FACTO NOTÓRIO
ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
CONTRATO-PROMESSA
Sumário


I – O facto de, em 31.3.20, apenas alguns cartórios notariais estarem a funcionar e só praticarem actos urgentes (testamentos e actos em que os outorgantes estivessem em perigo de vida) não é um facto notório.
II – Um dos requisitos para que a resolução ou modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias possa operar é o de que essas circunstâncias sejam comuns a ambos os contraentes.
III – Provado que a promitente-compradora celebrou o contrato-promessa de compra e venda de imóvel – cujo preço pretendia pagar, no acto da escritura, através de financiamento bancário e do produto da venda de um prédio de sua propriedade – com base na sua situação profissional e financeira e na expectativa da venda célere desse prédio, e não se demonstrando nem se indiciando que essas circunstâncias fossem, também, aquelas em que a promitente-vendedora fundou a sua decisão de contratar, não está verificado a aludido requisito.
IV - Ao celebrar um contrato-promessa, diferindo a celebração do contrato de compra e venda, a promitente-compradora não podia alijar o risco – sempre presente, em maior ou menor grau – de, no limite, perder o seu emprego nem podia ignorar o risco de não conseguir vender a sua casa em menos de dois meses, ao menos pelo preço esperado.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

AA propôs contra BB acção declarativa de condenação.

Alegou, em síntese, que: no dia 6.1.20, a autora comprometeu-se a comprar e a ré comprometeu-se a vender-lhe determinada fracção autónoma; como sinal e princípio de pagamento do preço de 270.000,00€, a autora entregou à ré a quantia de 10.000,00€; a escritura seria realizada até ao dia 31 de Março, mediante marcação da autora; no dia 6.1.20, a autora tinha uma situação profissional e financeira estável, que lhe permitia recorrer a empréstimo bancária para pagar o remanescente do preço; mercê da pandemia, a autora ficou abrangida pelo regime de lay-off, passando da retribuição líquida de 2.069,32€ para a retribuição líquida de 574,92€; por carta de 18.4.20, a autora resolveu o contrato-promessa por alteração anormal e superveniente das circunstâncias e pediu a devolução do sinal prestado; o que a ré não aceitou. A autora concluiu, pedindo que fosse declarada a resolução do contrato-promessa e a ré condenada a devolver-lhe a quantia de 10.000,00€, acrescida de juros de mora desde a data da resolução.

A ré contestou, defendendo que o caso não é subsumível à situação prevista no artigo 437º do Cód. Civ. e que, ainda que o fosse, a autora incumpriu definitivamente o contrato quando deixou de marcar a escritura de compra e venda até final de Março de 2020. Concluiu pela sua absolvição do pedido.

No âmbito da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, definido o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que absolveu a ré do pedido.

A autora interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1.ª Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo, o qual decidiu julgar totalmente improcedente a presente ação e, em consequência, decidiu absolver a recorrida BB do pedido contra esta deduzido;

2.ª Entende a recorrente que o Tribunal deveria ter levado ao elenco dos factos provados outros pontos da factualidade alegada pela recorrente na sua petição inicial, impondo-se, nessa medida, recorrer da matéria de facto;

3.ª Por se verificar, atento o teor da sentença sob recurso, que se trata de factualidade relevante para a boa decisão do litígio sub judice, entende a recorrente que a factualidade alegada nos artigos 75.º, 76.º, 77.º, e 78.º da petição inicial, deverá ser julgada provada e, nessa medida, integrar o elenco dos factos provados;

4.ª Com efeito, como se trata de factualidade pública e notória, a situação de crise pandémica que se viveu desde o início do ano de 2020 implicou uma radical alteração em todos os 39 quadrantes da vida de todos os cidadãos do globo, no que se incluíram, naturalmente, os serviços públicos;

5.ª Mais ainda, ao contrário daquele que parece ser o entendimento do tribunal a quo, essas alterações, no que concerne ao território nacional, não se começaram a sentir apenas a partir da primeira declaração de estado de emergência;

6.ª Na verdade, como não pode desconhecer este Venerando Tribunal, por se tratarem de factos públicos e notórios, os efeitos da pandemia mundial começaram a sentir-se em Portugal desde o início do mês de março de 2020, mais concretamente, desde o dia 02 de março de 2020, dia em que foram diagnosticados os dois primeiros casos de pessoas infetadas com Covid-19 em Portugal;

7.ª Nessa mesma data foi publicado o Despacho n.º 2836-A/2020, de 02 de março que determinou que os empregadores públicos elaborassem planos de contingência, e recomendou o recurso ao teletrabalho, o qual apenas deveria ser afastado por razões imperiosas de interesse público e recomendou, ainda, que se equacionasse a redução ou suspensão do período de atendimento;

8.ª Como também é do conhecimento público, durante o mês de março de 2020, os acontecimentos ditados pela evolução pandémica foram rápidos e totalmente imprevisíveis, tendo-se vivido tempos de absoluta incerteza na qual a realidade se encontrava sujeita a alterações diárias;

9.ª No que diz respeito aos serviços públicos, e ainda em momento prévio ao primeiro confinamento geral, verificaram-se variadíssimas situações de encerramento de serviços, por serem diagnosticados casos de Covid-19, nos quais se incluíram tribunais, câmaras municipais, conservatórias e, naturalmente, notários e lojas de cidadão;

10.ª A 10 de março de 2020, o Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e do Notariado (STRN) pedia à ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, o encerramento das Lojas do Cidadão por todo o país;

11.ª A 13 de março de 2020, foi publicado o Decreto-lei n.º 10-A/2020, estabelecendo medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia, prevendo-se que no caso de encerramento de instalações onde devam ser praticados atos processuais ou procedimentais no âmbito de processos e procedimentos regulados pelo Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, e demais legislação administrativa, ou de suspensão de atendimento presencial nessas instalações, por decisão de autoridade pública com fundamento no risco de contágio do COVID-19, considera-se suspenso o prazo para a prática do ato processual ou procedimental em causa a partir do dia do encerramento ou da suspensão do atendimento;

12.ª A 15 de março de 2020, foi publicado o Despacho n.º 3301-C/2020, determinando medidas de caráter extraordinário, temporário e transitório, ao nível dos serviços de atendimento aos cidadãos e empresas, designadamente impondo que o atendimento presencial ao público com fins não informativos fosse efetuado através de pré-agendamento, ficando, em regra, limitado aos serviços que não podem ser prestados por via eletrónica e aos atos qualificados como urgentes;

