CONTRATO DE SEGURO DE ACIDENTES
MORTE DO SEGURADO
CAUSA DA MORTE
PROVA
CERTIFICADO DE ÓBITO
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I – O certificado de óbito emitido pelo médico não consubstancia um documento autêntico, nem produz prova plena quanto à causa da morte, sendo um documento particular sujeito à livre apreciação judicial.
II - Celebrado entre as partes contrato de seguro de acidentes, ao segurado incumbe o ónus da prova das alegadas ocorrências concretas em conformidade com as situações descritas nas cláusulas de cobertura do risco do contrato, como factos constitutivos do seu direito de indemnização, nos termos do nº 1 do artigo 342º do Código Civil.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
A intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra “Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A.”, peticionando a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de “€19.951,98 de indemnização, acrescida dos juros de mora vencidos desde a data do óbito”, no valor de €1.003,61, e dos juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese útil, que: no dia 11 de Abril de 2020, a cônjuge do Autor, MF, no decurso do almoço, engasgou-se com alimento sólido; em virtude desse acontecimento, MF veio a falecer devido a paragem cardio-respiratória e enfarte agudo de miocárdio, decorrente de um processo de asfixia resultante de engasgamento por alimento sólido; MF celebrou com a Ré, em 11 de Abril de 2002, um contrato de seguro de acidentes pessoais titulado pela apólice nº 7000702…., que se mantinha em vigor à data do respectivo óbito; e, o sinistro foi participado à Ré, que declinou a responsabilidade, referindo que “(…) a situação clínica apresentada configura uma situação de doença, não sendo consequência de acidente, pelo que não tem enquadramento nas garantias de apólice”.
A Ré contestou, excepcionando ilegitimidade activa; e impugnando, defendendo a improcedência da acção.
Para este último efeito, alegou, em síntese útil, que: o falecimento de MF deveu-se a causa natural e não a um acidente (entendido como qualquer acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a causa exterior e estranha à vontade da pessoa, conforme expressamente previsto na apólice), pelo que não se encontra coberto pelas garantias do contrato de seguro dos autos; nos termos do disposto no artigo 5º das condições gerais da apólice, sob a denominação “riscos absolutamente excluídos”, ficam excluídos das coberturas do presente contrato: “(...) 7. Quaisquer outras doenças, quando não se prove por diagnóstico médico inequívoco e indiscutível que são consequência direta do acidente”, pelo que, sempre terá o Autor de provar, mediante diagnóstico médico inequívoco e indiscutível, que a paragem cardio-respiratória e o enfarte agudo do miocárdio sofridos por MF foram consequência directa do alegado engasgamento por alimento sólido, sob pena de tal risco se considerar absolutamente excluído das coberturas do contrato de seguro em apreço nos autos.
Foi admitida a intervenção principal provocada (do lado activo) de APP, requerida pelo Autor.
Foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador, que julgou as partes legítimas (atenta a intervenção provocada de APP), e procedeu à identificação do objecto do litígio e à selecção dos temas de prova.
Efectuada a audiência final, foi proferida sentença, julgando totalmente procedente a acção.
Inconformada, a Ré recorre desta sentença, requerendo a revogação da mesma, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso vem interposto da sentença proferida a fls. no âmbito do processo supra identificado, a qual julgou parcialmente procedente a acção judicial intentada pelo A., …., tendo condenado a Ré, aqui recorrente, no pagamento do valor de €19.951,98, a título de indemnização, acrescido de juros de mora vencidos desde a data do óbito, que na presente data se contabilizam em €1.003,61 (…), bem como juros de mora vincendos (…) até ao efectivo e integral pagamento (…).
2. O objecto do presente recurso visa não só a alteração à matéria de direito, como também à matéria de facto, pelo que, pelas presentes alegações de recurso, vem a Ré, ora Recorrente:
a) Impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto nos termos previstos no n.º 1 do art.º 640.º do CPC, adiante especificando os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, assim como os concretos meios probatórios constantes no processo, que impõem decisão sobre o ponto da matéria de facto impugnado diversa da recorrida; indicando-se, ainda, a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre a questão de facto impugnada.
b) Pugnar pela alteração do teor da sentença proferida com base na alteração dos pontos de facto impugnados.
c) Pugnar pela alteração do teor da sentença proferida com base nos depoimentos prestados e na matéria dada como provada nos presentes autos e, bem assim, as normas jurídicas violadas e o sentido com que as normas que constituem fundamento jurídico da presente decisão deveriam ter sido interpretadas e concretamente aplicadas, na medida em que, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo interpretou de forma errónea normas determinantes na apreciação da responsabilidade da Recorrente.
3. A condenação da recorrente no pagamento da indemnização peticionada tem por base um contrato de seguro de acidentes pessoais titulado pela apólice n.º 7000702…., cuja tomadora era a falecida MF – cônjuge do A. recorrido.
4. No entendimento da ora Recorrente existem, nos autos, fundamentos de facto e de direito que impunham, no caso concreto, decisão em sentido diverso daquela que foi proferida pelo douto Tribunal a quo.
5. Na presente acção judicial discute-se qual a causa de morte da tomadora do seguro, MF, e, bem assim, se esta causa se enquadra na definição de “acidente”, nos termos do contrato de seguro celebrado, com a consequente assumpção de responsabilidade por parte da aqui Recorrente.
6. De facto, a sentença colocada em crise concluiu que a causa de morte se deveu a “asfixia mecânica”, motivo pelo qual a enquadrou na definição de “acidente” para efeitos da apólice contratada.
7. Face ao que acima se enunciou, incorreu o Tribunal a quo em errada interpretação e/ou aplicação do disposto nos artigos 342.º, n.º 1 do CC, 414.º do CPC, 1.º, 2.º e 5.º das Condições Gerais da Apólice – o que veremos mais adiante.
8. Dos autos e da discussão da causa (e com interesse para o presente recurso), entendeu o douto Tribunal a quo que resultaram provados os seguintes factos:
“1 - Em 11-IV-20 encontrava-se em vigor o contrato de seguro de acidentes pessoais titulado pela apólice 7000702…., cujo tomador era MF.
2 - No dia 11-IV-20 a esposa do A. MF almoçava com este e amigos em casa destes em Abrantes, quando se engasgou com alimento sólido.
3 - Apesar da assistência prestada no local pelos presentes, MF veio a falecer devido a paragem cardio-respiratória decorrente de um processo de asfixia resultante de engasgamento por alimento sólido.
4 - Em 11-IV-20 o Dr. ARP assinou o “Certificado de Óbito” (…) indicando, como ‘Causa da Morte’: “Parte I a) Paragem cardio-respiratória b) Enfarte Agudo do Miocárdio Parte II Hipertensão arterial”.
5 - Em 28-V-20 o Dr. ARP elaborou a “Declaração Médica” junta a fls 9 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).”
9. Dos autos e da discussão da causa, entendeu o douto Tribunal a quo que resultaram não provados os seguintes factos:
“8 – MF Faleceu devido a enfarte agudo do miocárdio decorrente de um processo de asfixia.
9 - A hipertensão arterial esteve relacionada com o enfarte agudo do miocárdio e paragem cardio-respiratória.
