FURTO
RESTITUIÇÃO DA COISA
REPARAÇÃO DOS PREJUÍZOS
INICIATIVA DO AGENTE
Sumário

I. O artigo 206.º do Código Penal contém duas previsões: restituição das coisas ilegitimamente subtraídas; ou reparação integral do prejuízo causado – sem dano ilegítimo de terceiro, em ambos os casos se exigindo a iniciativa voluntária do agente. Verificada algumas destas condições, decorre obrigatória e automaticamente a atenuação especial da pena, a qual encontra justificação na concomitante diminuição das exigências de prevenção geral e das necessidades de prevenção especial, e deste modo, inevitavelmente, diminuição da necessidade da pena.
II. Essa atenuação especial diferencia-se da prevista no artigo 72.º, § 2.º, al. c) do Código Penal, seja porque ao contrário daquele esta não tem caráter obrigatório e automático, seja porque está sujeita a valoração judicis, para além de se exigir a existência de atos demonstrativos de um «arrependimento sincero do agente».

Texto Integral

I – Relatório
1.No 2.º Juízo (1) Local Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, de AA, nascido a …/1985 e de BB, nascido a …/1985, ambos com os sinais dos autos, estando ambos acusados da prática, em coautoria, de um crime de furto qualificado, previsto nos artigos 203.º, § 1.º e 204.º, § 2.º, al. e) do Código Penal (CP). A final o Tribunal proferiu sentença e, alterando a qualificação jurídica dos factos, condenou os arguidos como coautores de um crime de furto qualificado, previsto nos artigos 203.º, § 1.º e 204.º, § 1.º, al. f) CP, respetivamente nas penas seguintes: Lúcio da Conceição Vilhena, na pena de 400 dias de multa à razão diária de 5,5€; Luís Manuel Moreira, na pena de 300 dias de multa à razão diária de 6€;

2. Inconformado com a decisão, dela recorreram ambos os arguidos, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (extrato):

«1. Nenhuma censura nos merece a decisão de facto e o respetivo enquadramento jurídico, que os recorrentes aceitam.

2. O problema está na medida das penas concretamente aplicadas,

3. Que deveriam ter sido especialmente atenuadas, atenta a reparação voluntária do dano, materializada na restituição de todas as paletes subtraídas;

4. Sem prejuízo, as penas mostram-se excessivas e desproporcionadas;

5. Os recorrentes não registam antecedentes criminais por crimes contra o património;

6. Confessaram os factos e adotaram uma atitude totalmente colaborante, quer em julgamento, quer durante o inquérito, tendo restituído voluntariamente as paletes subtraídas;

7. Justifica-se, pois, uma relevante redução das penas;

8. Afigurando-se adequada e proporcional a fixação, para ambos os recorrentes, de uma pena de multa de 150 dias, fixando-se o quantitativo diário no mínimo legal atenta a difícil situação económica evidenciada.

9. Mostram-se violados os artigos 40º, 71º, 73º e 206º, nº 2, todos do Código Penal.

Nestes termos, deverá, em face dos humildes argumentos invocados, ser revogada a decisão revidenda, e substituída por outra em conformidade com as Motivações que seguiram.»

3. Admitido o recurso veio o Ministério Público responder, sintetizando deste modo as suas conclusões:

«(…)

d. A douta sentença condenatória nada diz quanto à atenuação da pena, prevista no artigo 206.º do Código Penal por que não se verificam os pressupostos do aludido artigo.

e. Resulta dos autos e das próprias declarações dos arguidos prestadas em sede de audiência de julgamento que, os arguidos só entregaram as paletes depois de terem sido contados pela GNR para o efeito – e aqui, diga-se a douta sentença só peca por ser omissa quanto a tal facto que deveria de constar do elenco dos fatos provados.

f. Deste modo, tendo os arguidos sido previamente contatados pela GNR para proceder à devolução ou entrega das paletes que haviam furtado, não se pode considerar tal restituição voluntária, porque não partiu dos arguidos.

