PROVIDÊNCIA CAUTELAR DE SUSPENSÃO DE DESPEDIMENTO
AUDIÇÃO DA REQUERENTE
NULIDADE
Sumário

Deve ser precedida de audiência da requerente da providência cautelar de suspensão de despedimento a decisão que, perante factos novos trazidos aos autos pela empregadora após decretada a providência, declara ter cessado a obrigação da empregadora de pagamento da retribuição assegurada pela decisão que decretou a suspensão do despedimento.

(Elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


1.–Relatório


1.1.Nos autos de providência cautelar a que se mostra apensa a acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento em que é autora AAA e ré BBB, foi decretada em 22 de Junho de 2022 a suspensão do despedimento por extinção do posto de trabalho de que foi alvo a requerente com efeitos a 15 de Abril de 2022, por decidão judicial transitada em julgado.

Entretanto, a trabalhadora formulou o seguinte requerimento a 12 de Outubro de 2022:

«[…]

"A Requerida não procedeu ao pagamento da totalidade da remuneração da Requerente referente ao mês de Agosto, pagou só até 25 de Agosto, nem à remuneração referente ao mês de Setembro. Como tal, neste sentido, requere-se que a Requerida seja notificada para proceder aos pagamentos em falta, nos termos e para os efeitos do disposto do nº 2, do artº 39º do Código do Processo [de Trabalho].

[…]»

Ouvida a ré empregadora, veio a mesma alegar que moveu um processo disciplinar à A. no âmbito do seu poder disciplinar, ainda que cautelarmente readquirido na sequência da suspensão da eficácia da decisão de extinção do posto de trabalho, e nele decidiu despedir a A. com invocação de justa causa, cessando assim o contrato de trabalho e, por consequência, a obrigação de pagar vencimentos a partir do dia 25 de Agosto de 2022, não estando suspensos os efeitos do despedimento à data do requerimento da A.. Mais alegou que a A. intentou uma outra acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude deste segundo despedimento, que corre termos no processo n.º 2866/22.4T8VFX-A, Juiz 2 do Juízo do Trabalho de Vila Franca de Xira, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte.

Debruçando-se sobre o requerimento da trabalhadora e sobre os fundamentoa aduzidos pela empregadora, o Mmo. Juiz a quo emitiu em 18 de Outubro de 2022 despacho com o seguinte teor:

“No que respeita ao pagamento de retribuições de agosto e setembro veio a Ré/Requerida justifica o seu não pagamento em virtude de novo despedimento. Sem prejuízo do que se venha a concluir sobre a licitude do novo despedimento a título principal ou a sua suspensão a nível cautelar, a cessação do mesmo implica que cesse a obrigação do pagamento da retribuição.
Pelo exposto, indefere-se o requerido.

[…].”

