PROVA INDIRECTA
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Sumário


I. A prova indireta de determinados factos, por via das regras da experiência comum, desde que assente em factos provados que os suportem, não é vedada por lei, nem corresponde a raciocínios meramente especulativos, nada impedindo que os tribunais façam assentar os seus juízos valorativos naquelas máximas da experiência por via das chamadas presunções judiciais previstas nos artigos 349.º e 351.º do Código Civil.
II. Considerando que temos como factos conhecidos (e provados) que a viatura que caiu na falésia tinha como condutora CC, que andava sozinha a passear na zona de Lagos e Sagres; tendo a queda ocorrido junto ao Forte de Beliche, em Sagres; que a viatura foi vista a cair na falésia devagar, na zona onde o existe um estacionamento de terra batida; que o dito estacionamento junto do limite da falésia é protegido por um muro e uma cerca de madeira; que a queda da viatura se deu quando esta tinha a chave na ignição na posição de ligada e o travão de mão acionado para cima, na posição de travado, podemos inferir por via de presunção judicial, face às regras da experiência e com um grau de probabilidade elevadíssimo, o facto desconhecido, ou seja, que foi a condutora do veículo, a infeliz CC, quem ligou a ignição da viatura e acionou o travão, tendo a viatura se despenhado na falésia quando a condutora se encontrava dentro e ao comando da mesma, o que lhe causou os traumatismos donde sobreveio a morte, os quais foram direta e exclusivamente causados pela queda do veículo.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
AA e BB, intentaram ação declarativa, com processo comum, contra ZURICH INSURANCE PLC - SUCURSAL EM PORTUGAL pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de €15.000,00 correspondente ao capital seguro, em resultado do acidente que vitimou a filha, acrescido de juros de mora vencidos à taxa legal desde a citação até integral pagamento.
Para fundamentarem a sua pretensão, alegarem, em síntese, que são pais e únicos herdeiros de CC, sua filha.
No dia 31-12-2018, o veículo automóvel da marca ..., ... caiu na falésia junto ao Forte de Beliche, em Sagres, encontrando-se a sua filha ao volante do mesmo.
O cadáver da filha foi encontrado no dia 03-01-2019 numa praia localizada entre as praias do Telheiro e da Ponta Ruiva, em Sagres.
No âmbito das diligências de inquérito realizadas, a Polícia Judiciária excluiu a hipótese de homicídio e concluiu tratar-se de uma morte acidental.
A referida viatura automóvel estava abrangida por seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório celebrado com a Ré, titulado pela apólice n.º ...57, que cobre o risco morte ou invalidez permanente das pessoas seguras.

A Ré, na contestação, impugnou a factualidade vertida na petição inicial aduzindo que a investigação realizada não apurou que CC estava no interior da viatura aquando do despiste pela falésia no Forte de Beliche e que a mesma tenha tentado evitar o despiste da viatura pugnando, no mais, pela improcedência da ação.

Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou o pedido dos Autores totalmente procedente e, em consequência, condenou a Ré a pagar-lhes a quantia de €15.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos sobre aquele montante, desde a data da citação, ocorrida a 31-12-2020, e nos vincendos, até efetivo e integral pagamento.

A Ré interpôs recurso apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«1 – O Tribunal a quo, discutida a causa, julgou provados os factos enunciados em 1º e não provados os transcritos em 2º, das alegações, aqui dados por integralmente reproduzidos, sem necessidade de transcrição, salvo o devido respeito.
2 – Condenou a ré, com fundamento na matéria de facto provada e nas doutas considerações de direito que se alcançam da decisão, a pagar aos autores a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), acrescida de juros de mora à taxa de juros legal, vencidos sobre aquele montante, desde a data da citação, ocorrida a 31.12.2020, e nos vincendos sobre aquele montante, até efetivo e integral pagamento.
3 – A demandada, não se conformando com a douta sentença proferida, vem da mesma recorrer, impugnando a matéria de facto.
Impugnação da douta decisão de facto
4 – Considera a ré, com a merecida a vénia, a existência de erro de julgamento na apreciação da prova e, por isso, incorretamente julgada a matéria factual constante dos pontos 21. e 22. dos factos provados.
