SERVIÇOS DE PAGAMENTO
MOEDA ELECTRÓNICA
REGIME JURÍDICO
PRESTADOR DO SERVIÇO
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Sumário

I - Nos termos do disposto nos artigos 70º e 71º do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica aprovado pelo Decreto-Lei n.º 317/2009, de 30 de Outubro, na versão que lhe foi dada Decreto-Lei nº 242/2012, de 7 de Novembro, recai sobre o prestador de serviço o ónus de prova de que as operações de pagamento não foram afectadas por avarias técnicas ou por quaisquer outras deficiências, não bastando o registo da operação para, por si só, provar que esta foi autorizada pelo ordenante, que este último agiu de forma fraudulenta ou que não cumpriu, deliberadamente ou por negligência grave, uma ou mais das suas obrigações decorrentes do artigo 67.º daquele Regime.
II – Para efeitos do número 3 do artigo 72º do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica, a negligência grosseira não se basta com a falta de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria naquela situação, dentro das circunstâncias do caso concreto, exigindo-se um nível de falta de cuidado mais elevado, um descuido ou desmazelo inadmissível para qualquer pessoa colocada naquela situação.

Texto Integral

Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A, natural de Nova Iorque, portadora do Título de Residência … válido até ..-..-.., com o NIF … e B, natural de Idaho, portador do Título de Residência …, válido até ..-..-.., com o NIF …, casados entre si, ambos residentes na Rua …, Várzea de Sintra, Sintra intentaram contra BANCO ACTIVO BANK SA, com sede na Rua Augusta, Lisboa a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, formulando os seguintes pedidos:
a) A condenação do réu no pagamento aos autores do valor ilicitamente retirado da sua conta à ordem 18.078,22€, acrescido dos juros de mora contados desde a data da proposição da acção e até efectivo e integral pagamento;
b) A condenação no pagamento dos encargos com honorários de advogado (a liquidar em execução de sentença por serem dificilmente contabilizáveis na data) e taxas de justiça;
c) A condenação no pagamento, a título de indemnização por danos não patrimoniais, de valor nunca inferior a 5.000,00€.
Alegam para tanto, em síntese, o seguinte (cf. Ref. Elect. 26823400):
- Os autores abriram uma conta bancária DO 455… junto do réu, a que estava associado um cartão de débito;
- Em Junho de 2018 estiveram de férias em França e no dia 9 desse mês, um sábado, o autor, a quem a mulher entregou o cartão de débito para proceder a um levantamento junto do caixa Multibanco, levantou 200,00€, retirou o recibo, mas o cartão ficou retido, tendo tentado ligar para os números que surgiam no ecrã, sem sucesso; tentou ligar para o réu, também sem sucesso, por apenas falar a língua inglesa;
- Entretanto, porque a mulher se sentia mal e o seu estado de saúde piorou, regressaram ao Hotel e depois foram para o hospital, onde acabou por ingressar nos cuidados intensivos;
- O autor continuou a tentar comunicar a situação ao réu, sem que fosse atendido;
- Apenas no dia 12 de Junho a autora se apercebeu que terceiros estavam a utilizar o seu cartão de débito e continuaram sem conseguir falar com o banco, tendo um amigo estabelecido esse contacto, mas exigindo o réu que fosse a autora a solicitar o cancelamento do cartão, o que esta apenas conseguiu fazer no dia 14 de Junho;
- Por força da utilização por terceiros do cartão, a conta, que possuía mais de 18.000,00€, passou a ter um saldo negativo de mais de 5.000,00 €;
- Após a apresentação de reclamação, o réu considerou que não havia fraude;
- Os autores não facultaram o PIN a terceiros, tendo o cartão de débito sido clonado e logo que o cartão ficou retido tentaram alertar o banco, sendo este quem tem de suportar todos os prejuízos daí resultantes, tanto mais que aqueles passaram muitos momentos de aflição, agravados pelo facto de a autora estar internada nos cuidados intensivos no Hospital.
O réu deduziu contestação impugnando parcialmente a matéria de facto alegada e, bem assim, os documentos n.ºs 2 a 6 juntos com a petição inicial e sustentando que a realização das transacções que os autores negam ter autorizado é-lhes imputável, a título de negligência grosseira, referindo (cf. Ref. Elect. 27339565):
* Foi-lhes atribuído o cartão de débito 4544…, cujo funcionamento está regulado pelas condições gerais de utilização de cartões Activobank, competindo-lhes os direitos e deveres constantes do contrato de utilização de cartão de crédito e de débito, mas apenas em 14 de Junho de 2018 comunicaram ao réu o desapossamento do cartão, sendo que o réu disponibiliza aos seus clientes um serviço de atendimento permanente (24 horas por dia/365 dias por ano) para comunicação em caso de fraude, perda, furto ou roubo de cartão, cujos colaboradores, na maioria, falam inglês;
* De entre as operações reclamadas, umas foram validadas com a apresentação física do cartão e a inserção de PIN, concretizadas à primeira tentativa, sendo que o titular do cartão está obrigado a adoptar todas as precauções adequadas para não tornar acessíveis ou perceptíveis a terceiros o seu PIN e demais credenciais e elementos de segurança;
* O titular do cartão tem o dever estrito de o usar ele próprio, jamais o cedendo a terceiro e não revelando a quem quer que seja o código pessoal, pelo que o cartão é utilizado com o PIN correcto e não é o titular quem está a realizar as transacções, forçosamente terá de ser outrem com conhecimento do PIN, o que revela incumprimento culposo do dever de cuidado e de segurança que recai sobre o titular, com negligência grosseira;
* A responsabilidade pelas utilizações fraudulentas, verificadas entre o furto e a comunicação é dos autores, por não terem comunicado, como podiam e deviam, o desapossamento.
Realizada a audiência prévia, proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, teve lugar a realização da audiência final (cf. Ref. Elect. 412615992, 415378588 e 415461175), tendo sido proferida sentença, em 25 de Maio de 2022, que julgou a acção parcialmente procedente, com o seguinte dispositivo (cf. Ref. Elect. 415511312):
“condeno o réu BANCO ACTIVO BANK, S.A. a pagar aos Autores A e B, a quantia de €19.841,47, acrescida de juros de mora, contados à taxa supletiva legal para juros civis desde a citação do Réu até integral pagamento, absolvendo o Réu do demais peticionado.”
Inconformado com esta decisão, dela vem o réu interpor o presente recurso, cuja motivação concluiu do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 33138893):
A) O presente recurso tem por objecto a sentença proferida, em 25.05.2022, que julgou a presente ação parcialmente procedente, e, em consequência, condenou o réu BANCO ACTIVO BANK, S.A. a pagar aos Autores A  e B, a quantia de €19.841,47, acrescida de juros de mora, contados à taxa supletiva legal para juros civis, desde a citação do Réu até integral pagamento, absolvendo o Réu do demais peticionado.
B) O Recorrente entende que a Sentença padece de (i) um erro na decisão proferida sobre a matéria de facto, bem como (ii) um erro de interpretação do regime jurídico aplicável.
C) De facto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente da prova produzida por declarações de parte, resultaram provadas uma série de circunstâncias essenciais à boa decisão da causa e que não foram levadas à matéria de facto dada como provada, e que estão relacionadas com o modo como foi feita a utilização do cartão de pagamento na caixa multibanco, o modo como o cartão terá ficado retido na mesma e a conduta que o Autor adoptou perante esse facto.
D) Com efeito, a sentença omite que o Autor abandonou o local do caixa automático, alegadamente para ir buscar uma caneta para anotar uns números de telefone que apareciam no visor da caixa automática.
E) Se essas circunstâncias, que não se encontram devidamente reflectidas na factualidade provada na Sentença recorrida, o tivessem sido, teria certamente imposto uma solução jurídica oposta àquela que foi proferida pelo Tribunal a quo.
F) Especialmente se se atentar na distribuição do ónus da prova prevista no artigo 72.º do Decreto-Lei n.º 317/2009, de 30 de Outubro, aplicável à data dos factos (Regime Jurídico dos Meios de Pagamento, “RJMP”), e se coadunar a exigência probatória com a teleologia do regime aí previsto,
G) A qual deveria, por si só, ter ditado a absolvição do Recorrente, independentemente daquela primeira questão relativa à matéria de facto, i.e., mesmo exclusivamente com base na factualidade já provada nos autos.
H) O regime jurídico aplicável apresenta uma gritante diferença, em termos de consequências, consoante a avaliação que se faça da diligência do cliente, a tal ponto que o cliente apenas suporta a totalidade das perdas se tiver relevado, pelo menos, negligência grave.
I) O que torna as circunstâncias mediante as quais terceiros possam ter tido acesso ao cartão de débito e ao respectivo PIN absolutamente cruciais, sendo opostas as consequências consoante, por exemplo, os terceiros apenas logrem utilizar o cartão após tentativas falhadas de introdução do código PIN, ou introduzam correctamente o código à primeira tentativa,
J) Porque, se no primeiro caso, o acesso ao PIN pode não ser directamente resultante da falta grave de diligência do titular, já no segundo caso a relação entre a negligência grave e a efectiva utilização do cartão é manifesta.
K) Ora, tendo em conta que um dos temas da prova se prendia, precisamente, com a culpa grave dos próprios AA. na omissão de obrigações contratuais enquanto titulares do cartão de pagamento, parece-nos que teria sido crucial que o tribunal a quo tivesse relevado de outra forma, desde logo, as declarações de parte do Recorrido […][1]
L) Daqui resulta que o Autor abandonou a caixa automática (com o cartão ali retido e com a presença de dois desconhecidos, que estavam atrás de si) para, alegadamente, ir buscar uma caneta para apontar uns números que surgiam no visor da caixa automática.
M) Daqui resulta que o Autor não teve os cuidados que lhe são exigíveis na utilização e cartões (que estão plasmados na lei, nas condições contratuais, na página do Banco de Portugal e que são até já de conhecimento geral face à disseminação de utilização deste meio de pagamento), nomeadamente, deveres de cuidado e deveres laterais de conduta:
- Antes de introduzir o cartão, certificar-se de que o caixa automático apresenta um aspeto normal. Se houver sinais de que possa ter sido alterado ou se tiver sido danificado, sobretudo na ranhura onde é inserido o cartão, não utilizar o equipamento. Em caso de dúvida, é sempre preferível procurar outro caixa automático
- Marcar sempre o PIN em condições de privacidade, protegendo o teclado do olhar de outras pessoas.
- Se o caixa automático retiver o cartão e se o motivo da captura suscitar dúvidas, o utilizador deve notificar imediatamente a entidade emitente do seu cartão, pois entre uma série de razões para retenção do cartão, pode ocorrer por tentativa de fraude: alguém pode ter manipulado o terminal com o objetivo de impedir que o cartão saia e, mais tarde, apropriar-se indevidamente do mesmo. Se o utilizador desconfiar que está a ser vítima de tentativa de fraude, não deve aceitar a ajuda de terceiros para recuperar o cartão. Não deve abandonar de imediato o caixa automático, pois o cartão pode demorar um pouco mais a sair e deve certificar-se que ninguém usa o caixa automático nos próximos minutos.