g. Defendemos que embora o artigo 206.º do Código Penal que prevê a atenuação especial da pena, seja de aplicação obrigatária sempre que haja restituição da coisa ou objeto furtados, tal restituição tem de partir do(s) arguido(s), o que não sucedeu nos autos.

h. A atuação dos arguidos não revela qualquer intenção em repor a situação que existia antes do furto, nem arrependimento, ou manifestação de vontade sincera em reparar os danos causados, pelo que não pode ser valorada pelo menos, não da forma como os recorrentes pretendem.

i. No que concerne à medida da pena, sempre se diga que nada há a alterar, pois a pena aplicada a cada um dos arguidos mostra-se justa, adequada e proporcional, porque aplicada em observância dos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal. j. Para apurar a medida concreta das penas a aplicar aos arguidos, é necessário ter em consideração que o disposto nos artigos 40.º, n.º 2 e 71.º n.º 1 do Código Penal, resulta que a culpa constitui limite máximo inultrapassável da pena a determinar. Já a prevenção geral, principalmente positiva ou de integração, fornecerá o ponto ótimo e o limite mínimo que permite a reposição da confiança comunitária na validade da norma violada. Por último, dentro daqueles limites, devem atuar considerações de prevenção especial, isto é, de ressocialização do agente, devem ainda, ser consideradas na medida da pena, as demais circunstâncias favoráveis e desfavoráveis aos arguidos que se mostrem relevantes para a culpa ou para as exigências preventivas, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, como preceitua o artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.

k. No caso em análise, no respeitante às exigências de prevenção geral, considerasse que as mesmas são ponderosas atendendo à frequência com que este tipo de crime é praticado, apontando estas para uma reação penal que propenda para a severidade, como apontando na sentença recorrida.

l. No que concerne às exigências de prevenção especial, como se aponta na sentença recorrida, as mesmas são médias quanto ao arguido BB e médias a elevadas quanto ao arguido AA, considerando os antecedentes criminais dos arguidos - o arguido BB tem averbadas condenações por crime de condução sem habilitação legal e o arguido AA tem averbado no seu certificado de registo criminal condenação por crimes de natureza patrimonial, sendo que um se reporta à prática de um crime de furto qualificado. Quanto a este, verifica-se que foi aplicada uma pena de prisão suspensa na sua execução, o que nos leva a concluir que o arguido AA apresenta uma personalidade desconforme com o direito, com dificuldades em se orientar de acordo com as normas.

m. Face a todo o exposto, a pena aplicada ao arguido BB de 300 dias de multa, e ao arguido AA, de 400 dias de multa, mostram-se justas e adequadas às acentuadas exigências de prevenção geral e às elevadas as exigências de prevenção especial que se fazem sentir.

n. No que respeita ao quantitativo diário da pena de multa a aplicar aos arguidos, consideramos que não assiste razão aos recorrentes, que defendem a aplicação de 5 euros, porém, o mínimo legal está reservado para os pobres e indigentes, pessoas que não apresentam qualquer rendimento, o que não é o caso dos arguidos que auferem rendimentos provenientes do seu trabalho a que se juntam os abonos e o rendimento social de inserção no caso do arguido BB, sendo de destacar que o arguido AA não despende qualquer quantia a título de renda de casa.

o. Tudo ponderado, conclui-se que as penas se encontram corretamente determinadas, nenhum reparo merecem, por se entender serem proporcionais, adequadas e suficientes e que a sentença não violou as normas invocadas pelos recorrentes.»

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância de recurso, na vista a que alude o artigo 416.° do CPP, aderiu às considerações já realizadas na 1.ª instância.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, § 2.º do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. Âmbito do recurso

No presente caso a motivação dos recursos enuncia especificamente os fundamentos dos mesmos e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412.º CPP), deste modo permitindo que este Tribunal da Relação conheça das questões colocadas. As questões suscitadas pelo recorrente são as seguintes: i) Atenuação especial das penas, em decorrência do disposto nos artigos 206.º, § 2.º e 72.º CP; ii) E medida concreta das penas.

