PROCESSO CONTRAORDENACIONAL
GARANTIAS DE DEFESA
DIREITO DE PRODUZIR PROVA
IRREGULARIDADES PROCEDIMENTAIS
Sumário

I. A tutela dos bens jurídicos conexos com o ambiente é feita pelo Direito Penal, pelo Direito Contraordenacional (direito penal administrativo), pelo Direito Administrativo e por outros ramos do direito.
II. O regime jurídico do ilícito de mera ordenação social é cerzido pelas garantias do Estado de Direito, sobretudo através das regras e garantias procedimentais e do direito ao recurso para um tribunal, em conformidade com o que dispõem os artigos 33.º e 59.º RGCO, 2.º, 20.º, § 1.º e 32.º, § 10.º da Constituição e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, justamente por razão da garantia do recurso judicial), surgindo o direito e processo penais comos seus referenciais subsidiários (artigos 32.º e 41.º RGCO).
III. O direito de audiência, expressamente referido no artigo 49.º, § 1.º na Lei n.º 50/2006, em termos semelhantes aos previstos no artigo 50.º do Regime Geral das Contraordenações, integra o direito de participar na conformação do caso, indicando provas que contrariem as impressões da autoridade administrativa e intervindo ativamente na sua produção, em decorrência do direito à participação na produção da prova que serve de suporte à decisão administrativa.
IV. O exercício desse direito necessariamente implica que quem arrolou testemunhas as possa inquirir, contra inquirir ou esclarecer, suscitar nulidades e fiscalizar a regularidade do ato, ainda que sujeito à direção de quem a ele preside.
V. Daí que a preterição da convocação para participar na inquirição das testemunhas arroladas constitua irregularidade procedimental que só se poderá considerar sanada se não for reclamada pelo arguido logo que dela tome conhecimento, em conformidade com o que dispõem os artigos 121.º, § 1.º e 123.º, § 1.º CPP, ex vi artigo 41.º § 1.º Regime Geral das Contraordenações).

Texto Integral

1. Relatório
A Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) aplicou a AA, Lda., com sede na …, …, concelho de …, uma coima única no valor de 65 000€, pela prática de quatro contraordenações:

- uma contraordenação ambiental muito grave, prevista no artigo 111.º, § 1.º, al. a) do Decreto-Lei n.º 127/2013 e 22.º, § 4.º, al. b) da Lei n.º 50/2016, de 29 de agosto;

- uma contraordenação ambiental grave, prevista no artigo 67.º, § 2.º, al. r) e 48.º do Decreto-Lei n.º 178/2006 e do artigo 22.º, § 3.º, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto;

- uma contraordenação ambiental grave, prevista no artigo 39.º, § 3.º, al. b) e 18.º, § 3.º do Decreto-Lei n.º 151-B/2013 e artigo 22.º, § 3.º, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto;

- e uma contraordenação ambiental muito grave, prevista nos artigos 81.º, § 3.º, al. c) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007 e 22.º, § 4.º, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto.

Inconformada com tal decisão a arguida impugnou judicialmente a decisão administrativa punitiva, suscitando a nulidade do procedimento, por preterição dos seus direitos de defesa e de contraditório, por não ter sido notificada para comparecer à inquirição de testemunha de defesa que havia arrolado; mais considerando estar o procedimento contraordenacional prescrito (por os factos se reportarem a 24/7/2007, a inspeção se ter realizado a 15/2/2016, e a notificação da decisão punitiva ter ocorrido apenas a 11/3/2021); e os agentes da sociedade arguida terem agido sem consciência da ilicitude.

Distribuídos os autos ao …º Juízo (1) Local Criminal de …, veio o M.mo Juiz a decidir por despacho, julgando inválida a decisão administrativa impugnada, «com fundamento em irregularidade, a inquirição da testemunha BB efetuada no dia 29/5/2018 com fundamento na violação do direito de defesa da recorrente (na vertente possibilidade de intervir na produção das provas por si oferecidas), decidindo consequentemente, porque os enferma, invalidar os atos decisórios subsequentes à referida inquirição (mormente a decisão de 1/3/2021) na medida em que a irregularidade declarada afeta os termos subsequentes do procedimento, com fundamento em irregularidade, mais determinando, após trânsito, a remessa de certidão integral dos autos à autoridade administrativa competente para os fins tidos por convenientes [eventual sanação do(s) vício(s) identificado(s)].»

Inconformado com tal decisão o Ministério Público interpôs o presente recurso, rematando a respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

« (…)

2) Citando a Douto Despacho recorrido, o recorrente impugnou judicialmente a decisão administrativa proferida pela IGAMAOT invocando, para além do mais o seguinte:

“Para o efeito, a recorrente alegou, em síntese, a nulidade do procedimento com fundamento na preterição do direito de defesa e do princípio da contraditório, alegando, para o efeito, que pese embora tenha procedido à indicação, em sede de audição prévia, de BB como testemunha, não foi notificada para comparecer no acto de inquirição, devendo sê-lo ao abrigo do artigo 43.º e 44.º da Lei n.º 114/2015 e artigo 61.º, n.º1, al. a) do Código de Processo Penal, arguido ainda que tinha direito e interesse em comparecer na mesma, de modo a instar a testemunha acerca da factualidade em crise, o que determina a nulidade do acto; (…)”.

3) Nos presentes autos, pela decisão recorrida constante de fls. 419 a 429, referência citius …, proferida em 22.09.2022, da qual se recorre, o Tribunal julgou o “recurso de impugnação judicial da decisão administrativa proferida pelo Exmo. Senhor Inspector-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, que condenou a recorrente (…) procedente por provado e, em consequência, julga inválida, com fundamento em irregularidade, a inquirição da testemunha BB efectuada no dia 29/05/2018 com fundamento na violação do direito de defesa da recorrente (na vertente possibilidade de intervir na produção das provas por si oferecidas), decidindo consequentemente, porque os enferma, invalidar os actos decisórios subsequentes à referida inquirição (mormente a decisão de 01/03/2021) na medida em que a irregularidade declarada afecta os termos subsequentes do procedimento, com fundamento em irregularidade, mais determinando, após trânsito, a remessa de certidão integral dos autos à autoridade administrativa competente para os fins tidos por convenientes [eventual sanação do(s) vício(s) identificado(s)]”.