10 - MF morreu de causa natural, e não acidental.”
10. No entender da ora Recorrente existe uma flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis nos autos e a decisão recorrida.
11. A acção tem por base um contrato de seguro do ramo Acidentes Pessoais,  celebrado com a falecida, MF.
12. Nos termos do referido contrato, em caso de morte são beneficiários os herdeiros legais da pessoa segura – no caso, o aqui A.
13. O referido contrato de seguro de Acidentes Pessoais tem como coberturas base: Morte ou Invalidez Permanente.
14. Nos termos e para efeitos do Artigo 2.º das Condições Gerais da apólice, “pelo presente contrato, a Seguradora, garante o pagamento da correspondente indemnização, em consequência de acidente sofrido pela Pessoa Segura e desde que abrangido pelas coberturas principais de Morte ou Invalidez Permanente ou pelas coberturas contratadas.”.
15. Sendo que, nos termos do Artigo 1.º das Condições Gerais da apólice, entende-se por ACIDENTE: “o acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a causa exterior e estranha à vontade do Beneficiário, do Tomador de Seguro e da Pessoa Segura e que nesta origine lesões corporais, invalidez temporária ou permanente ou morte, clínica e objetivamente constatada.”.
16. Para que a morte da pessoa segura esteja coberta pelo contrato de seguro em apreço, cabe ao beneficiário demonstrar que se encontram verificados, cumulativamente, os seguintes pressupostos:
a) A morte da pessoa segura deveu-se a um acidente, ou seja, a um acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a causa exterior e estranha à vontade da Pessoa Segura e que nesta origine lesões corporais;
b) A existência de nexo de causalidade entre o evento e a lesão, e entre esta última e a morte.
17. Por outro lado, importa referir o que nos diz o Artigo 5.º das Condições Gerais da apólice: “Ficam excluídos das coberturas do contrato (…) quaisquer outras doenças, quando não se prove por diagnóstico médico inequívoco e indiscutível, que são consequência direta do acidente.”
18. O A. Recorrido alega que a tomadora do seguro faleceu devido a asfixia e paragem cárdio-respiratória provocada por engasgamento com alimento sólido.
19. No entanto – e de acordo com a prova produzida nestes autos – a Recorrente entende que resulta claro que a causa de morte da tomadora se ficou a dever a episódio de doença (causa natural), não tendo o óbito resultado de acidente, nos termos do contrato de seguro celebrado.
20. Encontra-se junto aos autos a Certidão de Óbito da falecida, onde constam como causa de morte, o seguinte:
“- Parte I:
a) paragem cardio respiratória
b) enfarte agudo do miocárdio
- Parte II:
Hipertensão arterial”
21. A Parte I representa a causa principal, e a Parte II representa a causa secundária.
22. A Certidão de Óbito não refere qualquer episódio de engasgamento e, muito menos, identifica tal episódio como sendo causa da morte.
23. Ademais, o médico que elaborou a Certidão de Óbito (testemunha ARP) não presenciou o episódio, tendo, apenas, recolhido depoimentos dos ali presentes e consultado o historial clínico da falecida. Aliás, é o que resulta da própria Certidão: “Causa de morte indicada com base em elementos de ordem clínica”.
24. O óbito ocorreu em 11.04.2020, tendo sido elaborada a Certidão de Óbito na mesma data.
25. Ocorre que o aqui A. junta aos autos uma Declaração do referido médico (pedida pelo próprio, para juntar aos presentes autos), datada de 28.05.2020 (17 dias antes de dar entrada em juízo a presente acção e mais de um mês após o óbito), onde o mesmo refere que a tomadora do seguro “faleceu devido a Paragem Cardio-Respiratória decorrente de um processo de asfixia após engasgamento por alimento sólido”.
26. Claramente, a afirmação constante da Declaração é absolutamente incoerente com o teor da Certidão de Óbito e, ainda, com o depoimento da testemunha.
27. Temos como certo o seguinte: a) o referido médico não refere na Certidão de Óbito qualquer episódio de engasgamento como causa da morte; b) o referido médico não presenciou a situação, pelo que, do eventual exame objectivo realizado no local à falecida, apenas poderá constatar a existência de asfixia, e já não da sua causa.
28. Tal como se encontra documentado nos presentes autos, a falecida sofria de hipertensão arterial, inclusivamente, sendo seguida em consulta particular de cardiologia.
29. Isso mesmo é o que consta da Informação Clínica junta aos autos, e subscrita por MC (médica de família da falecida e testemunha arrolada pela Recorrente).
30. Assim, e pela análise documental, conclui-se o seguinte em relação à falecida:
a) sofria de hipertensão arterial, sendo seguida em consulta particular de cardiologia;
b) sofreu episódio de enfarte do miocárdio com paragem cardio-respiratória, tal como referido na Certidão de Óbito.
Da análise dos depoimentos, fazemos enfoque no seguinte:
31. No dia e hora do evento, estiveram presentes as testemunhas, DR, JF e FS.
32. Resulta do depoimento da testemunha DR, que esta viu um pedaço de comida a ser retirado da boca da falecida. Ora, salvo o devido respeito, parece-nos, no mínimo, estranho, que as testemunhas JF e FS – ambas no local, perto da falecida naquele momento, juntamente com a testemunha DR – tenham afirmado que não viram qualquer pedaço de comida a ser retirado da boca da falecida. Assim, a afirmação da testemunha DR parece-nos forçada, afirmando ter visto algo que apenas a própria viu, e já não nenhum dos restantes presentes.
33. Por outro lado, a testemunha afirma que a falecida nunca se tinha engasgado antes, porquanto era autónoma na alimentação – o que nos leva a crer que houve um outro evento que não o engasgamento, e que esteve na origem do óbito.
34. Já a testemunha, JF diz que, quando reparou na falecida, já ela estava aflita, não tendo presenciado o momento do alegado engasgamento, mas apenas o momento em que a falecida aparentava falta de ar. Afirma a testemunha que a falecida não deitava comida da boca nessa altura, e que sempre fez as refeições sozinha, com autonomia, não lhe conhecendo episódios de engasgamento. A testemunha refere, inclusivamente, que: “com a aflição dela, só se podia ter engasgado” – pelo que, mesmo estando à frente da falecida naquele momento, não sabe afirmar se a mesma morreu por engasgamento, mas tão só que seria o mais lógico.
35. Quanto à testemunha, FS, esta refere que, desde sempre, acompanhava a falecida às consultas. Diz que não lhe conhece doenças cardíacas, chegando a afirmar que “ao especialista de coração nunca foi.”. Ora, tal como resulta do depoimento da médica de família da falecida, e também do historial clínico junto aos autos, esta era seguida em consulta particular de cardiologia, devido ao facto de sofrer de hipertensão. Mal se percebe como é que a pessoa que a levava sempre ao médico e que, várias vezes, ficava a tratar dela, afirma que a mesma nunca foi ao especialista do coração. No nosso entender, é um depoimento forçado e viciado, porquanto não corresponde à verdade.
36. Relativamente ao depoimento da Dra. MC (médica de família), julgamos que é, no mínimo, incoerente.
37. No seu depoimento, a referida testemunha declarou que segue a falecida em consulta de medicina geral e familiar, pelo menos, desde meados de 2014.