N) A última passagem do segmento das declarações de parte, ora transcrito, está em oposição com o depoimento prestado pela testemunha CMR em 04.05.2022, com início às 10h43:04 e fim às 10h48:38, designadamente na passagem circunscrita entre os minutos #01:30 e #04:00 do depoimento, em que a testemunha explica detalhadamente o protocolo de atendimento, referindo expressamente que a linha de apoio (concretamente a linha de cancelamento de cartões), se inicia com uma mensagem de boas vindas e segue um menu em várias línguas, incluindo o inglês, para selecção do cliente. Explicou ainda esta testemunha, neste excerto a que se alude, que, mesmo na hipótese de o cliente se enganar, não fazendo a selecção correcta, o operador que o atende tem instruções para o reencaminhar para a opção da língua pretendida ou para operador que fale a língua pretendida.
O) Assim, à matéria de facto deveria ser aditado o ponto 12-A com a seguinte redacção:
“O Autor abandonou a caixa automática (com o cartão ali retido e com a presença de dois desconhecidos, que estavam atrás de si) para, alegadamente, ir buscar uma caneta para apontar uns números que surgiam no visor da caixa automática.”
P) O ponto 14 deverá ser dado como não provado e em sua substituição deverá ser aditado o ponto 14-A com a seguinte redacção:
“A linha de apoio (concretamente a linha de cancelamento de cartões, mencionada nas condições gerais entregues ao cliente, 21 427 04 02, com atendimento 24/horas dias 365 dias/ano), inicia-se com uma mensagem de boas vindas e segue um menu em várias línguas, incluindo o inglês, para selecção do cliente. Mesmo na hipótese de o cliente se enganar, não fazendo a selecção correcta, o operador que o atende tem instruções para o reencaminhar para a opção da língua pretendida ou para operador que fale a língua pretendida.”
Q) O ponto 23, nesta sequência lógica, deverá ser dado como não provado.
R) A alteração da matéria de facto assim requerida, será o ponto de partida para a subsunção dos factos ao direito, no sentido da absolvição do Réu, conforme se demonstrará de seguida.
S) São obrigações do utilizador de serviços de pagamento a utilização do instrumento de pagamento de acordo com as condições que regem a sua emissão e utilização, tomando todas as medidas razoáveis para preservar a eficácia [ou melhor dito, segurança] dos seus dispositivos de segurança personalizados; e a comunicação, sem atrasos justificados, ao prestador de serviços de pagamento ou à entidade designada por este último, logo que deles tenha conhecimento, da perda, roubo, apropriação abusiva ou qualquer utilização não autorizada do instrumento de pagamento.
T) Da análise do art.º 72.º do RJMP, resulta que é elemento essencial para aferir da imputação da responsabilidade, a apreciação da conduta do ordenante, apreciando-se da verificação de negligência grosseira, densificado pela doutrina e jurisprudência, como exemplifica o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17/12/2014, Proc. n." 1910/12.8TBVCT.G1, optou por colher e citar alguns autores da doutrina:- Na opinião do Prof. Inocêncio Galvão Teles, a culpa grave apresenta-se como "uma negligência grosseira", pelo que "só por uma pessoa particularmente negligente se mostra suscetível de ser cometida".- O Prof. Pinto Monteiro defende que o conceito de "negligência grave" concerne a atuações incompatíveis com os valores atinentes ao princípio da boa-fé, isto é, quando o devedor não observe "as regras elementares de prudência".- A Prof.ª Ana Prata refere que culpa grave é o mesmo que "negligência grosseira, erro imperdoável. desatenção inexplicável, incúria indesculpável - vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes", aproveitando para citar René Savatier, que caracteriza a culpa grave como "uma conduta em que a má-fé é verosímil, mas não se encontra absolutamente demonstrada". Alude ainda que conceito de "negligência grave" tem um sentido similar ao conceito de "negligência consciente" do Direito Penal, o qual se aproxima do conceito de "dolo eventual", e que é definido na alínea a) do artigo 15.° do Código Penal como o comportamento daquele que ''por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz", representa como possível "a realização de um facto que preenche um tipo de crime" mas que atua "sem se conformar com essa realização".
U) O regime legal imputa ao utilizador a obrigação de zelar pela guarda e conservação do cartão, de sigilo dos códigos secretos (PIN) e de comunicar prontamente, logo que tenha conhecimento e sem atraso injustificado, o extravio do cartão a qualquer título.
V) Trata-se de um dever de diligência particularmente disseminado, na medida em que a vulgarização dos sistemas de pagamento electrónico implicou uma informação generalizada da população nos cuidados a ter naquela utilização. Atualmente, o recurso a cartões bancários é de tal forma usual que é do comum conhecimento os riscos e cuidados necessários na utilização do cartão bancário.
W) Para além disto, este dever de diligência resulta da própria lei, sendo ainda promovido este conhecimento generalizado pelo próprio Banco de Portugal, nomeadamente no que concerne à marcação do PIN, advertindo para a necessidade de garantir que a mesma é feita em devidas condições de privacidade, protegendo a sua digitação do olhar de terceiros ou dos deveres de prevenção na utilização de caixas automáticos.
X) Neste sentido, dificilmente se justifica que o utilizador do cartão incumpra os referidos deveres, que se encontram necessária e intrinsecamente presentes no homem médio, minimamente cumpridor e normalmente diligente. Acresce ainda que se trata de um dever de fácil cumprimento, sem exigências de maior (bastando, para garantir o sigilo do PIN, aliás, um gesto tão simples como cobrir o terminal com a mão), pelo que o seu incumprimento se revela particularmente censurável.
Y) Quanto a esta matéria, tem-se considerado verificada a negligência grosseira nos casos em que a utilização do cartão, indevidamente obtido, é feita através da inserção do código PIN.
Z) Isto porque, a não ser o cliente a proceder às assinaladas transacções a utilização do cartão por terceiros é facto bastante e demonstrativo da negligência daquele; ao que acresce o conhecimento também por esses terceiros do PIN – pressuposto determinante que possibilita as operações em questão – faz agravar, evidentemente, o grau de culpa envolvido, passando a existir uma situação óbvia de negligência grosseira por parte do cliente visado quando permite ou possibilita a acessibilidade desses dados secretos a outrem, quando bem conhecia que não podia ou devia fazer. Não ocorre, pois, nas hipóteses em análise o paradigma de conduta do cliente bancário medianamente cuidadoso
que sabe que deve guardar, de modo zeloso, o seu cartão de crédito e não divulgar – seja de que modo – o respectivo PIN. – Pedro Fuzeta da Ponte, Algumas vicissitudes jurídicas decorrentes do relacionamento quotidiano entre a banca e os seus clientes, Direito Bancário, CEJ, pp. 51-52.
AA) O uso do PIN é pessoal: só o próprio o deve saber. Como assim, faz todo o sentido que se pressuponha que tenha havido negligência do possuidor (precário)/utente quando, nas circunstâncias previstas na cláusula, o uso do cartão tenha sido levado a cabo com recurso ao PIN. Com efeito, se só o próprio possuidor (precário)/utente deverá ser o depositário de tal número (secreto), não vemos como se possa deixar de considerar, na hipótese em análise, como sendo sua – e apenas sua – a responsabilidade pelo uso do cartão, precisamente através do conhecimento do PIN. – vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-03-2010, processo 29371/03.5TJLSB.S1, disponível in www.dgsi.pt.
BB) Por outro lado, o dever de guarda e conservação do cartão impõe também uma conduta preventiva e prudente na utilização dos diversos meios de pagamento: utilização de caixas automáticas, utilização de terminais de pagamento, etc.
CC) No que concerne à utilização de caixas automáticas, e sendo do conhecimento geral que as mesmas poderão ser adulteradas, sobretudo se se encontrarem na via pública, os deveres de cuidado deverão incluir uma obrigação de observação do equipamento, sobretudo da ranhura onde é inserido o cartão (para garantir que não está vandalizado ou que aparenta características anormais), vigilância do espaço para garantir privacidade suficiente na digitação de códigos secretos, ou o não abandono imediato da máquina em caso de retenção ou captura do cartão e certificação da utilização da máquina pelo próximo utilizador.
DD) Revertendo para o caso dos autos, concretamente no que respeita à conduta do autor, verifica-se que foram violados os deveres de diligência que impendiam sobre o autor, com particular censurabilidade.
EE) Antes de mais, refira-se que temos por assente que os movimentos foram efectuados com a leitura do chip, o que implica a posse do cartão e com inserção do respectivo código PIN. Vale isto por dizer, que a pessoa ou as pessoas que tiveram acesso ao cartão também tiveram acesso ao respectivo código PIN, o que possibilitou a realização dos movimentos bancários aqui em causa, situação que, na linha do entendimento jurisprudencial e doutrinal citado, revela um elevado grau de culpa do autor, independentemente da forma como se tenha verificado o acesso de terceiros ao cartão e ao respectivo código pin.
FF) Para além disto, não será despiciendo o abandono imediato do caixa automático, que poderá ter ocasionado a oportunidade para terceiros se apropriarem do cartão de pagamento, bem como o atraso na comunicação do seu extravio, pois como ficou provado, a linha de cancelamento de cartões tem atendimento em língua inglesa e funciona durante 24 horas, 365 dias por ano.
GG) Este dever de diligência assume particular relevo quando se tratam de bens como cartões bancários, que geram na esfera do seu titular um especial dever de cuidado e atenção, sendo esta a diligência exigida ao homem médio minimamente zeloso.
HH) A conduta do autor, nos moldes supra descritos traduz-se numa situação de negligência grosseira, que justifica a sua responsabilização pelos danos sofridos.
II) Neste sentido, entende-se que a realização dos movimentos com o cartão de débito em apreço ficou a dever-se à atuação gravemente negligente do autor, incumprindo o dever de guarda, vigilância e conservação que lhe incumbia e, como tal, é responsável pela totalidade das perdas que sofreu.
JJ) Razão pela qual deveria o Tribunal a quo ter aplicado a solução prevista no n.º 3 do artigo 72.º do RJPM e determinado que as perdas deveriam ser suportadas pelos Recorridos, absolvendo-se integralmente o Recorrente do pedido.
Termina pugnando pela procedência do recurso, com a consequente revogação da decisão e sua absolvição do pedido.
Os autores/apelados contra-alegaram argumentando, desde logo, no sentido da rejeição do recurso por inexistência de conclusões e sustentando a manutenção da decisão recorrida (cf. Ref. Elect. 33745831).
Em 12 de Janeiro de 2023, a ora relatora proferiu despacho em que reconheceu a natureza prolixa das conclusões, o que, porém, não corresponde à sua ausência, sem prejuízo da possibilidade de convite ao aperfeiçoamento, que, in casu, considerou não revestir especial utilidade face à perceptibilidade do objecto do recurso, admitindo-o liminarmente (cf. Ref. Elect. 19430225).
*
II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[2], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635º, n.º 3, do CPC), contudo o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (cf. n.º 4 do mencionado art.º 635º).
Assim, perante as conclusões da alegação do réu/apelante, o objecto do presente recurso consiste na apreciação das seguintes questões:
a) A impugnação da matéria de facto;
b) A existência de negligência grosseira por parte dos autores no que concerne ao desapossamento do seu cartão de débito e sua responsabilidade pelos danos decorrentes da utilização por terceiros.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Na primeira instância não dados como provados os seguintes factos:
1. Os AA. abriram uma conta bancária DO 455… na Instituição Bancária ora R., à qual estava associado um cartão de débito, tendo ambos os contratos data de 28.11.2017.
2. No dia 1 de Junho de 2018, havia na referida conta um saldo à ordem de €18.395,06.
3. Nesse mês, os AA foram passar férias a França, em Aix-en-Provence.
4. No dia 9 de Junho, Sábado, enquanto estavam a almoçar, a A. começou a sentir-se muito mal e começou a vomitar.
5. Atendendo aos problemas de saúde da A. (designadamente, asma grave, diabetes e doença de Chronn) e porque a mesma estava a sentir-se muito mal, decidiram voltar para o Hotel onde estavam instalados, para a A. recuperar.