4) O Tribunal a quo fez uma errada interpretação das normas contidas nos artigos 50.º, n.º 4, da Lei n.º 50/2006, e 61.º, n.º 1, al. a) e g) do Código de Processo Penal.

5) Consideramos que a autoridade administrativa (ou a entidade a quem foi delegada a competência para realizar a inquirição da testemunha) não estava obrigada a comunicar à arguida recorrente a data designada para inquirição da testemunha.

6) O Tribunal a quo fundamentou a decisão recorrida nos seguintes termos: “Ora, não sendo a recorrente notificada para, querendo, comparecer nas inquirições, como poderá a mesma exercer materialmente o direito de defesa que a lei lhe atribui? O direito de defesa não se esgota na possibilidade de indicar os meios de prova que pretenda ver produzidos mas também na possibilidade de participar na sua produção.

Tal ideia resulta implícita no disposto no artigo 50.º, n.º4 da Lei n.º 50/2006. Ao determinar que “as testemunhas são obrigatoriamente apresentadas, por quem as arrola, na data e hora agendadas para a diligência”, tal circunstância que é pressuposto da sua apresentação pelo cidadão o conhecimento da realização da diligência, não sendo a falta de comparência do arguido, das testemunhas e peritos, quando devidamente notificados, razão que obste ao prosseguimento do procedimento contra-ordenacional (artigo 51.º da Lei n.º 50/2006). Tal entendimento resulta, ainda, arreigado no disposto no artigo 61.º, n.º1, al. a) e g) do Código de Processo Penal, aplicável subsidiariamente ao procedimento sancionatório de natureza contra-ordenacional, cabendo ao visado no mesmo o direito de “estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito”, bem como de “intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias.”.

7) O processo contraordenacional na fase administrativa é dominado pela autoridade administrativa competente, não estando o arguido no mesmo patamar da autoridade administrativa e não classificada como uma fase de contraditório pleno, sendo que o processo contraordenacional, especialmente na fase administrativa, acaba por se distinguir do processo penal por ter exigências formais menos profundas e maior simplicidade na sua tramitação.

8) Contrariamente ao sentido da interpretação constante da decisão recorrida, consideramos que o artigo 50.º, n.º 4, da Lei n.º 50/2006, apenas visa impor um dever acrescido de colaboração aos arguidos que pretendem apresentar testemunhas na defesa, com o intuito de evitar especiais formalismos e simplificar a tramitação do processo. Não tem como ratio impor que seja dado conhecimento ao arguido da data designada para a inquirição da testemunha, para que esteja presente e possa intervir num contraditório pleno.

9) Acresce que tal solução também não resulta da aplicação subsidiária do artigo 61.º, n.º 1, al. a) e g) do Código de Processo Penal. Com efeito, não resulta daquela norma qualquer obrigatoriedade de dar a conhecer aos arguidos, na fase de inquérito, as datas designadas para inquirição de testemunhas, ainda que indicadas pela defesa, e permitir que possam intervir nas inquirições com contraditório pleno.

10) Pelo exposto, ao decidir como decidiu o Douto Despacho recorrido violou o disposto nos artigos 50.º, n.º 4, da Lei n.º 50/2006, e 61.º, n.º 1, al. a) e g) do Código de Processo Penal.

11) Nesta medida, deve ser revogado a Douto Despacho recorrido e, em consequência, ser substituído por Douto Despacho que julgue não verificada a irregularidade invocada e referida em 2) e 3) destas conclusões e que designe data para realização de Audiência de Julgamento para produção de prova quanto aos factos da acusação e da defesa apresentada pelo recorrente.»

Admitido o recurso, a sociedade comercial arguida respondeu pugnando pela sua improcedência, aduzindo, em síntese (transcrição):

«1 - Não sendo o arguido notificado para, querendo, comparecer nas inquirições, não poderá o mesmo exercer materialmente o direito de defesa que a lei lhe atribui;

2 - O direito de defesa não se esgota na possibilidade de indicar os meios de prova que pretenda ver produzidos mas também na possibilidade de participar na sua produção.

3 - Tal resulta, implícito no disposto no artigo 61º, n.°1, al. a) e g) do Código de Processo Penal, aplicável subsidiariamente ao procedimento sancionatório de natureza contraordenacional, cabendo ao visado no mesmo o direito de "estar presente aos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito", bem como de “intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias."

4 - A falta de notificação ao arguido e/ou seu mandatário, realizando-se em data e hora agendada pela autoridade administrativa, sem a presença do arguido e/ou do seu mandatário, viola de forma grave o direito de defesa assegurado ao arguido pelos artº 50, nº4 da Lei nº50/2006 e as garantias de processo criminal asseguradas constitucionalmente ao arguido pelo artº 32 da C.R.P.

5 - A inquirição de testemunhas arroladas pelo arguido sem notificação a este ou ao seu mandatário do dia e hora da realização da diligência de inquirição inquina de nulidade a instrução de processo contraordenacional.

6 - A sentença recorrida aplicou corretamente os princípios legais e constitucionais consagrados no artº 50, nº4 da Lei nº 50/2006 e artº 32 da C.R.P.»

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, na intervenção a que alude o artigo 416.° do CPP, secundou integralmente a posição do recorrente.

No exercício do direito de contraditório a recorrida apresentou escrito, no qual reitera as conclusões apresentadas na 1.ª instância!