38. Mais declarou que a falecida apenas se dirigia ao Centro de Saúde para consultas de rotina e/ou episódios de infeções urinárias.
39. Referiu, ainda, que não se recorda de quaisquer episódios do foro cardíaco, embora admita que a falecida era hipertensa.
40. Referiu, ainda, que um doente hipertenso, desde que controlado com medicação, não terá maior probabilidade de desenvolver um episódio de enfarte do miocárdio, comparativamente com um doente não hipertenso – isto é, estando medicado, estará controlado. Ora, a testemunha referiu que, se um doente hipertenso estiver controlado com medicação, não deverá desenvolver um enfarte do miocárdio.
41. Do diário clínico de 07.01.2016, junto aos autos, consta que a falecida regista um episódio de desmaio com síncope.
42. Por outro lado, da referida documentação resulta que a falecida apresentava já um histórico de episódios de taquicardia, com desvio esquerdo AQRS.
43. A falecida tomava medicação para controlar a hipertensão (perindopril + indapamida), chegando a sentir tonturas quando tomava o inibace.
44. Inclusivamente, foi pedido – pelo médico cardiologista – um ecocardiograma por extrassístole supraventricular e HTA.
45. Atendendo ao teor dos diários clínicos da falecida, mal se percebe como é que a testemunha (médica de família), Dra. MC, apenas se recorda de episódios de infecções urinárias,
46. Bem como mal se percebe que a testemunha afirme que a falecida estava controlada e, portanto, a probabilidade de vir a sofrer um desmaio/enfarte do miocárdio, seria igual a outro doente qualquer mais jovem que não fosse hipertenso,
47. Sendo que a falecida estava altamente medicada para a hipertensão, tendo ocorrido, até, episódios de desmaio com síncope e tonturas.
48. Face ao exposto, consideramos o depoimento da testemunha Dra. MC confuso, sem correspondência com a realidade e com o caso concreto, e pouco claro relativamente à apreciação que faz da situação clínica da falecida.
49. A testemunha, Dr. ARP, foi o médico que elaborou a Certidão de Óbito, sendo que, quando chegou ao local, a testemunha já havia falecido. Esta testemunha é confusa no seu depoimento, pois claramente faz afirmações incoerentes entre si.
50. O que é facto é que a testemunha coloca na Certidão de Óbito Enfarte do Miocárdio, como causa da morte da falecida. No entanto, questionado sobre se a causa da morte da falecida foi engasgamento, responde que provavelmente.
51. No mais, a testemunha afirma que a hipertensão arterial pode contribuir para um enfarte do miocárdio. Aliás, quando é questionado à testemunha o motivo pelo qual colocou na Certidão de Óbito “Enfarte agudo do miocárdio”, é pela mesma dito que essa é uma causa muito provável da morte. No fundo, para esta testemunha, ambas as causas são “muito prováveis”, no entanto, a causa que atribui aquando da elaboração da Certidão, foi, sem dúvida, Enfarte agudo do miocárdio.
52. O médico afirma, também, que o que escreveu na tal Declaração (onde refere o engasgamento como causa de morte), foi aquilo que lhe foi informado pelas pessoas, na altura – isto é, não pode afirmar e não afirma, de facto, que a causa de morte tenha sido o episódio de engasgamento.
53. O que esta testemunha sabe, de certeza, e após exame objectivo no local, é que a falecida sofreu um enfarte agudo do miocárdio.
54. Já o depoimento da Dra. LB (médica que consultou e analisou toda a documentação clínica da falecida), foi um depoimento coerente e extremamente claro.
A testemunha explica de forma absolutamente inequívoca, que um engasgamento não leva a enfarte do miocárdio. Afirma, ainda que: “Quando há um enfarte, é natural que haja algum engasgamento, ou que as pessoas percebam esse engasgamento, porque a pessoa começa a ficar sufocada. O coração deixa de funcionar, acumula sangue nos pulmões, a pessoa começa a ficar com a sensação de falta de ar e que se engasga, e por disfunção do sistema autónomo há essa manifestação. (…) Há alguns sinais objectivos que o médico interpreta na altura, e o que ele interpretou foi no sentido de que seria um enfarte agudo do miocárdio, no contexto de uma pessoa que era hipertensa, com 83 anos. E foi isso que ele concluiu, foi isso que ele escreveu.”
55. Da conjugação da prova testemunhal e documental junta aos autos, parece não haver quaisquer dúvidas em afirmar que a falecida sofreu um episódio de enfarte agudo do miocárdio, quando se encontrava em convívio com os seus amigos, o que originou um corte abrupto de oxigénio no cérebro e, consequentemente, levou a paragem cardio-respiratória que lhe provocou a morte.
56. Este mesmo entendimento resulta dos seguintes depoimentos: DR (FICHEIRO_ 20220530142041_4488895_2871361), (4:35 – 5:27); JF (FICHEIRO_ 20220530143336_4488895_2871361), (5:52 – 6:00), (7:40 – 7.45), (10:31 –12:15); FS (FICHEIRO_ 20220530144909_4488895_2871361), (1:24 – 2:30), (3:38 – 3:58), (10:57 – 11:28); MC (FICHEIRO_20220530151654_4488895_2871361), (1:14 – 11:50), (13:22 – 14:06), (15:50 – 16:08); ARP (FICHEIRO_ 20220706145658_4488895_2871361), (2:45 – 13:00); LB (FICHEIRO_ 20220706151554_4488895_2871361), (1:30 – 7:15), (7:30 – 11:00).
57. Pelo que, entende a Recorrente que deverá ser alterado o ponto 3 dos FACTOS PROVADOS, passando o mesmo a ter a seguinte redacção:
“3 – Apesar da assistência prestada no local pelos presentes, MF veio a falecer devido a paragem cardio-respiratória decorrente de um enfarte agudo do miocárdio.”
58. Entende a Recorrente que deverão passar a elencar os FACTOS PROVADOS, os pontos 8, 9 e 10 dos factos não provados, passando a ter a seguinte redacção:
“8 – MF faleceu devido a enfarte agudo do miocárdio, que lhe provocou asfixia com paragem cardio-respiratória.
9 - O enfarte agudo do miocárdio sofrido por MF, esteve relacionada com o historial clínico de hipertensão arterial.
10 – MF morreu de causa natural, e não acidental.”
59. Assim sendo, entende a Recorrente que a resposta dada pelo douto Tribunal a quo conduziu a uma decisão injusta e incoerente com a factualidade efectivamente apurada nos autos – ademais, é bem evidente a parca fundamentação da decisão recorrida!
60. Ora, tendo em conta a prova produzida nos autos e, bem assim, o teor dos documentos juntos e dos depoimentos referidos supra, impunha-se decisão diversa daquela que o Tribunal a quo proferiu, com a consequente absolvição da Recorrente do pedido.
Nessa medida,
61. Salvo o devido respeito por melhor e douta opinião, ao decidir do modo como decidiu, o douto Tribunal a quo violou o âmbito de aplicação da norma consagrada nos artigos 342.º, n.º 1 do CC, 414.º do CPC, 1.º, 2.º e 5.º das Condições Gerais da Apólice, na medida em que impendia sobre o Autor a prova dos factos constitutivos do direito que alegava, in casu, que a morte da falecida se ficou a dever a um acidente e, portanto, configurava um sinistro coberto pela apólice contratada – o que não logrou o Autor demonstrar.