1.2. A requerente, inconformada interpôs recurso desta decisão e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:

“1. Por sentença transitada em julgado a 12 de julho de 2022, proferida no âmbito do procedimento cautelar n.º 1021/22.8T8VFX, foi decretada a providência de suspensão de despedimento por extinção de posto de trabalho requerida pela aqui Recorrente, tendo o Tribunal considerado que  a prova produzida nesta sede de apreciação sumária conduz à afirmação de provável inexistência de motivo justificativo da cessação do contrato  cfr. requerimento inicial 22 de março de 2022, com a ref.ª CITIUS 41722683, e sentença de 22 de junho com a ref.ª 153232859.
2.Tendo sido requerida a impugnação da regularidade e licitude daquele despedimento, foi criado o apenso 1021/22.8T8VFX-A, o qual corre os seus termos no mesmo juízo;
3.No seguimento da sentença proferida no âmbito do procedimento cautelar, a Requerida/Recorrida decidiu despedir novamente a Requerente/Recorrente, desta vez por justa causa;
4. Vindo a alegar, em sede do processo n.º 1021/22.8T8VFX-A, que em face do novo despedimento da Requerente/Recorrente cessou o contrato de trabalho e, logo, a obrigação de proceder ao pagamento das suas retribuições cfr. requerimento datado de 14 de outubro de 2022 com a ref.ª CITIUS 43568052.
5. Ao contrário do que quer fazer crer a Requerida/Recorrida, a obrigação de proceder a tal pagamento é uma decorrência legal da procedência do pedido de suspensão do despedimento (artigo 39.º n.º 2 do CPT), que não pode ser influenciada pelo (novo) despedimento;
6. O Tribunal a quo veio dar razão à Requerida/Recorrida por via do despacho proferido a 19 de outubro de 2022, sobre o qual versa o presente recurso;
7. Salvo melhor opinião, o tribunal a quo andou mal, quando decidiu neste sentido, contrariando a sentença proferida anteriormente e violando assim caso julgado;
8. Sendo que o caso julgado um princípio constitucional, assente na tutela dos valores da certeza e segurança jurídica e da confiança, inerentes à ideia de Estado de direito democrático (artigo 2.º e 282 n.º 3 da CRP);
9. Nos termos do artigo 625.º do CPC, aplicável subsidariamente ao processo de trabalho, perante a existência de dois casos julgados contraditórios deve o segundo ser revogado, cumprindo-se a primeira decisão;
10. Caso assim não se entenda, sempre se dirá que o Tribunal a quo incorreu em erro na aplicação do direito, uma vez que, não existindo ainda decisão no âmbito da impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento por extinção de posto (proc. n.º 1021/22.8T8VFX-A), a providência cautelar não caducou;
11. O despacho recorrido surte o efeito prático de levantar a providência, sendo certo que não foram cumpridos os necessários formalismos (nomeadamente, o previsto no n.º 3 do artigo 373.º do CPC);
12. E também, reitera-se, não se verificam quaisquer causas de caducidade da providência, expressamente previstas nos artigos 40.º-A do CPT e 373.º do CPC;
13. O direito que a providência visa acautelar é o decorrente da eventual declaração de ilicitude do despedimento de extinção de posto, mormente, o direito da recorrente a receber as retribuições que deixar de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento - cfr. artigo 390.º, n.º 1, do CT.
14. Logo, a decisão da qual se recorre aplicou mal o direito, nomeadamente, desrespeitou os artigos 39.º, n.º 2 e 40.º-A do CPT, bem como o artigo 373.º do CPC e o artigo 53.º da Constituição da República Portuguesa;
15. Deve, por isso, ser revogado o despacho ora colocado em crise, e substituído por outro que ordene a Recorrida/Requerida a vir demonstrar nos autos o pagamento das retribuições em dívida, nos termos do artigo 39.º, n.º 2, do CPT.”