5 – O tribunal recorrido louvou-se, nos seus aspetos mais relevantes, para a decisão de facto, no depoimento das testemunhas DD, inspetor da Polícia Judiciária (declarações gravadas em suporte digital de 14:12:55 a 14:41:11, do dia 22.06.2022), EE, bombeiro (declarações gravadas em suporte digital de 14:42:04 a 14:55:23, do dia 22.06.2022) e FF (declarações gravadas em suporte digital de 14:56:56 a 15:18:02, do dia 22.06.2022) e no teor do “Auto de Notícia” e registo fotográfico, de fls. 18 v.º a 20; teor de “Auto de Diligências” e anexo fotográfico, de fls. 21 v.º a 23; teor de “Auto de Diligência”, de fls. 25 v.º e 26; teor de “Auto de Diligências”, de fls. 27 v.º; teor de “Auto de Notícia” e registo fotográfico, de fls. 28 v.º e 29; teor do “Relatório de Diligências Iniciais”, de fls. 30 v.º a 32; teor do “Relatório de Autópsia Médico-Legal”, de fls. 33 v.º e 34; teor do relatório final das análises efectuadas a CC e respetivo anexo, de fls. 35; teor do escrito e fotogramas, de fls. 36 v.º a 39; teor do relatório da polícia judiciária, de fls. 40 v.º a 44; teor do despacho de arquivamento do inquérito, de fls. 115 e 116.
6 – Os documentos dos autos, as declarações testemunhais e o teor dos indicados relatórios, conjugados entre si, não nos permitem concluir, com a certeza e objetividade necessárias e imprescindíveis para a boa decisão da causa, que a CC estava no interior da viatura aquando do despiste pela falésia no forte do Beliche, em Sagres, e que a morte da mesma resultou direta e exclusivamente da queda da referida viatura automóvel. Nada indicia sequer, e muito menos constitui prova, a existência de um acidente de viação de que resultou a morte da CC.
7 – Dão-se por integralmente reproduzidos os excertos dos depoimentos testemunhais, sem necessidade de os transcrever, com a merecida vénia.
8 – Na verdade, consigna-se que a Mma. Juíza na douta sentença refere o seguinte: Já no que respeita ao concreto processo dinâmico que culminou na queda do aludido veículo e na subsequente morte da condutora desse veículo é possível aventar uma miríade de hipóteses para tal ter sucedido (podemos, assim, alvitrar a possibilidade da condutora ter, de facto, por lapso, accionado a primeira mudança ao invés da marcha atrás, conforme aventado pelas testemunhas DD e FF; as condições atmosféricas adversas podem outrossim ter provocado a queda da viatura; o mau funcionamento da viatura, etc.). Estamos, porém, no campo das possibilidades, do especulativo, uma vez que a prova produzida não permite dar como provada o que, em concreto, despoletou a queda daquele veículo e causou a morte de CC.
9 – O Tribunal a quo não logrou apurar com a necessária certeza e objetividade as circunstâncias de modo como ocorreu o acidente, concluindo, e bem, com o devido respeito, que a prova produzida não permite dar como provado o que, em concreto, despoletou a queda daquele veículo e causou a morte da CC.
10 – É inteiramente conclusivo, porque sem qualquer fundamento, perante a inexistência de qualquer meio de prova seguro, julgar-se que a CC estivesse no interior da viatura aquando do despiste pela falésia no forte do Beliche, em Sagres e que o falecimento desta resultou direta e exclusivamente da queda da referida viatura automóvel.
11 – Perante todo o exposto, haverá de alterar-se a douta decisão de facto, dando como não provados os factos enunciados nos pontos 21. e 22., dos factos provados, julgando-se não provado que a CC estava no interior do veículo automóvel aquando do despiste pela falésia no forte do Beliche e que a sua morte resultou direta e exclusivamente da queda da referida viatura, absolvendo-se a ré do pedido.
Nestes termos e nos mais de Direito, deverá conceder-se provimento ao recurso, revogando-se a douta decisão de facto e substituindo-se por outra em que se julgue não provada a matéria de facto nos termos supra expostos e, em consequência, julgar-se a presente ação improcedente, por não provada, absolvendo-se a ré do pedido formulado pelos autores.»

Os Autores apresentaram resposta ao recurso, concluindo do seguinte modo:
«A. Não merece qualquer censura a sentença proferida pelo Tribunal a quo, que bem andou ao julgar provados os factos constantes dos pontos 21 («CC estava no interior da viatura aquando do despiste pela falésia no forte do Beliche») e 22 («a morte de CC resultou directa e exclusivamente da queda da referida viatura automóvel junto do forte do Beliche, em Sagres»), sendo o recurso interposto pela Apelante destituído de qualquer fundamento.
B. Ao contrário do que alega a Apelante, não existe qualquer erro na apreciação da prova, tendo o depoimento prestado pela testemunhas DD, que aqui se dá por reproduzido, sido altamente esclarecedor, tratando-se de um Inspector da Judiciária com uma carreira de várias décadas e de quem cujas declarações não podem ser tratadas com leviandade ou como meras opiniões, tratando-se, pois, do resultado dos indícios recolhidos em sede de inquérito, aleados ao vasto conhecimento, experiência e percepção desta testemunha.
C. O qual conclui, sem margem para dúvidas, que CC estava no interior do veículo despistado e que a sua morte foi acidental e resultou directa e exclusivamente da queda desta viatura.