13.ª A 18 de março de 2020, dia em que foi declarado o primeiro estado de emergência, o Bastonário da Ordem dos Notários referia em entrevista ao jornal online Idealista que “Solicitámos a todos os notários que adiassem todas as diligências que estivessem marcadas, porque seria um risco continuarmos a ter movimentações de pessoas para os cartórios em processos que têm natureza urgente e que foram classificados pela Ordem como os testamentos e atos em que os outorgantes estejam em perigo de vida, e que solicitassem aos seus clientes que se abstivessem e adiassem todos os demais negócios jurídicos que tivessem de ser formalizados e não sejam urgentes.”;

14.ª Tendo sido publicado o Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, que determinou o dever geral de recolhimento domiciliário de todos os portugueses a partir das 00h00 do dia 22 de março de 2020;

15.ª A partir dessa data, os serviços de Registo e Notariado, os que não se encontravam encerrados, assumiram como prioridade a celebração de atos urgentes;

16.ª A 02 de abril de 2020 foi publicado o Decreto do Presidente da República n.º 17.º-A/2020, que renovou o estado de emergência e foi publicado o Decreto n.º 17.º-A/2020 que procedeu à regulamentação do estado de emergência, para além as restrições já implementadas, impôs limites à circulação durante o período da Páscoa, proibindo a circulação de pessoas para fora do concelho de residência habitual e proibindo os voos comerciais de passageiros de e para os aeroportos nacionais e estabeleceu a obrigatoriedade do regime de teletrabalho;

17.ª A 17 de abril foi publicado o Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, que procedeu à segunda renovação da declaração do estado de emergência e o Decreto n.º 2-C/2020, que procedeu à sua regulamentação, mantendo o dever geral de recolhimento;

18.ª Assim, quanto à factualidade alegada nos artigos 75.º a 78.º da petição inicial, terá que concluir-se que se tratam estes de factos públicos e notórios, não carecendo de alegação nem de prova, como preceitua o artigo 412.º, número 1., do Código de Processo Civil, devendo ser devidamente valorada pelo tribunal;

19.ª Não obstante, encontram-se suficientemente provados pelo documento a que se faz referência no artigo 76.º do articulado, designadamente a notícia de imprensa publicada no idealista/news, disponível em https://www.idealista.pt/news;

20.ª Pelo exposto, deverá a factualidade alegada nos artigos 75.º a 78.º da petição inicial ser julgada provada, passando a incluir-se no elenco dos factos provados;

21.ª Ora, face à factualidade julgada provada, entende a recorrente que as normas legais aplicáveis impõem, necessariamente, decisão diversa da proferida;

22.ª Discorda-se da sentença, em especial, quanto a dois pontos fundamentais para a decisão da causa:

a) Que à data da resolução do contrato-promessa se verificasse uma situação de mora imputável à recorrente; e

b) Que à data da resolução do contrato-promessa não se verificasse uma alteração das circunstâncias que, de acordo com o princípio da boa-fé, justificasse a resolução do contrato;

23.ª No contrato-promessa sub judice, como decorre da matéria de facto provada, as partes convencionaram, para além do mais, que a escritura pública de compra e venda do imóvel seria outorgada até ao dia 31 de março de 2020 (vide cláusula 4.ª, do contrato-promessa celebrado entre as partes e junto à petição inicial como documento número 1.), e que a marcação da escritura pública de compra e venda, no prazo estipulado, ficaria a cargo da recorrente;

24.ª Ora, nos termos do artigo 804.º, número 2., do Código Civil, o devedor apenas pode considerar-se constituído em mora quando a não realização da prestação no tempo devido decorra de causa que lhe seja imputável;

25.ª Assim, a recorrente apenas poderia considerar-se constituída em mora se pudesse concluir-se que a não marcação da escritura para a celebração do contrato definitivo no prazo estabelecido no contrato-promessa se deveu a causa que lhe fosse imputável;

26.ª Porém, não pode entender-se que assim seja;

27.ª Como se referiu supra, e como os Venerandos Desembargadores, colocados na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos, podem conhecer, a situação pandémica que teve início em janeiro de 2020, começou a produzir efeitos no continente Europeu no final do mês de fevereiro de 2020 e em território nacional no início do mês de março de 2020;

28.ª Esta situação evoluiu de uma forma inesperada, tendo levado à impossibilidade de realização de atos junto das Conservatórias e Notários (como é o caso das escrituras públicas), à exceção de atos urgentes, assim se considerando os testamentos e outros atos em que os outorgantes se encontrassem em perigo de vida;

29.ª Assim sendo, ao contrário do que se refere na sentença recorrida, forçoso será concluir-se que não se verificou mora da recorrente, dado que a não realização da escritura de compra e venda do imóvel, até ao termo do prazo para o efeito estabelecido, não se ficou a dever a qualquer causa que lhe pudesse ser imputada, mas antes a causas de força maior que a recorrente não poderia, de forma alguma, prever ou evitar;

30.ª No que concerne à alteração superveniente das circunstâncias, para que melhor se perceba o circunstancialismo que se verificou desde a data da celebração do contrato-promessa até à data em que a recorrente comunicou à recorrida a sua intenção de proceder à resolução do contrato, importa fazer-se um breve enquadramento;

31.ª Como decorre da matéria de facto provada, no dia 6 de janeiro de 2020, ou seja, na data da celebração do contrato-promessa de compra e venda sobre o imóvel já supra identificado, a recorrente encontrava-se numa situação profissional e financeira estável, sendo comissária/assistente de bordo na companhia de aviação TAP, há mais de 10 (dez) anos, com contrato por tempo indeterminado;

32.ª Detendo, por isso, condições adequadas e seguras para cumprir as obrigações assumidas no âmbito de tal contrato-promessa de compra e venda, designadamente, a obrigação de

celebração da escritura definitiva de compra e venda e a consequente obrigação de pagamento do preço do imóvel, o que faria através de recurso a financiamento bancário;

33.ª No início de janeiro de 2020, a recorrente era comissária/assistente de bordo na companhia aérea TAP e auferia mensalmente a quantia ilíquida de € 2.871,32 (dois mil, oitocentos e setenta e um euros e trinta e dois cêntimos), correspondente à quantia líquida mensal de € 2.069,32 (dois mil e sessenta e nove euros e trinta e dois cêntimos);

34.ª Por essa altura, o ramo da aviação civil corria extraordinariamente bem, devido à globalização, à intensificação crescente dos circuitos turísticos e ao crescimento exponencial de rotas e de passageiros;

35.ª O rendimento do trabalho auferido e a estabilidade da sua relação laboral trataram-se de circunstâncias fundamentais nos quais se alicerçou a decisão de contratar da recorrente;

36.ª Foi de forma totalmente inesperada que a recorrente se viu confrontada com os impactos da pandemia, o que a deixou, tal como aos milhões de pessoas no mundo, absolutamente consternada e alarmada;