6. Sentaram-se, então num banco, porque a A. não tinha forças para andar, à espera de um Táxi.
7. Para ter dinheiro suficiente para pagar a viagem de Táxi, decidiram ir ao Multibanco levantar dinheiro.
8. Como a A. não tinha forças para se deslocar à caixa Multibanco, entregou ao marido o cartão de débito do Activo Bank para este fazer o levantamento de €200,00.
9. O A. conseguiu levantar €200,00, mas o cartão de débito ficou retido.
10. Ficou, então, muito aflito porque estava preocupado com a A. e porque não sabia o que fazer para reaver o cartão de débito.
11. Uma vez que era Sábado, a instituição bancária onde se encontrava instalada a Caixa Multibanco estava encerrada, pelo que não foi possível pedir ajuda ou aconselhamento.
12. Estavam dois homens atrás do A. e um deles, em língua inglesa, aconselhou-o a telefonar imediatamente para os números que apareceram no ecrã da caixa Multibanco.
13. O A. tomou nota dos números e tentou ligar para ambos mas em vão porque não foi atendido.
14. Tentou também telefonar para o Réu mas não conseguiu que a chamada fosse atendida em língua inglesa.
15. O A. é americano e não domina a língua portuguesa.
16. Porque a A. estava cada vez pior, tiveram de apanhar rapidamente um Táxi para irem para o Hotel.
17. No Hotel, o estado de saúde da A. piorou significativamente, pelo que, ao fim do dia de sábado, foi necessário chamar uma ambulância para a levar para um Hospital.
18. No primeiro Hospital onde foi atendida, em Aix-en-Provence, foram-lhe prestados cuidados, mas, dada a gravidade da sua condição, teve de ser levada para outro Hospital para lhe serem prestados cuidados mais adequados ao seu estado crítico, tendo a autora sido transportada de ambulância, na madrugada de 10 de Junho, para um Hospital em Marselha.
19. Domingo de manhã, a autora foi transferida para os cuidados intensivos do Hospital de Marselha, de onde saiu apenas a 12 de Junho, para uma enfermaria do Hospital.
20. A autora passou muito tempo inconsciente até 12 de Junho.
21. Entretanto o autor, que acompanhou a mulher, ora autora, e ficou hospedado numa residência junto ao Hospital de Marselha, continuava a tentar comunicar a situação ao Activo Bank mas em vão, não conseguindo passar do atendimento automático por gravação, por não compreender a língua portuguesa.
22. Na Terça-feira, dia 12 de Junho, e porque a autora tinha recuperado um pouco, uma enfermeira deu-lhe para a mão o seu telemóvel e, nessa altura, a autora descobriu que o seu cartão de débito estava a ser utilizado por terceiros desconhecidos.
23. Ainda mais preocupados, os AA. voltaram a tentar contactar, repetidamente, o Banco R. para o alertar para a situação, mas nunca foram atendidos por um funcionário, mas apenas pelo sistema automático.
24. Desesperados, ligaram a um amigo comum, o Senhor PM, a relatar a situação e este prontificou-se a contactar o Activo Bank para explicar o que estava a acontecer.
25. O Senhor PM falou, então, com o Sr. RA do Banco réu e explicou a situação, mas este explicou que tinha de ser a própria autora a ligar.
26. O estado de saúde da autora permanecia muito grave, a qual quase não podia falar e tinha momentos de delírio/inconsciência, assim permanecendo na quarta-feira, dia 13 de Junho.
27. Só na Quinta-feira, 14 de Junho, a autora apresentou melhorias, e com muita dificuldade, conseguiu, do seu telemóvel, enviar um email ao Activo Bank pedindo para cancelar o cartão e como não tinha na sua posse a identificação da conta bancária, limitou-se a indicar o seu NIF, dado suficiente para conseguir localizar aquela.
28. Na sequência do e-mail referido em 27., o R. cancelou o cartão no dia 14 de Junho de 2018.
29. O estado de saúde da autora continuava muito grave, tinha um acesso muito limitado ao telemóvel, pelo que estava impossibilitada de tratar pessoalmente do assunto.
30. Entretanto o autor, aconselhado pela Embaixada dos Estados Unidos em França, dirigiu-se a uma Esquadra da Polícia onde apresentou queixa pelo sucedido em 13.6.2018.
31. Logo a seguir ao descrito em 9., o cartão de débito foi utilizado por terceiros, através de dois levantamentos em caixas MB, ainda em Aix-en-Provence, e, as restantes vezes, a partir das 16h12 do dia 9/6/2018 até às 15h41 do dia 12/6/2018, em Marselha, designadamente dois levantamentos que totalizaram €500,00 e sucessivas compras em diferentes lojas, cabeleireiros e restaurantes/bares de Marselha, onde se destacam €5.200,00 numa única compra num talho de Marselha, cerca de €1.900,00 nas Galeries Lafayette de Marselha, em 3 compras sucessivas no dia 9/6, e cerca de €1.400,00 na Zara de Marselha em 6 compras realizadas entre os dias 9/6 e 12/6.
32. Após débito na conta à ordem dos AA., operado pelo Banco nos dias 12.6 e 13.6, dos movimentos ocorridos entre 9/6 e 12/6 aludidos em 31., tal conta passou de um saldo positivo de €17.841,47 para um saldo negativo de € 6.023,91.
33. A autora só regressou a Portugal em 26 de Junho, tendo de permanecer em casa durante trinta dias e sempre com o acompanhamento de um enfermeiro.
34. A filha da autora, EJ, por ser enfermeira, acompanhou a mãe na sua residência em Portugal, durante um mês.
35. Nesse período de tempo a autora estava demasiado fraca para se dirigir às instalações do Activo Bank e só o conseguiu fazer no dia 3 de Julho de 2018.
36. Nesse dia, ela e o marido deslocaram-se a uma das instalações do Activo Bank para pedir um extracto contendo a listagem dos movimentos realizados em Junho de 2018.
37. Uma funcionária do R. ficou com a participação do roubo e pediu uma prova da hospitalização da autora.
38. Os AA. perguntaram-lhe se havia um seguro associado ao cartão de débito. A mesma respondeu que ia estudar o assunto, mas que iria demorar cerca de 6 meses até conseguir uma resposta.
39. Em Novembro de 2018, uma funcionária do Activo Bank telefona à autora e informa que tinha sido utilizado o PIN do cartão de débito, pelo que consideravam que não havia fraude.
40. O montante de €18.000,00, era necessário aos autores para sobreviver nos anos de 2018 e 2019, pelo que ficaram numa situação aflitiva.
41. O casal decidiu consultar uma Advogada, a qual foi constituída mandatária para a interposição da presente acção.
42. Os AA. sentiram-se injustiçados por o Banco R. nunca lhes ter dado apoio, por não ter accionado o seguro afecto ao cartão de débito e por não ter acreditado na sua palavra.
43. Todas as transacções referidas em 31. foram feitas presencialmente, validadas com o chip do cartão e assinatura ou inserção de pin, sem erro de digitação.
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O Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos:
a) Nas circunstâncias referidas em 14., o A. acabou por deixar uma mensagem gravada com a explicação da ocorrência;
b) O pedido referido em 27. não foi atendido pelo Réu;
c) Em 17 de Dezembro de 2018, telefona à A., um senhor de nome António Branquinho, que informa que o Activo Bank tinha chegado à conclusão que não tinha havido fraude porque o PIN tinha sido utilizado, dando mesmo a entender que poderiam ter sido a própria autora ou o seu marido a utilizar o cartão.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Da Impugnação da Matéria de Facto
Estabelece o art.º 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Ao assim dispor, pretendeu o legislador que a Relação fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-12-2016, processo n.º 437/11.0TBBGC.G1.S1[3].
Dispõe o art.º 640º, n.º 1 do CPC:
“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
À luz do normativo transcrito afere-se que, em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
Fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados (existem três tipos de meios de prova: os que constam do próprio processo – documentos ou confissões reduzidas a escrito -; os que nele ficaram registados por escrito – depoimentos antecipadamente prestados ou prestados por carta, mas que não foi possível gravar -; os que foram oralmente produzidos perante o tribunal ou por carta e que ficaram gravados em sistema áudio ou vídeo), o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
O recorrente deve consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que se exige no contexto do ónus de alegação, de modo a evitar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.
De notar que a exigência de síntese final exerce a função de confrontar o recorrido com o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente – cf. António Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 142, nota 228.
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-05-2016, proferido no processo n. 1393/08.7YXLSB.L1-7 refere-se:
“É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum.”
O recorrente pretende o aditamento de um novo ponto ao elenco de factos provados e convoca para reapreciação os factos vertidos os pontos 14. e 23., que entende que devem ser dados como não provados, com a sua substituição por um novo ponto, com redacção distinta, indicando a prova em que assenta a sua convicção no sentido do proposto, pelo que se passa à apreciação da matéria de facto impugnada.
Importa, contudo, realçar que enquanto a primeira instância toma contacto directo com a prova, nomeadamente os depoimentos e declarações de parte, e os depoimentos das testemunhas, com a inerente possibilidade de avaliar elementos de comunicação não-verbais como a postura corporal, as expressões faciais, os gestos, os olhares, as reacções perante as demais pessoas presentes na sala de audiências, a Relação apenas tem acesso ao registo áudio dos depoimentos, ficando, pois, privada de todos esses elementos não-verbais da comunicação que tantas vezes se revelam importantes para a apreciação dos referidos meios de prova.
Atente-se, antes de se avançar que, tal como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-06-2018, processo n.º 18613/16.7T8LSB.L1-2:
“[…] no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual, o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a Lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial. De harmonia com este princípio, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, apenas cedendo este princípio perante situações de prova legal, nomeadamente nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, documentos particulares e por presunções legais.
Nos termos do disposto, especificamente, no artigo 396.º do C.C. e do princípio geral enunciado no artigo 607º, nº 5 do CPC, o depoimento testemunhal é um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, o qual deverá avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência – v. sobre o conteúdo e limites deste princípio, Miguel Teixeira de Sousa, A livre apreciação da prova em processo Civil, Scientia Iuridica, tomo XXXIII (1984), 115 e seg.
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada – cfr. a este propósito Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 435-436.
É certo que, com a prova de um facto, não se pode obter a absoluta certeza da verificação desse facto, atenta a precariedade dos meios de conhecimento da realidade. Mas, para convencer o julgador, em face das circunstâncias concretas, e das regras de experiência, basta um elevado grau da sua veracidade ou, ao menos, que essa realidade seja mais provável que a ausência dela.
Ademais, há que considerar que a reapreciação da matéria de facto visa apreciar pontos concretos da matéria de facto, por regra, com base em determinados depoimentos que são indicados pelo recorrente. Porém, a convicção probatória, sendo um processo intuitivo que assenta na totalidade da prova, implica a valoração de todo o acervo probatório a que o tribunal recorrido teve acesso – v. neste sentido, Ac. STJ de 24.01.2012 (P 1156/2002.L1.S1).”
Releva ainda a circunstância de se manterem em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, sabendo-se que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, de tal modo que a Relação só deve lançar mão dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Procedendo a Relação à audição efectiva da prova gravada, deverá alterar a matéria de facto provada quando conclua, com a necessária segurança, no sentido de os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontarem em direcção diversa daquela que foi encontrada pela 1ª instância – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-11-2017, processo n.º 216/14.2T8EPS.G1 – “O que se acaba de dizer encontra sustentação na expressão “imporem decisão diversa” enunciada no n.º 1 do art.º 662º, bem como na ratio e no elemento teleológico desta norma. Assim, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.”