D. Neste sentido encontram-se ainda os depoimentos das testemunhas EE e FF, que aqui se dão por reproduzidos.
E. Atendendo às declarações prestadas, de forma segura, objectiva e credível, por todas as testemunhas ouvidas, alicerçadas na prova documental junta, nomeadamente, o Auto de Notícia junto a fls. 18 vº. a 20, os Autos de Diligência juntos a fls. 21 vº. a 23, fls. 25 vº. a 26, fls. 27 vº, o Auto de Notícia junto a fls. 28 vº. a 29, o Relatório de Diligência Iniciais junto a fls. 30 vº. a 32, o Relatório de Autópsia Médico-Legal junto a fls. 33 vº. a 34 e o teor do Relatório subscrito pelo Inspector da Polícia Judiciária, DD, junto a fls. 40 vº a 44, não podem restar quaisquer dúvidas de que (i) a filha dos Autores encontrava-se no interior do veículo aquando do despiste, podendo, no entanto, ter saltado do mesmo, na tentativa de salvar a sua vida; e que (ii) a sua morte foi acidental e resultou directa e exclusivamente da queda desta viatura.
F. Não podendo senão considerar-se estes factos provados (pontos 21 e 22) e, por isso, devendo manter-se a decisão do Tribunal a quo.
G. E mesmo que não seja possível concluir com a absoluta e inequívoca certeza que CC estava no interior daquele veículo, o que apenas se concede por mera cautela de patrocínio, certo é que, analisados os factos, nomeadamente, aqueles aceites por ambas as Partes, não só se trata de uma hipótese altamente provável, como é muitíssimo mais provável do que qualquer uma das hipóteses avançadas pela Apelante.
H. Pelo que, em todo o caso, nenhum reparo haverá a fazer à decisão do Tribunal a quo, que bem andou ao considerar provados os factos descritos nos pontos 21 e 22 da sentença proferida.
TERMOS EM QUE deve ser negado provimento ao recurso da Apelante, confirmando-se a douta sentença proferida.»

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do recurso
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), imposta apreciar a impugnação da decisão de facto e se, por via da procedência da mesma, deve ser revogada a sentença quanto à condenação da Ré.

B- De Facto
FACTOS PROVADOS
«1. Os autores são os pais e os únicos herdeiros de CC;
2. No dia 30.12.2018, por ocasião da passagem de ano, CC, de nacionalidade espanhola, natural de Barcelona e com 27 anos de idade, viajou sozinha de Vigo, onde havia passado o Natal com os seus familiares, com destino a Lagos para celebrar o ano novo prevendo retornar a Vigo no dia 01.01.2019;
3. No dia 31.12.2018, a empresa Lagorent Rent a Car, Lda cedeu o gozo do veículo automóvel da marca ... ..., com matrícula ..-TF-.. a CC mediante contrapartida monetária;
4. Nesse mesmo dia, pelas 20:47 horas, através da linha de emergência 112, foi reportada a queda de uma viatura com um possível ocupante no interior junto do Forte do Beliche, em Sagres;
5. O veículo automóvel referido em 3. foi localizado na base da falésia pelas forças de emergência que se deslocaram ao local;
6. O estado do mar e as dificuldades de acesso ao local apenas permitiram que as forças de emergência se aproximassem desse veículo automóvel no dia 01.01.2019;
7. O veículo automóvel que estava na base da falésia foi identificado como sendo o cedido pela empresa Lagorent Rent a Car, Lda a CC;
8. No interior da referida viatura automóvel não foi encontrado qualquer cadáver;
9. A chave da viatura automóvel encontrava-se na ignição na posição de ligada e o travão de mão estava para cima, na posição de travado;
10. CC não era vista desde as 11:00 horas do dia 31.12.2018;
11. No dia 01.01.2019, CC não retornou a Vigo;
12. No dia 03.01.2019 foi encontrado a uma distância de aproximadamente três quilómetros em linha recta em relação ao local onde o veículo automóvel caiu, numa praia localizada entre as praias do Telheiro e da Ponta Ruiva, em Sagres, um cadáver que mais tarde veio a revelar-se ser de CC;
13. Do relatório de diligências realizado no âmbito do inquérito aberto com vista à determinação das causas de morte de CC consta que “todas as lesões observadas ao nível do hábito externo do cadáver, eram compatíveis com a queda de uma altura elevada e posterior embate nas rochas, por ação do mar” e “o estado geral do cadáver era também compatível com o tempo de submersão decorrido entre a data do desaparecimento da vítima (31.12.2018) e o momento do aparecimento do corpo (03.01.2019)”;
14. Nas conclusões do relatório de autópsia médico-legal consta que: “1.ª A morte de CC foi devida às lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, torácicas, abdominais e dos membros descritas”; 2.ª “tais lesões traumáticas constituem causa adequada de morte; 3.ª Estas e as restantes lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou actuando como tal, podendo ter sido devidas a acidente de viação - queda de arriba, como consta da informação; 4.ª A análise toxicológica feita revelou uma taxa de alcoolemia que reportada ao momento da morte era de vinte mais ou menos três centigramas por litro (0,20 + 0,03 g/l), sendo negativa para benzodiazepinas, substâncias medicamentosas e as drogas de abuso pesquisadas (opiáceos, cocaína, canábis, anfetaminas, metanfetaminas)”;