37.ª Ao contrário do que parece entender-se na sentença recorrida, e como já se referiu, a vida dos portugueses não permaneceu inalterada até meados de março de 2020;

38.ª Na verdade, desde o início do mês de março de 2020, com o diagnóstico dos primeiros casos da doença Covid-19 em Portugal, logo no dia 2 de março de 2022, e já com as assustadoras notícias que chegavam diariamente de outros pontos do globo, incluindo de países europeus, designadamente de Itália, que se viveu na sociedade portuguesa em circunstâncias totalmente anómalas e altamente perturbadoras da certeza e tranquilidade da vida de todos os cidadãos;

39.ª Sendo do conhecimento público que o primeiro setor da economia a sofrer sérios impactos foi, precisamente, o setor da aviação civil, do qual a recorrente depende integralmente;

40.ª Com efeito, logo no dia 5 de março de 2020, a TAP anunciou que iria cancelar mais de mil voos em março e abril, como decorre da notícia publicada no jornal económico, disponível em https://jornaleconomico.pt/noticias/quebras-significativas-das-reservas-obriga-tap-a-cancelar-1000-voos-entre-marco-e-abril-555107;

41.ª A volatilidade vivida pelo setor da aviação civil foi tal que no dia 10 de março de 2020, foi publicado o Despacho n.º 386-C/2020, de 09 de março que suspendeu, a partir do dia 10 de março de 2020 todos os voos, de todas as companhias aéreas, com origem ou destino nas regiões de Itália mais afetadas pela pandemia, sendo elas Emilia-Romagna, Piemonte, Lombardia e Veneto, e no mesmo dia 10 de março de 2020 foi publicado outro Despacho que suspendeu, a partir do dia 11 de março, todos os voos com origem de Itália ou destino para Itália, desta feita abrangendo todo o país, pelo período de 14 dias;

42.ª Todos estes acontecimentos ocorreram em data anterior a 11 de março de 2020, dia em que, de modo totalmente inesperado, a ora recorrente se viu confrontada, com a inusitada declaração, pela Organização Mundial da Saúde, de pandemia global provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e pela doença COVID-19;

43.ª Três dias depois, como resulta da matéria de facto provada, na data em que a TAP celebrou 75 anos de existência, a recorrente foi confrontada com um comunicado do, à data, presidente da empresa, dirigido aos seus colaboradores, no qual se referia que “De 1945 para cá a TAP passou por períodos difíceis, mas a dimensão da crise atual não tem paralelo”;

44.ª Na sequência da declaração pandémica global, o Governo português, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 10-B/2020, de 16 de março, determinou a reposição do controlo das fronteiras portuguesas, determinando, ainda, a suspensão de todos os voos de todas as companhias aéreas com origem ou destino em Espanha;

45.ª Dois dias depois, no dia 18 de março de 2020, e pelo Despacho n.º 3247-A/2020, foi decidida a interdição do tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal de todos os voos de e para zonas fora da União Europeia;

46.ª Nesse mesmo dia 18 de março de 2020, foi declarado o primeiro estado de emergência em Portugal, em virtude da pandemia provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 e pela doença COVID-19;

47.ª A 19 de março de 2020, a TAP decidiu suspender a esmagadora maioria dos seus voos;

48.ª Na sequência da declaração da situação de estado de emergência, foi publicado, no dia 20 de março de 2020, o Decreto n.º 2-A/2020, que determinou o dever geral de recolhimento domiciliário para todos/as os/as cidadãos/ãs portugueses, o primeiro de vários grandes confinamentos;

49.ª Com a sua atividade drasticamente reduzida, a TAP, a 2 de abril de 2020, aderiu ao regime simplificado de lay-off, nos termos do disposto no Decreto-lei n.º 2-G/2020, de 26 de março, como resulta do teor do comunicado de 27 de abril de 2020, que se juntou com a petição inicial, como documento número 3;

50.ª A 9 de abril de 2020, a Organização Internacional do Trabalho, referia que “os cancelamentos e as restrições já afetaram o mercado de trabalho, incluindo a perda de postos de trabalho e medidas de redução de custos implementadas pelas companhias aéreas. A resposta do setor foi variada, desde imediata e unilateral, a ponderada e consultiva. Os efeitos da COVID-19 incluem, entre outros: Acordos sobre reduções das horas de trabalho; Acordos sobre reduções nos salários; Reduções salariais unilaterais e Acordos sobre licenças remuneradas e não remuneradas”;

51.ª A recorrente, abrangida pelo lay-off simplificado, sofreu uma drástica redução na sua remuneração mensal de € 2.069,32 (dois mil e sessenta e nove euros e trinta e dois cêntimos) líquidos para o montante líquido mensal de € 574,92 (quinhentos e setenta e quatro euros e noventa e dois cêntimos), ou seja, uma redução superior a 70% da sua remuneração;

52.ª Assim, a 18 de abril de 2020, data em que a recorrente remete a missiva à recorrida na qual refere que pretende proceder à resolução do contrato-promessa celebrado a 6 de

janeiro de 2020, estávamos já perante a segunda renovação da declaração do estado de emergência;

53.ª Como resulta da matéria de facto provada, a situação de regime simplificado de lay-off, que determinou uma perda de rendimentos pela recorrente superior a 70 %, manteve-se até setembro de 2020;

54.ª Sendo que, como se trata de factualidade julgada provada, a situação laboral, remuneratória e financeira da recorrente manteve-se absolutamente instável, o que fica amplamente demonstrado pelo facto de, em outubro de 2020, já não estando em situação de lay-off simplificado, a recorrente, por via da redução salarial por retoma da atividade, auferia em vez do valor líquido mensal de 2.069,32 que auferia em fevereiro de 2020, o valor líquido mensal de € 1.033,45 (mil e trinta e três euros e quarenta e cinco cêntimos), isto é, uma perda de rendimento na ordem dos 50%;

55.ª A grave crise financeira instalada na TAP determinou a elaboração e apresentação ao Governo de um Plano de Reestruturação da empresa, prevendo despedimentos e significativos cortes salariais;

56.ª Reduções salariais permanentes que serão, no caso da recorrente, a partir de 2021, no mínimo, de 25% sobre o valor da remuneração que auferia em fevereiro de 2020, data em que celebrou o contrato-promessa sub judice;

57.ª Feito o enquadramento supra, começará por referir-se que se concorda com a sentença recorrida no segmento em que se afirma que “para que a alteração das circunstâncias pressupostas pelos contraentes conduza à resolução do contrato ou à modificação do respetivo conteúdo, têm que se verificar cumulativamente os seguintes requisitos:

a) a alteração ocorrida não seja o desenvolvimento previsível de uma situação conhecida à data da celebração do contrato;

b) essa alteração torne o cumprimento da obrigação ofensivo dos princípios da boa fé e

c) não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.”;

