RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
APOIO JUDICIÁRIO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
INDEFERIMENTO
DIREITO AO RECURSO
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
INCONSTITUCIONALIDADE
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
REENVIO PREJUDICIAL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Sumário


I- A Constituição não impõe que o direito de acesso aos tribunais, em matéria cível, comporte um triplo ou, sequer, um duplo grau de jurisdição, apenas estando vedado ao legislador ordinário uma redução intolerável ou arbitrária do conteúdo do direito ao recurso de atos jurisdicionais.
II- Estipulando a lei do apoio judiciário que a decisão do juiz de 1ª Instância é irrecorrível, dessa inadmissibilidade de recurso não resulta violação de princípios ou de normas com consagração na Constituição, nem violação de normas constantes de Diretivas da União Europeia.
III- Lei nº 34/2002 de 29 de julho que transpôs para a ordem jurídica interna o direito europeu em matéria de apoio judiciário (Diretiva 2002/8/CE do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios transfronteiriços, através do estabelecimento de regras mínimas comuns relativas ao apoio judiciário no âmbito desses litígios) cumpre a obrigatoriedade de garantir o direito a revisão ou a recurso.
IV- É entendimento jurisprudencial pacifico (quer a nível nacional quer do Tribunal Europeu) que o reenvio prejudicial não é obrigatório, mesmo quando o tribunal decide em última instância, desde que a norma a aplicar for de tal modo clara e evidente que não deixa qualquer dúvida razoável quanto à sua interpretação quer para o tribunal que aprecia quer para os demais tribunais dos Estados Membros.
V- A obrigação de reenvio prejudicial decorrente do art. 267º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia cede quando a interpretação dos dispositivos em causa seja clara e não suscite, por isso, dúvida razoável.

Texto Integral

RECLAMAÇÃO – ART. 643 do CPC

RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA


*


Acordam, em conferência, os Juízes do Supremo do Tribunal de Justiça, 1ª Secção:

1- Nos autos principais AA impugnou judicialmente a decisão da entidade administrativa que indeferiu o seu pedido de concessão do benefício do apoio judiciário, considerando que o requerente dispõe de condições económicas para beneficiar do apoio judiciário, apenas, na modalidade de pagamento faseado.

2- Impugnação deduzida perante o Juízo competente, sendo proferida decisão pela Srª Juíza do Juízo Local Cível ... - ..., com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julgo improcedente o presente recurso, mantendo a decisão administrativa”.

3- Inconformado, vem apresentar “Recurso de Revista per saltum com requerido julgamento ampliado (Artigos 644º, n.º 1 ,al. a), 678º, n.º1, e 686º, n.º 1, do Código de Processo Civil)”.

4- Não foi admitido o recurso, com os seguintes fundamentos:

“O Acórdão mencionado no requerimento que antecede refere o seguinte: “ declara inconstitucional a norma que impõe o pagamento da taxa de justiça inicial nos 10 dias contados da data da comunicação ao requerente da decisão negativa do serviço da segurança social sobre o apoio judiciário, sem prejuízo do posterior reembolso das quantias pagas no caso de procedência da impugnação daquela decisão, constante da alínea c), do n.º 5, do artigo 29.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de junho, na redação dada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, por violação do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição”. Facilmente se depreende que a situação dos autos não é enquadrável na inconstitucionalidade declarada no acórdão referida, pois trata-se da taxa de justiça devida pela interposição de recurso da decisão judicial. Contudo e por uma questão de utilidade e economia processual decide-se de imediato sobre o recurso interposto.

De acordo com a Lei do Apoio Judiciário, a decisão que conhece da impugnação judicial do indeferimento do apoio judiciário é irrecorrível, nos termos do artigo 28º, n.º 5, da mencionada lei.

Pelo exposto e ao abrigo do disposto no artigo 28º, n.º 5, da Lei do Apoio judiciário, não admito o recurso interposto, por ser legalmente inadmissível.

Custas a cargo do Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.

Vão os autos à conta”.

5- Inconformado, o recorrente apresenta Reclamação, fundamentando-a no “direito a um recurso efectivo”, reforçando “agora o REQUERIMENTO inicial, ao abrigo do artigo 686º, n.º 2, do CPC, para que o julgamento da revista em pauta se faça com intervenção do Pleno das Secções Cíveis” e formulando o pedido “Termos por que, fazendo no caso, como sói, sã e inteira justiça, esse Supremo Tribunal ad quem admitirá, em definitivo, o recurso de revista em pendência e, em julgamento competentemente ampliado, conceder-lhe-á a final o requerido e reclamado, porque em absoluto merecido, provimento”.


*


6- Pelo relator foi proferido despacho no qual se indeferiu a reclamação, com os seguintes fundamentos:

«DECIDINDO:

A questão a analisar é somente a de saber se é admissível recurso de revista da decisão de indeferimento que incidiu sobre requerimento onde se pedia a concessão de apoio judiciário.