15. O terreno onde se verificou a queda do veículo automóvel referida em 4. é um estacionamento automóvel em terra batida;
16. Existe um muro de proteção a proteger o estacionamento referido em 15. do limite da falésia e uma cerca de protecção em madeira;
17. Nas conclusões do relatório que a polícia judiciária elaborou consta que: “Face ao apurado, encontra-se totalmente excluída a hipótese de estarmos em presença de uma morte de etiologia médico legal homicida. Todo o quadro acima apresentado, indicia que estaremos em presença de uma morte acidental. Em síntese: 1. familiares e amigos excluem liminarmente a hipótese de suicídio. A correlação dos indícios apurados, também levam a excluir essa possibilidade; 2. a CC era pouco hábil na condução de viaturas com mudanças tradicionais, como era o caso da viatura sinistrada; 3. na tarde/noite de 31.12.2008, estacionou o veículo junto a uma falésia muito alta, em frente a uma barreira de madeira; 4. quando entrou na viatura, ligou o motor e introduziu a 1ª mudança, em vez da marcha-atrás; 5. ao acelerar a viatura, terá derrubado a barreira de madeira (esta apresenta-se apenas derrubada e não destruída) e precipitado o veículo pela falésia; 6. desesperada, terá tentado travar a viatura (o travão de mão encontrava-se travado), e, posteriormente, saltado da mesma (daí ter sido encontrada dias depois, fora da viatura e apresentar lesões compatíveis com queda de uma altura elevada); 7. segundo testemunhas no local, a viatura caiu lentamente. Esse facto é compatível com a existência de alguns plásticos, pelo menos numa reentrância da falésia; 8. um eventual ato suicida, levaria seguramente a uma ação mais intensa por parte do seu autor, nomeadamente: uma maior aceleração da viatura, destruição e arrastamento da barreira de madeira, projeção da viatura a uma maior distância e não uma queda rente à falésia, não haveria ativação do travão de mão, etc…”;
18. À data do sinistro, a empresa Lagurent Rent a Car, Lda, proprietária do veículo automóvel “..-TF-..”, por acordo celebrado com a ré, havia transferido para esta a responsabilidade civil emergente da circulação do ..-TF-.., através da apólice n.º ...32 com uma cobertura de riscos de “Acidentes Pessoais Ocupantes (“Todos os Ocupantes”)” por via do qual ficou garantida a cobertura morte ou invalidez permanente com o capital seguro de €15.000,00;
19. A apólice referida em 23. “garante o pagamento das indemnizações fixadas nas condições particulares, em consequência de acidente acontecido às Pessoas Seguras: a) Quando se encontrem no interior do veículo designado nas Condições Particulares, quer esteja ou não em movimento; b) Entrando ou saindo do mesmo (…)”;
20. No ponto 027.4. das condições especiais do contrato de seguro sob a epígrafe “Ocupantes da Viatura - Exclusões” consta que “Não ficam garantidas, em caso algum, as indemnizações quando resultante de: “ a) Tufões, furacões, inundações, maremotos, abalos sísmicos, ciclones e outras convulsões da natureza; b) Roubo, greves e tumultos, atos de terrorismo e de sabotagem, rebelião e insurreição, revolução, guerra civil (…); c) Atos praticados dolosamente pela Pessoa Segura, pelo Segurado ou por pessoa por quem este seja civilmente responsável; d) Demência, estado de embriaguez do condutor ou dos ocupantes ou condução do veículo identificado nas Condições Particulares sob a influência do álcool, estupefacientes e drogas não prescritas clinicamente (…);”
21. CC estava no interior da viatura aquando do despiste pela falésia no forte do Beliche;
22. A morte de CC resultou directa e exclusivamente da queda da referida viatura automóvel junto do forte do Beliche, em Sagres;
23. No despacho de arquivamento do inquérito crime consta que: “(…)Das diligências efectuadas não se logrou recolher indícios suficientes que permitam concluir com segurança quais as circunstâncias concretas em que ocorreram os factos, eventualmente associada à queda no dia 31/12/2018, do veículo ligeiro de passageiros da marca ..., ..., com a matrícula ..-TF-.., na falécia do Forte do Beliche em Sagres, Concelho de Vila do Bispo e no desaparecimento da condutora daquele veículo, nomeadamente CC e no aparecimento, dia 03/01/2019, de um cadáver do sexo feminino na zona da Pedra Ruiva em Sagres, concelho de Vila do Bispo, identificada como sendo a condutora do veículo anteriormente identificada. Deste modo, não havendo outros elementos dos quais possamos retirar conclusão diferente, os presentes autos não permitem indiciar que a morte de CC tenha sido causada por terceiros. (…) Pelo exposto, por falta de indícios suficientes de que tenha ocorrido qualquer conduta criminosa, determino o arquivamento dos autos, nos termos do artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem prejuízo do disposto no art. 279.º do citado diploma.”»