B. Na sentença recorrida o Tribunal a quo deu como provado e não provado o seguinte acervo factual:

«1. No dia 27.05.2018, pelas 11h47, em veículo automóvel de cor branca, de matrícula não concretamente apurada, os arguidos, que na ocasião se encontravam acompanhados por CC, nascido a …2003, filho do arguido AA, dirigiram-se às instalações da unidade fabril pertencente à sociedade comercial denominada «DD, S.A.», sita na …, Lote …, no concelho de …, com o intuito comum de fazer seus os objetos, bens e valores que encontrassem no local.

2. Uma vez aí chegados, introduziram-se no interior das instalações da fábrica.

3. De seguida, retiraram das referidas instalações fabris e levaram consigo, fazendo suas, 46 (quarenta e seis) paletes de madeira, no valor total de 322,00€, abandonando, de imediato, o local, no veículo acima indicado, no qual efetuaram o transporte das paletes.

4. Ao agir da forma supra descrita, os arguidos agiram com a intenção concertada e concretizada de fazer seus os objetos supra descritos, cujo valor conheciam, bem sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que atuavam contra a vontade do seu legítimo proprietário.

5. Agiram de forma livre, deliberada, concertada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas.

6. Os arguidos devolveram a totalidade das paletes à ofendida.

7. O arguido BB reside com a mulher e cinco filhos, sendo apenas um maior de idade, com 18 anos.

8. Vivem em casa arrendada pagando cerca de 160,00€ mensais a título de renda.

9. O arguido é vendedor ambulante auferindo cerca de 400,00€ a 500,00€ por mês.

10. A sua mulher não trabalha e auferem, para todos, rendimento social de inserção no valor de 500,00€ mensais.

11. A este valor, acrescem, ainda, 200,00€ por mês, que recebem a título de abono de família.

12. Como despesas fixas tem as habituais da economia de uma casa e que estima que ascendam a cerca de 140,00€ mensais.

13. O arguido tem a 4.ª classe.

14. O arguido AA é vendedor de fruta, auferindo cerca de 400,00€ por mês.

15. Vive na casa da sua mãe, com a mesma, com a sua mulher e os 5 filhos de ambos.

16. A sua mulher está desempregada.

17. Recebem cerca de 80,00€ mensais a título de abono de família para os três filhos.

18. O arguido tem a terceira classe.

19. O arguido BB já foi condenado:

a) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 02/05/2005, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, pela prática, em 18/08/2004 de um crime de condução sem habilitação legal e ainda, na coima única de 180,00€ pela prática de duas condenações estradais;

b) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 06/12/2006, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática de um crime de Ofensa à integridade física simples;

c) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 18/10/2010, na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal;

d) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 03/02/2011, na pena de 105 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal;

e) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 04/04/2011, na pena de 240 dias de multa, à taxa diária de 4,00€, pela prática de um crime de detenção ilegal de arma;

f) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 24/10/2011, na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 1 ano, sujeita a regime de prova, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal;

g) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 14/03/2014, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 6,00€ e na pena acessória de não conduzir veículos motorizados pelo período de 4meses e 15 dias e ainda na pena de 8 meses de prisão substituída por 240horas de trabalho a favor da comunidade, pela prática, em 07/12/2014 de, respetivamente, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e de um crime de condução sem habilitação legal;

h) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 04/07/2016, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 36 períodos de prisão, pela prática, em 28/03/2015 de um crime de condução sem habilitação legal;

i) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 29/10/2018, na pena de 9 meses de prisão, substituída por prisão em regime de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, pela prática, em 18/10/2015 de um crime de condução sem habilitação legal;