Neste enquadramento, há ainda que ter presente que “A prova não é (nunca é) certeza lógica, mas tão-só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica). E isso significa que à vida em sociedade não escapa um certo nível de incerteza; havendo é que descortinar a partir de quando é que esse nível é aceitável; ou, ao invés, intolerável. Julgamos sempre que, se ao cidadão razoável e medianamente esclarecido não chocar tomar como certo um dado segmento de vida, é já consciencioso assumi-lo como provado; mas se ao invés a mesma consciência ainda ali se puder comportar como hesitante ou indecisa, só imprudentemente a prova pode ser assumida e afirmada.” – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-12-2012, processo n.º 1267/06.6TBAMT.P2.
Aditamento de um novo ponto 12.-A aos Factos Provados
Sustenta o apelante que a sentença recorrida omite o facto de o autor ter abandonado o local do caixa automático para ir buscar uma caneta, o que, a demonstrar-se, imporia uma decisão oposta à proferida, porquanto se verificou negligência grave do utilizador do cartão, louvando-se nas declarações do próprio recorrido, que afirmou ter-se afastado do caixa para ir buscar a caneta, quando estavam duas pessoas atrás de si, pelo que foi ele quem não teve os cuidados exigíveis na utilização do cartão. Requer que seja aditado o seguinte ponto à matéria de facto provada: “O Autor abandonou a caixa automática (com o cartão ali retido e com a presença de dois desconhecidos, que estavam atrás de si) para, alegadamente, ir buscar uma caneta para apontar uns números que surgiam no visor da caixa automática.”
Os recorridos sustentam, que, mesmo a admitir-se que o autor se afastou do local, não foi feita prova sobre o tempo que decorreu entre o momento em que o cartão ficou retido no caixa automático e o momento em que aquele se afastou para ir buscar a caneta, para além do que não houve abandono, mas um eventual afastamento temporário, não tendo existido descuido do titular por se tratar de uma situação de “clonagem de cartão”.
Cumpre notar, antes de mais, que em parte alguma da sua contestação o réu/recorrente alega o facto que ora pretende aditar ao enunciado fáctico apurado, nem tão-pouco, em sede de alegações, remeteu para qualquer um dos articulados constantes dos autos onde tal factualidade haja sido alegada, limitando-se a convocar, para tanto, o conteúdo das declarações de parte do autor.
Com o aditamento desse facto, pretende o apelante demonstrar uma actuação por parte do recorrido que revela negligência grosseira, para afastar a sua responsabilidade pela restituição das quantias objecto das transacções reclamadas nos autos.
No entanto, ao contrário do que parece pretender sustentar o apelante, não é sobre os apelados que recai o ónus de demonstrar que não foram eles quem efectuou as operações em causa, por não ser isso que decorre da solução preconizada no Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica consagrado no Decreto-Lei n.º 317/2009, de 30 de Outubro, na versão que lhe foi dada DL nº 242/2012, de 7 de Novembro[4] [5].
Com efeito, por um lado, tal como decorre do disposto nos art.ºs 70º e 71º do RJSPME, a lei faz recair sobre o banco o ónus de prova de que as operações de pagamento não foram afectadas por avarias técnicas ou por quaisquer outras deficiências, não bastando o registo da operação para, por si só, provar que a operação foi autorizada pelo ordenante, que este último agiu de forma fraudulenta ou que não cumpriu, deliberadamente ou por negligência grave, uma ou mais das suas obrigações decorrentes do artigo 67.º.
Por outro lado, nos casos de operações não autorizadas resultantes de perda, de roubo ou da apropriação abusiva de instrumentos de pagamento, com quebra da confidencialidade dos dispositivos de segurança personalizados, tanto pode suceder que esta última seja imputável ao ordenante, caso em que este suporta as perdas relativas a essas operações dentro do limite do saldo disponível ou da linha de crédito associado à conta ou ao instrumento de pagamento, até ao máximo de 150,00 euros (cf. art.º 72º, n.º 1 do RJSPME), como que ocorra negligência grave do ordenante, situação em que este suporta as perdas resultantes de operações de pagamento não autorizadas até ao limite do saldo disponível ou da linha de crédito associada à conta ou ao instrumento de pagamento, ainda que superiores a € 150, dependendo da natureza dos dispositivos de segurança personalizados do instrumento de pagamento e das circunstâncias da sua perda, roubo ou apropriação abusiva (n.º 3).
Pode ainda dar-se o caso de haver actuação fraudulenta do ordenante ou incumprimento deliberado de uma ou mais das obrigações previstas no artigo 67.º (dolo), circunstâncias em que aquele suporta todas as perdas resultantes de operações de pagamento não autorizadas (n.º 2).
Da conjugação destas normas resulta que é sobre o prestador do serviço de pagamento que recai a prova de que a operação de levantamento de fundos e as demais transacções realizadas com o cartão de crédito foram autorizadas pelo seu cliente ou, no caso de operações não autorizadas, a culpa deste e grau da sua contribuição para os prejuízos sofridos – cf. neste sentido, cf. Maria Raquel Guimarães, Cadernos de Direito Privado, n.º 41, pág. 65 apud acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-06-2014, processo n.º 2131/11.2TJLSB.L1-1; Raquel Sofia Ribeiro de Lima, A responsabilidade pela utilização abusiva on-line de instrumentos de pagamento eletrónico na jurisprudência portuguesa, pág. 41[6]; acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 8-03-2018, processo n.º 5525/16.3T8VNG.L1-6; do Tribunal da Relação de Évora de 24-09-2020, processo n.º 26/19.0T8MRA.E1.
Significa isto que o facto cujo aditamento o apelante pretende alcançar deve ser considerado como facto integrante do núcleo essencial da sua defesa, ou seja, enquanto facto caracterizador da negligência grosseira que o demandado pretende imputar à conduta dos demandantes.
O art.º 5º, n.º 1 do CPC impõe às partes o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, ou seja, quanto aos primeiros, devem ser alegados os factos essenciais à procedência do pedido, aqueles que são constitutivos do direito do autor.
Distingue-se, dentro dos factos integradores da procedência do pedido, o núcleo essencial, constituído pelos factos principais, ou seja, os elementos típicos do direito que se pretende fazer valer, e os factos acessórios ou complementares, aqueles que concretizam ou qualificam os primeiros, conforme previsto na norma de procedência (processualmente, são aqueles que integram a causa de pedir mas não individualizam a causa nem a sua omissão determina a ineptidão da petição), sendo, como aqueles, decisivos para a viabilidade ou procedência da acção/reconvenção/defesa por excepção.
Distintos dos factos principais e dos complementares, são os factos instrumentais, que não integram a causa de pedir, ou seja, são factos indiciários ou presuntivos dos factos integrantes da causa de pedir, são meros factos probatórios, que, como tal, estão fora do ónus de alegação – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pp. 48-54; Professor Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, pág. 70.[7]
Tendo presente esta distinção importa atentar na norma vertida no n.º 2 do art.º 5º do CPC que estatui deste modo:
“Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.”
Os factos essenciais são os necessários à identificação da situação jurídica invocada pela parte e que, como tal, relevam na viabilidade da acção ou da excepção. Deste modo, se os factos alegados pela parte não forem suficientes para se perceber qual a situação que se pretende fazer valer em juízo, existe um vício que afecta a viabilidade da acção ou da excepção.
Já os factos complementares não são necessários à identificação da situação jurídica alegada pela parte, mas são indispensáveis à procedência da acção ou da excepção.
Em consonância, a falta de alegação dos factos essenciais acarreta a ineptidão da petição inicial por inexistência de causa de pedir (cf. art.º 186º, n.º 2, a) do CPC); a ausência de um facto complementar não implica qualquer inviabilidade ou ineptidão, mas importa a improcedência da acção – cf. Miguel Teixeira de Sousa, op. cit., pág. 72.
António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa sustentam que a consideração dos factos complementares ou concretizadores em resultado da instrução tem agora natureza oficiosa, não sendo exigida a concordância da parte para a sua atendibilidade, mas sempre com a exigência de que sobre eles seja garantido o exercício do contraditório, o que passa, designadamente, pelo anúncio às partes pelo juiz, antes do encerramento da audiência, que está a equacionar utilizar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto (com a possibilidade de requererem a produção de novos meios de prova) – cf. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração 2018, pp. 28- 29; em sentido diverso, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1ª, 3ª edição, pp. 17-18, onde se reconhece a possibilidade de qualquer uma das partes manifestar-se no sentido de integrar o facto na matéria da causa, não sendo de dispensar uma atitude positiva das partes nesse sentido, atento o princípio do dispositivo que emana do n.º 1 do art.º 5º do CPC.
Na situação sub judice, como se referiu, o facto cujo aditamento o apelante pretende alcançar não foi alegado pelas partes.
No entanto, não se pode deixar de lhe reconhecer, se não a característica da essencialidade (porquanto, mesmo na sua ausência é possível delinear a excepção invocada pelo réu, ou seja, a negligência grosseira dos autores), ao menos a sua natureza de facto complementar essencial à procedência da excepção. Daí que, tendo tal facto emergido eventualmente da discussão da causa, deveria a parte que dele se pretende fazer prevalecer manifestado essa intenção.
De todo o modo, não o tendo feito, o Tribunal poderia ter-se pronunciado sobre aquela matéria, para o que se impunha que tivesse comunicado às partes a intenção de ampliar a matéria de facto nesse sentido, o que não sucedeu, não tendo existido pronúncia específica da 1ª instância quanto a tal ponto, o que impede a sua apreciação por esta Relação.
Contudo, ainda que assim se não entendesse, sempre se dirá que a prova produzida não é bastante para dar como provado tal facto com a redacção proposta pela apelante.
Na verdade, o autor B referiu, efectivamente, que após o cartão de débito ter ficado retido no interior da máquina, verificou que surgiam no ecrã números de telefone para onde haveria que ligar em situação de ocorrência anómala, pelo que foi buscar uma caneta, junto da sua mulher que ficara sentada a aguardar, para os apontar.
Contudo, não é possível retirar dessa afirmação que o declarante abandonou o local de imediato, sem aguardar um pouco para verificar se o cartão acabaria por sair, como pretende demonstrar o recorrente. Ouvidas na íntegra as suas declarações não é essa a conclusão que se impõe.
Pelo contrário, conforme declarações prestadas no dia 2 de Maio de 2022, a partir do minuto 9:14, percebe-se que o autor, confrontado com a retenção do cartão, ainda despendeu algum tempo a tentar perceber como poderia recuperá-lo, tendo mencionado, aliás, que verificou na máquina se haveria algum modo de obter a devolução do cartão, designadamente premindo algum botão, o que tentou fazer, mas nada aconteceu. Após isso, constatou que no visor da máquina surgia a informação com indicação de números de telefone para onde deveria ligar em caso de ocorrência anómala. Foi só nesse momento que foi buscar a caneta, junto da sua mulher e regressou para apontar os números, sendo nessa altura que menciona a presença de dois homens que, segundo presumiu, se teriam apercebido do que se passava, tendo um deles aconselhado a que ligasse para aqueles números, para obter a devolução do cartão.