Não tem relevância, neste momento, pronunciarmo-nos sobre o pedido de revista ampliada porque o julgamento nesta modalidade é determinado pelo Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, “quando tal se revele necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência”, mas apenas se o recurso de revista tiver sido admitido.

E ainda nos encontramos na fase de análise, de averiguar se o recurso é admissível.

Conforme refere o Ac. desta Secção, de 26-11-2019, proferido no Proc. nº 1320/17.0T8CBR.C1-A.S1, “IV - A jurisprudência do Tribunal Constitucional vem assumindo que a Constituição não impõe que o direito de acesso aos tribunais, em matéria cível, comporte um triplo ou, sequer, um duplo grau de jurisdição, apenas estando vedado ao legislador ordinário uma redução intolerável ou arbitrária do conteúdo do direito ao recurso de atos jurisdicionais, manifestamente inexistente nas normas do Código de Processo Civil relativas aos requisitos de admissibilidade do recurso de revista”.

No mesmo sentido, o Ac. deste STJ de 31-03-2022, proferido no Proc. nº 12/21.0T8VCT-A.S1, com o seguinte sumário: “I. É irrecorrível a decisão proferida sobre a impugnação judicial da decisão sobre o pedido de protecção jurídica (n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho).

II. Sendo inadmissível o recurso, é inútil averiguar se a decisão de que o reclamante pretende interpor recurso de revista per saltum está ou não abrangida pelo n.º 1 do artigo 644.º do Código de Processo Civil.

III. Não resulta da Constituição a imposição da possibilidade de recurso de uma decisão judicial que, julgando a impugnação de uma decisão administrativa de negação de um pedido de apoio judiciário, a julgue improcedente, por falta de verificação dos pressupostos de concessão da modalidade de apoio requerida”.

E na doutrina, veja-se Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 451-452 “mesmo sendo possível fundar constitucionalmente um direito genérico de recorrer das decisões judiciais, este direito teria apenas o significado de que o legislador está impedido de abolir o sistema de recursos in toto ou de o afetar substancialmente através de soluções que restrinjam de tal modo o direito de recorrer que, na prática, se traduzam na supressão tendencial dos recursos”. O legislador ordinário dispõe, pois, conforme tem vindo a ser reconhecido pelo Tribunal Constitucional, de uma margem de conformação para estabelecer requisitos de admissibilidade dos recursos (designadamente em função do valor da causa, da natureza do processo, do tipo e objetivo das ações, da relevância das causas, da importância das questões, apenas limitada pelo princípio da proporcionalidade, não sendo constitucionalmente admissível a consagração de exigências desprovidas de fundamento racional, sem conteúdo útil ou excessivas).

O legislador introduziu limitações ao recurso de revista visando alcançar um descongestionamento do Supremo Tribunal de Justiça. A justificação desta solução, tal como as restantes limitações ao direito ao recurso, decorre, como refere Lopes do Rego (O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 764), “(…) da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais”.

Compreende-se, pois, que o legislador, no art. 28º, n.º 5, da Lei nº 34/2002 não admita recurso da decisão, proferida pelo juiz, que incida sobre o requerimento de impugnação e que conceda ou recuse o apoio judiciário pretendido.

A Lei nº 34/2002 de 29 de julho que contém o regime de acesso ao direito e aos tribunais, refere nos nºs 4 e 5 do art. 28º:

“4 - Recebida a impugnação, esta é distribuída, quando for caso disso, e imediatamente conclusa ao juiz que, por meio de despacho concisamente fundamentado, decide, concedendo ou recusando o provimento, por extemporaneidade ou manifesta inviabilidade.

5 - A decisão proferida nos termos do número anterior é irrecorrível”.

Sobre a interpretação da norma pela jurisprudência, tem o recorrente conhecimento, face ao alegado na reclamação.

Estipulando a lei do apoio judiciário que a decisão do juiz de 1ª Instância é irrecorrível e, não resultando violação de princípios ou de normas com consagração na Constituição, não tem sustentação a alegação do recorrente de pretender que seja admitido o recurso que interpôs.


*


Face ao exposto, indefere-se o requerimento de reclamação contra o despacho que não admitiu o recurso de revista, por inadmissibilidade do mesmo.

Conforme art. 643º nº 4, do CPC, mantem-se o despacho reclamado.

Custas a cargo do recorrente/reclamante, com taxa de 3 UC.»


*


7- Notificado o reclamante, vem ao abrigo do disposto no art. 643º nº 4, parte final, do CPC, reclamar para a conferência.

Reclamando para a Conferência, o reclamante conclui:

“1.ª Queda acima, a juízo do signatário, apodicticamente demonstrada a perfeita recorribilidade, em um grau, da decisão prevista no n.º 4 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004  que, por vício próprio, julgue invalidamente como inválida impugnação judicial válida do acto administrativo por essa via atacado.

2.ª Radica essa demonstração, antes de mais, no direito português vigente: no próprio normativo sindicado, doutrinalmente interpretado segundo uma dimensão inédita, e, mormente, na jurisprudência constitucional atinente, que discrimina negativamente, no plano da irrecorribilidade, a decisão judicial que ofenda ela própria o direito fundamental envolvido.