20. O arguido AA já foi condenado:

j) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 17/01/2008, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 3,00 €, pela prática, em 06/04/2008 de um crime de condução sem habilitação legal;

k) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 18/2/2010, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 7,00€, pela prática, em 23/11/2008 de um crime de detenção de arma proibida;

l) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 11/11/2010, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de 7,00€, pela prática, em 04/10/2010 de um crime de condução sem habilitação legal;

m) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 10/05/2011, na pena única de 17 meses de prisão, suspensa por igual período, pela prática, em 18/04/2008 de um crime de coação e de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada;

n) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 04/01/2013, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00€ pela prática, em 22/12/2009 de um crime de emissão de cheque sem provisão;

o) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 16/10/2013, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 5,00€ pela prática, em 23/04/2011 de quatro crimes de emissão de cheque sem provisão;

p) No âmbito do processo n.º …, por sentença transitada em julgado em 1/06/2019, na pena de dois anos e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova bem como ao envio para as instalações da ofendida, de um pedido de desculpa, pela prática, em 18/03/2018, de um crime de furto qualificado.»

Da motivação desta decisão consta o seguinte:

«O Tribunal formou a sua convicção essencialmente com base nas declarações dos arguidos e na visualização dos vídeos de vigilância da fábrica DD.

Efetivamente, os arguidos de modo espontâneo contaram o que sucedeu descrevendo os factos de modo semelhante ao que estava na acusação. Tanto que se chegou a consignar em ata a confissão livre integral e sem reservas dos arguidos.

Não obstante, durante a inquirição, por eles foi dito que entraram e levaram as paletes, mas que entraram por uma parte da rede que já estava aberta.

Por esse motivo, ouvimos as demais testemunhas arroladas, as quais prestaram declarações do sentido de que a rede estava fechada.

Na dúvida, o tribunal opou por visualizar as imagens de videovigilância e realmente, apesar de aparentemente a rede se encontrar intacta, os arguidos removeram-na sem qualquer tipo de dificuldade, e sem que cortassem alguma coisa, dando ideia, quase, que estariam simplesmente a abrir uma porta que estivesse apenas no trinco.

Por este motivo, o tribunal deu como provados todos os factos constantes da acusação, à exceção do facto que se refere à forma de retirada da rede.

Para prova dos factos relativos à situação socioeconómica do arguido o Tribunal levou em consideração as suas declarações, que nesta parte se consideraram credíveis por espontâneas e por não haver qualquer elemento nos autos que as infirmem.

Quanto aos antecedentes criminais do arguido o Tribunal levou em consideração o certificado do registo criminal junto aos autos.»

C. Apreciando

C.1 Da atenuação especial por restituição dos bens subtraídos

Não vem questionada a matéria de facto estabelecida, nem a qualificação jurídico-penal dela feita, nem por último a escolha da pena de multa. Tudo isso é assente. As questões que se colocam cingem-se à atenuação especial prevista no § 2.º do artigo 206.º CP e à medida concreta das penas. Pretendem os recorrentes. Em primeiro lugar, o beneficio da atenuação especial prevista no § 2.º do artigo 206.º CP, porquanto, conforme referem, repararam voluntariamente o dano sofrido pela ofendida, o que se terá materializado na restituição de todas as paletes subtraídas. Por seu turno, o Ministério Público assinala que considera, igualmente, que a atenuação especial da pena referida no artigo 206.º CP é sempre obrigatária quando houver restituição da coisa ou objeto furtados, mas que tal restituição tem de partir dos arguidos. O que no caso presente não sucedeu, porquanto os arguidos só devolveram as paletes subtraídas à ofendida depois de terem sido contactados pela GNR nesse exato sentido. E acrescenta que isso mesmo resulta, desde logo, das declarações dos arguidos, prestadas na audiência.

Os arguidos/recorrentes não têm razão.

Sob a epígrafe «restituição ou reparação» dispõe-se no § 2.º artigo 206.º CP, que:

«2. Quando a coisa ou o animal furtados ou ilegitimamente apropriados forem restituídos, ou tiver lugar a reparação integral do prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.