62. Assim, e ressalvando novamente o devido respeito, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, sendo a douta sentença proferida nos autos revogada, absolvendo-se a ora Recorrente de pagar ao Autor, A , qualquer montante a título de indemnização por via da apólice contratada.
63. Salvo melhor entendimento, a douta sentença, até pelos motivos já expostos, para além de ter feito uma errada análise dos depoimentos prestados pelas testemunhas acima identificadas em sede de audiência de discussão e julgamento, e também da documentação junta aos autos, fez uma incorrecta interpretação dos preceitos jurídicos e cláusulas contratuais a aplicar ao caso em concreto.
64. Tendo em conta a mencionada factualidade dada como provada, é do entendimento da Recorrente que a falecida morreu de causa natural e não devido a acidente – como definido nos termos da apólice contratada.
65. Com efeito, no presente caso, deveria o Tribunal a quo ter interpretado os artigos 342.º, n.º 1 do CC, 414.º do CPC, 1.º, 2.º e 5.º das Condições Gerais da Apólice, no sentido de não imputar à aqui Recorrente qualquer responsabilidade indemnizatória, porquanto o Autor não provou que a causa da morte ficou a dever-se a um acidente.
66. Deveria, assim, o Tribunal a quo, ter aplicado as cláusulas contratuais e os termos do contrato de seguro celebrado, no sentido de afastar a cobertura do caso em concreto, absolvendo do pedido a aqui Recorrente.
67. O ónus de prova de todos esses pressupostos, como factos constitutivos, que são, do direito a indemnização, incumbe ao Autor, nos termos dos artigos 342.º, n.º 1 do CC, sendo que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, nos termos do disposto no art.º 414.º do CPC.
68. Termos em que o presente recurso deverá proceder, absolvendo-se a Recorrente do pedido.”
O Autor não apresentou contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - QUESTÕES A DECIDIR
De acordo com as disposições conjugadas dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambas do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do Recorrente que se delimita o objeto e o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão do Recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que colocam. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º, nº 3 do Cód. Proc. Civil). De igual modo, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas de todas as questões suscitadas que se apresentem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (cfr. art.º 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, ex vi do art.º 663º, nº 2 do mesmo diploma). Acresce que, não pode também este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas, porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas - cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 114-116.
Nestes termos, no caso em análise, as questões a decidir são:
- impugnação e pretendida alteração da decisão sobre matéria de facto;
- mérito da acção: apreciação da responsabilidade civil da apelante, decorrente da celebração do contrato de seguro dos autos.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A decisão recorrida considerou como provada factualidade nos seguintes termos:
“1 - Em 11-IV-20 encontrava-se em vigor o contrato de seguro de acidentes pessoais titulado pela apólice 70007022499 (junta a fls 9v a 22, e 34 a 47 – cujo teor se dá aqui por reproduzido) – cujo tomador era MF.
2 - No dia 11-IV-20 a esposa do A. MF almoçava com este e amigos em casa destes em Abrantes – quando se engasgou com alimento sólido.
3 - Apesar da assistência prestada no local pelos presentes, MF veio a falecer devido a paragem cardio-respiratória decorrente de um processo de asfixia resultante de engasgamento por alimento sólido.
4 - Em 11-IV-20 o Dr. ARP assinou o “Certificado de Óbito” junto a fls 8v relativo a MF – indicando, como ‘Causa da Morte’: “Parte I a) Paragem cardio-respiratória b) Enfarte Agudo do Miocárdio Parte II Hipertensão arterial”.
5 - Em 28-V-20 o Dr. ARP  elaborou a “Declaração Médica” junta a fls 9 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
6 - Em 18-VI-20 o ora A. outorgou a “HABILITAÇÃO DE HERDEIROS” junta a fls 52 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
7 - Em 28-IX-20, 29-X-20 e 21-IV-21 a R. enviou ao A. as cartas juntas a fls 23 a 24 (cujos teores se dão aqui por reproduzidos).”
*
Na decisão recorrida foi julgada não provada factualidade nos seguintes termos:
“8 – MF faleceu devido a enfarte agudo do miocárdio decorrente de um processo de asfixia.
9 - A hipertensão arterial esteve relacionada com o enfarte agudo do miocárdio e paragem cardio-respiratória.
10 – MF morreu de causa natural, e não acidental.”
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Cumpre apreciar as questões a decidir neste recurso pela sua ordem de análise e precedência lógica, começando pela impugnação da matéria de facto:
Nos termos do disposto no art.º 662º, nº 1 do Cód. Proc. Civil: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Resulta do art.º 640º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, como é entendimento pacífico da Doutrina e da Jurisprudência, a consagração do ónus de fundamentação da discordância quanto à decisão de facto proferida, devendo ser fundamentados os pontos da divergência, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, abarcando a totalidade da prova produzida.
No caso dos autos, quanto aos factos dados como provados e não provados na sentença recorrida, como resulta das alegações e conclusões do recurso, a apelante deu cumprimento ao referido ónus de fundamentação da sua discordância nos termos do citado art.º 640º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, pelo que, cumpre apreciar do respectivo mérito.
Entende a apelante que:
a) a redacção dos factos provados sob o nº 3. deve ser alterada, passando a mesma a ser: “3 – Apesar da assistência prestada no local pelos presentes, MF agudo do miocárdio.”
b) os factos não provados sob os nºs 8., 9., e 10. devem ser considerados provados.
Resulta deste enunciado que, o que está aqui em causa, é apreciar se - face aos concretos elementos probatórios produzidos nos autos e aplicando as disposições legais reguladoras da prova e distribuição do respectivo ónus - está correcta a decisão relativamente à factualidade atinente à causa do óbito da segurada que o tribunal a quo deu como assente e não assente.
O tribunal a quo fundamentou a sua decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:
“O Tribunal julgou a matéria de facto conjugando o teor da documentação junta aos autos (supra indicada) com o dos depoimentos produzidos em audiência – conforme melhor se tentará expôr, e sendo certo que AP (funcionário da R.) e MC (médica do Centro de Saúde da Parede) nada de concreto puderam esclarecer.
A matéria dos pontos 2, 3 e 10 foi julgada com base na conjugação dos depoimentos (coincidentes, e sem contradição notória) de DR (amiga do A.), JF (amigo do A.), e FS (amiga do A.) – que estavam presentes na altura do “engasgamento” (e subsequente morte).
Relativamente aos pontos 4, 5, 8 e 9, ARP (médico do Centro de Saúde de Abrantes) declarou ter confirmado o óbito, esclarecendo que “a causa da morte teve a ver com o engasgamento”, e acrescentando ser provável que o “enfarte” tenha causado a paragem cardio-respiratória – facto absolutamente negado por LB (médica prestadora de serviços à R., e que depôs com notável clareza): um “engasgamento” não pode provocar um “enfarte”, e sem autópsia é impossível determinar se ocorreu algum enfarte do miocárdio; conclui-se, assim, que a causa da morte indicada no certificado está errada – e que deveria ter sido indicada (como esclareceu LB) como causa de morte “asfixia mecânica” (sendo irrelevante a pré-existência de “hipertensão arterial”).”