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

2. Fundamentação

Conforme dispõe e permite o artigo 64.º, § 1.º e 2.º do RGCO (que se contém no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de out.), sendo interposto recurso da decisão da entidade administrativa o juiz decide por sentença na sequência de audiência de julgamento ou através de simples despacho. A decisão por despacho está legalmente reservada para os casos em que se considere desnecessária a realização da audiência de julgamento (nomeadamente se não houver prova a produzir) e o arguido/recorrente e o Ministério Público a tanto se não oponham. Foi o que sucedeu no presente caso, optando-se pela decisão por despacho. Na sua integralidade o despacho recorrido tem o seguinte forma e teor:

«AA, LDA., com sede na …, …, nos termos do artigo 59.º, n.º1 do Regime Jurídico do Ilícito de Mera Ordenação Social (doravante designado por RGCO), interpor recurso de impugnação judicial da decisão administrativa de 01/03/2021 proferida pelo Exmo. Senhor Inspector-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, que condenou a recorrente pela prática, i) de uma contra-ordenação ambiental muito grave, prevista e punida pelo artigo 111.º, n.º1, al. a) do Decreto-Lei n.º 127/2013 e 22.º, n.º4, al. b) da Lei n.º 50/2016, ii) de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pelo artigo 67.º, n.º2, al, r) e 48.º do Decreto-Lei n.º 178/2006 e do artigo 22.º, n.º3, al. b) da Lei n.º 50/2006, iii) uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pelo artigo 39.º, n.º3, al. b) e 18.º, n.º3 do Decreto-Lei n.º 151-B/2013 e artigo 22.º, n.º3, al. b) da Lei n.º 50/2006 e iv) de uma contra-ordenação ambiental muito grave, prevista e punida pelos artigos 81.º, n.º3, al. c) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007 e 22.º, n.º4, al. b) da Lei n.º 50/2006, na coima única, em cúmulo jurídico, de €65.000,00, bem como nas custas procedimentais no valor de €75,00, nos termos do artigo 58.º da Lei n.º 50/2006.

Para o efeito a recorrente alegou, em síntese, a nulidade do procedimento com fundamento na preterição do direito de defesa e do princípio da contraditório, alegando, para o efeito, que pese embora tenha procedido à indicação, em sede de audição prévia, de BB como testemunha, não foi notificada para comparecer no acto de inquirição, devendo sê-lo ao abrigo do artigo 43.º e 44.º da Lei n.º 114/2015 e artigo 61.º, n.º1, al. a) do Código de Processo Penal, arguido ainda que tinha direito e interesse em comparecer na mesma, de modo a instar a testemunha acerca da factualidade em crise, o que determina a nulidade do acto; que o procedimento se mostra prescrito na medida em que os factos e circunstâncias ocorrem desde antes de 24/07/2007, arguindo ainda que entre a data da inspecção (15/02/2016) e a notificação da decisão punitiva, em 11/03/2021, decorreu período de tempo superior a 5 anos; que o comportamento dos novos sócios e responsáveis da sociedade arguida deve ser considerado isento de qualquer ilicitude e censura, uma vez que actuaram sem consciência de ilicitude do facto por erro não censurável; que os anteriores sócios da recorrente asseveraram aos actuais sócios desta a integral legalização e cumprimento das regras ambientais; por impugnação, argui a recorrente que tem colocado os melhores esforços no sentido de suprir as irregularidades que foram sendo identificadas.

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Deduzida a acusação pelo Ministério Público, foram os autos recebidos pelo Tribunal.

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Foi notificado o Ministério Público para se pronunciar a respeito da eventual nulidade da decisão administrativa, invocada pela recorrente em sede de impugnação.

O Ministério Público pronunciou-se, em síntese, pela improcedência da nulidade arguida, arreigando tal posicionamento na circunstância de não existir obrigatoriedade de dar conhecimento à recorrente da data em que vai ser realizada a diligência de inquirição de testemunha, arguindo ainda que a recorrente não solicitou em sede de defesa escrita que lhe fosse dado conhecimento da realização da diligência.

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Atento o estado dos autos e uma vez que não se afigura necessária a realização de qualquer diligência probatória adicional para decisão da questão oficiosamente suscitada, o Tribunal decidirá, de imediato, a mesma.

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2. SANEAMENTO

O Tribunal é competente em razão da hierarquia, valor, território e matéria.

O processo é o próprio.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas. A recorrente encontra-se representada.

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3. QUESTÃO PRÉVIA:

DA ALEGADA INVALIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA

Em sede de impugnação judicial foi suscitada pela recorrente a nulidade do procedimento com fundamento na preterição do direito de defesa e do princípio da contraditório, alegando, para o efeito, que pese embora tenha procedido à indicação, em sede de audição prévia, de BB como testemunha, não foi notificada para comparecer no acto de inquirição, devendo sê-lo ao abrigo do artigo 43.º e 44.º da Lei n.º 114/2015 e artigo 61.º, n.º1, al. a) do Código de Processo Penal, arguido ainda que tinha direito e interesse em comparecer na mesma, de modo a instar a testemunha acerca da factualidade em crise, o que determina a nulidade do acto de inquirição e, consequentemente, do procedimento decisório.

Para apreciação da questão, impõe-se verificar o teor do procedimento e da decisão administrativa.