1.3. A requerida apresentou contra-alegações que rematou com as seguintes conclusões:
“A.  Entende a Recorrente que foi violado o caso julgado e que a Recorrida não podia despedir a Recorrente enquanto estava, a título cautelar, reintegrada por força da providência cautelar decretada.
B. A Recorrente pretende que o Tribunal da Relação de Lisboa tome uma decisão que é objecto do processo n.° 2866/22.4T8VFX, que corre termos no Juiz 2 do Juízo de Trabalho de Vila Franca de Xira, Tribunal Judicial de Lisboa Norte.
C. O que significa que não pode o Tribunal da Relação de Lisboa pronunciar-se sobre o objecto de uma acção ainda em curso na 1.ª Instância.
D. Em segundo lugar, também o recurso é legalmente inadmissível, na medida em que a Recorrente quer aproveitar o despacho sobre um requerimento realizado no processo após o trânsito em julgado da sentença da providência cautelar e após esgotado o poder jurisdicional do Juiz nos presentes autos.
E. O despacho recorrido de que a Recorrente apela, não se enquadra para efeitos da alínea j) do n.º 2 do artigo 79.º-A do CPT e/ou da alínea g) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC.
F. Os despachos recorríveis após a decisão final a que se referem as alíneas j) do n.º 2 do artigo 79.º-A do CPT e/ou da alínea g) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, são designadamente, os despachos que incidam sobre a reclamação da conta de custas, despachos que indefiram a emissão de certidões, e outros despachos legalmente previstos após findar o poder jurisdicional no processo.
G. O despacho recorrido não é mais do que um despacho interlocutório cujo recurso não está compreendido nas alíneas j) do n.º 2 do artigo 79.º-A do CPT e/ou da alínea g) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, motivo pelo qual, deve o recurso interposto ser rejeitado por ser legalmente inadmissível.
H. Conforme já afirmado, a sentença da providência cautelar já transitou em julgado, quando a Recorrente fez o pedido a este douto Tribunal, no processo que corre sob o apenso A e que foi concluído nos presentes autos.
I. O que significa que o presente recurso interposto pela Recorrente não legalmente admissível, por não se enquadrar nas decisões susceptíveis de recurso, prevista na alínea g) do n.º 2 do artigo 644.º do Código de Processo Civil e na alínea j) do n.º 2 do artigo 79.º-A do CPT.
J. Veio a Recorrente requerer que a Recorrida demonstrasse o pagamento do parcial do vencimento de Agosto de 2022 e do vencimento de Setembro de 2022, alegando que a Recorrida faltou ao pagamento de tais créditos laborais.
K. Ora, após o deferimento da providência cautelar no apenso a este processo, a Recorrida voltou a ter, ainda que a título cautelar, poder disciplinar sobre a Recorrente.
L. Foi precisamente por infracções detectadas pela Recorrida que esta moveu um processo disciplinar à Recorrente no âmbito do seu poder disciplinar, ainda que cautelarmente readquirido na sequência da suspensão da eficácia da decisão de extinção do posto de trabalho.
M. A Recorrente foi despedida no dia 25 de Agosto de 2022, através de decisão final no âmbito de um processo disciplinar.
N. Os efeitos do despedimento, à data do requerimento da Recorrente, não estavam suspensos, logo não existe qualquer obrigação legal de a Recorrida liquidar qualquer remanescente do vencimento de Agosto de 2022, bem como do vencimento de Setembro de 2022.
O. Logo, posto isto, a decisão interlocutória do Tribunal não ofende qualquer caso julgado, contrariamente ao alegado pela Recorrente e, assim deve ser rejeitado o recurso interposto pela Recorrente e, ainda que o mesmo venha a ser admitido, sempre deverá negado o provimento de acordo com os fundamentos acima referidos.
P. Caso se entenda que o recurso deve ser admitido, então cumpre referir que a Recorrente pretende fazer crer que a caducidade da providência deve ser decretada pelo Juiz, após audição do requerente, logo se mostre demonstrada nos autos a ocorrência do facto extintivo, de acordo com o n.º 3 do artigo 373.º da Código de Processo Civil.
Q. No âmbito da audiência de partes do Apenso A, pela Ilustre Mandatária da Trabalhadora foi pedida a palavra e, no seu uso, requereu: "a Requerida não procedeu ao pagamento da totalidade da remuneração da Requerente referente ao mês de Agosto, pagou só até 25 de Agosto, nem à remuneração referente ao mês de Setembro. Como tal, neste sentido, requer-se que a Requerida seja notificada para proceder aos pagamentos em falta, nos termos e para os efeitos do disposto do nº 2, do artº 39º do Código do Processo Penal”.
Ora, como a Recorrente havia levantado o incidente no apenso errado, o Mm. ° Juiz de Direito, e bem, decidiu o seguinte: "defere-se o prazo de 5 (cinco) dias para resposta ao requerimento da Trabalhadora. Decorrido, conclua o Procedimento Cautelar, que constitui os autos principais, para conhecer da questão ora suscitada.
S. Ou seja, o incidente de caducidade da providência cautelar foi conhecido no processo correcto e de forma correcta, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 28.03.2000, publicado no BMJ, 495.°-375.
T. Logo, não assiste razão à Recorrente, devendo ser negado provimento ao recurso de apelação interposto.
U. Por fim, sabendo a Recorrente que não tinha qualquer fundamento para o pedido elaborado, nem para o presente recurso de apelação, tendo o feito para obter um efeito jurídico ilícito, o que não deverá ser admitido, pelo que deve ser negado provimento ao mesmo.
Assim, nestes termos e nos demais de direito que V. Exa., doutamente suprirá, deve rejeitar o presente recurso por ser legalmente inadmissível e, caso assim não proceda, deve ser negado provimento ao mesmo, considerando todos os factos e fundamentos acima invocados para que assim se faça a costumeira Justiça!”

1.4. O recurso foi admitido por despacho de 14 de Novembro de 2022.

1.5. Autuada a presente apelação, foi proferido pela ora relatora despacho que julgou improcedente a questão prévia da inadmissibilidade do recurso.