Este normativo encerra duas previsões (restituição das coisas ilegitimamente subtraídas ou reparação integral do prejuízo causado – sem dano ilegítimo de terceiro), na verificação das quais, decorre obrigatória e automaticamente a atenuação especial da pena, a qual encontra justificação na concomitante diminuição das exigências de prevenção geral e das necessidades de prevenção especial, e deste modo, inevitavelmente, diminuição da necessidade da pena. (2) Contrariamente ao que parecem preconizar recorrentes e recorrido, esta atenuação especial, diferencia-se da prevista no artigo 72.º, § 2.º, al. c) do mesmo compêndio normativo, a qual a mais de não ter caráter obrigatório e automático, está sujeita a valoração judicis, para além de se exigirem atos demonstrativos de um «arrependimento sincero do agente». Seguro é que quer para a atenuação especial do artigo 206.º, § 2.º, quer para a que se prevê na al. c) do § 2.º do artigo 72.º CP, se exige a iniciativa voluntária do agente. (3) O que, como bem lembra o Ministério Público e se documenta na ata da audiência, aqui não sucedeu, porquanto a devolução das paletes à ofendida foi concertada entre a autoridade policial e os arguidos. O que significa que a atuação destes foi condicionada e controlada por aquela, que de outro modo procederia à apreensão dos bens subtraídos. Com efeito, a «seca» afirmação do ponto 6.º do acervo fáctico provado da sentença recorrida, só por si, não revela a verificação de nenhuma das previsões normativas do § 2.º do artigo 206.º CP. Diz de menos. Mas demandando a razão de assim ser, isto é, procurando compreender por que motivo a afirmação do acontecido o foi daquele modo singelo, constata-se que assim terá sido porque nada mais havia para afirmar. Realmente os arguidos «devolveram a totalidade das paletes à ofendida» (facto afirmado), mas isso só relevaria para o efeito pretendido no recurso, se estivesse afirmado (provado) algo demonstrativo da razão de ser do instituto que se pretende mobilizar. E não está. Sendo por essa razão, justamente, que a possibilidade de aplicação daquele normativo ao presente caso não foi sequer considerada na sentença.

C.2 Da medida das penas

Os recorrentes consideram que as penas concretas aplicadas se mostram excessivas e desproporcionadas, porquanto os recorrentes não registam antecedentes criminais por crimes contra o património; confessaram os factos e adotaram uma atitude totalmente colaborante tendo restituído voluntariamente as paletes subtraídas. Afigurando-se-lhes ajustada uma pena de multa de 150 dias e fixando-se o quantitativo diário no mínimo legal atenta a difícil situação económica evidenciada por ambos os recorrentes. Considerando que neste conspecto foram vulneradas as normas contidas nos artigos 40.º e 71.º CP.

Por seu turno o Ministério Público manifesta o entendimento que as penas fixadas são justas e adequadas às exigências de prevenção geral e de prevenção especial. E no concernente ao quantitativo diário da pena de multa, considera que o mínimo legal está reservado para os pobres e indigentes, o que não é o caso dos arguidos. Atentemos, antes de mais, que os recursos penais são remédios jurídicos, vocacionados para colmatar erros de julgamento, despistando ou corrigindo, cirurgicamente, eventuais erros in judicando (por violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (por violação de normas de direito processual), o que naturalmente abrange o iter decisório sobre a pena. (4) Daí que a sindicância da decisão nesta parte «não inclui a compressão da margem de apreciação livre reconhecida ao Tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar, sendo que a margem de liberdade do juiz de julgamento nos limites expostos, abrange todo o processo prático de decisão sobre a pena.» (5)