Para o efeito, resultaram demonstrados os seguintes factos a partir dos meios de prova que se elencam:

1. Por despacho datado de 16/11/2016, assinado pela Exma. Senhora Inspectora Directora da Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (doravante, IGAMAOT), e afigurando-se como possível a prática pela ora recorrente AA, LDA de uma contra-ordenação ambiental muito grave, prevista e punida pelo artigo 111.º, n.º1, al. a) do Decreto-Lei n.º 127/2013 e 22.º, n.º4, al. b) da Lei n.º 50/2016, de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pelo artigo 67.º, n.º2, al, r) e 48.º do Decreto-Lei n.º 178/2006 e do artigo 22.º, n.º3, al. b) da Lei n.º 50/2006, uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pelo artigo 39.º, n.º3, al. b) e 18.º, n.º3 do Decreto-Lei n.º 151-B/2013 e artigo 22.º, n.º3, al. b) da Lei n.º 50/2006 e de uma contra-ordenação ambiental muito grave, prevista e punida pelos artigos 81.º, n.º3, al. c) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007 e 22.º, n.º4, al. b) da Lei n.º 50/2006, foi determinada a sua notificação, conjuntamente com o auto de notícia n.º …/2016 e do relatório de inspecção n.º …/2016, “nos termos e para os efeitos do artigo 49.º da Lei n.º50/2006” – fls. 1-3 dos autos;

2. A comunicação referida em 1) foi recepcionada pela recorrente em 29/11/2016 – fls. 14 dos autos.

3. Por requerimento apresentado via fax em 22/12/2016, a recorrente AA,LDA pronunciou-se a respeito da factualidade imputada, tendo indicado como “rol de testemunhas: CC, solteira, …, residente (…) [em] …, cujo depoimento se solicita realize nas instalações da GNR de …, como é admitido pelo ordenamento ambiental; DD, casada, …, residente na (…) …, cujo depoimento se solicita realize nas instalações da GNR da … como é admitido pelo ordenamento ambiental;

BB, casado, …, residente (…) [em] …, cujo depoimento se solicita realize nas instalações da GNR de … como é admitido pelo ordenamento ambiental” – fls. 15-22 dos autos.

4. Em 19/03/2018 foi produzido o ofício n.º …./18, endereçado ao Posto Territorial de … com o seguinte teor: “(…) Solicito a V.Ex. a inquirição das testemunhas CC, DD e BB, arroladas, no âmbito do processo de contraordenação em referência. As testemunhas deverão ser inquiridas sobre toda a matéria de defesa apresentada, juntando-se para o efeito cópia dos autos de notícia, bem como cópia da defesa apresentada. O mandatário da arguida (Dr. EE) deverá ser informado da data e hora da diligência, podendo estar presente em todos os atos conforme preceito na alínea f) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal” – fls. 125.

5. Por requerimento datado de 20 de Abril de 2018, apresentado pelo Il. Advogado da recorrente junto do posto de … da GNR e remetido ao IGAMAOT em 23/04/2018, foi requerido que “tendo em conta que foi requerido que as mesmas [testemunhas] depusessem no posto do órgão de polícia criminal (PSP. ou GNR) da área da respectiva residência venho solicitar a V.Exas que se devolva este pedido à Inspecção-Geral (…) a fim de que, a partir do órgão instrutor, se solicite a inquirição das testemunhas no posto do órgão de polícia da área da respectiva residência (…)” – fls. 128-129.

6. Em 04/05/2018 foram produzidos os ofícios n.º …/18, …/18 e …/18, endereçados respectivamente ao Posto Territorial de …, Posto da Polícia de Segurança Pública da … da Polícia de Segurança Pública e Posto Territorial de … onde se solicita a inquirição das testemunhas referidas em 4) – fls. 201-205.

7. Encontra-se plasmada nos três ofícios referidos em 6) o seguinte teor: “O mandatário da arguida (Dr. EE) deverá ser informado da data e hora da diligência, podendo estar presente em todos os atos conforme preceito na alínea f) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal” – fls. 201-205

8. Pelo ofício n.º…/2018, de 14/05/2018, foi o Il. Advogado da recorrente notificado para comparecer em 22/05/2018 para a inquirição de CC – fls. 214.

9. Em 29/05/2018, no posto territorial de … da GNR, foi inquirido BB na qualidade de testemunha – fls. 220.

10. Na diligência referida em 9) não se encontrava presente o Il. Advogado da recorrente nem se mostra notificado para a mesma – fls. 220 e regras de experiência comum, impondo-se à autoridade administrativa, como dominus do procedimento, que evidencie a notificação para o efeito, o que no caso não ocorre, visto o procedimento contra-ordenacional.

11. Em 18/09/2018, no comando metropolitano da Polícia de Segurança Pública de …, foi inquirida DD na qualidade de testemunha – fls. 245.

12. Na diligência referida em 11) não se encontrava presente o Il. Advogado da recorrente nem se mostra notificado para a mesma – fls. 245 e regras de experiência comum, impondo-se à autoridade administrativa, como dominus do procedimento, que evidencie a notificação para o efeito, o que no caso não ocorre, visto o procedimento contra-ordenacional.

13. Em 01/03/2021 foi proferida pelo Exmo. Senhor Inspector-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território a decisão sancionatória alvo de impugnação, a qual foi notificada à recorrente em 21/03/2021 – fls.247 ss e 256.

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Não ficou por provar qualquer outro facto com interesse para a decisão da questão prévia suscitada.

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A questão colocada pela recorrente resume-se à seguinte: em sede de procedimento contra-ordenacional, deve a recorrente ser notificada para os actos de produção de prova que requeira e, em caso afirmativo, qual é a consequência para o acto e para a decisão que omita tal acto?

Em primeiro lugar, cabe recordar que o procedimento contra-ordenacional, como toda a actividade administrativa, se encontra vinculada pelo princípio da legalidade (artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 433/82, materializado, nos termos do artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo como o dever de actuação em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respectivos fins), de justiça e razoabilidade (artigo 5.º do Código do Procedimento Administrativo) e, ainda, de imparcialidade e boa-fé (artigo 9.º e 10.º do Código do Procedimento Administrativo, devendo, na sua actuação, tratar de forma justa todos aqueles que com ela entrem em relação, e rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das normas jurídicas e das valorações próprias do exercício da função administrativa, actuando de modo imparcial, ponderando com objectividade todos os interesses relevantes no contexto decisório, e actuando de modo recto e leal com todos os intervenientes.