Note-se que anteriormente o declarante já havia mencionado que a mulher tinha ficado sentada e que tinha dado “alguns passos” até ao caixa multibanco (cf. minuto 7.55 das suas declarações), o que significa que entre o lugar onde se situava o caixa e o sítio onde a autora permaneceu sentada não existiria uma distância superior a escassos metros, pelo que a mera deslocação para recolher a caneta não pode ser descrita como um afastamento do local, pois que o autor continuava a poder verificar se o cartão, entretanto, teria sido expelido, pois não tinha ainda decidido deixar o local de modo definitivo.
Impõe-se, como tal, a rejeição do aditamento do novo ponto 12.-A sugerido pelo recorrente, pelo que improcede este segmento recursório.
Pontos 14. e 23. da matéria de facto provada e aditamento novo ponto 14.-A
O Tribunal recorrido deu como provado o seguinte:
14. Tentou também telefonar para o Réu mas não conseguiu que a chamada fosse atendida em língua inglesa.
23. Ainda mais preocupados, os AA. voltaram a tentar contactar, repetidamente, o Banco R. para o alertar para a situação, mas nunca foram atendidos por um funcionário, mas apenas pelo sistema automático.
O que fundamentou do seguinte modo:
“A factualidade vertida em 4- a 14-, 16- e 17- teve por base a análise crítica e conjugada das declarações de parte dos dois AA., porquanto apenas estes estavam presentes e tinham conhecimento directo dos factos em causa. Saliente-se que, apesar do natural interesse dos mesmos no desfecho desta acção, qualquer um dos AA. apresentou declarações, isentas, espontâneas e seguras no relato dos acontecimentos em apreço, tendo deposto de forma coincidente nos aspectos essenciais, designadamente quanto às circunstâncias da retenção do cartão numa caixa ATM, divergindo apenas em pormenores relacionados com evidente falta de memória, considerando o lapso de tempo já decorrido desde 2018. Porém, tais divergências pontuais e tais lapsos de memória não afectaram a credibilidade das suas declarações, pelo contrário, permitem sedimentar a percepção quanto à espontaneidade e isenção das mesmas. […]
Quanto aos factos 21- a 23-, 26-, 27-, 29- e 30-, teve-se em consideração, mais uma vez e não só, as declarações de parte dos AA., que relataram circunstanciadamente tal desenrolar dos acontecimentos, mas também o teor do e-mail da A., com pedido de cancelamento do cartão, datado de 14.6.2018 (cuja versão traduzida se encontra junta a fls. 202 dos autos), no qual, à data, a A. já fazia constar a dificuldade de comunicação com o R., por não serem atendidos em inglês, e também aludia à circunstancia de o cartão ter ficado retido numa ATM no sábado anterior, mas apenas na terça-feira terem constatado que tal cartão estava a ser utilizado/roubado.”
Pretende o apelante que estes factos sejam dados como não provados e que, em substituição, seja aditado um novo ponto 14.-A com a seguinte redacção: “A linha de apoio (concretamente a linha de cancelamento de cartões, mencionada nas condições gerais entregues ao cliente, 21 427 04 02, com atendimento 24/horas dias 365 dias/ano), inicia-se com uma mensagem de boas vindas e segue um menu em várias línguas, incluindo o inglês, para selecção do cliente. Mesmo na hipótese de o cliente se enganar, não fazendo a selecção correcta, o operador que o atende tem instruções para o reencaminhar para a opção da língua pretendida ou para operador que fale a língua pretendida.” (matéria alegada nos pontos 31º e 32º da contestação).
Baseia-se, para tanto, no depoimento da testemunha CMR, que explicou o protocolo de atendimento referindo que a linha de apoio contém a opção pela língua inglesa e que o cliente pode seleccionar logo após a mensagem de boas vindas, face ao menu de opções que lhe é transmitido.
Os apelados insurgem-se contra tal entendimento referindo que a linha de apoio não estava a funcionar devidamente, o que retiram das declarações da própria autora e da testemunha PM, que confirmaram que ninguém atendeu o marido quando este ligou para a linha, não conseguindo falar em inglês seja com quem for, desde logo por não entender a língua portuguesa com que as informações lhe eram transmitidas.
As tentativas do autor marido para contactar o banco réu foram relatadas não só por este, mas também pela autora, confirmando ambos que não conseguiam ser atendidos por alguém que falasse inglês, sendo que não compreendiam outra língua, designadamente, o português.
De igual modo, a testemunha PM, amigo dos autores para quem o autor marido telefonou a dar conta do sucedido e da dificuldade em contactar o banco, relatou também que o autor lhe transmitiu que já tinha ligado para o banco pretendendo cancelar o cartão, mas que não conseguia contactar com alguém que falasse inglês (cf. minuto 5:00 e seguintes do seu depoimento).
De facto, como sustenta o apelante, a testemunha CMR, funcionário bancário a exercer funções no banco réu desde 1998, esclareceu o modo de funcionamento da linha de apoio, aludindo à gravação de boas vindas e à existência de um menu de opções em que o cliente pode escolher a língua em que pretende comunicar, designadamente a inglesa, sendo que, caso seja direccionado para um gestor de contacto que não fale essa língua, será reencaminhado para um que consiga comunicar nesse idioma.
No entanto, este depoimento não se afigura bastante para dar como provado o facto que o apelante pretende inscrever na factualidade demonstrada.
Com efeito, não foi feita qualquer referência pela testemunha quanto ao exacto funcionamento dessa linha de apoio, nesses precisos termos, por referência à data em que os acontecimentos reflectidos nos autos tiveram lugar. Acresce que, a testemunha não mencionou o efectivo funcionamento da linha de apoio funcionamento durante as anunciadas 24 horas por dia, sete dias por semana e, menos ainda, se a opção de contactar com um operador ou gestor de contacto (pessoa física) se mantinha válida e eficaz durante o período do fim-de-semana.
Mais do que isso, a instâncias da ilustre mandatária dos autores, a testemunha CMR afirmou que esse modo de procedimento é aquele que existe actualmente, ou seja, ao momento em que prestou o seu depoimento (Maio de 2022), não podendo garantir que seja idêntico àquele que funcionava em Junho de 2018, admitindo, pelo contrário, que tal procedimento tivesse sofrido alterações entre uma data e outra (cf. minuto 4:20 e seguintes do seu depoimento). Ou seja, a testemunha não confirmou que em 2018 a linha de apoio ao cliente e, concretamente, a linha disponível para a comunicação de pedidos de cancelamento de cartão de débito em virtude de furto ou extravio, funcionasse nos moldes em que descreveu e oferecesse todas as alternativas indicadas.
Assim, a mera alusão ao modo como actualmente funciona essa linha de apoio não é suficiente para se dar com provado que ao autor tinha sido possível contactar o banco, incluindo no fim-de-semana, e que o podia fazer escolhendo a opção de comunicação em língua inglesa e, mais do que isso, com a opção de falar com um gestor de contacto, porquanto nem esta testemunha, nem outra (designadamente a testemunha RA, que apenas mencionou a possibilidade de facultarem aos clientes uma versão inglesa do contrato) asseverou a existência dessas opções à data dos factos.
Assim, devem manter-se inalterados os pontos 14. e 23. dos factos provados e não deve ser aditado o ponto 14.-A com a redacção proposta pelo recorrente, por falta de prova bastante que o confirme.
Improcede, pois, a impugnação da decisão da matéria de facto, que se mantém inalterada.
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Da verificação de negligência grosseira por parte dos autores geradora da sua responsabilidade pelos danos decorrentes da utilização do cartão de débito por terceiros
Sustenta o apelante que o Tribunal recorrido errou na interpretação efectuada quanto ao art.º 72º do RJSPME, porquanto recai sobre o utilizador do meio de pagamento a obrigação de zelar pela guarda e conservação do cartão, de sigilo dos códigos secretos (PIN) e ainda a obrigação de comunicar prontamente, logo que tenha conhecimento e sem atraso injustificado, o extravio do cartão a qualquer título, obrigações que entende terem sido violadas pelos autores pela seguinte ordem de razões:
i. os movimentos reclamados foram efectuados com a leitura do chip, o que implica a posse do cartão e com inserção do respectivo código PIN, ou seja, quem usou teve acesso ao código PIN, o que revela um elevado grau de culpa do autor;
ii. o autor incorreu em abandono imediato do caixa automático, ocasionando a oportunidade de terceiros se apropriarem do cartão de pagamento;
iii. a comunicação do extravio não foi efectuada prontamente, quando poderia tê-lo feito de imediato, através da linha de cancelamento de cartões, com atendimento em língua inglesa, durante 24 horas, 365 dias por ano.
Os recorridos, por sua vez, entendem que a sentença recorrida fez uma interpretação correcta da norma, porquanto o cartão da autora foi obtido por terceiros de forma ilícita, sem culpa dos autores, que tudo fizeram para contactar o banco, sem êxito e face ao estado de saúde da autora, o atraso verificado não pode ser considerado injustificado.
A decisão recorrida apreciou a questão nos seguintes termos:
“Prescreve o artigo 67.º do mencionado DL 317/2009 que “O utilizador de serviços de pagamento com direito a utilizar um instrumento de pagamento tem as seguintes obrigações:
a) Utilizar o instrumento de pagamento de acordo com as condições que regem a sua emissão e utilização; e
b) Comunicar, sem atrasos injustificados, ao prestador de serviços de pagamento ou à entidade designada por este último, logo que deles tenha conhecimento, a perda, o roubo, a apropriação abusiva ou qualquer utilização não autorizada do instrumento de pagamento.
2 - Para efeitos da alínea a) do número anterior, o utilizador de serviços de pagamento deve tomar todas as medidas razoáveis, em especial ao receber um instrumento de pagamento, para preservar a eficácia dos seus dispositivos de segurança personalizados.”
Por sua vez, estabelece o artigo 72.º, do citado diploma que “ (…) 3- Havendo negligência grave do ordenante, este suporta as perdas resultantes de operações de pagamento não autorizadas até ao limite do saldo disponível ou da linha de crédito associada à conta ou ao instrumento de pagamento, ainda que superiores a (euro) 150, dependendo da natureza dos dispositivos de segurança personalizados do instrumento de pagamento e das circunstâncias da sua perda, roubo ou apropriação abusiva.
Determina ainda o artigo 72º, nº 4 do mesmo DL que, após ter procedido à comunicação a que se refere a alínea b) do nº 1 do artigo 67º, o ordenante não deve suportar quaisquer consequências financeiras resultantes da utilização de um instrumento de pagamento perdido, furtado, roubado ou abusivamente apropriado, salvo em caso de atuação fraudulenta, o que se harmoniza com a obrigação legal do prestador de serviços de pagamentos de impedir qualquer utilização do instrumento de pagamento logo que a comunicação supra referida tenha sido efetuada.
O regime legal imputa assim ao utilizador a obrigação de comunicar prontamente, logo que tenha conhecimento e sem atraso injustificado, o extravio do cartão a qualquer título. Cumprida esta obrigação, nenhum movimento posterior pode ser imputado ao utilizador, passando o risco a correr por conta do banco, que suportará o reembolso dos montantes movimentados ao utilizador.
Porém, no caso em apreço, resultou provado que todas as transações foram realizadas e autorizadas antes do cancelamento do cartão.
À luz do Decreto-Lei em análise, é sobre o banco, ora réu, que recai o ónus de provar que as operações de pagamento não autorizadas decorreram de avaria técnica ou de culpa do cliente, porquanto o risco dos danos causados pela fragilidade do sistema pertence ao banco. Solução que se justifica inteiramente, tendo em conta que a instituição de sistema de pagamentos eletrónicos não é benéfica apenas para o titular, indo ainda de encontro aos interesses do banco, na medida em que diminui os seus custos operativos, nomeadamente com funcionários.