58.ª Porém, ao contrário da conclusão alcançada na sentença recorrida, entende a recorrente que todos os pressupostos se encontram, evidentemente, preenchidos;

59.ª Com efeito, o artigo 437.º do Código Civil determina que “Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou a modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.”;

60.ª Conforme sufragado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 08.04.2021, proferido no processo número 19222/20.1T8LSB.L1-6, “IV - A crise pandémica resultante da doença COVID-19 constitui uma situação suscetível de integrar os pressupostos da resolução ou modificação dos contratos por alteração das circunstâncias, nos termos do art.º 437.º do Código Civil”;

61.ª Como se demonstrou no enquadramento supra, no setor da aviação civil, o impacto da pandemia no emprego foi imediato e significativo;

62.ª Pelo que, dependendo a recorrente dos rendimentos auferidos na qualidade de trabalhadora da TAP, a sua situação laboral e financeira foi, igualmente, impactada de imediato;

63.ª De resto, a recorrente logrou provar que no momento em que manifestou a sua decisão em resolver o contrato, com base na alteração das circunstâncias, as suas circunstâncias, profissionais e financeiras, circunstâncias em que fundou a decisão de contratar, encontravam-se já seriamente abaladas, senão mesmo comprometidas, em resultado dos efeitos que de imediato sofreu por efeito das medidas de contenção então adotadas em resultado do Covid-19;

64.ª Assim sendo, não era, pois, exigível à ora recorrente, por razões a que foi totalmente alheia, conforme matéria dada como assente, que assegurasse o cumprimento do contrato, quando não reunia tão pouco, resultado de circunstâncias anómalas, as condições financeiras para assegurar tal compromisso, atenta a redução de 70% da sua remuneração, que se verificou na sequência de ter sido abrangida pelo regime de lay-off simplificado;

65.ª É, pois, por demais óbvio que o circunstancialismo em que ambas as partes assentaram a intenção de contratar, sofreu uma alteração absolutamente anormal e imprevisível, provocando um grave dano a uma das partes, dada a sua abrupta e imprevisível insustentabilidade económica em assegurar os seus compromissos financeiros, nas condições supra descritas;

66.ª Sendo manifesto que essa alteração se tinha já produzido na esfera da recorrente na data em que esta comunicou à recorrida a sua intenção de resolver o contrato-promessa sub judice por alteração superveniente das circunstâncias;

67.ª Exigir à ora recorrente a celebração da escritura de compra e venda, no quando factual e circunstancial em apreço, seria absolutamente atentatório dos princípios da boa-fé;

68.ª Posto que, na verdade, a assunção das obrigações financeiras decorrentes da celebração de tal contrato, em tais condições, sempre comportariam para a ora recorrente um

acumular de uma avultada dívida de prestações ao banco, sem previsibilidade de qualquer viabilidade quanto ao momento em que se encontraria em condições para cobrir tal empréstimo bancário;

69.ª Aliás, entende a recorrente que o facto de o sinal ser, na perspetiva do tribunal a quo, de valor baixo (€ 10.000,00), mais reforça a posição da recorrente, dado que a sua devolução pela recorrida não comportaria para esta uma solução incompatível com os princípios da boa-fé;

70.ª Pelo que não podia, nem pode, concluir-se que in casu não é aplicável a resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias, tal como foi feito, com total ligeireza e incompreensível acolhimento do Tribunal a quo;

71.ª Bem pelo contrário, pois face à prova documental e testemunhal produzida nos presentes autos e dos factos dados como provados na respetiva sentença, decorre que se encontram integralmente preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação do regime previsto no art.º 437.º, n.º 1., do Código Civil, não sendo exigível, tão pouco, o cumprimento do contrato, por parte da ora recorrente, posto que tal exigência, a verificar-se, seria gravemente atentatória do princípio da boa-fé, à luz do artigo 762.º, do Código Civil;

72.ª Pelo que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser proferida decisão que julgue totalmente procedentes os pedidos deduzidos nos autos.

A ré apresentou contra-alegações, defendendo a improcedência do recurso.


*

A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:

1. No dia 6 de janeiro de 2020, a Autora AA, na qualidade de promitente compradora celebrou com a Ré BB, na qualidade de promitente vendedora, um acordo escrito denominado "Contrato-promessa de compra e venda" relativo à fração autónoma designada pela letra "G", sita no Edifício ..., ..., freguesia ..., concelho de Loulé, descrita na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º ...78, inscrita na respetiva matriz predial urbana com o n.º ...30, nos termos do qual "(…) a promitente-vendedora promete e obriga-se a vender, livre de quaisquer ónus ou encargos, à segunda contratante, a qual, por sua vez, promete e se obriga a comprar a supra identificada fração", sendo a escritura pública de compra e venda do imóvel outorgada até ao dia 31 de março de 2020, devendo ser agendada pela Autora, pelo preço total de € 270.000,00 que seria pago nos seguintes termos:

a) A título de sinal e princípio de pagamento, a Autora entregaria à Ré, na data da celebração do contrato-promessa, a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros);

b) O preço remanescente seria pago, pela Autora à Ré, na data da assinatura da escritura, mais acordando que "A não marcação ou a não comparência, pela segunda outorgante, da escritura (…) no prazo estipulado (…) por culpa imputável do mesmo, consubstancia o incumprimento definitivo do presente contrato", renunciando expressamente ao cumprimento das formalidades previstas no artigo 410°, n.º 3 do Código Civil, tal como resulta de fls. 52 a 54, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 1 ° a 4°, 6° e 7° da petição inicial).

2. No referido dia 6 de janeiro de 2020, a Autora procedeu ao pagamento à Ré do valor acordado de € 10.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento do preço (artigo 5° da petição inicial).

3. No dia 6 de janeiro de 2020, a Autora encontrava-se numa situação profissional e financeira estável, sendo comissária/assistente de bordo na companhia de aviação TAP, há mais de 10 anos, com contrato por tempo indeterminado (artigo 8° da petição inicial).

4. A Autora pretendia proceder ao pagamento do preço acordado com recurso a empréstimo bancário e à venda de um imóvel de que era proprietária (artigo 9° da petição inicial).

5. Financiamento bancário que previa, seguramente, conseguir suportar devido à estabilidade profissional e financeira de que, à data, usufruía (artigo 10° da petição inicial).