É neste contexto da moderna administração estatal que se impõe, em sede de procedimento contra-ordenacional, o direito dos particulares se defenderem previamente à prática de qualquer acto que possa lesar os seus direitos e interesses legalmente protegidos, como é o caso da verificação da eventual existência de uma contra-ordenação e consequente aplicação de uma coima.

Dito isto, prevê o artigo 49.º, n.º1 e 2 da Lei n.º 50/2006, que aprova a Lei-quadro das contra-ordenações ambientais que “o auto de notícia, depois de confirmado pela autoridade administrativa e antes de ser tomada a decisão final, é notificado ao infractor conjuntamente com todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, para, no prazo de 15 dias úteis, se pronunciar por escrito sobre o que se lhe oferecer por conveniente”, podendo o cidadão, no mesmo prazo, apresentar resposta escrita, juntar os documentos probatórios que entenda e arrolar testemunhas, até ao máximo de duas por cada facto, num total de sete.

Independentemente da sua formulação, o aludido preceito consubstancia a elementar consagração do disposto no artigo 32.º, n.º10 da Constituição da República Portuguesa, a qual estabelece que “nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.

Assim é uma vez que, encontrando-se o Estado subordinado à lei e ao Direito, a limitação dos direitos dos cidadãos encontra-se subordinada à necessidade, razão pela qual o Estado deverá fundamentar a sua actuação na verificação de um estado de coisas previamente tipificado.

Ora, o cidadão tanto se pode defender a respeito do Direito aplicado como do estado de coisas que a administração considera demonstrado, razão pela qual se impõe essa fixação objectiva da factualidade a partir da qual se determinam as consequências jurídicas de uma determinada acção ou omissão.

Por essa razão, exige-se ao Estado, quando actua no exercício de funções sancionatórias, que impute aos cidadãos, de modo objectivo, os factos que sustentam a sua conduta ilícita, o que deve fazer de modo a que os cidadãos (tanto os visados, como os demais) consigam compreender a razão daquela restrição da sua liberdade e/ou património.

São os factos, enquanto realidade da vida, que devem ser, fundadamente e com base nos meios de prova, demonstrados pela entidade administrativa para que se afira da pertinência da eventual subsunção ao Direito vigente.

Dito isto, corporizando a decisão administrativa um acto ablativo da liberdade e/ou património do particular, esta deve ser auto-suficiente, tanto no que refere aos factos como ao Direito, explicar as razões e os raciocínios subjacentes e, sem possível, convencer os destinatários (e a restante comunidade) da bondade da decisão adoptada, assim se cumprindo o Estado de Direito Democrático.

Ademais, tendo em consideração a lógica que o direito contra-ordenacional tem vindo a assumir, dada a crescente intensidade da forma como as decisões sancionatórias se imiscuem na liberdade e património dos cidadãos (em concreto, no que respeita ao montante das coimas), o ordenamento jurídico deve mostrar-se particularmente exigente relativamente ao respeito, pelas entidades administrativas, dos direitos dos cidadãos no decurso do procedimento.

Efectuado o enquadramento, impõe-se concluir que efectivamente assiste razão ao recorrente a respeito da notificação para, querendo, comparecer nas diligências efectuadas no procedimento contra-ordenacional subsequentes à notificação para exercício do direito de defesa, sendo especialmente relevante essa notificação no que respeita às diligências por si directamente requeridas.

Convenhamos: interessa à recorrente, em sede administrativa, demonstrar a factualidade que, na sua perspectiva, poderá determinar a falta de preenchimento dos pressupostos do tipo de ilícito ou, por outro lado, pretender demonstrar realidades que, na sua perspectiva, poderão mitigar a medida da sanção.

Ora, não sendo a recorrente notificada para, querendo, comparecer nas inquirições, como poderá a mesma exercer materialmente o direito de defesa que a lei lhe atribui? O direito de defesa não se esgota na possibilidade de indicar os meios de prova que pretenda ver produzidos mas também na possibilidade de participar na sua produção.

Tal ideia resulta implícita no disposto no artigo 50.º, n.º4 da Lei n.º 50/2006. Ao determinar que “as testemunhas são obrigatoriamente apresentadas, por quem as arrola, na data e hora agendadas para a diligência”, tal circunstância que é pressuposto da sua apresentação pelo cidadão o conhecimento da realização da diligência, não sendo a falta de comparência do arguido, das testemunhas e peritos, quando devidamente notificados, razão que obste ao prosseguimento do procedimento contra-ordenacional (artigo 51.º da Lei n.º 50/2006).

Tal entendimento resulta, ainda, arreigado no disposto no artigo 61.º, n.º1, al. a) e g) do Código de Processo Penal, aplicável subsidiariamente ao procedimento sancionatório de natureza contra-ordenacional, cabendo ao visado no mesmo o direito de “estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito”, bem como de “intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias.

O que anteriormente se escreveu consubstancia uma manifestação elementar do processo (lato senso) equitativo, previsto no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e que, paulatinamente, tem sido alargado a todos os procedimentos de natureza sancionatória.

Refira-se, aliás, que a noção da existência de tal direito não é desconhecida da autoridade administrativa que sempre solicitou aos órgãos de polícia criminal que informassem o mandatário da arguida da data e hora da diligência, mais informando que se poderia estar presente em todos os actos “conforme preceito na alínea f) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal”.

Deste modo, ao preterir tal notificação, mal andou a entidade administrativa ao privar a recorrente de comparecer na inquirição de duas testemunhas que houvera indicado, desapossando-a materialmente do direito de intervir na produção do meio de prova cuja produção impulsionou.

Violada que foi a lei, vejamos a sua consequência.