Nessa medida, os bancos estão adstritos a apertados deveres de segurança, devendo garantir a confidencialidade e integridade dos sistemas informáticos de que se socorrem para operacionalizar as transações eletrónicas.
De acordo com o artigo 68º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 317/2009, o prestador de serviços de pagamento que emite um instrumento de pagamento deve assegurar que as credenciais de segurança personalizadas do instrumento de pagamento só sejam acessíveis ao utilizador de serviços de pagamento que tenha direito a utilizar o referido instrumento.
Como acima se viu, cabia portanto ao Banco, ora Réu, provar a culpa dos AA./clientes, porquanto, no caso em apreço, não está em causa qualquer avaria do sistema.
O Banco veio alegar que houve negligência grosseira dos AA., no dever de guarda do cartão e do respectivo PIN e ainda atraso injustificado na comunicação do desapossamento do cartão ocorrido em 9/6/2018 e apenas comunicado em 14/6/2018.
No entanto, atendendo à factualidade dada como provada, entendemos que o R. não logrou provar nem a culpa grave dos AA. quanto ao dever de guarda do cartão e Pin, nem o atraso injustificado na comunicação.
O circunstancialismo fáctico apurado relativamente ao desapossamento do cartão e ao ocorrido nos dias seguintes é muito específico no caso em apreço, não podendo ser imputada qualquer negligência aos AA. quanto à guarda do cartão e PIN.
Resultou provado que após um levantamento da quantia de €200,00 numa caixa ATM duma agencia bancária sita numa rua de Aix en Provence, em França, com inserção de PIN, inserção essa necessária a tal levantamento, o cartão ficou retido nessa máquina ATM. Resultou igualmente provado que tal retenção ocorreu num sábado, não podendo o A. comunicar tal retenção na agência bancária, onde se encontrava o equipamento ATM, acessível da rua.
Resultou igualmente provado que a A. estava a sentir-se mal e o seu estado de saúde foi-se agravando ao longo desse sábado, pelo que marido A. teve de a acompanhar, tendo aquela dado entrada nas urgências do Hospital de Aix en Provence ainda nesse sábado.
Nesta data, ficou assente que o cartão deixou de estar na esfera de actuação dos AA., tendo estes sido desapossados do cartão por esquema necessariamente fraudulento, porquanto logo a seguir à retenção do cartão, este passou a ser utilizado reiteradamente em os levantamentos e em compras de montantes muito avultados, uma hora depois da retenção já na cidade de Marselha. Enquanto isso, o estado de saúde da A. ia-se agravando até dar entrada no Hospital de Aix en Provence e o A., naturalmente preocupado com o estado de saúde da mulher, procurou acompanhá-la, priorizando tal preocupação, não tendo, nem sendo exigível que tivessem, nesse sábado, nenhum dos AA. suspeitado da utilização fraudulenta do cartão, que já estava a ocorrer em Marselha, conforme decorre da factualidade provada.
Mais se provou que as operações não autorizadas, reclamadas pelos autores nesta ação, foram efetivamente realizadas antes do cancelamento do cartão de débito, que ocorreu apenas em 14.6, enquanto as compras e levantamentos com o cartão decorreram até 12.6, sendo que à data, a conta que, em 9/6 tinha um saldo de cerca de €18.000,00, já estava com saldo negativo.
Por outro lado, também se mostra assente que tais operações foram realizadas e devidamente autenticadas, porquanto resultou demonstrado que foram efetuadas mediante a leitura de chip e inserção de pin, ou de assinatura, estando assim respeitados os requisitos de autenticação.
Mas tal factualidade não permite concluir, só por si, que os AA. negligenciaram o dever de guarda do cartão e respectivo Pin.
Importa atender ao circunstancialismo acima exposto, que justifica a utilização do cartão aparentemente regular, mas com recurso a um esquema fraudulento não concretamente apurado, por falta de oportuna investigação policial, não imputável aos AA.. No entanto, este tipo de actuação criminal é conhecida nos dias de hoje e encontra-se bem mais disseminada do que seria desejável, existindo vários métodos ilícitos de retenção de cartões bancários em “caixas Multibanco” e gravação do Pin aquando da sua utilização normal por parte do respectivo legítimo portador/titular, com subsequente retirada do cartão para utilização ilícita do mesmo.
O A. limitou-se a fazer uma utilização normal do cartão, inserindo o PIN num equipamento ATM integrado numa agência bancária, para fazer um levantamento em dinheiro, desconhecendo, como qualquer outro potencial utilizador da ATM, que a mesma estaria viciada. Não é imputável aos AA., qualquer desleixo, muito menos negligência grosseira ou culpa grave, em tal actuação.
No que respeita à análise da responsabilidade do utilizador dos serviços de pagamento, in casu, os autores, importa trazer à colação, de novo, o já citado artigo 67º, do Decreto-Lei nº 317/2009, o qual estabelece as seguintes regras:
1 - O ordenante pode ser obrigado a suportar as perdas relativas às operações de pagamento não autorizadas resultantes da utilização de um instrumento de pagamento perdido, furtado, roubado ou da apropriação abusiva de um instrumento de pagamento dentro do limite do saldo disponível ou da linha de crédito associada à conta ou ao instrumento de pagamento, até ao máximo de €50,00; (…)
3 - O ordenante suporta todas as perdas resultantes de operações de pagamento não autorizadas, se aquelas forem devidas a atuação fraudulenta ou ao incumprimento deliberado de uma ou mais das obrigações previstas no artigo 110º, caso em que não são aplicáveis os limites referidos no nº 1;
4 - Havendo negligência grosseira do ordenante, este suporta as perdas resultantes de operações de pagamento não autorizadas até ao limite do saldo disponível ou da linha de crédito associada à conta ou ao instrumento de pagamento, ainda que superiores a €50,00. (…)”
Da análise do preceito em causa, resulta que é elemento essencial para aferir da imputação da responsabilidade, a apreciação da conduta do ordenante, designadamente da verificação de negligência grosseira.
No caso concreto, trata-se de um dever de diligência particularmente disseminado, na medida em que a vulgarização dos sistemas de pagamento eletrónico implicou uma informação generalizada da população nos cuidados a ter naquela utilização. Atualmente, o recurso a cartões bancários é de tal forma usual, que é do comum conhecimento os riscos e cuidados necessários na utilização do cartão bancário.
Para além disto, este dever de diligência resulta da própria lei, sendo ainda promovido este conhecimento generalizado pelo próprio Banco de Portugal, nomeadamente no que concerne à marcação do PIN, advertindo para a necessidade de garantir que a mesma é feita em devidas condições de privacidade, protegendo a sua digitação do olhar de terceiros – disponível em www.bportugal.pt.
Neste sentido, dificilmente se justifica que o utilizador do cartão incumpra os referidos deveres, que se encontram necessária e intrinsecamente presentes no homem médio, minimamente cumpridor e normalmente diligente. Acresce ainda que se trata de um dever de fácil cumprimento, sem exigências de maior, pelo que o seu incumprimento se revela particularmente censurável.
Da actuação dos AA., dada como provada supra, não resulta qualquer negligência grosseira, apesar da utilização do cartão, indevidamente obtido, ter sido feita através da inserção de código PIN. Tal ocorreu devido a esquema fraudulento e criminoso que os AA. não tinham qualquer hipótese de detectar. A conclusão utilizada pelo Banco Réu apenas se aplicará quando existe uma situação óbvia de negligência grosseira por parte do cliente visado quando permite ou possibilita a acessibilidade dos dados secretos a outrem, quando bem conhecia que não o podia ou devia fazer. Não ocorre, pois, nessas hipóteses em análise o paradigma de conduta do cliente bancário medianamente cuidadoso que sabe que deve guardar, de modo zeloso, o seu cartão de crédito e não divulgar – seja de que modo – o respectivo PIN. – Pedro Fuzeta da Ponte, Algumas vicissitudes jurídicas decorrentes do relacionamento quotidiano entre a banca e os seus clientes, Direito Bancário, CEJ, pp. 51-52.
Em conclusão, o circunstancialismo especial apurado neste caso não permite assacar aos AA./clientes/utilizadores do cartão de débito a responsabilidade pelo uso do cartão por terceiros, com recurso ao Pin/código secreto correcto. A digitação do Pin na máquina ATM, aquando de um levantamento, não corresponde, em circunstâncias normais e previsíveis para o homem medianamente diligente, a um acto de divulgação do código secreto a terceiros. A inserção do cartão nessa mesma máquina ATM também não corresponde a um acto negligente de possibilitar o acesso desse cartão a outrem.
Em suma, a factualidade apurada permite-nos, com segurança, concluir que os AA. não violaram os deveres de diligência que sobre si impendiam, muito menos que se verifique qualquer censurabilidade na sua conduta.
Não houve portanto qualquer omissão do dever de guarda e vigilância do cartão de débito, tendo os AA. se apercebido imediatamente que ficaram desapossados do mesmo. Não estamos perante aquelas situações, essas sim censuráveis, em que o cartão desaparece da posse do cliente e este, de forma negligente, só se apercebe de tal desaparecimento muito mais tarde, negligenciando entretanto o dever de guarda.
Entende-se igualmente, atenta a factualidade apurada, que o Banco Réu não logrou provar atraso injustificado da comunicação do desaparecimento do cartão, apesar do lapso de tempo dado como provado, de 5 dias.
Com efeito, ficou assente factualidade totalmente incompatível com tal alegado “atraso injustificado”. O “atraso” deve antes ser considerado como totalmente justificado, atendendo ao circunstancialismo apurado.
Em primeiro lugar, importa salientar que o Réu exigia que a comunicação do desaparecimento tivesse de ser realizada pela titular do cartão, ora 1ª A., a qual se encontrava hospitalizada desde 9.6., data da retenção do cartão na ATM, numa altura em que a A. já tinha adoecido e se encontrava totalmente inoperacional, tendo a mesma ficado nos cuidados intensivos até 12.6 e portanto sem acesso a qualquer meio de comunicação à distancia (correspondendo 12.6 à data em que a utilização fraudulenta do cartão por terceiros cessou). Assim, apesar da situação ter sido reportada por um amigo dos AA., o Réu aguardou a comunicação da própria A., a qual só veio a ocorrer em 14.6, quando conseguiu redigir um e-mail em moldes telegráficos atenta a dificuldade em utilizar tais equipamentos em contexto hospitalar.
Não será despiciendo também atentar no teor do e-mail enviado que relata as dificuldades de comunicação com o Réu, devido à circunstância de se encontrarem no estrangeiro e não terem conseguido aceder ao atendimento em língua inglesa, única língua que dominam, não conseguindo compreender o português do atendimento automático inicial.
Acresce que a diligência exigida ao homem médio minimamente zeloso deve, no caso em apreço, ter uma atenuante significativa, considerando o estado de saúde grave da A. e a sua hospitalização, que impossibilitavam que a mesma acedesse a informações sobre a sua conta bancária, pelo que é perfeitamente compreensível que os AA. apenas, em 12.6., se tenham apercebido que o seu cartão retido na máquina ATM não tinha ficado nessa máquina, ou seja guardado na agência bancária onde se encontrava o equipamento, e afinal tinha sido utilizado por terceiros ilicitamente, em gastos avultados e desregrados.
Não resultaram pois provados quaisquer factos que justifiquem a responsabilização dos AA. pelos danos sofridos, antes pelo contrário.