6. No início de janeiro de 2020, a Autora auferia mensalmente a quantia ilíquida de € 2.871,32, correspondente à quantia líquida mensal de € 2.069,32 (artigo 12° da petição inicial).

7. Por essa altura, o ramo da aviação civil corria extraordinariamente bem, devido à globalização, à intensificação crescente dos circuitos turísticos e ao crescimento exponencial de rotas e de passageiros (artigo 13° da petição inicial).

8. Pelo que a Autora se sentia segura no seu trabalho, tendo expetativas legítimas de progressão na carreira com o correspondente aumento salarial, até por comparação com os seus colegas mais velhos de profissão (artigo 14° da petição inicial).

9. Sentindo que o trabalho que desempenhava na TAP seria um emprego, senão para toda a vida, pelo menos que lhe permitia tomar decisões mais definitivas, tal como adquirir uma habitação própria permanente, condigna e adequada às suas necessidades pessoais (artigo 15° da petição inicial).

10. Inesperadamente, a Autora viu-se confrontada, em 11 de março de 2020, com a inusitada declaração, pela Organização Mundial da Saúde, de pandemia global provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 e pela doença COVID-19, o que deixou a Autora, tal como milhões de pessoas no mundo, absolutamente consternada e alarmada (artigo 17° da petição inicial).

11. Ainda não refeita da declaração da situação de pandemia global, a Autora, estupefacta e profundamente preocupada, viu ser decretado o primeiro estado de emergência e o primeiro confinamento em Portugal, mantendo, no entanto, como tantos outros milhões de pessoas, alguma esperança de que a situação se resolveria em breve (artigo 18° da petição inicial).

12. Na sequência da declaração pandémica global, o Governo Português, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 10-B/2020, de 16 de março, determinou a reposição do controlo das fronteiras portuguesas (artigo 21 ° da petição inicial).

13. No dia 18 de março de 2020, pelo Despacho n.º 3247-A/2020, foi decidida a interdição do tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal de todos os voos de e para zonas fora da União Europeia (artigo 22° da petição inicial).

14. Nesse mesmo dia 18 de março de 2020, foi declarado o primeiro estado de emergência em Portugal, em virtude da pandemia provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 e pela doença COVID-19 (artigo 23° da petição inicial).

15. Sendo que, na sequência da declaração da situação de estado de emergência, foi publicado, no dia 20 de março de 2020, o Decreto n.º 2-A/2020, que determinou o dever geral de recolhimento domiciliários para todos/as os/as cidadãos/ãs portugueses (artigo 24° da petição inicial).

16. Ou seja, o primeiro (de tantos outros subsequentes) "grande confinamento" (artigo 25° da petição inicial).

17. Em consequência da emergência sanitária e de saúde em curso, e tendo em conta as restrições determinadas pelo Estado português e pelos restantes Estados do mundo, a entidade empregadora da Autora, a TAP, decidiu, em meados de março de 2020, suspender a esmagadora maioria dos seus voos, emitindo um comunicado no qual explicava que a sua decisão havia sido tomada nas seguintes circunstâncias: "(…) após os sucessivos anúncios de restrições, como principal medida de contenção do Covid-19, por parte de vários Estados das geografias em que a companhia portuguesa opera, combinados com a acentuada queda da procura, fatores que têm gerado inúmeros e sucessivos cancelamentos de voos e suspensões de rotas, que têm vindo a ser comunicados pela TAP aos passageiros e público em geral", mais esclarecendo tal comunicado que: "(…) nas últimas 24 horas se verificaram evoluções significativas das condicionantes acima referidas e, em consequência, a TAP vai reduzir de forma expressiva a operação e parquear grande parte da sua frota de aviões" (artigos 26° e 27° da petição inicial).

18. Em consequência da suspensão dos voos e do decretamento de múltiplos confinamentos por todo o mundo, a ora Autora ficou, no âmbito da sua atividade profissional, abrangida pelo regime simplificado de lay-off, nos termos do disposto no Decreto-Lei 2-G/2020, de 26 de março (artigo 28° da petição inicial).

19. Sendo que este regime simplificado de lay-off se manteve até setembro de 2020 (artigo 29° da petição inicial).

20. Tendo o respetivo vencimento mensal sido reduzido do valor líquido mensal de € 2.069,32 (dois mil e sessenta e nove euros e trinta e dois cêntimos) para o valor líquido mensal de € 574,92 ao mês de julho de 2020 (artigo 31 ° da petição inicial).

21. Em 18 de abril de 2020, na sequência da situação supra descrita, e cuja duração ou permanência era absolutamente imprevisível, a Autora enviou à Ré uma carta, na qual informava que "(…) A atual situação de pandemia provocada pelo vírus Covid-19 declarada pela Organização Mundial de Saúde em 11 de março de 2020 e a situação de emergência nacional declarada em Portugal em 11 de março e renovada em 2 de Abril de 2020, com as inerentes restrições e obrigações de confinamento, conduziu o país (e o resto do mundo) a uma situação de paralisação, com impactos profundos na generalidade das atividades económicas, no setor laboral, imobiliário e financeiros, cujas repercussões a nível global indiciam uma crise económico-financeira à escala mundial, de magnitude exponencialmente superior à crise de 2008.

A presente situação e de calamidade pública, provocada pela pandemia de Covid-19, que nenhuma das partes poderia conhecer ou prever quando o contrato-promessa foi celebrado, consubstancia uma alteração anormal das circunstâncias que, no caso, impede de forma intransponível o cumprimento do contrato-promessa nos termos acordados.

Com efeito, conforme tive ocasião de informar anteriormente, devido à minha profissão de hospedeira, estou em isolamento profilático desde o dia 26/03/20220, data em que regressei de voo ...2 vindo de .... Entretanto, foi-me dado conhecimento pela minha entidade patronal, de que iria entrar em Layoff a partir de 2/04/2020, o que se traduzirá numa diminuição substancial do meu salário e consequente impossibilidade de proceder ao pagamento do empréstimo bancário que já tinha aprovado para compra do imóvel", invocando que, para pagar a totalidade do preço, por o empréstimo não cobrir a sua totalidade, precisava vender um imóvel em ..., o que tinha boas perspetivas de celeridade, mas que a pandemia provocou uma quebra abrupta das vendas de imóveis, o que não se prevê alteração a curto ou médio prazo, pelo que "Devido a esta alteração anormal das circunstâncias, a que todos somos alheios, a outorga da escritura e compra e venda implicaria uma disposição de fundos monetários que não possuo no presente momento e nem tenho condições económicas de poder aceder (pelos motivos atrás invocados) e que, face às atuais expetativas económicas, não me estarão acessíveis num futuro próximo. Nestes termos, lamentavelmente, não me resta outra alternativa senão proceder à resolução do contrato promessa celebrado em 6 de janeiro, solicitando a V Exa. a devolução da quantia entregue a título de sinal, no valor de Euros 10.000,00 (dez mil euros). (…), tal como resulta de fls. 55 e 56, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 33° a 35° da petição inicial).