Prevê o artigo 118.º, n.º1 e 2 do Código de Processo Penal, aplicável ao procedimento contra-ordenacional, que “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, sendo que caso a lei não comine o acto como nulo, o acto ilegal se qualifica como irregular, seguindo o regime do aludido vício.

Não se inscrevendo o referido vício procedimental nas nulidades sanáveis ou insanáveis (artigo 119.º e 120.º do Código de Processo Penal), impõe-se a sua qualificação como irregularidade, nos termos previstos no artigo 123.º, n.º1 do Código de Processo Penal, o qual prevê que “qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado”.

Não obstante, visto os autos, não resulta demonstrado que a recorrente tenha tomado conhecimento do teor das inquirições em momento anterior à decisão administrativa sancionatória, sendo esse o momento considerado relevante para conhecimento da ocorrência da dita irregularidade.

Ora, tratando-se de uma irregularidade conhecida conjuntamente com a decisão sancionatória, inexiste a obrigatoriedade do recorrente invocar a sua ocorrência em momento anterior ao termo do prazo do acto impugnatório da decisão administrativa (caso impugne, como é o caso, a decisão sancionatória) na medida em que o vício de procedimento é directamente assimilado pela decisão administrativa, sendo certo que a autoridade se encontra possibilitada, nos termos do artigo 62.º, n.º2 do regime geral das contra-ordenações a revogar a decisão de aplicação de coima e, por maioria de razão, a sanar o acto imperfeito.

Donde, tendo sido tempestivamente invocada a irregularidade da inquirição das testemunhas oferecidas pela recorrente e que a recorrente apenas tomou conhecimento dessa irregularidade aquando da prolação da decisão sancionatória, impõe-se concluir que a sua ocorrência, porque manifestamente lesiva do direito de defesa, é apta a afectar a inquirição da testemunha BB (única alegada pela recorrente) e, consequentemente, do acto decisório proferido pelo IGAMAOT.

Sintetizando com base na pergunta inicialmente colocada: em sede de procedimento contra-ordenacional a recorrente deve ser notificada para, querendo, estar presente nos autos de produção de prova que requeira; caso tal não aconteça, a diligência de produção de prova é irregular, sendo que tal irregularidade poderá determinar, como se verifica no caso, a irregularidade (e consequente invalidade) da decisão sancionatória.

Assim, nos termos e fundamentos anteditos, impõe-se julgar inválida, com fundamento em irregularidade, a inquirição da testemunha BB efectuada no dia 29/05/2018 com fundamento na violação do direito de defesa da recorrente (na vertente possibilidade de intervir na produção das provas por si oferecidas) e, consequentemente, porque os enferma, invalidar os actos decisórios subsequentes à referida inquirição (mormente a decisão de 01/03/2021) na medida em que a irregularidade declarada afecta os termos subsequentes do procedimento, termos estes que, julgando adequados, a entidade administrativa poderá sanar.

Registe e deposite.

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4. DAS CUSTAS PROCESSUAIS

Nos termos conjugados dos artigos 93.º, n.º 3 e 94.º, n.º3 do RGCO, artigos 8.º, n.º 7, 13.º e Tabela III anexa do Regulamento das Custas Processuais, não há lugar ao pagamento de custas processuais, sem prejuízo da taxa de justiça já liquidada pela recorrente e que não deverá ser restituída – acórdão uniformizador de jurisprudência n.º2/2014.

5. DISPOSITIVO

Nos termos e fundamentos anteriormente expedidos, o Tribunal julga o presente recurso de impugnação judicial da decisão administrativa proferida pelo Exmo. Senhor Inspector-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, que condenou a recorrente pela prática, i) de uma contra-ordenação ambiental muito grave, prevista e punida pelo artigo 111.º, n.º1, al. a) do Decreto-Lei n.º 127/2013 e 22.º, n.º4, al. b) da Lei n.º 50/2016, ii) de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pelo artigo 67.º, n.º2, al, r) e 48.º do Decreto-Lei n.º 178/2006 e do artigo 22.º, n.º3, al. b) da Lei n.º 50/2006, iii) uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pelo artigo 39.º, n.º3, al. b) e 18.º, n.º3 do Decreto-Lei n.º 151-B/2013 e artigo 22.º, n.º3, al. b) da Lei n.º 50/2006 e iv) de uma contra-ordenação ambiental muito grave, prevista e punida pelos artigos 81.º, n.º3, al. c) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007 e 22.º, n.º4, al. b) da Lei n.º 50/2006, na coima única, em cúmulo jurídico, de €65.000,00, bem como nas custas procedimentais no valor de €75,00, nos termos do artigo 58.º da Lei n.º 50/2006, procedente por provado e, em consequência, julga inválida, com fundamento em irregularidade, a inquirição da testemunha BB efectuada no dia 29/05/2018 com fundamento na violação do direito de defesa da recorrente (na vertente possibilidade de intervir na produção das provas por si oferecidas), decidindo consequentemente, porque os enferma, invalidar os actos decisórios subsequentes à referida inquirição (mormente a decisão de 01/03/2021) na medida em que a irregularidade declarada afecta os termos subsequentes do procedimento, com fundamento em irregularidade, mais determinando, após trânsito, a remessa de certidão integral dos autos à autoridade administrativa competente para os fins tidos por convenientes [eventual sanação do(s) vício(s) identificado(s)]

Consigna-se que não há lugar ao pagamento de custas processuais, não havendo lugar à restituição da taxa de justiça.»

3. Conhecendo dos fundamentos do recurso

O regime dos recursos de decisões proferidas em 1.ª instância relativas a processos de contraordenação, consta dos artigos 73.º a 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações (RGC). Daí decorre que nos processos de contraordenação o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista ampliada, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º CPP, por força do disposto nos artigos 41.º, § 1.º e 74.º, § 4.º do RGC, e como última instância, conhecendo apenas da matéria de direito, podendo alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido em que foi proferida, ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo tribunal. Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, que delimitam o seu âmbito, verifica-se haver apenas uma questão a conhecer: i. se decisão administrativa impugnada é inválida, por preterição de garantias essenciais de defesa.