A realização dos movimentos com o cartão de débito em apreço não se ficou a dever a qualquer atuação gravemente negligente dos autores, nem a qualquer incumprimento do dever de guarda, vigilância e conservação do cartão e pin que lhes incumbia, nem a qualquer atraso injustificado de comunicação do desaparecimento do cartão, e, como tal, não são responsáveis pelas perdas que sofreram (cf., para maiores desenvolvimentos, o Ac. STJ de 31.1.2019, disponível in www.dgsi.pt, que aborda a questão dos graus de culpa imputáveis aos Autores, enquanto clientes bancários, para responsabilização e assumpção dos prejuízos decorrentes dos anómalos movimentos operados com cartão, cujo paradeiro desconhecem).
Em face do exposto, imperioso se torna, pois, concluir que deverá proceder a pretensão dos autores, de responsabilização do Banco réu, nos termos do art.º 71º do DL supra citado, devendo este último repor a quantia de € 17.841,47, atento o facto dado como provado em 32).”
Não se descortinam razões para dissentir da interpretação efectuada pelo Tribunal recorrido, que se mostra correcta e adequada em função da factualidade apurada e à luz das normas jurídicas aplicáveis, sendo pacífica a convocação do RJSPME acima mencionado e, em concreto, os normativos legais transcritos na decisão recorrida.
Todavia, sempre se aduzirá o seguinte.
Além do mencionado diploma legal aqui aplicável, importa atentar ainda nas Condições Gerais de Utilização de Cartões Activobank e Instrumento de Pagamento para Transacções Seguras em Comércio Electrónico e Serviço MB Way, que constam do documento n.º 3 junto pelo réu com o requerimento de 23 de Setembro de 2021[8] (sobremaneira a partir de folhas 40), com as seguintes cláusulas:
“16.1 – O Titular deve assinar o cartão logo após a sua receção, e obriga-se a adotar todas as precauções adequadas para não tornar acessíveis ou perceptíveis a terceiros os seus Códigos Secretos referidos nas cláusulas 3 e 4, os quais deverá memorizar destruindo o envelope de informação do(s) mesmo(s). Caso o titular pretenda guardar o Código secreto, nunca os deve deixar em lugar visível ou acessível, e especialmente não deve nunca anotá-lo no próprio Cartão, nem em qualquer outro documento que tenha junto do Cartão. O Titular poderá alterar o Código Pessoal Secreto em qualquer caixa automático da rede MultiBanco, mas, nesse caso, não deve nunca reproduzir ou relacioná-lo com elementos de identificação pessoais, nomeadamente conjugações de 4 dígitos de fácil apropriação (por exemplo ano de nascimento ou dia e mês de aniversário) por terceiros em caso de perda, furto, roubo ou extravio do cartão.
16.2 – O Titular é responsável pela guarda, utilização e manutenção corretas do Cartão e dos dispositivos de segurança personalizados, incluindo o número de identificação e Códigos Secretos IPCE, não podendo facultar nem facilitar o seu uso a terceiros. […]
39 – Em caso de:
a) Perda, extravio, roubo, furto ou de apropriação abusiva, do cartão e/ou dos meios que permitam a sua utilização (incluindo o IPCE) […];
ou
b) Indevida e/ou incorrecta utilização do Cartão, ou de registos no extracto da Conta Cartão ou na Consta à Ordem Associada de transacções ou operações não realizadas ou autorizadas pelo Titular ou de quaisquer outros erros ou irregularidades relacionados com o Cartão […];
ou
c) Não receção do Cartão ou do extracto da Conta Cartão no prazo previsto, o Titular deverá, logo que de tais factos tome conhecimento, comunicar de imediato e pelo meio mais rápido que lhe for possível, sem qualquer atraso injustificado, ao Banco a respectiva ocorrência e transmitir todas as informações que possua e que possam de qualquer modo ser utilizadas pelo banco no apuramento dos factos e na regularização das respectivas situações, por via telefónica ou por outro meio mais expedito […]”
Como resulta já do acima expendido, era sobre o prestador de serviços de pagamento electrónico, no caso o réu, que recaía o ónus de provar que as operações de levantamento de fundos e as demais transacções realizadas com o cartão de débito foram autorizadas pelo seu cliente ou, no caso de operações não autorizadas – como aqui sucede –, a culpa deste e grau da sua contribuição para os prejuízos sofridos.
A propósito da utilização destes meios de pagamento refere Raquel Sofia Ribeiro de Lima, op. cit., pp. 36-37:
“No uso eletrónico do IP, encontramo-nos no âmbito de sistemas informáticos que permitem concretizar as operações de pagamento, mas comportam naturalmente riscos. A segurança do sistema estará dependente da atuação diligente de todos os seus utilizadores e intervenientes. Assim, há-de fazer-se uma repartição dos prejuízos entre as partes, tendo em consideração a atuação de cada uma delas no cumprimento dos deveres que lhe são impostos pelo contrato. Nas palavras do Tribunal da Relação de Lisboa, ainda que se referindo especificamente aos cartões, “(a) responsabilidade pela utilização fraudulenta de um cartão de crédito, por um terceiro, deverá ser repartida entre o titular do cartão e o emitente do mesmo, com base numa ideia de distribuição equitativa dos prejuízos causados, na medida do incumprimento dos deveres contratuais que sobre cada um impende, decorrentes do princípio geral da boa fé”. Atualmente, o RSP estabelece um regime de repartição dos prejuízos baseada na culpa que possa ser imputada ao titular do IP abusivamente utilizado. A prova de que este agiu com negligência grave ou violou deliberadamente alguma das suas obrigações cabe, nos termos do art.º 70.º n.º 1, à entidade prestadora do serviço.
Importa recordar que esta problemática respeita apenas aos prejuízos das operações fraudulentas registadas antes da notificação feita pelo titular à entidade prestadora do serviço, posteriormente à comunicação será o prestador do serviço de pagamento quem suporta todos os prejuízos, exceto se o titular agiu fraudulentamente. Desde 2009, sobre este recai a obrigação de “impedir qualquer utilização do instrumento de pagamento logo que a notificação (…) tenha sido efectuada”, sendo para este efeito indiferente o momento em que a comunicação é feita.”
O primeiro argumento invocado pelo apelante é a circunstância de os movimentos terem sido efectuados com a leitura do chip, o que implica que quem os realizou estava na posse do cartão e inseriu correctamente o código PIN, o que, no entender daquele, revela a culpa dos autores ou a faz presumir.
Certo é que no caso de o utilizador negar ter autorizado a operação de pagamento, incumbe ao respectivo prestador do serviço de pagamento fornecer prova de que a operação de pagamento foi autenticada, devidamente registada e contabilizada e que não foi afectada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência, conforme decorre do disposto no art.º 70º, nº 1 do RJSPME, tendo, no caso, o recorrente demonstrado que as operações aqui em crise foram feitas presencialmente e validadas com o chip do cartão e inserção de PIN.
No entanto, ressalva o nº 2 do referido art.º 70º do RJSPME que, se um utilizador de serviços de pagamento negar ter autorizado uma operação de pagamento executada “a utilização do instrumento de pagamento registada pelo prestador de serviços de pagamento, por si só, não é necessariamente suficiente para provar que a operação de pagamento foi autorizada pelo ordenante, que este último agiu de forma fraudulenta ou que não cumpriu, deliberadamente ou por negligência grave, uma ou mais das suas obrigações decorrentes do artigo 67.º”, ou seja, cabe ao prestador de serviço de pagamento provar tais elementos, o que aqui não sucedeu.
Não tendo resultado provado, pelo réu, que existiu actuação fraudulenta pelos autores, ou que estes não cumpriram as obrigações que lhes cabiam, deliberadamente ou com negligência grave, inexiste causa para presumir que a operação, ainda que validada, tenha sido autorizada – cf. neste sentido, ainda que a propósito do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento aprovado pelo DL 91/2018, de 12 de Novembro, mas cujo art.º 113º, n.º 3 é similar ao mencionado art.º 70º, n.º 2 do RJSPME, Miguel Pestana Vasconcelos, A Responsabilidade do banco por operações de pagamento não autorizadas no Online Banking, decorrente do Novo regime de Serviços de Pagamento (RSP II), in Revista Julgar, 42 Setembro-Dezembro 2020, pág. 205 – “[…] a simples utilização do instrumento de pagamento registada pelo prestador de serviços (incluindo o prestador do serviço de iniciação do pagamento, quando for o caso), não é necessariamente suficiente, por si só, para provar que a operação de pagamento foi autorizada pelo ordenante, que este último agiu de forma fraudulenta ou que não cumpriu, com dolo ou negligência grosseira, uma ou mais obrigações previstas no art.º 110º (art.º 113º, n.º 2 RSP)”; cf. ainda acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 8-03-2018, processo n.º 5525/16.3T8VNG.L1-6 e de 17-06-2014, processo n.º 2131/11.2TJLSB.L1-1.
Não releva, pois, para o efeito e por si só, a simples circunstância de o cartão de débito ter sido utilizado presencialmente com o PIN correcto e sem erros de digitação, importando aferir se alguma culpa pode ser imputada ao autor.
Relembre-se os factos apurados e que relevam especificamente para a apreciação da negligência grosseira que o apelante pretende imputar aos recorridos:
- Os autores foram passar férias a França, em Aix-en-Provence e no dia 9 de Junho, um sábado, a autora sentiu-se mal e quiseram regressar ao hotel, para o que o autor foi levantar dinheiro para o táxi com o cartão de débito do Activo Bank;
- O autor conseguiu levantar 200,00€, mas o cartão de débito ficou retido; porque era sábado, a instituição bancária onde se encontrava instalada o Caixa Multibanco estava encerrada, pelo que não foi possível pedir ajuda ou aconselhamento;
- O autor tomou nota dos números que apareceram no ecrã do caixa Multibanco e tentou ligar para ambos, sem ser atendido;
- Tentou também telefonar para o réu, mas não conseguiu que a chamada fosse atendida em língua inglesa, sendo que não domina a língua portuguesa;
- A autora começou a sentir-se pior, foi para o hospital e ingressou nos cuidados intensivos, de onde saiu apenas no dia 12 de Junho, para uma enfermaria, tendo passado muito tempo inconsciente;
- Entretanto, o autor continuava a tentar comunicar a situação ao Activo Bank, mas não conseguia passar do atendimento automático por gravação, por não compreender a língua portuguesa;
- Na terça-feira, dia 12 de Junho, e porque a autora tinha recuperado um pouco, a autora descobriu, com o acesso ao telemóvel, que o seu cartão de débito estava a ser utilizado por terceiros desconhecidos;
- Os autores voltaram a tentar contactar, repetidamente, o Banco réu para o alertar para a situação, mas nunca foram atendidos por um funcionário, mas apenas pelo sistema automático;
- Contactaram um amigo, que se prontificou a contactar o banco, o que aquele fez, mas o funcionário RA, com quem falou, explicou que tinha de ser a própria autora a ligar;
- O estado de saúde da autora permanecia muito grave, quase não podia falar e tinha momentos de delírio/inconsciência, assim permanecendo na quarta-feira, dia 13 de Junho;
- Só na quinta-feira, 14 de Junho, a autora conseguiu, do seu telemóvel, enviar um email ao Activo Bank pedindo para cancelar o cartão;
- O réu cancelou o cartão no dia 14 de Junho de 2018;
- O cartão de débito foi utilizado por terceiros, com dois levantamentos em caixas MB e sucessivas compras em diferentes lojas, entre os dias 9 e 12 de Junho;
- Todas as transacções referidas foram feitas presencialmente, validadas com o chip do cartão e assinatura ou inserção de pin, sem erro de digitação.