1.6. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de que deve ser mantida a decisão da 1.ª instância.
Ambas as partes responderam a este Parecer, a recorrente dele discordando e a recorrida com ele concordando.
                                                                                                               *
Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
                                                                                                               *
2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões essenciais que se colocam à apreciação deste tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:

1) se podia o tribunal declarar cessada a obrigação do empregador de pagamento da retribuição, com o efeito prático de levantar a providência cautelar, sem observância do formalismo previsto no artigo 373.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (conclusão 11.ª);
2) se a decisão sob recurso violou o caso julgado formado pela sentença de 22 de Junho de 2022 que decretou a suspensão do despedimento por extinção do posto de trabalho de que foi alvo a requerente com efeitos a 15 de Abril de 2022 (conclusões 7.ª a 9.ª);
3) se se verificam as causas de caducidade da providência cautelar (conclusões 5.ª, 10.ª, 12.ª e 13.ª).
                                                                                                               *
3. Fundamentação de facto

São relevantes para a decisão do recurso os factos e ocorrências processuais que emergem do relatório antecedente.
                                                                                                               *
4. Fundamentação de direito

4.1. O direito potestativo de impugnação do despedimento reconhecido ao trabalhador pelo artigo 386.º do Código do Trabalho, garantindo-lhe o acesso a meios de defesa que contrariem os efeitos negativos emergentes de despedimentos ilícitos, tem a sua raiz no direito constitucional ao trabalho consagrado nos artigos 53.º e 58.º da Constituição da República Portuguesa.
A providência cautelar da suspensão de despedimento assegura as condições normais de subsistência do trabalhador perante situações de despedimento ilícito preservando, ainda que provisoriamente, os efeitos da relação laboral quando haja uma “probabilidade séria de ilicitude do despedimento” (artigo 39.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho), implicando, em regra, a reconstituição da situação anterior, mediante a reintegração do trabalhador no seu posto de trabalho e o pagamento das retribuições devidas enquanto perdurar a providência (artigo 39.º, n.º 2 do mesmo diploma)
Mas, justamente por força da sua provisoriedade, a providência cautelar tende à sua extinção ou à sua caducidade – cfr. os artigos 40.º-A do Código de Processo do Trabalho e 373.º do Código de Processo Civil – sendo certo que a caducidade da providência implica que a mesma deixe de produzir os efeitos a que tende.
Assim, nos termos do artigo 40.º-A, n.º 1, al. a), do CPT, o procedimento cautelar extingue-se e, se determinada, a suspensão do despedimento caduca se o trabalhador não deduzir a correspondente ação principal de impugnação do despedimento individual ou coletivo dentro de 30 dias, a contar da data da notificação do trânsito em julgado da decisão de suspensão do despedimento. Além disso, por força do nos termos do artigo 40.º-A, n.º 1, al. b), do CPT, aplica-se também o disposto no artigo 373.º, n.º 1 do CPC, desde que os casos aí previstos de caducidade “não sejam incompatíveis com a natureza do processo do trabalho”. Segundo este preceito da lei adjectiva civil, “[s]em prejuízo do disposto no artigo 369.º, o procedimento cautelar extingue-se e, quando decretada, a providência caduca: a) Se o requerente não propuser a ação da qual a providência depende dentro de 30 dias contados da data em que lhe tiver sido notificado o trânsito em julgado da decisão que a haja ordenado; b) Se, proposta a ação, o processo estiver parado mais de 30 dias, por negligência do requerente; c) Se a ação vier a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado; d) Se o réu for absolvido da instância e o requerente não propuser nova ação em tempo de aproveitar os efeitos da proposição da anterior; e) Se o direito que o requerente pretende acautelar se tiver extinguido”.

O despacho sob recurso, retirando efeitos jurídicos de uma declaração negocial do empregador de despedimento da trabalhadora emitida posteriormente à decisão da providência, afirmou que a cessação do contrato de trabalho operada pelo novo despedimento “implica que cesse a obrigação do pagamento da retribuição”, vindo a indeferir o pedido da trabalhadora de que a empregadora seja notificada para proceder ao pagamento de retribuições que se venceram após decretada a suspensão do anterior despedimento de que foi alvo.

Pelo que, em substância, tal despacho alcança os mesmos efeitos que a declaração de caducidade da providência: a decisão de suspensão de despedimento deixa de produzir os efeitos a que tende – a reposição do vínculo laboral, com o inerente direito da trabalhadora a ser reintegrada e a auferir as retribuições que se vencem – em consequência de um facto determinativo da extinção dos direitos que pretende acautelar (o novo despedimento que implica a cessação do contrato).

4.2. A questão que se coloca em primeiro lugar, por preceder logicamente as demais suscitadas, consiste em saber se podia o tribunal declarar cessada a obrigação do empregador de pagamento da retribuição após verificado o novo despedimento, com o efeito prático de levantar a providência cautelar, sem observar previamente os formalismos previstos artigo 373.º, n.º 3 do Código de Processo Civil para a declaração da caducidade da providência cautelar, nos quais se inclui a audiência prévia da requerente.