Apreciemos.
Tem sido entendimento pacífico da Doutrina e Jurisprudência que, ao abrigo do disposto no art.º 662º do Cód. Proc. Civil, a Relação goza dos mesmos poderes de apreciação da prova do que a 1ª instância, por forma a garantir um segundo grau de jurisdição em matéria de facto. Por isto, a Relação deve apreciar a prova e sindicar a formação da convicção do juiz, analisando o processo lógico da decisão e recorrendo às regras de experiência comum e demais princípios da livre apreciação da prova, reexaminando as provas indicadas pelo recorrente, pelo recorrido, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e/ou aquelas que se mostrem acessíveis, por constarem do processo, independentemente da sua proveniência (cfr. art.º 413º do Cód. Proc. Civil). O que significa que a Relação procede a uma apreciação autónoma da prova impugnada, competindo-lhe formar e formular a sua própria/autónoma convicção (que poderá coincidir, ou não, com a formada em primeira instância), assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto. Acresce que, pese embora recaía sobre o recorrente o ónus de indicar os concretos pontos da matéria de facto que entende deverem ser alterados e o sentido de tal alteração, desde que se mostrem cumpridos os requisitos formais que constam do art.º 640º do Cód. Proc. Civil, a Relação não está vinculada a optar entre alterar a decisão no sentido defendido pelo recorrente ou manter a mesma tal como se encontra, dispondo de inteira liberdade para apreciar a prova, balizada pelos mesmos princípios e limites a que a 1ª instância se acha vinculada (com excepção dos aspectos intrínsecos à imediação e à oralidade). Desta forma, poderá o Tribunal da Relação confirmar a decisão, decidir em sentido contrário ou, mesmo, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo - cfr., neste sentido, nomeadamente, António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª ed., 2018, Almedina, p. 283 e ss.
Como é sabido, com excepção das situações da chamada prova legal, isto é, das situações em que para a prova de um determinado facto a lei exige um específico meio de prova ou impede que o mesmo possa ser provado mediante certos meios de prova – que o legislador presume serem mais falíveis e inseguros –, vigora o sistema da liberdade de julgamento ou da prova livre (cfr. nº 5 do art.º 607º do Cód. Proc. Civil). Neste sistema, o tribunal aprecia livremente os meios de prova, atribuindo, pois, a cada um o valor probatório que julgue conforme a uma apreciação crítica do mesmo (à luz das regras da experiência, da lógica e da ciência), não estando esse valor probatório prévia e legalmente fixado. Como refere Miguel Teixeira de Sousa, in “As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, Lex-Edições Jurídicas, 1995, p. 238: “o valor a conceder à prova realizada através dos meios de prova não está legalmente prefixado, antes depende da convicção que o julgador formar sobre a actividade probatória.”. No mesmo sentido, cfr., ainda, A. Varela, M. Bezerra, Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., p. 660-661; e J. Lebre de Freitas, A. Montalvão, R. Pinto, in “CPC anotado”, II volume, p. 635-636.
Especificamente no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas, dispõe o art.º 396º do Cód. Civil, na esteira do art.º 607º, nº 5 do Cód. Proc. Civil, que a mesma se encontra sujeita à livre apreciação do julgador, o qual deverá avaliá-la em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência. Esta livre convicção do julgador não significa arbítrio ou decisão irracional, antes pelo contrário, exige-se uma apreciação crítica e racional das provas, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência, bem como na percepção da personalidade dos depoentes, para que a mencionada convicção resulte perceptível e objectivável. Toda a valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada – cfr., a este propósito, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, p. 435/436.
Tendo necessariamente presente todas estas considerações, analisando os meios de prova produzidos nos autos, tal como determina o art. 662º do Cód. Proc. Civil, e examinando conjugada, objectiva e criticamente - segundo as regras da lógica e da experiência comum -, os documentos juntos aos autos e os depoimentos de todas as testemunhas inquiridas na audiência final, bem como as declarações de parte aí prestadas pelo Autor (procedendo-se, para o efeito, à audição do registo áudio dos respectivos depoimentos e declarações) e aplicando as normas de direito substantivo e processual referentes ao valor probatório da prova documental e ao princípio a observar em casos de dúvida sobre a realidade de um facto (cfr. art.º 414º do Cód. Proc. Civil), não podemos acompanhar a decisão do tribunal a quo quanto aos factos provados sob o nº 3 na parte em que afirma que a paragem cardio-respiratória sofrida pela segurada foi “decorrente de um processo de asfixia resultante de engasgamento por alimento sólido”.
Senão, vejamos.
Importa começar por salientar que a determinação da causa de uma morte pressupõe conhecimentos técnicos específicos.
No caso dos autos, não consta relatório de autópsia da falecida, não tendo tal autópsia sido realizada.
Foi junto aos autos (cfr. documento nº 1 junto com a petição inicial) “Certificado de Óbito n.º 1007446…”, certificado em 11/04/2020, às 15:28 horas, emitido pelo médico não assistente da falecida nos sete dias que antecederam a morte, Dr. ARP, que ali declara que verificou esse óbito, que ocorreu no dia 11/04/2020, às 14:15 horas, e que a causa da morte é “Natural/Causa Conhecida”; mais aí indicando, “com base em Elementos de ordem clínica”, como “Causa da Morte”:
“Parte I   a) Paragem Cardio-Respiratória
                b) Enfarte Agudo do Miocárdio
 Parte II        Hipertensão arterial”.
Para prova da causa da morte da segurada, foi, ainda, junto aos autos pelo Autor (como documento nº 2 junto com a petição inicial) uma “Declaração Médica”, datada de 28/05/2020, exarada e subscrita pelo mesmo médico que elaborou o mencionado “Certificado de Óbito”, Dr. ARP, que declara que a segurada “faleceu devido a Paragem Cardio-Respiratória decorrente de um processo de asfixia após engasgamento por alimento sólido, vindo a falecer às 15:28 horas de 11/04/2020, conforme consta no certificado de óbito”.
De acordo com o disposto no art.º 363º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil, são autênticos os documentos elaborados com as formalidades legais pelas autoridades públicas ou oficiais nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividades que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública, sendo particulares todos os outros documentos.
O documento só é autêntico quando a autoridade ou oficial público que o exara for competente, em razão da matéria e do lugar e se não estiver legalmente impedido de o lavrar – art.º 369º, nº 1 do Cód. Civil.
Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, bem como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador apenas valem como elementos sujeitos à livre apreciação do tribunal – art.º 371º, nº 1 do Cód. Civil.
A força probatória dos documentos autênticos – plena qualificada - só pode ser ilidida com base na sua falsidade; um documento é falso quando nele se atesta como tendo sido objecto da percepção da autoridade ou oficial público algum facto que na realidade não se verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer acto que na realidade o não foi – art.º 372º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil.
Por sua vez, a característica essencial dos documentos particulares é a assinatura manuscrita do seu autor e é desta que emerge a força probatória que a lei confere a esta espécie de documento – cfr. art.º 373º, nº 1 do Cód. Civil.