Vejamos, brevemente, quais são os princípios norteadores da escolha e medida das penas:

a)A finalidade das penas é a de proteger bens jurídicos e reintegrar o agente na sociedade, não podendo a pena exceder a medida da culpa do infrator (artigo 40.º CP); b) Sendo o crime cometido punível alternativamente com pena de prisão ou com pena de multa, o Tribunal deverá dar preferência a esta, desde que a mesma realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigos 70.º e 40.º CP); c) No concernente à determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, esta faz-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º do CP). Breve: dentre os limites fixados pela medida da culpa (o máximo inultrapassável de pena) e pelas exigências (comunitárias) de prevenção geral (o mínimo da pena exigível), são as necessidades de prevenção especial que determinam o quantum concreto da pena. Não vem questionada a opção preferencial seguida pelo Tribunal pela pena de multa, com isso se dando tradução concreta à previsão do artigo 70.º CP.

Atentemos agora nas circunstâncias particulares do caso e se o resultado a que chegou o Tribunal a quo no processo determinação da pena concreta se ajusta ao referido enquadramento normativo.

O Tribunal recorrido graduou as penas de multa a meio da moldura abstrata (arguido BB) e acima dessa mediana (arguido AA).

A base de que se parte é, naturalmente, a moldura abstrata prevista na lei, sendo atendíveis como parâmetros os limites fixados pela medida da culpa, pelas exigências de prevenção geral e as necessidades de prevenção especial. Traçando a culpa o limite máximo da pena concreta, já que a sua verdadeira função no sistema punitivo reside na incondicional proibição de excesso. Constituindo uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar. (6) Sendo depois as exigências de prevenção geral e as necessidades de prevenção especial que intervêm para determinar a medida concreta da pena: a primeira fixando o limite mínimo exigido para tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma que foi violada (sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime); e a segunda traduzindo a vertente positiva ou de socialização, a fixar em última instância (na medida necessária à prevenção da reincidência (7) - ajustando-se às necessidades de reintegração social do agente) a medida concreta da pena.

Nas circunstâncias do presente caso, para a graduação das penas o Tribunal cingiu-se à ponderação das seguintes circunstâncias, que aqui se resumem:

- agiram com dolo direto, sendo o seu grau de culpa elevado;

- mediano grau de ilicitude das condutas porquanto se inscrevem na factualidade típica prevista pelo artigo;

- são circunstâncias favoráveis aos arguidos, o facto de terem colaborado com o Tribunal e ainda, no que respeita ao arguido BB, o facto de ser a primeira condenação pela prática de crime contra o património;

- contra os mesmos depõem os respetivos registos criminais, demonstrando uma personalidade contrária ao direito.

Conforme preconiza a lei, «na determinação concreta da pena o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele» (artigo 72.º, § 2.º CP) Avulta constatar que o Tribunal recorrido não considerou (e consequentemente não valorou), como fatores relevantes para a graduação das penas aplicadas aos arguidos, os seguintes aspetos: - a recuperação dos bens pelo ofendido, que ficou sem nenhum prejuízo (o que não é de somenos na medida em que se cura de um crime cujo bem jurídico protegido é justamente o património); - o valor diminuto dos bens subtraídos (valiam apenas 322€); - a confissão dos factos e arrependimento genuínos (patentes na fundamentação de facto e na intenção da ofendida desistir da queixa – como consta da ata da audiência); - que os arguidos estão social e familiarmente inseridos; - e que vivem no limiar da sobrevivência (são pobres).