4.2.1. Ainda que a recorrente não qualifique esta alegação, que desenvolve no corpo das alegações e sintetiza nas conclusões (conclusão 11.ª), a mesma integra a invocação de nulidade processual nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil por a decisão recorrida ter sido proferida sem observar as formalidades que a lei prescreve.

Trata-se, pois, da imputação de um desvio ao formalismo processual seguido na tramitação que antecedeu a decisão agora sob censura – designadamente por ter omitido o prévio cumprimento do artigo 373.º, n.º 3 do Código de Processo Civil –, que só pode ser encarado na perspectiva de nulidade de processo e não do ponto de vista de um erro de julgamento.

Como refere Miguel Teixeira de Sousa, distinguindo os erros de procedimento que inquinam a própria decisão, daqueles que se reportam ao procedimento que a antecedeu: «nos vícios da decisão incluem-se apenas aqueles que a ela respeitam directamente. Quer isto dizer que não é considerado um vício da decisão a realização de um acto não permitido ou a omissão de um acto obrigatório antes do seu proferimento: tais situações são nulidades processuais, submetidas, na falta de qualquer regulamentação específica, ao respectivo regime geral»[1].

Esta distinção é importante, porque o regime de arguição é diferente consoante se trate de nulidade de processo ou de nulidade da sentença.

As nulidades da sentença (com excepção da originada pela falta de assinatura do juiz), se da decisão for admissível recurso, devem ser arguidas em recurso (artigos 615.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 77.º, do Código de Processo do Trabalho), o que deverá ser feito no prazo de interposição do recurso (artigo 80.º, n.º 1, do CPT).

As outras nulidades, quando o seu conhecimento dependa de arguição da parte interessada e a lei não estabeleça outro limite temporal, só podem ser arguidas no prazo geral de 10 dias, consignado no artigo 149.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho, contado do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, neste último caso quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (artigo 199.º, n.º 1 do Código de Processo Civil). E têm de ser suscitadas, mediante reclamação, perante o tribunal onde foram cometidas.

Só assim não será quando a nulidade esteja coberta por uma decisão judicial, caso em que o meio adequado de reacção é o recurso deste despacho.

É o que ocorre se uma nulidade processual não sanada está coberta por uma decisão judicial. Embora não se configure uma das nulidades específicas previstas no n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, não deixa, no entanto, de inquinar a sentença que a assumiu, sendo o modo adequado de reagir contra a mesma o recurso a interpor da sentença[2].

A este propósito refere Manuel de Andrade que “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se[3].

E igualmente Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, perfilham esta perspectiva ao anotar que “[s]e entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão[4].

Assim, se o Juiz da 1.ª instância profere uma decisão designadamente sem previamente possibilitar às partes que se pronunciem sobre as repercussões na lide das questões nela decididas, verifica-se uma irregularidade susceptível de influir na decisão do mérito da causa, que configura uma nulidade processual, nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do Código de Processo Civil, e tal decisão sancionou a falta cometida, dando cobertura a esse desvio processual e assumindo-o como sua, passando aquela nulidade processual a inquinar a decisão final como vício próprio desta.

No caso que nos ocupa, a recorrente invoca uma irregularidade de tramitação processual cometida antes de ser proferida a decisão sob recurso: não terem sido observadas as formalidades do artigo 373.º, n.º 3 do CPC antes de o Mmo. Juiz a quo afirmar a cessação dos efeitos da providência no que concerne à obrigação de pagamento da retribuição.

Nesta perspectiva, porque a nulidade processual invocada, a existir, se encontra coberta por uma decisão judicial, o meio adequado para reagir contra a violação das regras processuais é o recurso e não a arguição de nulidade perante o autor da decisão.

Importa, pois, apreciar, no âmbito desta apelação, se o Mmo. Juiz a quo preteriu efectivamente o disposto no artigo 373.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, como alegado pela apelante.
 
4.2.2. É um dado objectivo que a decisão sob recurso, que declarou ter cessado a obrigação de pagamento da retribuição, foi proferida sem que a requerente fosse ouvida sobre a alegação da recorrida quando esta trouxe ao processo novos factos dos quais o Mmo. Juiz a quo extraiu os indicados efeitos relativamente à cessação daquela obrigação que a providência cautelar assegurava.