FACTOS NÃO PROVADOS
«a) Que no interior da viatura automóvel foi encontrado um sapato que mais tarde veio a ser identificado como sendo de CC e uma agenda;
b) Que o terreno onde a viatura automóvel estava estacionada apresentava dois declives, um do muro da fortaleza até ao terreno adjacente e outro da estrada em asfalto até à falésia;
c) Que o muro de proteção do estacionamento do limite da falésia é em cimento e pedra;
d) Que a cerca de protecção em madeira encontrava-se com o poste do centro partido na base e apresentava marcas de apodrecimento do seu interior;
e) Que CC tentou evitar o despiste da viatura acionando o travão de mão;
f) Que CC ao aperceber-se da inevitabilidade do despiste e da queda da viatura pela falésia, abriu a porta e saltou do interior do veículo.»

C- De Direito
A Apelante vem impugnar a decisão de facto em relação aos pontos 21 e 22 dos factos provados alegando ter existido erro de julgamento por das provas produzidas não ter resultado provado, com certeza e objetividade necessárias e imprescindíveis à boa decisão da causa, que «CC estava no interior da viatura aquando do despiste pela falésia no forte do Beliche, em Sagres, e que a morte da mesma resultou direta e exclusivamente da queda da referida viatura automóvel. Nada indicia sequer, e muito menos constitui prova, a existência de um acidente de viação de que resultou a morte da CC».
Invoca para suportar a impugnação erro de julgamento na apreciação das provas produzidas, indicando concretamente:
- Os depoimentos das seguintes testemunhas: DD, Inspetor da Polícia Judiciária; EE, bombeiro, e de FF, ex-namorado da falecida;
- Os seguintes documentos: “Auto de Notícia” e registo fotográfico, de fls. 18 v.º a 20; teor de “Auto de Diligências” e anexo fotográfico, de fls. 21 v.º a 23; teor de “Auto de Diligência”, de fls. 25 v.º e 26; teor de “Auto de Diligências”, de fls. 27 v.º; teor de “Auto de Notícia” e registo fotográfico, de fls. 28 v.º e 29; teor do “Relatório de Diligências Iniciais”, de fls. 30 v.º a 32; teor do “Relatório de Autópsia Médico-Legal”, de fls. 33 v.º e 34; teor do relatório final das análises efetuadas a CC e respetivo anexo, de fls. 35; teor do escrito e fotogramas, de fls. 36 v.º a 39; teor do relatório da polícia judiciária, de fls. 40 v.º a 44; teor do despacho de arquivamento do inquérito, de fls. 115 e 116.
Tudo em ordem a dar-se como não provados os factos insertos nos referidos pontos 21 e 22 dos factos provados.
Por se encontrarem preenchidos os requisitos do artigo 640.º do CPC, e também considerando o que dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, procede-se à apreciação da impugnação da decisão de facto, levando em conta que se visa uma análise global e criteriosa dos meios de prova indicados pela recorrente, sem prejuízo da valoração global de todos os meios de prova carreados para os autos, de forma a esta segunda instância formar uma convicção própria sobre a matéria objeto da impugnação.[1]
Os factos em causa são os seguintes:
«21. CC estava no interior da viatura aquando do despiste pela falésia no forte do Beliche;
22. A morte de CC resultou directa e exclusivamente da queda da referida viatura automóvel junto do forte do Beliche, em Sagres; ».

A 1.ª instância na valoração da prova sobre esta concreta matéria de facto – que efetivamente é absolutamente decisiva para a decisão da causa – ponderou criticamente todos os documentos juntos aos autos (incluindo os documentos mencionados pela Apelante) e, ainda, os depoimentos ouvidos, escrevendo o seguinte:
«Os factos supra consignados nos pontos 4 a 12, 21 e 22 - relativos à queda do veículo e a CC seguir ao volante do mesmo aquando do despiste pela falésia no forte do Beliche, em Sagres, e, bem assim, a factualidade que se prende com a morte daquela ter resultada da queda da referida viatura automóvel - foram julgados provados com base no teor dos elementos documentais juntos aos autos, bem como na prova produzida em audiência de julgamento, apreciados criticamente.
Com efeito, da prova produzida resulta incontroverso que CC havia decidido passar a passagem de ano de 2018 para 2019 em Lagos; que viajou sozinha até Lagos e no dia 31.12.2018 foi-lhe cedido o gozo temporário do veículo automóvel da marca ... ..., com matrícula ..-TF-..; que esse veículo no dia 31.12.2018 encontrava-se em terreno de terra batida junto ao forte do Beliche, em Sagres, e pelas 20:47 horas foi reportada a queda dessa viatura na falésia. Mais se apurou que a referida viatura, após a queda na falésia, tinha a chave na ignição e o travão de mão encontrava-se accionado. Decorridos 3 dias dessa queda o corpo de CC veio a ser encontrado a cerca de 3 quilómetros daquele local.