A letra e a assinatura, ou só esta, de um documento particular são consideradas verdadeiras quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras – art.º 374º, nº 1 do Cód. Civil.
O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos referidos fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, salvo no caso de serem considerados falsos – art.º 376º, nº 1 do Cód. Civil.
Os factos compreendidos na declaração constante do documento particular apenas se consideram provados, em termos de prova plena, na medida em que forem contrários aos interesses do declarante – art.º 376º, nº 2 do Cód. Civil.
Porém, esta prova plena apenas ocorre tratando-se de declaração produzida por uma das partes no confronto da outra, ou seja, não abrange os documentos contendo declarações produzidas por terceiros. Neste caso, ou seja, documentos particulares contendo declarações produzidas por terceiros, o respectivo valor probatório fica sujeito à livre apreciação judicial.
Face ao exposto, constata-se de forma cristalina que, quer o mencionado “Certificado de óbito”, quer a aludida “Declaração Médica”, não consubstanciam documentos autênticos, nem produzem prova plena quanto à causa da morte.
Na verdade, tais documentos não são subscritos por qualquer das entidades a que se reporta o citado art.º 363º, nº 2 do Cód. Civil, pelo que têm de ser, ambos, considerados documentos particulares, nos termos da parte final deste preceito. No sentido de o “Certificado de óbito” emitido pelo médico que atesta os factos relativos à causa da morte não consubstanciar documento autêntico, nem produzir prova plena quanto à causa da morte, cfr., por todos: Acórdãos do STJ de 02/10/2008, Salvador da Costa; e de 26/11/2019, Fernando Samões; Acórdãos do TRL de 24/01/2008, Octávia Viegas; e de 11/11/2010, Luís Correia de Mendonça; e Acórdãos do TRP de 08/06/2021, Fernando Vilares Ferreira; e de 21/03/2019, Madeira Pinto - todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Acresce que, são, ambos, documentos particulares elaborados por um terceiro, isto é, por nenhuma das partes, pelo que, como tal, são insusceptíveis de produzir prova plena dos factos indicados como tendo sido a causa da morte da segurada, encontrando-se sujeitos à livre apreciação judicial (cfr. art. 607º, nº 5 do Cód. Proc. Civil).
Em suma, as declarações que constam nos mencionados documentos quanto à causa da morte não fazem prova plena e podem ser impugnadas, como foram na acção, cabendo então ao Autor, que invocou a causa da morte, fazer a sua prova através dos demais meios de prova ao seu dispor.
Para além dos referidos documentos, a única prova apresentada relativa à causa da morte da segurada é a testemunhal, cumprindo, então, proceder à valoração desta quanto a tal matéria.
As testemunhas AP (funcionário da Ré/ora apelante) e MC (que era a médica de família da falecida no Centro de Saúde) nenhum conhecimento revelaram ter sobre a efectiva causa de morte, nada esclarecendo o tribunal sobre esta matéria.
As testemunhas DR, JF e FS (amigas do Autor) e o Autor (ouvido em declarações de parte) apenas relataram que estavam presentes no almoço que, então, decorria, quando MF, na percepção das testemunhas e do Autor, se engasgou com a comida que ingeria, nada esclarecendo o tribunal quanto à efectiva causa clínica de morte de MF, não apresentando, quer as testemunhas, quer o Autor, conhecimentos técnicos específicos para o efeito.
O depoimento da testemunha ARP – médico que elaborou e subscreveu os mencionados “Certificado de óbito” e “Declaração Médica” - não se revelou esclarecedor quanto à efectiva causa da morte da segurada MF, pelo contrário.
Na verdade, pese embora esta testemunha tenha feito constar naquele “Certificado” e naquela “Declaração” concretas e variadas causas de morte (paragem-cardio respiratória; enfarte agudo do miocárdio; asfixia), no seu depoimento não indicou com suficiente certeza, segurança e convicção qualquer daquelas causas como tendo provocado a morte (para além da evidente paragem cardio-respiratória).
Com efeito, perante as concretas perguntas que lhe iam sendo dirigidas, a testemunha não logrou indicar ou precisar de maneira clara, objectiva, frontal e segura qual(is) a(s) concreta(s) causa(s) de morte, revelando, inclusive, dúvidas e incertezas sobre o ocorrido, como se pode constatar dos seguintes e significativos trechos do respectivo depoimento:
“Advogado: “Terá sido o engasgamento a única causa da morte da D. MF?”
Testemunha: “Provavelmente.”
(minutos 06:40 a 06:55 da gravação áudio do respectivo depoimento);
“Advogada: “(…) Nesse Certificado de Óbito refere o seguinte: paragem cardio-respiratória, enfarte agudo do miocárdio e hipertensão arterial. Refere estas três coisas. Pronto. Quando refere aqui enfarte agudo do miocárdio, isto quer dizer o quê? Que aquela pessoa morreu porque teve um enfarte do miocárdio?
Testemunha: “Pode ter sido. (…) Essa é uma causa muito provável. (…)
Advogada: “(…) Temos aqui duas situações. Numa, o Sr. Dr. escreve uma Declaração que está documentado dizendo que aquela senhora faleceu devido a engasgamento. (…) temos um Certificado de Óbito, que foi elaborado pelo Sr. Dr. (…), em que refere enfarte agudo do miocárdio. Como pode compreender, são coisas diferentes. Uma coisa é uma pessoa se engasgar (…) e ter uma paragem cardio-respiratória devido a esse engasgamento (…) outra coisa, completamente diferente, é uma pessoa ter um enfarte do miocárdio, que pode ou não ser consequência de histórico de hipertensão arterial. (…) E, nessa medida, queria que esclarecesse então aqui o Tribunal relativamente à verdadeira causa de morte desta senhora.”
Testemunha: “Eu penso que a verdadeira causa de morte tem a ver com o engasgamento (…) que causou a paragem cardio-respiratória. O enfarte podia ter tido ou não, agora, a esta distância não me posso pronunciar, não sei.”
Advogada: “(…) Então por que é que está aqui no Certificado de Óbito, enfarte agudo do miocárdio? Porque podia ter tido? Ou porque teve?”
Testemunha: “Podia ter sido.”
Advogada: “(…) Aquela declaração que escreveu, escreveu porque, efectivamente, esteve perto da senhora e foi aquilo que apurou? Ou escreve aquilo porque foi aquilo que lhe foi transmitido por outras pessoas?”
Testemunha: “Não. Foi aquilo que foi informado pelas pessoas, pelos colegas da equipa do INEM na altura. E foi essa informação que dei.”
Advogada: “(…) Pode afirmar, como médico, que a senhora morreu devido a um engasgamento? (…)  Ou pode ter morrido de um enfarte?”
Testemunha: “O mais provável é que tenha sido de engasgamento (…) se teve o enfarte ou não, isso agora, não sei (...)”.
Advogada: “(…) É o mais provável, mas, então, também não consegue afirmar, é isso?
Testemunha: “Não consigo afirmar, exactamente.”
(minutos 08:00 a 11:25 da gravação áudio do respectivo depoimento).