Nos termos do preceituado no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil“[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” Daqui decorre que o Tribunal não deve apenas assegurar que seja cumprido o princípio do contraditório, no sentido do atempado e recíproco conhecimento dos actos processuais e das questões suscitadas como deve o Tribunal, ele próprio, observá-lo, facultando às partes a possibilidade de se pronunciarem, salvo em caso de manifesta desnecessidade, em cada momento do decurso do processo quando decidir questões de facto ou de direito, ainda que cognoscíveis ex officio. Mesmo o princípio geral enunciado no artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, segundo o qual o juiz “não está sujeito às alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e aplicação do direito” deve ser compatibilizado com a proibição absoluta das decisões surpresa constante do n.º 3 do artigo 3.º do mesmo diploma pelo que, antes da prolação da decisão final do processo deve ser facultado às partes o exercício do contraditório, sempre que a qualificação jurídica a adoptar ou a subsunção a um determinado instituto não correspondam à previsão das partes, expressa ao longo do processo[5].

No caso da declaração da caducidade da providência cautelar, o artigo 373.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável subsidariamente ao procedimento de suspensão de despedimento por força do artigo 33.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, prescreve especificamente que o levantamento da providência é determinado pelo juiz, “com prévia audiência do requerente, logo que se mostre demonstrada nos autos a ocorrência do facto extintivo”. 

No caso sub judice, o levantamento da providência cautelar não foi expressamente determinado pelo tribunal que, no termo do seu despacho, indeferiu a pretendida notificação da requerida para proceder ao pagamento das retribuições em falta. Simplesmente, como bem observa a recorrente, o despacho sob recurso surte o efeito prático de levantar a providência decretada quanto a um dos seus principais efeitos: o de fazer renascer a obrigação de pagamento da retribuição devida por força do contrato de trabalho.

Com efeito, de acordo com o já aludido artigo 39.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, a decisão sobre a suspensão tem “força executiva relativamente às retribuições em dívida, devendo o empregador, até ao último dia de cada mês subsequente à decisão, juntar documento comprovativo do seu pagamento”.

Ou seja, ainda que o Mmo. Julgador a quo não afirme expressamente que declara a caducidade da providência, o despacho em causa produz, precisamente, esse efeito que decorreria da caducidade da providência.

E fá-lo, efectivamente, sem cumprir os necessários formalismos, de que se destaca a audiência prévia da requerente, expressamente exigida pelo artigo 373.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

Como dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, perante as circunstâncias de que a lei faz depender a extinção do procedimento ou a caducidade da providência, o juiz deve decretá-lo, oficiosamente ou a requerimento, mas, “em qualquer dos casos , deve ser ouvido o requerente, isto é, o sujeito processual que será prejudicado pela decisão que determine a caducidade da providência[6].

Não cremos que possa consubstanciar uma tal audiência o próprio requerimento da requerente formulado em 12 de Outubro de 2022 no sentido de a requerida comprovar o pagamento das retribuições que entendia serem devidas nos termos do artigo 39.º, n.º 2 do Código de Processo do Trabalho, pois que, no momento, a requerente não estava de modo algum alertada para a possibilidade de ser judicialmente definido que a providência, em virtude de um facto novo que a própria não ponderou no requerimento formulado, não produziria os efeitos a que tende no período a que se reportavam as indicadas retribuições.

A verdade é que a requerente não foi ouvida sobre o alegado pela requerida na resposta apresentada ao seu pedido de notificação da mesma para proceder ao pagamento das retribuições nos termos do indicado artigo 39.º, n.º 2, sendo certo que foi nessa peça processual que a recorrida veio, por um lado, alegar factos ulteriormente atendidos pelo tribunal como determinativos da cessação da obrigação do pagamento da retribuição que a decisão de procedência da suspensão de despedimento fez renascer e, por outro, invocar expressamente que os efeitos do despedimento por extinção do posto de trabalho “não estavam suspensos” à data do requerimento, assim introduzindo pela primeira vez no processo a questão da cessação dos efeitos da providência cautelar, quer em termos de facto, quer em termos de direito.