22. Em resposta a essa carta, a Ré informou a Autora que não pretendia devolver o valor pago a título de sinal e que, para ela, se mantinha o negócio nos exatos termos convencionados no contrato-promessa de compra e venda celebrado entre ambas (artigo 36° da petição inicial).

23. Mantendo-se a situação laboral, remuneratória e financeira absolutamente instável da Autora, o que fica amplamente demonstrado pelo facto de, em outubro de 2020, já não estando em situação de lay-off simplificado, a Autora, e por via da redução salarial por retoma da atividade, auferia, em vez do valor líquido mensal de € 2.069,32, que auferia em fevereiro de 2020, o valor líquido mensal de € 1.033,45 (artigo 37° da petição inicial).

24. Inconformada com a posição assumida pela Ré, a Autora fez nova tentativa junto da Ré, desta vez através da sua mandatária, apelando a que esta tomasse em consideração as alterações ocorridas na sua vida, tal como resulta de fls. 41 a 45, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 38° da petição inicial).

25. A TAP, em consequência da pandemia, continuou em crise financeira, mas mais agravada, crise que desencadeou e vai continuar a desencadear uma série, ainda não quantificada, de despedimentos e de reduções salariais (artigo 40° da petição inicial).

26. O agravamento da situação de crise da TAP foi conhecida, pela Autora e pelos restantes trabalhadores, logo durante o mês de março de 2020, sendo que, no dia em que a TAP fez 75 anos, ou seja, no dia 14 de março, o, à data, Presidente da empresa, emitiu um comunicado dirigido aos colaboradores da TAP no qual consta: "De 1945 para cá a TAP passou por períodos difíceis, mas a dimensão da crise atual não tem paralelo". "(…) Além das profundas consequências na aviação e no turismo, vive-se hoje a nível global uma crise com forte impacto na saúde dos povos e na sua economia". "(…) a TAP é a mais importante empresa nacional, pelo que vão ser mobilizadas todas as energias para garantir a atividade da TAP nas melhores condições e retomar o caminho que estava a ser trilhado até aqui, logo que possível, mas os sacrifícios não acabam no momento do regresso à normalidade sanitária global. Será ainda necessário que haja um regresso aos níveis de procura normais, sem esquecer que as consequências negativas na saúde financeira da indústria se repercutirão por muito tempo" (artigo 41 ° da petição inicial).

27. Sendo que o confronto com uma crise sem paralelo e a necessidade de fazer sacrifícios muito para além do regresso à normalidade sanitária global assustaram, ainda mais, a Autora, a qual decidiu que não teria, tão cedo, capacidade financeira para proceder à aquisição de uma habitação própria permanente (artigo 42° da petição inicial).

28. A grave crise financeira instalada na TAP determinou a elaboração e apresentação, ao Governo, de um Plano de Reestruturação da empresa, em data muito posterior a abril de 2020, prevendo despedimentos e significativos cortes salariais (artigo 44° da petição inicial).

29. Sendo que se encontram previstos cerca de 4.000 (quatro mil despedimentos), alguns deles já concretizados, e reduções significativas da massa salarial, igualmente já efetivadas (artigo 45° da petição inicial).

30. Reduções permanentes que serão, no caso da Autora, e a partir de 2021, no mínimo, de 25% sobre o valor da remuneração que auferia em fevereiro de 2020 (artigo 46° da petição inicial).

O 1º grau considerou que não se provara que o valor entregue à Ré a título de sinal tenha tido origem nas poupanças que a Autora tinha conseguido fazer até essa data, fruto do seu trabalho (artigo 110º da petição inicial).


*

I – A primeira questão a tratar respeita à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Pretende a apelante que, dada a sua relevância para a decisão da causa, a factualidade alegada nos artigos 75º a 78º da petição inicial passe a integrar o elenco dos factos provados, uma vez que se trata de factualidade pública e notória.

Nos artigos 75º e 78º, a autora dizia que não poderia ser considerada em mora porque, mesmo que quisesse, nunca teria podido marcar a escritura de compra e venda, dado que, em 31.3.20, apenas alguns cartórios notariais estavam a funcionar e só praticavam actos urgentes (testamentos e actos em que os outorgantes estivessem em perigo de vida). Nos artigos 76º e 77º, a autora transcrevia declarações prestadas ao idealista em 18.3.20 pelo Bastonário da Ordem dos Notários, alegadamente no sentido do mencionado funcionamento limitado.

As referidas declarações não têm, enquanto facto e por si só, qualquer importância para a decisão da causa, só assumindo alguma relevância enquanto meio de prova da factualidade (o mais é matéria conclusiva e de direito) que se traduz na circunstância de, em 31.3.20, apenas alguns cartórios notariais estarem a funcionar e só praticarem actos urgentes (testamentos e actos em que os outorgantes estivessem em perigo de vida).

Por notórios, entende a lei os factos que são do conhecimento geral (artigo 412º nº 1 do Cód. Proc. Civ.).

Ensina Alberto dos Reis (Código de Processo Civil anotado, Volume III, Coimbra Editora, Coimbra, 1985:259/261): “Facto notório é, por definição, facto conhecido. Mas não basta qualquer conhecimento; é indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é, elevado a tal grau de difusão, que o facto apareça, por assim dizer, revestido do carácter de certeza”. “Facto notório é, por essência, facto do conhecimento geral, facto conhecido do público”. “Conhecimento geral não é o mesmo que conhecimento por parte de todos os cidadãos portugueses; é o conhecimento por parte da grande maioria dos cidadãos do País, ou antes, por parte da massa de portugueses que possam considerar-se regularmente informados, isto é, acessíveis aos meios normais de informação”.

“Factos do conhecimento comum ou do conhecimento geral são aqueles que são conhecidos por grande parte dos indivíduos que podem considerar-se como regularmente informados, isto é, com possibilidade de acesso aos meios normais de informação; no entanto, para efeitos processuais têm de se considerar como do conhecimento geral somente aqueles factos que fazem parte do acervo comum da cultura média, ou seja, aqueles factos que são imediatamente apreensíveis sem necessidade de consulta ou de elaborados raciocínios” – Ac. RP de 12.6.90, in http://www.dgsi.pt JTRP00008237.

“Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição de cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas cognitivas, nem a juízos presuntivos” - Ac. RP de 12.12.00, in http://www.dgsi.pt JTRP00030216.