Acresce que, resulta do depoimento da testemunha, que a mesma baseou o que exarou na “Declaração Médica” apenas na “informação” que os “colegas da equipa do INEM na altura” lhe transmitiram, mais acrescentando, inclusive: “E foi essa informação que dei”. Ou seja, a asserção da testemunha quanto à causa da paragem cardio-respiratória ter decorrido de asfixia após engasgamento por alimento sólido não é alicerçada em qualquer exame clínico objectivo que tenha feito directamente (por exemplo, ao realizar o exame da falecida ter observado na mesma a obstrução das vias áreas por alimento sólido), mas em informações de terceiros.
Note-se, ainda, o seguinte: no “Certificado de óbito” exarado por esta testemunha no próprio dia do óbito e pouco após a ocorrência do mesmo [cfr. hora da ocorrência do óbito aposta em tal “Certificado” (14:15) e hora da elaboração de tal Certificado também aposta no mesmo (15:28)], a testemunha não fez qualquer alusão sobre a paragem cardio-respiratória ter decorrido de asfixia mecânica, tendo baseado a indicação das causas de morte que ali certificou em “elementos de ordem clínica”.
Face ao que se vem aduzindo, conclui-se que, a afirmação da testemunha que foi mencionada pelo tribunal a quo na fundamentação – “a causa da morte teve a ver com o engasgamento” -, não se nos afigura como inequívoca (pelo contrário), porquanto: (i) é precedida da menção “Eu penso que”; (ii) tem de ser conjugada com o demais afirmado pela testemunha, nomeadamente, a falta de certeza sobre esta factualidade revelada na parte do depoimento acima transcrito, máxime, onde consta que, após a seguinte instância da Ilustre Mandatária: “Pode afirmar, como médico, que a senhora morreu devido a um engasgamento? (…)  Ou pode ter morrido de um enfarte?”, a testemunha responde: “O mais provável é que tenha sido de engasgamento. (…) se teve o enfarte ou não, isso agora, não sei”; e, após nova instância da Ilustre Mandatária, com o seguinte teor: “É o mais provável, mas, então, também não consegue afirmar, é isso?”, a testemunha conclui: “Não consigo afirmar, exactamente.”; (iii) esta asserção da testemunha foi baseada apenas na informação que os “colegas da equipa do INEM na altura” lhe transmitiram.
Em suma, em momento algum do seu depoimento, a testemunha assevera, de forma inequívoca, firme, convicta e convincente, qual(is) a(s) causa(s) de morte de MF (para além da paragem cardio-respiratória), nomeadamente que a causa da morte tenha sido uma paragem cardio-respiratória decorrente de um processo de asfixia resultante de engasgamento por alimento sólido, ou que a morte tenha sido devida a enfarte agudo do miocárdio decorrente de um processo de asfixia resultante de engasgamento por alimento sólido.
A testemunha LB apenas tem conhecimento do caso através da análise documental (nomeadamente, dos mencionados “Certificado de óbito” e “Declaração Médica”), a que procedeu como médica prestadora de serviços para a Ré, competindo-lhe a análise dos sinistros, como foi o caso, e o seu depoimento em nada esclarece sobre a efectiva causa de morte de MF. Há que notar que esta testemunha nunca referiu, ao longo do seu depoimento, que a causa de morte de MF tenha sido “asfixia mecânica”; esclarecendo, por outro lado, que: (i) o engasgamento pode ser um sintoma do enfarte agudo do miocárdio (minutos 18:55 e ss da gravação áudio do respectivo depoimento); (ii) depois da morte, só pela aparência exterior, não é possível saber se houve um enfarte agudo do miocárdio (minutos 19:35 a 20:05 da gravação áudio do respectivo depoimento).
Como resulta do exposto, da análise conjugada, objectiva e crítica - feita de acordo com regras de experiência comum - de todos os elementos de prova constantes dos autos, resulta a impossibilidade de se determinar qual a causa da paragem cardio-respiratória sofrida pela segurada.
O ónus de prova de que a causa da morte da segurada foi uma paragem cardio-respiratória e enfarte agudo de miocárdio decorrente de um processo de asfixia resultante de engasgamento por alimento sólido (conforme alegado no art.º 3º da petição inicial) incumbe ao Autor, nos termos do nº 1 do artigo 342º do Cód. Civil.
Como se viu, o Autor não logrou provar tal causa de morte, revelando-se, pelo contrário, a prova produzida claramente insuficiente para aquele efeito, criando, tal prova, sérias dúvidas no julgador.
Perante esta constatação de sérias dúvidas sobre a realidade daqueles factos - constatação esta, verificada pelo tribunal após a produção da prova -, forçoso é recorrer à norma prevista no art.º 414º do Cód. Proc. Civil, sendo aquelas dúvidas resolvidas contra a parte a quem os factos aproveitam, ou seja, o Autor. Com efeito, esta regra prevista no citado art.º 414º do Cód. Proc. Civil - a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita - é a consequência da consagração, no direito civil, das normas de distribuição do ónus da prova, que incumbe, em princípio, à parte a quem o facto aproveita (art.ºs 342º a 345º do Código Civil): a dúvida sobre a ocorrência de um facto equivale à falta de prova desse facto, pelo que resulta em desvantagem para a parte que tinha o ónus de o provar. Esta norma sobre a distribuição do ónus da prova constitui uma norma de decisão, uma vez que se destina em primeira linha a possibilitar a decisão no caso de falta de prova - cfr. Lebre de Freitas, in “Código do Processo Civil Anotado”, Vol. 2, Coimbra Editora, 2011, p. 402-403.
Donde, subsumindo-se o caso dos autos a este preceito legal, resta considerar não ter ficado provado que a causa de morte foi uma paragem cardio-respiratória decorrente de um processo de asfixia resultante de engasgamento por alimento sólido, ao contrário do entendimento do tribunal a quo.
Por outro lado, e como já se disse, da análise conjugada, objectiva e crítica - feita de acordo com regras de experiência comum - de todos os elementos de prova constantes dos autos, resulta a impossibilidade de se determinar que a causa da paragem cardio-respiratória sofrida pela segurada  é decorrente de um enfarte agudo do miocárdio, como entende a apelante.
Por todo o exposto, decide-se alterar os factos provados sob o nº 3 em conformidade com o que se vem aduzindo, passando os mesmos a ter a seguinte redacção, procedendo, nesta medida, de forma parcial, a pretensão da apelante:
Apesar da assistência prestada no local pelos presentes, MF veio a falecer devido a paragem cardio-respiratória decorrente de causas(s) não concretamente apurada(s).
Pretende, ainda, a apelante que os factos dados como não provados sob os nºs 8, 9 e 10 passem a constar dos factos provados.
De tudo quanto se vem de explanar decorre que não é possível proceder à modificação pretendida.
Com efeito, de todos os elementos de prova constantes dos autos não se pode concluir que: “8 - MF faleceu devido a enfarte agudo do miocárdio decorrente de um processo de asfixia.”; “9 - A hipertensão arterial esteve relacionada com o enfarte agudo do miocárdio e paragem cardio-respiratória.”; “10 - MF morreu de causa natural, e não acidental.”. Note-se, ainda, que, quanto a esta última asserção, a mesma é claramente conclusiva, sendo sabido que, aquilo que deve constar da fundamentação de facto de uma sentença, não são juízos valorativos, conclusivos ou de direito, mas verdadeiros enunciados de facto (cfr. art.º 607º, nº 4 do Cód. Proc. Civil), pelo que, desde logo também por esta razão, tal asserção nunca poderia ser dada como provada.