Pois bem, no que concerne a CC ser a condutora daquele veículo aquando da queda na falésia atendeu-se, desde logo, ao depoimento da testemunha DD, inspector da polícia judiciária, que descreveu de modo genuíno, coerente e credível as diligências realizadas na sequência da notícia da queda do referido veículo automóvel nas proximidades da falésia da fortaleza de Sagres na noite da passagem de ano do ano de 2018. Esta testemunha explicou com rigor e detalhe o que o levou a concluir que se tratou de uma morte acidental asseverando ainda que se tratou de “um acto completamente involuntário”, o que se mostra descrito no teor do relatório de fls. 40 v.º a 43, por si subscrito, e do qual consta que: “1. familiares e amigos excluem liminarmente a hipótese de suicídio. A correlação dos indícios apurados, também levam a excluir essa possibilidade; 2. A CC era pouco hábil na condução de viaturas com mudanças tradicionais, como era o caso da viatura sinistrada; 3. Na tarde/noite de 31.12.2018, estacionou o veículo junto a uma falésia muito alta, em frente a uma barreira de madeira; 4. quando entrou na viatura, ligou o motor e introduziu a 1.ª mudança, em vez da marcha-atrás; 5. ao acelerar a viatura, terá derrubado a barreira de madeira (esta apresentava-se apenas derrubada e não destruída) e precipitado o veículo pela falésia; 6. desesperada, terá tentado travar a viatura (o travão de mão encontrava-se travado), e, posteriormente, saltado da mesma (daí ter sido encontrada dias depois, fora da viatura e apresentar lesões compatíveis com queda de uma altura elevada); 7. Segundo testemunhas no local, a viatura caiu lentamente. Esse facto é compatível com a existência de alguns plásticos, pelo menos numa reentrância da falésia; 8. um eventual ato suicida, levaria seguramente a uma acção mais intensa por parte do seu autor, nomeadamente: uma maior aceleração da viatura, destruição e arrastamento da barreira de madeira, projecção da viatura a uma maior distância e não uma queda rente à falésia, não haveria activação do travão de mão, etc…”, o que, em parte, resulta complementarmente demonstrado em face do teor do “Auto de Notícia” e do registo fotográfico, de fls. 28 v.º e 29 e, bem assim, do teor do “Relatório de Autópsia Médico-Legal”, de fls. 33 v.º e 34.
Para lá deste depoimento altamente esclarecedor atendeu-se ainda ao depoimento de EE que explicou o estado em que a viatura se encontrava após aquela queda e o depoimento de FF, ex-namorado de CC, que para lá de explicar as características pessoais de CC afiançou com sinceridade e objetividade as suas características enquanto condutora explicitando, neste particular, que era uma condutora “ruim”.
Atento o exposto, o tribunal considerando o relato das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, em conjugação com o teor do relatório de autópsia médico- legal, de fls. 33 v.º e 34, convenceu-se de forma segura, clara e esclarecida que CC estava no interior da viatura aquando do despiste pela falésia no forte do Beliche e face à prova produzida é de concluir que se tratou de uma morte acidental, ou seja, não propositada.
Já no que respeita ao concreto processo dinâmico que culminou na queda do aludido veículo e na subsequente morte da condutora desse veículo é possível aventar uma miríade de hipóteses para tal ter sucedido (podemos, assim, alvitrar a possibilidade da condutora ter, de facto, por lapso, accionado a primeira mudança ao invés da marcha atrás, conforme aventado pelas testemunhas DD e FF; as condições atmosféricas adversas podem outrossim ter provocado a queda da viatura; o mau funcionamento da viatura, etc.). Estamos, porém, no campo das possibilidades, do especulativo, uma vez que a prova produzida não permite dar como provada o que, em concreto, despoletou a queda daquele veículo e causou a morte de CC.
É dizer: não foi possível apurar o concreto processo dinâmico que culminou na queda do veículo sem prejuízo de ter resultado comprovado, conforme supra já evidenciado, que CC encontrava-se aos comandos desse veículo aquando da queda do mesmo, tudo razões pelas quais resultaram provados os factos consignados supra nos pontos 4 a 12, 21 e 22 do elenco dos factos provados e atenta a ausência de prova segura e objectiva resultaram não provados os factos supra consignados nas alíneas e) e f) do elenco dos factos não provados.»

A Apelante não fundamenta a impugnação numa errada perceção por parte do Tribunal a quo do teor dos depoimentos das testemunhas que menciona, mas sim, como já dito, na errada valoração dos mesmos, ou seja, no processo lógico dedutivo subjacente à análise crítica do valor probatório de tais depoimentos.