Sendo certo que, no contexto da pandemia, a actividade notarial não foi “proibida” – nem se vê como poderia ter sido sem graves consequências para a sociedade – nem legalmente sujeita a específicas restrições (para além daquelas que as medidas preventivas de contágio impuseram), não temos qualquer segurança em afirmar – sem uma indagação minuciosa – se houve cartórios notariais que suspenderam por completo a sua actividade e/ou se houve cartórios notariais que se limitaram à prática de certos actos e, em caso afirmativo, quais.

Não podendo, consequentemente, entender-se que a matéria em causa se traduz num facto notório, também as declarações prestadas pelo Bastonário da Ordem dos Notários não são suficientes para demonstrar tal factualidade. Em primeiro lugar, porque não dão conta de imposições, mas meras recomendações (como restrições no atendimento e adiamento de actos). Em segundo lugar, porque dão conta de estarem a ser realizados “todos os atos urgentes, que não podem esperar, como sejam habilitações de herdeiros, para se poderem movimentar contas ou gerir uma empresa, testamentos ou partilhas”, sendo certo que não há qualquer certeza de que a marcação e realização da escritura pública de compra e venda em causa não fosse considerada urgente, atentas as consequências contratuais da sua omissão.

Não há, pois, justificação para alterar a decisão sobre a matéria de facto.

II – A segunda questão a resolver prende-se com o instituo da resolução ou modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias (artigos 437º e 438º do Cód. Civ.).

A) Depois de qualificar como contrato-promessa de compra e venda o acordo celebrado entre autora e ré em 6 de Janeiro de 2020, a sentença considerou que a situação gerada pela pandemia consubstanciava uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes haviam fundado a decisão de contratar, de carácter imprevisível e não coberta pelos riscos próprios do contrato (artigo 437º do Cód. Civ.). Todavia, a 1ª instância entendeu, por um lado, que a autora estava em mora em 31.3.20 e, por outro, que a situação que se vivia em 18.4.20 não permitia justificar a resolução do contrato, mas apenas uma suspensão da sua eficácia, razão pela qual considerou ilícita a resolução, o que fez equivaler a recusa de cumprimento. Consequentemente, a sentença considerou que a ré tinha direito a fazer seu o sinal prestado.

B) Como modo de evitar ou mitigar a injustiça ou iniquidade da aplicação do princípio da estabilidade dos contratos (artigo 406º do Cód. Civ.) a certas situações contratuais cujo equilíbrio foi profundamente afectado mercê da alteração das circunstâncias existentes aquando da sua celebração, o legislador admitiu que o contrato pudesse ser resolvido ou modificado pela parte lesada (artigo 437º do Cód. Civ.).

A licitude do apelo a tal mecanismo pressupõe a verificação cumulativa de vários requisitos.

Em primeiro lugar, é necessário que as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tenham sofrido uma alteração anormal e não coberta pelos riscos próprios do contrato.

“Mas será preciso que «essas circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar» se apresentem como determinantes para todas elas? Segundo parece, as circunstâncias em análise devem ser objectivamente determinantes, quer dizer, devem encontrar-se com notoriedade ou consciência dos dois contraentes na base da celebração do negócio” – Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 1979:249.

“O critério da anormalidade da alteração coincide nos resultados, via de regra, com o da imprevisibilidade” – Almeida Costa, obra citada:250.

“As circunstâncias que sofreram a alteração anormal ou imprevisível são, necessariamente, aquelas que serviram de base à decisão de contratar, i.e., que constituam a base do negócio, que sejam objectivas e comuns a todos os contraentes (não respeitam a situações subjectivas da vida do devedor: como, por exemplo, uma alteração da sua situação económica) e em relação às quais as partes não detenham qualquer controlo. O acontecimento em si mesmo considerado pode assumir alguma previsibilidade, mas é necessário que a alteração do contrato seja imprevisível” - Sandra dos Reis Luís, “A alteração anormal das circunstâncias: o artigo 437.º do Código Civil e a situação pandémica: reflexos contratuais”, Julgar online, Julho de 2020, pág. 5.

“As circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar são as circunstâncias que determinaram as partes a contratar, de tal modo que, se fossem outras, não teriam contratado, ou tê-lo-iam feito, ou pretendido fazer, em termos diferentes e esta pressuposição ou aquela convicção inexacta tem de ser comum às duas partes, porque, se não se deu em relação a uma e ela se calou, deixa de merecer protecção. (…). A base do negócio na alteração das circunstâncias é bilateral: respeita simultaneamente aos dois contraentes. O art.437ºnº1 do CC fala, acentuadamente, das circunstâncias em que as partes (no plural) fundaram a decisão de contratar; não refere as circunstâncias em que o lesado com a superveniente modificação teria fundado a sua decisão de contratar.” – Ac. STJ de 10.1.13, http://www.dgsi.pt, Proc. nº 187/10.4TVLSB.L2.S1.

“Significa isto que a alteração diz respeito ao circunstancialismo que rodeia o contrato, objectivamente tomado como tal, isto é, como encontro de duas vontades, daí que não relevem superveniências a nível de aspirações subjectivas extracontratuais das partes, como não interessam modificações no campo das aspirações subjectivas contratuais de apenas uma delas; é o contrato que está em causa e não as esperanças de lucro ou de não perda de somente um dos intervenientes, quando a lógica do negócio não esteja em causa – cf. A. Menezes Cordeiro, Da Alteração das Circunstâncias, Lisboa, 1987, págs. 65 e 66.” – Ac. RL de 14.9.21, http://www.dgsi.pt, Proc. nº 5769/21.6T8LSB.L1-A-7

“É essencial, porém, que as circunstâncias anormalmente alteradas após a celebração do contrato tenham servido de base à decisão de contratar, facto que não ocorre, por exemplo quando um Banco desconta uma letra aceite por favor em benefício do sacador e a situação económica do aceitante piora consideravelmente, sem culpa dele, após o acto do aceite” – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, 3ª edição revista e actualizada:390.

Em segundo lugar, é exigido que, no circunstancialismo anormalmente alterado, o cumprimento do contrato seja lesivo para uma das partes, afectando gravemente os princípios da boa fé.

“A ideia a ter em conta, como ponto de partida, a respeito desta exigência, é a da perturbação do originário equilíbrio contratual. Muitas vezes, consistirá no facto de se haver tornado demasiado onerosa, numa perspectiva económica, a prestação de uma das partes. Em tal hipótese, não basta, pois, uma qualquer diferença: ela deve mostrar-se excessiva”. No preceito, também está contemplada “a hipótese de a alteração das circunstâncias envolver, para o lesado, grandes riscos pessoais ou excessivos sacrifícios de natureza não patrimonial” – Almeida Costa, obra citada:251.