Com base neste elenco factual – que não foi modificado no sentido pretendido pelo apelante -, tem-se por afastada uma eventual violação do dever de confidencialidade dos dispositivos de segurança (PIN), não se reconhecendo qualquer actuação do titular do cartão que revele falta de cuidado na sua guarda, utilização e manutenção correctas e, bem assim, dos dispositivos de segurança personalizados.
Não obstante o apelante invoque as orientações constantes quer das condições gerais de utilização do cartão, quer as boas práticas recomendadas pelo Banco de Portugal[9], não tendo logrado demonstrar que os autores tenham facultado o cartão de débito a terceiros, que tenham mantido o PIN acessível a terceiros ou permitido que estes tivessem acesso a informação confidencial, assim como não tendo provado que o autor, logo após a retenção do cartão pelo caixa automático, tenha abandonado de imediato o local, não se identifica nenhum comportamento passível de integrar uma utilização do instrumento de pagamento em violação das condições da sua emissão e utilização, para efeitos da previsão da alínea a) do n.º 1 do art.º 67º do RJSPME.
Na verdade, confrontado com a retenção do cartão pelo caixa Multibanco e não lobrigando a razão para o sucedido, tendo o facto ocorrido durante um sábado, com a instituição bancária onde se encontrava o caixa fechada, o autor tentou telefonar para os números que surgiam no ecrã, sem ser atendido, assim como tentou contactar com o banco réu, sem conseguir ser atendido em língua inglesa, pelo que se lhe tornou inviável comunicar, desde logo, o sucedido.
Acresce que os factos ocorreram num momento de especial fragilidade dos autores, o que tornava não exigível que estivessem no uso da sua clarividência e capacidade de reacção normais.
A autora, porque estava a sentir-se mal, acabando por ser hospitalizada, entrando no serviço de cuidados intensivos, onde permaneceu até ao dia 12 de Junho, seguindo depois para uma enfermaria; o autor, porque se encontrava no estrangeiro, sem saber falar a língua e sem poder comunicar cabalmente com as pessoas ao seu redor (que tão-pouco se expressavam em inglês), estando preocupado com o estado de saúde da sua mulher, que se apresentava então deveras periclitante, o que justifica, sem exigência de especial densificação ou contextualização, porquanto a situação por si só é manifestamente esclarecedora, alguma desorientação e dificuldade até em compreender ou seguir eventuais instruções que lhe fossem dadas pela linha de atendimento do banco.
Esta situação justifica qualquer eventual falha, desconsideração ou desatenção para algum pormenor e até alguma incapacidade para lidar com todo este conjunto de eventos perturbadores da estabilidade pessoal/emocional de ambos os autores, sendo certo que, não obstante isso, resultaram provadas as sucessivas tentativas de comunicar ao réu o ocorrido mesmo antes de os autores terem tomado conhecimento de que o cartão estava a ser utilizado indevidamente por terceiros.
Quanto à apontada falta de pronta comunicação do extravio através da linha de cancelamento de cartões que o recorrente imputa aos autores, cumpre notar que o art.º 67º, n.º 1, b) do RJSPME faz recair sobre o titular do cartão a obrigação de comunicar, sem atrasos injustificados, ao prestador de serviços de pagamento ou à entidade designada por este último, logo que deles tenha conhecimento, a perda, o roubo, a apropriação abusiva ou qualquer utilização não autorizada do instrumento de pagamento, argumentando o réu que, tendo o cartão ficado retido no dia 9 de Junho de 2018, apenas em 14 de Junho de 2018 lhe foi comunicado esse facto, quando podia tê-lo sido, de imediato, através da linha de apoio disponível 24 horas por dia, 365 dias por ano.
Estatui o n.º 3 do art.º 72º do RJSPME o seguinte: “Havendo negligência grave do ordenante, este suporta as perdas resultantes de operações de pagamento não autorizadas até ao limite do saldo disponível ou da linha de crédito associada à conta ou ao instrumento de pagamento, ainda que superiores a (euro) 150, dependendo da natureza dos dispositivos de segurança personalizados do instrumento de pagamento e das circunstâncias da sua perda, roubo ou apropriação abusiva.”
A lei expande, deste modo, ao utilizador do instrumento a imputação de perdas no caso de negligência grosseira, que terá de as suportar até ao limite do saldo disponível ou da linha de crédito associada à conta ou ao instrumento de pagamento.
Para a correcta interpretação da norma há que ter presente que a negligência grosseira difere da falta de diligência ordinária ou culpa leve. Não basta a falta de cuidado que o bonus pater familae[10] teria, ou seja, aquela atenção que um utilizador cuidadoso teria, dentro das circunstâncias do caso concreto. Exige-se um nível de falta de cuidado mais elevado, um desleixo inadmissível para qualquer pessoa colocada naquela situação – cf. Miguel Pestana de Vasconcelos, op. cit., pág. 202; cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31-01-2019, processo n.º 2344/16.0T8PNF.P1.S1 – “[…] em sede de culpabilidade do agente, é costume distinguir três formas de culpa, a saber: Culpa lata, grave ou grosseira, consistente na inobservância da diligência mínima adoptada até pelos homens medianamente negligentes; - Culpa leve, substanciada no incumprimento dos deveres de diligência do homem normalmente diligente; e - Culpa levíssima, traduzida na inobservância da diligência adoptada pelos homens especialmente diligentes. […] o Prof. Inocêncio Galvão Telles […] acrescenta: -“Quer a culpa grave (que também se diz culpa lata) quer a culpa leve correspondem a condutas de que uma pessoa normalmente diligente – o “bonus pater familias” – se absteria. A diferença entre elas está em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida.”
Como se realça na decisão recorrida, não se pode deixar de atender a todo o circunstancialismo que envolveu a sucessão dos eventos retratados nos autos.
Qualquer pessoa de diligência mínima e razoável cuidaria, como fez o autor, de tentar contactar o seu banco para comunicar a retenção do cartão, mas não lhe era exigível - nem a nenhuma pessoa comum, de normal diligência, confrontada com a situação vivenciada naquele momento pelos autores, estando a autora mulher em condições de saúde extremas, que a remeteram para os cuidados intensivos de uma unidade hospitalar -, ter o discernimento suficiente para actuar de modo diferente ou até para priorizar a resolução da questão atinente à retenção do cartão de débito, enquanto se mantinha a incerteza sobre uma evolução favorável do estado de saúde da autora.
Não obstante, provou-se que enquanto a autora esteve internada, o autor continuou a tentar contactar com o banco, sem o conseguir, sendo que os autores só tiveram conhecimento da utilização abusiva do cartão no dia 12 de Junho de 2018, não podendo, de todo, face à manutenção de um estado de inconsciência por parte da titular do cartão durante a maior parte do tempo, considerar-se que o envio da mensagem de correio electrónico apenas em 14 de Junho de 2018, dando conta da retenção do cartão e pedindo o seu cancelamento, possa ser considerado um atraso injustificado na comunicação, para efeitos de se considerar violada a obrigação vertida no art.º 67º, n.º 1, b) do RJSPME.
Com efeito, os problemas de saúde que a autora enfrentou e a necessidade que o autor teve de a acompanhar, levando a que tivesse de se mudar para uma residência junto ao hospital, em Marselha, continuando a tentar contactar o banco, sem conseguir se fazer entender ou ultrapassar a fase do atendimento automático (cf. ponto 21.) são motivo bastante para o hiato temporal que decorreu entre o conhecimento seja da retenção do cartão seja da sua utilização abusiva e a data em que esses factos vêm a ser comunicados ao banco.
Demonstradas as diligências efectuadas pelo autor para entrar em contacto com o réu -tendo até diligenciado junto de uma pessoa amiga, em Portugal, para que apurasse junto do banco como poderia solucionar a situação - e atento o específico circunstancialismo vivenciado pelos autores, cuja perturbação e preocupação são plenamente justificadas face ao estado de saúde da autora, impedem que, dentro de um juízo de razoabilidade e de sindicância quanto à conduta minimamente diligente que qualquer pessoa colocada naquela posição deveria ter, se considere injustificado o tempo decorrido entre a verificação e conhecimento do evento e a sua comunicação ao banco réu.
Recaindo sobre o réu/apelante o ónus da prova da negligência grosseira, não logrando fazer essa prova, é ele, enquanto prestador de serviços de pagamento electrónicos, que deve arcar com os danos potenciados pelas fragilidades do sistema de pagamento que comercializa, designadamente, pelas debilidades da linha de apoio ou de cancelamento de cartões, através da qual o autor não logrou estabelecer contacto com o banco logo que se apercebeu que o seu cartão ficara retido no caixa Multibanco.
Improcede, assim, o presente recurso, devendo manter-se inalterada a decisão recorrida.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art.º 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art.º 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
O recorrente decai integralmente quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
As custas ficam a cargo do apelante.
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Lisboa, 24 de Janeiro de 2022
Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Alexandra Castro Rocha
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[1] Suprimiu-se a transcrição das declarações que consta já da motivação do recurso.
[2] Adiante designado pela sigla CPC.
[3] Disponível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram acessíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[4] Adiante designado pela sigla RJSPME.
[5] Regime aqui aplicável tendo em conta a data da ocorrência dos factos (Junho de 2018), não obstante ter sido revogado pelo DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro, que aprovou o novo Regime Jurídico Dos Serviços De Pagamento E Da Moeda Eletrónica, com entrada em vigor em 13 de Novembro de 2018.
[6] In Revista Electrónica de Direito Outubro de 2016, acessível em file:///C:/Users/Admin/Documents/Direito%20Banc%C3%A1rio/Artigo%20Raquel%20Lima.pdf, consultado em 12 de Janeiro de 2023.
[7] “[…] os factos essenciais são aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da excepção e cuja falta determina a inviabilidade da acção ou da excepção; - os factos instrumentais, probatórios ou acessórios são aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos; - finalmente, os factos complementares ou concretizadores são aqueles cuja falta não constitui motivo de inviabilidade da acção ou da excepção, mas que participam de uma causa de pedir ou de uma excepção complexa e que, por isso, são indispensáveis à procedência dessa acção ou excepção.”
[8] Cf. Ref. Elect. 303336170.
[9] Cf. CARTÕES DE PAGAMENTO Boas Práticas| Titulares de cartões, acessível em https://www.bportugal.pt/sites/default/files/bpcartoes-titulares_de_cartoes.pdf - “Utilização do Caixa Automático – CA (multibanco ou rede privativa)
• Certifique-se de que o CA apresenta um aspeto normal, sem sinais visíveis de alteração ou danos físicos, nomeadamente no local de inserção do cartão. Em caso de dúvida, não utilize esse equipamento;
• Garanta sempre que a marcação do PIN é feita em devidas condições de privacidade, protegendo a sua digitação do olhar de terceiros;
• Contacte de imediato o emitente do cartão sempre que, em caso de captura, não seja apresentado o motivo da captura ou este lhe suscite dúvidas;
• Os talões dos CA são uma forma tradicional de confirmar a realização de transferências. Caso seja o recetor de uma transferência realizada presencialmente por terceiros em CA, confirme que o recibo que lhe é entregue é o que é emitido pelo CA e que a data, a hora, o valor e o NIB/IBAN de destino são os esperados.”
[10] “O bom pai de família é uma bitola abstracta de diligência. Deve ser preenchida caso a caso e situação a situação: a diligência exigível a um banqueiro, a um canalizador, a um músico ou a um bailarino são distintas. Há que ponderar a exigência do cargo, a preparação requerida e as consequências de falhas.” – cf. António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, II – Das Obrigações em Geral, CIDP 2021, pág. 426.