Também não está em causa a valoração que a 1.ª instância fez em relação àquilo que chamou processo dinâmico que culminou na queda do veículo e morte de CC, pois tais factos encontram-se dados como não provados sem oposição da recorrente (cfr. alíneas e) e f) dos factos não provados).
Da análise crítica e ponderada de todos os depoimentos prestados e documentos juntos aos autos, formou-se uma convicção própria com base no sentido evidenciado pelas provas à luz das regras da lógica e da experiência comum.
No caso, não há prova direta que nos diga com toda a segurança e certeza que CC se encontrava no interior da viatura aquando da queda desta na falésia junto ao Forte de Beliche e que a morte resultou direta e necessariamente dessa queda, pois ninguém presenciou o acontecimento na sua plenitude.
Ou seja, GG e HH, casal que estava na zona e se apercebeu da queda do veículo, dando o alerta imediatamente às autoridades, quando ouvidos em sede de investigação da Polícia Judiciária, disseram que estavam no interior da sua autocaravana quando ouviram o barulho de um impacto na vedação de madeira existente no local e que, quando olharam para o exterior, apenas viram a traseira de uma viatura branca que, derrubando aquela vedação de madeira, se despenhava pela falésia, não conseguindo ver se estava alguém dentro do veículo, embora não tivessem visto qualquer outra pessoa ou veículo no local (cfr. Relatório da Polícia Judiciária – doc. 13 junto com a p.i.).
Todos as demais intervenções com vista ao apuramento dos factos e diligências realizadas para apuramento do sucedido, são posteriores ao momento da queda do veículo.
Porém, as averiguações e conclusões da Polícia Judiciária exaradas no referido Relatório e o depoimento do Inspetor que dirigiu as investigações e elaborou o Relatório, não podem ser desconsideradas nos termos avançados pela Apelante, pois assentam na experiência de um profissional altamente qualificado e experiente em termos de investigação, bem como na análise que o mesmo fez dos factos investigados e seguramente apurados e, ainda, dos indícios e ilações que retirou dos mesmos em relação aos factos que foi impossível apurar diretamente.
Investigação que, primeiro lugar, levou-o à conclusão que não se tratava de uma ação criminosa e, em segundo lugar, que não se tratava de um ato voluntário (suicídio), mas de um infeliz acidente, que ocorreu quando a condutora se encontrava dentro do veículo, tendo o mesmo resvalado e se despenhado na falésia.
E na perceção e análise que temos dos factos, também se nos afigura que as regras da experiência, da lógica e da normalidade das coisas, indicam de forma que temos por minimamente credível e segura, que a infeliz CC se encontrava dentro da viatura quando a mesma se despenhou na falésia.
Desde logo, se estivesse fora da viatura, teria de ter sido vista pelas referidas testemunhas GG e HH, que são as pessoas que se encontravam no local no momento exato da queda do veículo, tanto assim que ainda viram a parte de trás do carro a cair, de forma lenta, tendo ouvido imediatamente antes o barulho do impacto do veículo na vedação.
Ora, é totalmente contra as regras da experiência supor que CC estava fora da viatura e não foi vista ou se deu a mostrar às pessoas que estavam no local e muito menos que antes da viatura se despenhar tenha caído (voluntariamente ou involuntariamente) na falésia e o carro, só por si, e ainda por cima com o travão de mão acionado, se tenha despenhado.
Acresce que a queda lenta do veículo mencionada por estas pessoas indicia, como bem referenciou a testemunha DD, que a manobra que determinou a queda não teve a intensidade que seria de esperar se houvesse intencionalidade de despenhar o veículo.
O acionamento do travão de mão é incompatível com tal possibilidade e indicia, outrossim, que a queda do veículo ocorreu apesar de ter sido acionado o mecanismo de travagem da viatura. Não estando provado (nem sequer alegado) que o veículo tinha um sistema de travagem automática do travão de mão, a conclusão inevitável é que foi acionado manualmente pela pessoa que se encontrava dentro do veículo.
Por outro lado, a testemunha EE, bombeiro, que foi o primeiro a chagar ao local onde a viatura ficou após a queda, disse que a chave da viatura estava na ignição e o travão de mão acionado, o que comprova que a viatura estava ligada aquando da queda, o que vai de encontro ao dito por GG e HH que declararam em sede de investigação da PJ que a viatura tinha as luzes ligadas aquando da queda.
Todo este circunstancialismo, confirma, a nosso ver, que a condutora estava dentro da viatura e a mesma se encontrava em condições de iniciar a marcha.
Aliadas estas circunstância ao depoimento da testemunha FF, ex-namorada da falecida, cuja relação durou cerca de oito anos (portanto, conhecia muito bem a falecida), que declarou que a mesma era uma «condutora ruim», que normalmente conduzia veículos automóveis com mudanças automáticas e que tinha dificuldades em meter a marcha atrás quando os carros tinham mudanças manuais, fica traçado um quadro circunstancial que indicia uma muito alta probabilidade da queda da viatura na falésia decorrer de um ato involuntário da condutora quando se encontrava ao comando da mesma.