Todos estes factos constam do acervo probatório provado (ou vêm referidos na motivação de facto e – deveras – se têm de considerar integrados no referido acervo, por estarem indubitavelmente provados) não poderiam deixar de ser ponderados juntamente com os que o foram efetivamente pelo Tribunal a quo. Importa, pois, reponderar a graduação das penas e ajustá-las à dimensão do ilícito concreto, às suas circunstâncias de tempo, modo e lugar, e designadamente ao valor dos bens subtraídos, à sua integral recuperação, à confissão integral e sem reservas dos arguidos e às suas circunstâncias pessoais (estão integrados socialmente porque trabalham; e têm família que sustentam; sendo notoriamente pobres). O quantitativo diário varia entre 5€ e 500€, devendo o Tribunal fixá-lo em cada caso concreto em função da situação económica e financeira dos condenados e respetivos encargos pessoais (artigo 47.º, § 2.º CP). Ora quando alguém é pobre, como é patentemente o caso de ambos os arguidos (o que sendo tão claro seria ofensivo – para os próprios - detalhá-lo) o quantitativo diário não pode ir além do mínimo. Em suma: tudo ponderado, isto é, avaliando a medida da culpa (a censura ao agente da sua atitude interna juridicamente desaprovada por distante das exigências do dever-ser sociocomunitário) (8), as exigências de prevenção geral (gizando neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas) e as necessidades de prevenção especial (o necessário para afastar o condenado da delinquência e integrá-lo nos princípios e regras dominantes na comunidade) de cada um dos arguidos, a medida concreta da pena de multa do arguido AA deverá fixar-se em 200 dias, à razão diária de 5€; e a pena de BB deverá quedar-se nos 180 dias de multa, à razão diária de 5€.

O recurso é, pois, parcialmente, merecedor de provimento.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em:

a) dar parcial provimento ao recurso e, nessa medida, alterar a medida das penas aplicadas aos arguidos, pela prática, em coautoria, de um crime de furto qualificado, previsto nos artigos 203.º, § 1.º e 204.º, § 1.º, al. f) CP, condenando-os, respetivamente: - AA, na pena de 200 dias de multa, à razão diária de 5€; e - BB, na pena de 180 dias de multa, à razão diária de 5€.

b) Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP a contrario).

Évora, 24 de janeiro de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Neste sentido cf. Jorge de Figueiredo Dias e Susana Aires de Sousa, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, 2.ª edição, 2022, Gestlegal, pp. 138 a 141 e 145/146.

3 Neste sentido cf. Jorge de Figueiredo Dias e Susana Aires de Sousa, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, 2.ª edição, 2022, Gestlegal, pp. 146; e Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2017, Univ. Católica Editora, pp. 570 (ponto 7 da anotação ao artigo 206.º). Na jurisprudência, por todos, veja-se o acórdão deste TRÉvora, de 26nov2013, proc. 280/13.1PALGS.E1, Desemb. Proença da Costa; e acórdão do TRCoimbra, de 7/6/2017, proc. 95/16.5GACLB.C1, Desemb. Helena Bolieiro.

4 Neste sentido Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 295; Sérgio Gonçalves Poças, Revista Julgar, n.º 10, 2010, pp. 22; e na jurisp. (por todos) Ac. TRÉvora, de 16jun2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1 Des. Clemente Lima; Ac. TRCoimbra, de 5abr2017, proc. 47/5.2IDLRA.C1, Des. Olga Maurício; DSum. TRE, 20/2/2019, proc. 1862/17.8PAPTM.E1, Des. Ana Brito; Ac. TRLisboa, de 12jan2021, proc. 2127/19.6PBLSB.L1-5, Des. Paulo Barreto, todos disponíveis em www.dgsi.pt

5 DSum. TRE, 20/2/2019, Des. Ana Brito, proc. 1862/17.8PAPTM.E1 e também Ac. TRÉvora, de 16jun2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1. Des. Clemente Lima; e Ac. TRCoimbra, de 5abr2017, proc. 47/5.2IDLRA (estes dois indicados no parecer do Ministério Público junto deste Tribunal de recurso).

6 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2019, 3.ª ed., Gestlegal, pp. 94.

7 «Por reforço dos standards de comportamento e de interação na vida comunitária (condução da vida “de forma socialmente responsável”)» - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 74, 110 e 238 ss., Aequitas – Editorial Notícias, 1993. Também Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2020, pp. 42 e ss.

8 Jorge de Figueiredo Dias, Temas básicos da doutrina penal, 2001, Coimbra Editora, pp. 230.