «declara inconstitucional, com força obrigatória geral – por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição –, a norma ínsita na alínea f) do artigo 1.º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.º 1 e 2, e 379.º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do Acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de janeiro de 1993 e publicado, sob a designação de “Assento n.º 2/93”, na 1.ª Série-A do Diário da República , de 10 de março de 1993 (…)».
O Supremo Tribunal de Justiça, em 13 de novembro de 1997, reformulou o Assento n.º 2/93, nos seguintes termos:
«Ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta exista, o Tribunal pode proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente dê conhecimento e, se requerido, prazo, ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a sua defesa jurídica
E sobre esta matéria, em 1998 (Lei n.º 59/98, de 25 de agosto), veio o legislador tomar posição ao introduzir a regra constante do n.º 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal: O disposto no n.º 1 (...”o presidente...comunica a alteração ao arguido e concede-lhe...o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”) é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
E passou a ser inequívoco que o legislador pretendeu sujeitar ao regime da alteração não substancial de factos a alteração da sua qualificação jurídica em sede de audiência.
Por outro lado, a referida Lei aditou ao artigo339 do Código de Processo Penal o n.º 4, com o seguinte teor: «Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º».
Relativamente a estas inovações, consta da respetiva Exposição de Motivos: «Questão discutida tem sido a do regime da alteração da qualificação jurídica dos factos (cfr. os Acórdãos de fixação de jurisprudência n.º 2/93, de 27 de Janeiro, e 4/95, de 7 de Junho, e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 445/97, de 25 de Junho), pelo que se entendeu esclarecer que a esta se não aplica o regime a alteração, substancial ou não, dos factos. Reafirma-se, por um lado, o respeito pelos princípios da investigação e do contraditório e pelo inerente poder de o tribunal fundar autonomamente as bases da decisão e apreciar livremente a relevância jurídica dos factos em toda a sua amplitude (artigo 339.º, n.º 4).
Por outro lado, garante-se, em toda a extensão, o direito de defesa do arguido, ao qual, o tribunal comunica a alteração da qualificação jurídica (artigo 358.º, n.º 4), de modo a possibilitar-se a mais profunda discussão de direito”.»

No entender de Teresa Pizarro Beleza [[6]], estas alterações significam a clara opção legislativa que passa pela liberdade de qualificar os factos como prerrogativa do juiz, e pelo direito a contra-argumentar sobre essa qualificação como garantia da defesa.
É a interpretação que se nos afigura correta.

Ora, aqui chegados, temos como seguro que a comunicação de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação não constitui alteração substancial, nem substancial de factos, ainda que dela resulte a prática de crime a que corresponda moldura penal abstrata mais grave.
Porque não ocorreu alteração dos factos constantes da acusação, que eram já do conhecimento do Arguido.
E porque o Arguido, em primeira linha, se defende de factos e não do enquadramento jurídico deles.

Todavia, depois de recebida a acusação e antes da prolação da sentença [após realização da audiência de discussão e julgamento], o juiz não pode conhecer do mérito da acusação, mas tão -só de questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa — artigos 338.º, n.º 1 e 368.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, «O conhecimento das questões prévias ou incidentais inclui o conhecimento dos pressupostos processuais, da conexão de processo na mesma fase processual e da separação de processos, dos impedimentos, recusas e escusas dos peritos, intérpretes e funcionários de justiça, das questões atinentes à assistência por defensor, à substituição de defensor e à representação judiciária dos assistentes, da remessa das partes civis para os tribunais civis, da questão da produção de meios de prova oficiosamente ou a requerimento na audiência de julgamento e das proibições de prova” E como aduz Maia Gonçalves (3 ): “As questões prévias aqui referidas, e em outros lugares do Código, são todas as que, além das incidentais, ou seja das que surgem no decurso da audiência, podem obstar ao conhecimento do mérito. Essas questões podem ter natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, etc.) ou adjetiva (incompetência do tribunal, ilegitimidade do acusador, etc.). A apreciação das questões prévias de natureza adjetiva deve proceder à apreciação das de natureza substantiva, e dentre aquelas deve ser apreciada prioritariamente a questão da competência, pois que se o tribunal se declarar incompetente deve cessar a sua intervenção, para que o tribunal competente aprecie todas as questões. As questões prévias devem ser apreciadas tão cedo quanto possível (cfr., v.g. artigo 311.º, n.º 1), mas podem também ser decididas na sentença final (artigo 368.º, n.º 1) e assim terá que suceder necessariamente sempre que a solução estiver dependente de prova a produzir na audiência.»