Não vemos que haja outra maneira de ver este evento a não ser que se aventem cenários muito ou altamente improváveis, sem qualquer apoio nos factos apurados.
A prova indireta de determinados factos, por via das regras da experiência comum, desde que assente em factos provados que os suportem, não é vedada por lei, nem corresponde a raciocínios meramente especulativos, nada impedindo que os tribunais façam assentar os seus juízos valorativos naquelas máximas da experiência por via das chamadas presunções judiciais previstas nos artigos 349.º e 351.º do Código Civil.
Efetivamente, e como a jurisprudência tem assinalado, as regras da experiência embora não sejam, em face da nossa lei, meios de prova, são critérios de julgamento, subordinadas à razão e à lógica, sendo aplicáveis na resolução de questões de facto, fortalecendo o princípio da livre apreciação da prova e da descoberta da verdade material.
Nesse sentido, assinala o STJ, «(…) as regras da experiência não são meios de prova, instrumentos de obtenção de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além da hipótese a que respeitem, permitindo atingir continuidades, imediatamente, apreensivas nas correlações internas entre factos, conformes à lógica, sem incongruências para o homem médio e que, por isso, legitimam a afirmação de que dado facto é a natural consequência de outro, surgindo com toda a probabilidade forte, próxima da certeza, sem receio de se incorrer em injustiça, por não estar contaminado pela possibilidade física, mais ou menos arbitrária, impregnado de impressões vagas, dubitativas e incredíveis.»[2]
O STJ, no acórdão proferido em 06-10-2010, enuncia em que termos as regras da experiência e as presunções judiciais relevam em sede probatória, lendo-se no seu sumário:
«XI - A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos (…) consta do art. 349.º do CC. Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido. As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência: o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.
XII - Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar».
XIII - A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.
XIV - A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre a base e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção.
XV -Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
XVI - A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outros.»[3]
No caso em apreço, é essa a situação que se nos apresenta em face dos factos apurados, ou seja, considerando que temos como factos conhecidos (e provados) que a viatura que caiu na falésia tinha como condutora CC, que andava sozinha a passear na zona de Lagos e Sagres; tendo a queda ocorrido junto do Forte de Beliche, em Sagres; que a viatura foi vista a cair na falésia devagar, na zona onde o existe um estacionamento de terra batida; que o dito estacionamento junto do limite da falésia é protegido por um muro e uma cerca de madeira; que a queda da viatura se deu quando esta tinha a chave na ignição na posição de ligada e o travão de mão acionado para cima, na posição de travado, podemos inferir por via de presunção judicial, face às regras da experiência e com um grau de probabilidade elevadíssimo, o facto desconhecido, ou seja, que foi a condutora do veículo, a infeliz CC, quem ligou a ignição da viatura e acionou o travão, tendo a viatura se despenhado na falésia quando a condutora se encontrava dentro e ao comando da mesma, o que lhe causou os traumatismos donde sobreveio a morte, os quais foram direta e exclusivamente causados pela queda do veículo.
Nestes termos, nenhuma censura merece a decisão de facto, improcedendo a respetiva impugnação.
Considerando que a Apelante não questiona a matéria de direito aplicada aos factos provados e nada oficiosamente se descortina que justifique qualquer outro aditamento, resta julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.


III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 25-01-2023
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)

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[1] Sendo esse o escopo da reapreciação da decisão da impugnação da decisão de facto. Como refere o STJ, no Acórdão proferido em 15-12-2022, no proc. n.º 524/20.3T8BJA.E1.S1 (Oliveira Abreu), disponível em www.dgsi.pt, «(…) os poderes do Tribunal da Relação quanto à modificabilidade da decisão de facto estão enunciados no art.º 662º do Código de Processo Civil, sendo que este Tribunal não está dispensado do ónus de analisar criticamente a prova produzida, fundamentando a decisão de facto, tal como imposto pelo n.º 4 do art.º 607º do Código de Processo Civil, na medida em que, a fundamentação da decisão, maxime, a de facto, para além de ser decorrência do art.º 205º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, consubstancia causa de legitimidade e legitimação das decisões dos Tribunais, porquanto permite ao destinatário da decisão compreender os fundamentos da decisão e os meios de prova em que eles se alicerçam.»
[2] Ac. STJ, de 06-07-2011, proc. n.º 3612/07.6TBLRA.C2.S1 (Hélder Roque), em www.dgsi.pt
[3] O Acórdão foi proferido no proc. n.º 936/08.JAPRT (Henriques Gaspar), disponível em www.dgsi.pi, no âmbito de um processo penal, mas os princípios enunciados são os mesmos para o processo civil.