Desta forma, improcede, nesta parte, a pretensão da apelante, mantendo-se estes factos como não provados.
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Do mérito da decisão recorrida
É questão incontroversa nestes autos que estamos perante um contrato de seguro do ramo acidentes pessoais, por via do qual a Ré garantiu a cobertura de morte ou invalidez permanente sofridas pela pessoa segura (MF) em consequência de acidente emergente de risco profissional ou extra-profissional.
Defende a apelante, neste recurso, a não subsunção dos factos provados ao âmbito da cobertura contratualizada no seguro em análise, ao contrário do entendido na sentença recorrida.
Apreciemos.
Nos termos do nº 1 da “Condição” 2ª das Condições Gerais constantes da Apólice do contrato de seguro dos autos (cfr. documento aludido nos factos provados sob o nº 1): “Pelo presente contrato, a Seguradora garante o pagamento da correspondente indemnização, em consequência de acidente sofrido pela Pessoa Segura e desde que abrangido pelas coberturas principais de Morte ou Invalidez Permanente ou pelas coberturas contratadas.”.
Por sua vez, da “Condição” 1ª das mesmas Condições Gerais, resulta a definição conceitual de “Acidente” para efeitos do contrato: o “acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a causa exterior e estranha à vontade do Beneficiário, do Tomador de Seguro e da Pessoa Segura e que nesta origine lesões corporais, invalidez temporária ou permanente ou morte, clínica e objetivamente constatada.”.
De acordo com esta definição, a caracterização do acontecimento como acidente pressupõe que o mesmo tenha decorrido de causa externa, excluindo, dessa forma, os eventos que são originados e desencadeados por factores inerentes ao próprio organismo e sem intervenção de forças que lhe sejam exteriores – cfr. Acórdão do TRC de 01/03/2016, Maria Catarina Gonçalves. Como escreve a este propósito José Vasques, in “Contrato de Seguro”, Coimbra Editora, 1999, p. 61: “A exterioridade do evento relativamente ao corpo afasta os danos sofridos sem intervenção de forças exteriores (:sirva de exemplo a doença)”.
Também de acordo com aquela definição contratual, e para o que aqui interessa, a morte tem de resultar de um evento fortuito, súbito e anormal, externo. Ou seja, tem de existir um nexo causal em sentido naturalístico entre o evento (com as descritas características) e a morte.
Nos termos do art.º 342º do Cód. Civil: “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.” (nº 1); “A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.” (nº 2). Quanto a esta matéria, importa notar que o significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer essa prova – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, p. 306.
Considerando este preceito legal, dúvidas não subsistem que, no caso dos autos, é sobre o Autor/ora apelado que incumbia a alegação e prova da verificação do risco coberto pelo contrato de seguro em causa - nomeadamente, a prova não só da ocorrência de um acontecimento fortuito, súbito, anormal e exterior, mas também de que a morte da segurada foi causada por aquele acontecimento - por se tratar de facto constitutivo do direito indemnizatório de que se arroga (cfr. nº 1 do citado art.º 342º do Cód. Civil); incumbindo à Ré/ora apelante, na qualidade de seguradora, o ónus da alegação e da prova de factos ou circunstâncias excludentes do risco (ou seja, que se subsumissem às exclusões previstas nas Condições Gerais do contrato celebrado) ou aqueles que sejam susceptíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos revelem na sua aparência factual, por se tratarem de factos impeditivos do direito do Autor/ora apelado à indemnização (cfr. nº 2 do citado art.º 342º do Cód. Civil)  – cfr., neste sentido, por todos, Acórdãos: do STJ de 10/03/2016, Tomé Gomes; do TRL de 09/01/2018, Moreira do Carmo; e de 20/09/2018, Maria José Mouro; e do TRP de 21/10/2019, Eugénia Cunha – todos, acessíveis em www.dgsi.pt.
No caso dos autos, ficou provado que: no dia 11/04/2020, MF engasgou-se com alimento sólido e, apesar da assistência prestada, veio a falecer devido a paragem cardio-respiratória decorrente de causas(s) não concretamente apurada(s) - cfr. Factos Provados sob os nºs 2 e 3 (este último, como resulta do acima decidido em sede de apreciação da impugnação da matéria de facto).
Perante esta factualidade, é cristalino que o Autor não logrou provar que o evento que tinha alegado como acontecimento para efeitos de subsunção ao risco segurado (o engasgamento por alimento sólido) foi a causa da morte da segurada. Ou seja, não logrou provar, como tinha alegado na petição inicial, que na génese da morte de MF tenha estado o engasgamento por alimento sólido. Com efeito, a matéria de facto provada não estabelece o nexo de causalidade entre a paragem cardio-respiratória que provocou a morte da segurada e o engasgamento; sabe-se apenas que este engasgamento ocorreu pouco tempo antes daquela paragem cardio-respiratória, mas não temos elementos para concluir que esta tenha sido determinada por aquele. O que relevava nos autos para a procedência da pretensão do Autor, era a prova que a paragem cardio-respiratória que determinou a morte da segurada tinha sido provocada por engasgamento, ou melhor, por asfixia decorrente do engasgamento – prova essa, que, como vimos, não foi feita.
Em suma, o Autor não logrou provar a ocorrência de um acontecimento fortuito, súbito, anormal e exterior à vontade da segurada e que tenha provocado a sua morte, com o sentido contratual acima definido e susceptível de fazer funcionar a garantia do contrato prevista no nº 1 da “Condição” 2ª das Condições Gerais do seguro dos autos, conjugada com a definição contratual do conceito de “acidente” que é dada na “Condição” 1ª das mesmas Condições Gerais.
Desta forma, a situação dos autos não está abrangida no âmbito de cobertura do contrato de seguro em causa, o que significa que a Ré/ora apelante não tem a obrigação contratual de indemnizar o Autor/ora apelado, ao contrário do entendimento do tribunal a quo. Assim sendo, a acção terá que improceder.
Por todo o exposto, a apelação procede quanto ao mérito da sentença recorrida, sendo de revogar a mesma, quer na parte em que julgou procedente a acção, quer na parte em que condenou a Ré nas custas da acção, que, nessas partes, se substitui pelo presente acórdão, que julga a acção improcedente e condena o Autor nas custas da acção.
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As custas devidas pela presente apelação são da responsabilidade do apelado – cfr. art.º 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 1º, nºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais.
V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a presente apelação procedente, e, em consequência:
revogar a sentença recorrida na parte em que julgou procedente a acção e na parte em que condenou a Ré nas custas da acção;
substituir a parte decisória da sentença recorrida pelo seguinte dispositivo:
“Decide-se julgar improcedente o pedido formulado pelo Autor na petição inicial, e, em consequência, absolver a Ré do mesmo.
Custas da acção pelo Autor.”
Custas deste recurso pelo apelado.
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Lisboa, 24 de Janeiro de 2023
Cristina Silva Maximiano
Alexandra Rocha
Maria Amélia Ribeiro