3.1 Da invalidade da decisão administrativa impugnada

Comecemos por afirmar que a punição de condutas lesivas do ambiente encontra escora constitucional no direito fundamental a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, previsto no artigo 66.º, § 1.º da Constituição da República, bem assim, nas als. d) e e) do artigo 9.º, onde se enumeram as tarefas fundamentais do Estado, entre as quais está justamente a promoção do bem-estar e da qualidade de vida do povo e a defesa da natureza e do ambiente.

A tutela dos bens jurídicos conexos com o ambiente é feita pelo Direito Penal, pelo Direito Contraordenacional (direito penal administrativo), pelo Direito Administrativo e ainda por outros ramos do direito.

No concernente ao direito contraordenacional, justamente por ser um dos meios de tutela desses bens jurídicos, importa referir que este (novo) ramo do direito surge com o advento e desenvolvimento do Estado Social, que passa pela assunção pelo Estado que as infrações no âmbito das novas áreas da intervenção pública deveriam ser resolvidas no âmbito da própria administração, pelo menos numa primeira linha, deixando-se aos tribunais o foco da criminalidade mais relevante, sem prejuízo da garantia de recurso para estes das decisões daquela nas referidas matérias.

Criou-se assim não apenas uma nova categoria de ilícitos, que a lei (o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro) crismou de «ilícito de mera ordenação social» (IMOS), constituindo as contraordenações, em conformidade com o que dispõe o seu artigo 1.º, os factos ilícitos e censuráveis que preencham um tipo legal no qual se comine uma coima. A autonomia material do IMOS face do direito penal não é incontroversa. Por vezes mesmo os que a afirmam discordam adiante sobre o exato posicionamento da linha de fronteira. Figueiredo Dias (2) entende que o critério decisivo para a distinção material entre ilícitos penais e ilícitos de mera ordenação social se deverá fazer entre as condutas (que não entre os ilícitos): as que se mostram com mais amplo desvalor moral, cultural ou social, corresponderão aos crimes. «O que no direito de mera ordenação social é axiológico-socialmente neutro não é o ilícito, mas a conduta em si mesma, divorciada da proibição legal». De modo não muito distinto opina Inês Ferreira Leite quando refere que: «não existe neutralidade ética, per se, mas o desvalor social e ético das condutas proibidas pelo IMOS – por oposição àquelas que têm legítimo cabimento no Direito Penal – no sentido em que tal desvalor deverá associar-se a interesses e valores jurídicos, não decorre imediatamente e sempre da mera descrição, sendo necessária uma contextualização organizacional, mediada pelo conjunto compreendido pelas normas impositivas de regulação da atividade e pela proibição da norma sancionatória...» (3) Acrescenta, quanto à distinção entre a sanção administrativa e a pena criminal, que ambas têm um caráter e função punitiva, diferenciando-se aquela face a esta «na já referida inexistência de uma forte censurabilidade ética. Assim, a coima é uma sanção punitiva – simboliza o castigo (ou consequência intrínseca) pela prática da infração, contribui para o reforço da validade da norma e serve de prevenção no que respeita à prática de novas infrações.» (4) Seguro parece ser que é ao nível da ressonância ética das condutas que se traçará a separação; sendo especial a ressonância ética das condutas criminosas em termos de estas constituírem «comportamentos socialmente insuportáveis».(5)

Ora o regime jurídico do IMOS é cerzido pelas garantias do Estado de Direito, sobretudo através das regras e garantias procedimentais (a competência para a instrução e decisão dos ilícitos está deferida às autoridades administrativas, mediante um procedimento com estrutura inquisitória e célere) e recurso para um tribunal, em conformidade com o que dispõem os artigos 33.º e 59.º RGCO, 2.º, 20.º, § 1.º e 32.º, § 10.º da Constituição (e 6.º da CEDH (6) justamente por razão da garantia do recurso judicial) (7), surgindo o direito e processo penais comos seus referenciais subsidiários (artigos 32.º e 41.º RGCO). Relembremos, pois. Não sendo o direito contraordenacional processo penal em sentido estrito – isto é, direito constitucional aplicado -, nem por isso prescinde de certas garantias fundamentais (artigo 32.º, § 10.º da Constituição). E esta é que deve ser a «pedra de toque» para aferir em cada caso se a realização do ato processual de uma dada maneira (por uma dada «forma») vulnera (ou não) o(s) valor(es) que ela própria tem por função acautelar. Volvendo ao caso concreto. A omissão da notificação do mandatário da arguida da data e local da inquirição da testemunha arrolada pela própria defesa constitui, indubitavelmente um vício formal do procedimento. Esta afirmação nada terá de surpreendente, até porque se mostra alinhada com o posicionamento que a própria autoridade administrativa assumiu nos autos, conforme se pode ver no ofício n.º …/18, endereçado pela autoridade administrativa ao Posto Territorial de …/… (fls. 125), do qual se extrai o seguinte: «(…) Solicito a V.Ex. a inquirição das testemunhas CC, DD e BB, arroladas, no âmbito do processo de contraordenação em referência. As testemunhas deverão ser inquiridas sobre toda a matéria de defesa apresentada, juntando-se para o efeito cópia dos autos de notícia, bem como cópia da defesa apresentada. O mandatário da arguida (Dr. EE) deverá ser informado da data e hora da diligência, podendo estar presente em todos os atos conforme preceito na alínea f) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal» (itálico nosso).