“A boa fé introduz uma exigência de efectivo desequilíbrio nas prestações, ou seja, não basta que as situações sejam anormais ou imprevisíveis, é necessário que assumam um impacto real no equilíbrio das prestações, para além dos desequilíbrios tolerados pelo ordenamento jurídico a que, acima, me referia, ou seja, é necessário que ultrapasse o risco normal do contrato e que desequilibre a estabilidade contratual” – Sandra Luís, obra citada:6.

“Torna-se, assim, necessária a «verificação de dano grave, considerável ou mesmo descomunal»[12], de tal forma que a exigência da prestação pelo credor se torne ilegítima e abusiva[13], representando uma forma de abuso do direito por significativa ofensa à boa fé[14]” – Ac. STJ de 10.1.18, http://www.dgsi.pt, Proc. nº 16/14.0TVLSB.L1.S1.

“Quando uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar causa uma “turbação da equivalência” (ou seja, da igualdade de valor da prestação e da contraprestação, do equilíbrio contratual), a boa-fé justificaria a relevância da não verificação da base do negócio com vista à resolução ou modificação do contrato” – Ac. RL de 14.9.21, http://www.dgsi.pt, Proc. nº 5769/21.6T8LSB.L1-A-7.

Em terceiro lugar, o lesado só pode recorrer ao instituto se não estava em mora no momento em que a alteração de circunstâncias se verificou (artigo 438º do Cód. Civ.).

O que se compreende, porquanto “quem se coloca em mora não pode aspirar a qualquer protecção dos factos jurídicos supervenientes”. “Se, porém, a alteração das circunstâncias é anterior à mora, não é o simples facto de o devedor ter incorrido em mora que o impede de pedir a resolução ou modificação do contrato” – Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada:391.

C) Não se discute que a pandemia Covid19 tenha trazido ao mundo profundas e imprevisíveis alterações.

Na petição inicial, sustentava a autora que “as alterações provocadas pela pandemia global e pela grave crise na TAP afetaram, direta e certeiramente, as razões de estabilidade e segurança que determinaram a ora autora a celebrar, com a ré, o contrato-promessa de compra e venda, na medida em que, como consequência direta de tais eventos supervenientes, a estabilidade, a segurança (patrimonial e laboral) e as condições sociais e económicas da autora alteraram-se indelevelmente”, sendo certo que pretendia pagar o remanescente do preço do imóvel com recurso a crédito bancário. Na carta de resolução, a autora dava conta de que o empréstimo bancário tinha sido aprovado, mas a quebra de rendimentos não lhe permitia suportar as respectivas prestações, acrescentando que, mercê da contracção do mercado imobiliário, também não havia conseguido vender um prédio de que era proprietária e com cujo produto iria suportar parte do preço do imóvel prometido vender.

Provou-se que a autora pretendia proceder ao pagamento do preço acordado com recurso a empréstimo bancário e à venda de um imóvel de que era proprietária, prevendo conseguir suportar o financiamento bancário, devido à estabilidade profissional e financeira de que, à data, usufruía. Mas nada se demonstrou (até porque nada se alegou) no sentido de que as possibilidades financeiras da autora para suportar as prestações de um empréstimo bancário e a perspectiva de venda célere de um imóvel de que era proprietária constituíssem circunstâncias nas quais também a ré tivesse alicerçado a sua decisão de contratar. [Afigura-se-nos, aliás, que à ré era indiferente – era-lhe seguramente alheio - o modo como a autora tencionava obter o remanescente do preço, interessando-lhe tão só receber a quantia combinada, no prazo estipulado, em troca da transferência da propriedade do imóvel] E não se provou, sequer, que a ré conhecesse tal circunstancialismo.

Em suma, não pode afirmar-se que as ditas circunstâncias em que a autora fundou a sua decisão de contratar sejam comuns à ré. Ao invés, cremos que, quando a autora celebrou um contrato-promessa, diferindo a celebração do contrato de compra e venda, não podia alijar o risco – sempre presente, em maior ou menor grau – de, no limite, perder o seu emprego nem podia ignorar o risco de não conseguir vender a sua casa em menos de dois meses, ao menos pelo preço esperado.

Circunstâncias comuns a ambas as partes foram, sem dúvida, o valor de mercado do imóvel, o escalonamento do pagamento do preço e a data até à qual deveria celebrar-se o contrato prometido. Neste circunstancialismo assentava o equilíbrio das prestações convencionadas, que as partes entenderam corresponder aos seus interesses pessoais e patrimoniais, sendo certo que não se demonstrou, nomeadamente, que o valor do imóvel tenha sofrido uma variação – para mais ou para menos – significativa e inesperada (e era neste ponto fundamental que haveria de se equacionar o desequilíbrio das prestações).

Mesmo que assim não se entendesse, nem sequer temos por inequivocamente demonstrado que o cumprimento do contrato – leia-se a celebração do contrato de compra e venda – causasse à autora uma lesão insuportável. Com efeito, se sabemos que, no acto da escritura, a autora teria de entregar à ré 260.000,00€ e que, em Julho de 2020, a autora auferia 574,92€ líquidos mensais, já desconhecemos tudo o mais. Desconhecemos por que preço esperava a autora vender a casa de que era proprietária; desconhecemos qual a quantia que o Banco lhe emprestaria; desconhecemos quais as condições desse empréstimo, maxime qual o prazo do contrato e valor das prestações mensais; desconhecemos se a autora dispunha de outros bens ou rendimentos.

Do exposto decorre já, sem necessidade de mais aturada análise, que a situação retratada nos autos não se subsume aos requisitos exigidos no artigo 437º do Cód. Civ..

III – A terceira questão a decidir é a de saber se a autora tem direito a que a ré lhe devolva o sinal prestado.

Resulta da precedente conclusão que a resolução do contrato-promessa de que a autora lançou mão foi infundada, não podendo levar à aplicação do disposto nos artigos 433º e 289º nº 1 do Cód. Civ..

Ao invés, é a ré que tem direito a fazer seu o sinal prestado, seja por força do nº 1 da cláusula quinta do contrato-promessa (ponto 1.b) dos factos provados), seja porque a carta de 18.4.20 configura uma inequívoca recusa de cumprimento do contrato-promessa, a equivaler ao incumprimento definitivo do mesmo, em qualquer caso ao abrigo do nº 2 do artigo 442º do Cód. Civ..


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Por todo o exposto, acordamos em julgar improcedente a apelação e, em consequência, mantemos a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Évora, 25 de Janeiro de 2023


Maria da Graça Araújo

Maria Adelaide Domingos

José Penetra Lúcio