Já se deixou assinalado que aquando do despacho a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal – recebimento da acusação – a acusação deduzida nos autos foi recebida conforme se encontrava formulada.
E porque, como também já se deixou mencionado, da acusação devem constar, nomeadamente, a enumeração dos factos delituosos praticados pelo agente da infração e a respetiva qualificação jurídica — artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) – o Juiz, ao proferir o despacho do seu recebimento pode, se assim o entender, qualificar diversamente os factos dela constantes, sendo, então, esta nova qualificação que persiste até à prolação da sentença.
O que não se confunde com a situação que nos ocupa, em que o Senhor Juiz, sem que houvessem surgido circunstâncias supervenientes que devessem ser ponderadas, veio a desdizer um juízo de mérito sobre a relação jurídico -processual estabelecida.
E este dar o dito por não dito, contrariando a estabilidade de decisão jurisdicional anterior, não é tolerável, sob pena de se criar e aceitar a desordem, a incerteza e a confusão.
Acresce que apenas o tribunal superior pode, por via de recurso, alterar ou revogar uma decisão que não seja de mero expediente.

Por último, foi claramente desrespeitada a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013:
«A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal».
Dispensamo-nos de reproduzir as razões subjacentes a este entendimento.
E assinalamos não haver razões para dele divergir.

Resta-nos deixar expresso que a decisão do Senhor Juiz de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação não se alicerçou em lapso ou erro passível de correção, mas – como inequivocamente consta da decisão recorrida – no seu entendimento sobre a subsunção jurídica dos factos constantes da acusação, após exame da documentação junta ao processo.

Porque desocasionada, a comunicação da alteração da qualificação jurídica que ocorreu nos presentes autos, não se reveste de qualquer préstimo. Equivale a não ter ocorrido.
O que conduz a que o Tribunal de 1.ª Instância se tenha pronunciado sobre o que não podia conhecer – a prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo artigo 291.º do Código Penal.
E este excesso de pronúncia integra a nulidade da sentença prevenida na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal.
Que se declara.
E que acarreta a invalidade de todos os atos que se seguiram à comunicação da alteração da qualificação jurídica que teve lugar após a abertura da audiência de julgamento.
Nulidade que deverá ser suprida pelo tribunal recorrido, mediante a comunicação da alteração da qualificação jurídica após a produção de prova a produzir em julgamento e daí se extraindo os subsequentes efeitos.

A procedência deste recurso interlocutório impossibilita a conhecimento das questões suscitadas no recurso da decisão final.


III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se declarar a nulidade da sentença, nos termos sobreditos, por condenação por crime diverso do que na acusação vem imputado, sem cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 358.º do Código de processo Penal.

Sem tributação.
û
Évora, 2023 janeiro 24
Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz
Renato Amorim Damas Barroso
Maria de Fátima Cardoso Bernardes

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[1] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] ] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].
[3] ] «O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao
princípio do contraditório.»
[4] ] In “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, Coimbra Editora, 2007, a página 522.
[5] ] Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada, a página 523.
[6] ] In “Dizer e Contraditar o Direito: a qualificação jurídica dos factos em processo crime”, in Scientia Ivridica, Jan.- Jun. 1999, Tomo XLVIII, n.º 277/279, página 67 e seguintes.