Tudo normal. É esse precisamente o rito preconizado na Lei n.º 50/2006 (cf. artigos 43.º, 44.º, 49.º, § 1.º 1 e 50.º, § 4.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto), alinhado com os princípio referidos supra relativamente à natureza do ilícito contraordenacional e às garantias procedimentais que a Constituição da República (artigos 2.º, 20.º, § 1.º e 32.º, § 10.º), a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6.º) e a lei ordinária estabelecem relativamente ao arguido no processo sancionatório respetivo (artigos 33.º, 41.º e 50.º do RGCO e o CPP como lei subsidiária).

Relativamente ao direito de audiência e de defesa, expressamente referido no artigo 49.º, § 1.º na Lei n.º 50/2006, em termos de resto semelhantes aos previstos no artigo 50.º do RGCO, refere António Leones Dantas (8), que o mesmo constitui «uma componente estruturante dos procedimentos de natureza sancionatória e está presente, embora com manifestações diversas, nos procedimentos relativos às diversas componentes daquele direito sancionatório (…) Essa diversidade de conformações não pode pôr em causa o núcleo fundamental que constitui o objeto do processo, no direito de participar na conformação do caso, indicando meios de prova que possam pôr em causa a factualidade que constitui aquele objeto e no direito a intervir ativamente na conformação da decisão a proferir no processo, de que decorre o direito à participação na produção da prova que lhe serve de suporte.»

Ora, o exercício desse direito de audiência e de defesa, que incorpora o exercício do direito à prova, implica que quem arrolou testemunhas as possa inquirir, contra inquirir ou esclarecer, suscitar nulidades e fiscalizar a regularidade do ato (9), ainda que sujeito à direção de quem a ele preside.

Conforme bem refere o recorrido «o direito de defesa não se esgota na possibilidade de indicar os meios de prova que pretenda ver produzidos, mas também na possibilidade de participar na sua produção» – conforme decorre do artigo 61.º, § 1.º, al. g) CPP ex vi artigo 41.º, § 1.º RGCO.

Daí que a preterição de tal formalidade preconizada na lei (que nas circunstâncias do caso presente se iniciou com a ausência de convocação para a diligência de audição de testemunha de defesa) só se possa considerar sanada se não for reclamada pelo arguido logo que este dela tome conhecimento (121.º, § 1.º e 123.º, § 1.º CPP, ex vi artigo 41.º § 1.º RGCO). Ora, nos autos não há qualquer rasto de que em momento anterior à decisão sancionatória se tenha dado conhecimento (sequer) do auto respetivo à arguida. E não cominando a lei, expressamente, que tal preterição constitui nulidade (10) (na Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, no RGCO ou no CPP), impõe-se a sua qualificação como mera irregularidade, nos termos previstos no artigo 123.º, § 1.º CPP.

Neste retábulo preceitua-se, justamente, que «qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.» Ora, conforme bem se ajuizou na decisão recorrida, só o ato da impugnação judicial se deverá considerar momento relevante para conhecimento da referida irregularidade (artigos 123.º, § 1.º CPP - ex vi artigo 41.º, § 1.º RGCO), devendo o tribunal invalidar a instrução do procedimento, a partir da notificação omitida, na medida em que tal inquinou a subsequente decisão administrativa. Nada, cabe, pois, censurar à decisão recorrida.

5. Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em:

a) confirmar a decisão recorrida, por esta se mostrar irrepreensivelmente bem fundada no direito.

b) Sem custas (artigos 522.º, § 1.º CPP e 94.º, § 4.º RGC).

Évora, 24 de janeiro de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, parte geral, tomo I, 3.ª Edição, Gestlegal, 2019, pp. 186/187; e O Movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, 1983, pp. 317 ss., mormente pp. 323.

3 Inês Ferreira Leite, A autonomização do direito sancionatório administrativo, em especial, o direito contraordenacional, in «Contraordenações e contraordenações administrativas e fiscais», EBook, CEJ, 2015, pp. 38.

4 Inês Ferreira leite, A autonomização do direito sancionatório administrativo, em especial, o direito contraordenacional, in «Contraordenações e contraordenações administrativas e fiscais», EBook, CEJ, 2015, pp. 40/41.

5 Tratado de Derecho Penal, Parte General, 5.ª Ed., Duncker u. Humblot, Berlim, 1996, tradução de Miguel Olmedo Cardenete, Editorial Comares, Granada, 2002, pp. 64 (citado por Inês Ferreira leite, A autonomização do direito sancionatório administrativo, em especial, o direito contraordenacional, in «Contraordenações e contraordenações administrativas e fiscais», EBook, CEJ, 2015, pp. 35).

6 O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem vindo a confirmar a aplicação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, respeitante ao processo justo e equitativo, em processos contraordenacionais (Cf. Acórdão do TEDH de 27set2011, (Menarini Diagnóstics S.R.L. c. Itália, queixa 43509/08).

7 Sobre a natureza do regime das contraordenações e da sua estrutura procedimental cf. Nuno Brandão, Crimes e Contraordenações: da cisão à convergência material, pp. 19 ss., Coimbra Editora, 2016.

8 António Leones Dantas, Direito Processual das Contraordenações, 2023, Almedina, pp. 59/60.

9 Neste sentido cf. acórdão do TRLisboa, de 12nov2019, proc. 225/15.4YUSTR-M.L1-PICRS, Desemb. Ana Pessoa, acessível em www.dgsi.pt

10 Ao contrário do que sucede p. ex. no processo contraordenacional tributário, onde a mesma omissão está expressamente prevista como nulidade insuprível (cf. artigo 63.º, § 1.º, al. c) RGIT: «(...) a falta de notificação do despacho para audição e apresentação de defesa», que é de conhecimento oficioso e arguível «até a decisão se tornar definitiva» (§ 5.º) tendo como efeito a «anulação dos termos subsequentes do processo que deles dependam absolutamente» (§ 3.º). Não havendo razão cogitável para neste procedimento tal omissão estar simplesmente isenta de sanção - como preconizado pelo recorrente!