Por isso devia ter sido a decisão sob censura precedida de despacho judicial que, de algum modo, alertasse a requerente para a possibilidade de vir a ser proferida decisão que declarasse cessados os efeitos da providência cautelar de suspensão de despedimento, particularmente a obrigação de pagamento da retribuição a que alude o artigo 39.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, ou dizendo-o expressamente, ou, pelo menos, determinando a notificação da requerente para se pronunciar sobre os novos factos alegados pela requerida e sobre os efeitos que a mesma deles pretendia extrair, para que tivesse a possibilidade de se pronunciar sobre tal questão, antes de o Mmo. Julgador emitir o seu juízo decisório.

Em suma, considerando que o despacho recorrido, no seu todo, consubstancia materialmente uma declaração de caducidade da suspensão de despedimento, a verdade é que o mesmo não poderia ser proferido sem a necessária audiência prévia da requerente da providência cautelar, ora recorrente, não tendo sido observado o formalismo prescrito no artigo 373.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, como alega a apelante.

Ao decidir oficiosamente, sem previamente ter dado oportunidade à requerente de se pronunciar sobre a questão, violou o tribunal a quo o comando ínsito nesse preceito adjectivo e a regra mais geral enunciada no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

In casu, a omissão praticada integra nulidade processual secundária, prevista no artigo 195º, nº 1 do CPC, já que é, sem dúvida, susceptível de influir no desfecho final da lide, na medida em que a omissão de confronto da ora recorrente com a eventual cessação dos efeitos da providência, impediu-a de, perante o tribunal a quo, expor a argumentação fáctica e jurídica que entendesse pertinente, obstando a que pudesse influir na decisão que veio a ser proferida.[7].

Deverá pois ser determinada a observância da norma legal violada, com a consequente anulação do atos processuais praticados após o momento em que essa norma processual devia ser observada nos termos prescritos no artigo 195.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o que acarreta a anulação consequencial da sentença.

Merece, pois, provimento a apelação, ainda que com efeitos distintos dos pretendidos.

4.3. Pela procedência da primeira questão acima elencada, que implica a anulação da decisão sob censura, mostra-se prejudicado o conhecimento das demais – cfr. o artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 663.º, n.º 2 do mesmo diploma legal e ambos ex vi do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho.
                                                                                                               *
4.4. As custas do recurso devem ser suportadas pela recorrida, que ficou vencida (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). Não havendo encargos a contar neste recurso que, para efeitos de custas processuais, configura um processo autónomo (artigo 1.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais), restringem-se as mesmas às custas de parte que haja.
                                                                                                               *
5. Decisão

Em face do exposto, julga-se verificada a nulidade processual acima indicada e anula-se a decisão recorrida, ordenando-se que no Tribunal a quo seja dado cumprimento ao disposto no artigo 373º, n.º 3 do Código de Processo Civil, nos termos assinalados e, depois de estabelecido o contraditório, seja tomada a decisão que se entender adequada.
Condena-se a recorrida nas custas de parte que haja.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, anexa-se o sumário do presente acórdão.


Lisboa, 01 de Fevereiro de 2023


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(Maria José Costa Pinto)
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(Manuela Bento Fialho)
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(Alda Martins)



[1]In Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, p. 216.
[2]Vide, neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2007.12.19, Processo: 07S3387, de 2015.07.02, Processo n.º 2641/13.7TTLSB.L1.S1 e de 2017.02.22, proc. 5384/15.3T8GMR.G1.S1, o Acórdão da Relação de Guimarães de  2018.12.06, processo n.º 45/17.1T8MAC.G2, o Acórdão da Relação de Lisboa de 2012.02.07, Processo 1737/11.4TVLSB.L1-7 e o Acórdão da Relação do Porto de 2015.03.02, Processo: 39/13.6TBRSD.P1, todos in www.dgsi.pt.
[3]In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1976, p. 182.
[4]In Manual de Processo Civil, Coimbra, 1985, p. 393.
[5]Vide Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.ª edição, pp.33-34 e Abílio Neto in Código de Processo Civil Anotado, 20ª ed., p. 901, em anotação ao art. 664.º.
[6]In Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, p. 440-441.
[7]Uma das hipóteses de nulidade em que a jurisprudência tem admitido a impugnação da nulidade processual através do recurso da decisão que lhe dá cobertura é justamente a preterição do contraditório, entendendo-se que o incumprimento das regras processuais é cometido com o prolação da própria decisão não precedida de contraditório – vide os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 2012.04.19, Processo n.º 296/1997.L1, de 2011.01.11, Processo n.º 286/09.5T2AMD-B.L1-1 e de 2010.11.04, Processo n.º
260/10.9YRLSB-8, in www.dgsi.pt.).