3.ª O argumento principal, neste contexto, é, contudo, aquele assente no direito comunitário europeu: mais precisa e concretamente, centralmente, no princípio constitucional, fundamental da ordem jurídico-institucional da União Europeia, da interpretação uniforme do direito euro comunitário. De tal força, efectivamente, que, caso esse Supremo Tribunal ad quem não encontre antes as fundadas razões, que acabo de invocar, para o pronto provimento da presente reclamação — e, consequentemente, a imediata revogação do Despacho impugnado, logo substituído por decisum colegial a conceder ao recurso em pendência, certamente, em julgamento ampliado, o merecido provimento, com todos os devidos e legais efeitos —, REQUERIDO vai, ao abrigo do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o reenvio ao Tribunal de Justiça europeu do Luxemburgo, para a competente interpretação vinculativa, da questão pré-judicial acima (in §.25) para esse preciso efeito enunciada.

8- Não houve resposta.


*


As questões a decidir nesta sede respeitam:

- Da admissibilidade, ou não, de recurso de decisão da 1ª Instância que indeferiu o pedido de apoio judiciário.

- Da necessidade de reenvio da questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia, como questão prejudicial.

Ao tribunal compete conhecer das questões que lhe são postas para apreciação, não tendo de rebater toda e qualquer motivação ou razão exposta pelo recorrente ou reclamante.

Assim que foi tomado conhecimento da questão suscitada, que era somente a de saber se era admissível recurso da decisão que recaiu sobre a impugnação do indeferimento do pedido de apoio judiciário.

Quanto a essa, que é agora a primeira questão, o reclamante nada mais acrescenta, apenas mantendo a posição já antes assumida.

No entanto faz referência a jurisprudência do TC que vai no sentido da decisão de que reclama.

“Mas quando a afectação do direito fundamental do cidadão teve origem numa actuação da Administração ou de particulares e esta actuação já foi objecto de controlo jurisdicional, não é sempre constitucionalmente imposta uma reapreciação judicial dessa decisão.

(…).

Do que se trata é de reconhecer que, neste contexto, mesmo que essa impugnação venha a ser julgada improcedente, a afectação do direito do cidadão de acesso aos tribunais não é directamente imputável à decisão judicial que julgue a impugnação, e o direito de reapreciação judicial das decisões (ou condutas) jurisdicionais só se deve considerar constitucionalmente imposto, de acordo com a tese avançada, se a afectação de direitos fundamentais tiver origem na actuação do tribunal”.

Que é o que acontece nos autos. A atuação da entidade administrativa que indeferiu o pedido de apoio judiciário foi impugnada e, o Tribunal de 1ª Instância reapreciou a questão e manteve aquele indeferimento.

O que diz a Lei nº 34/2002 de 29 de julho que contém o regime de acesso ao direito e aos tribunais, no nº 5 do art. 28º, que a decisão é irrecorrível, já supra se fez referência (nº 5 introduzido pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto).

Mas também refere o art. 26º nº 2 que, “2 - A decisão sobre o pedido de protecção jurídica não admite reclamação nem recurso hierárquico ou tutelar, sendo susceptível de impugnação judicial nos termos dos artigos 27.º e 28.º”

E do art. 27º refere que a Segurança Social pode revogar ou manter a decisão, referindo no nº 3:

“3 - Recebida a impugnação, o serviço de segurança social dispõe de 10 dias para revogar a decisão sobre o pedido de protecção jurídica ou, mantendo-a, enviar aquela e cópia autenticada do processo administrativo ao tribunal competente.”

E estas normas não restringem o disposto na norma da União Europeia sobre a matéria.

A Diretiva 2002/8/CE do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios transfronteiriços, através do estabelecimento de regras mínimas comuns relativas ao apoio judiciário no âmbito desses litígios, estabelece.

“Artigo 15º

Apreciação e decisão dos pedidos

1. As autoridades nacionais competentes para conhecer dos pedidos de apoio judiciário devem velar por que o requerente seja plenamente informado do tratamento do pedido.

2. As decisões devem ser fundamentadas nos casos de rejeição total ou parcial dos pedidos.

3. Os Estados-Membros devem garantir a possibilidade de revisão ou de interposição de recurso das decisões de rejeição dos pedidos de apoio judiciário. Os Estados-Membros podem isentar os casos em que o pedido de apoio judiciário tenha sido rejeitado por um órgão jurisdicional de cuja decisão não haja recurso judicial previsto no direito interno ou por um tribunal de recurso.

4. Os recursos de uma decisão de recusa ou retirada de apoio judiciário tomada em aplicação do artigo 6.º que sejam de natureza administrativa devem ser, em última instância, susceptíveis de controlo jurisdicional” (sublinhado nosso).

Embora esta seja a versão oficial vertida no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, temos que é pouco percetível a segunda parte do nº 3.

O que resulta da análise de outras versões em outras línguas é que “Os Estados-Membros podem isentar os casos em que o pedido de apoio judiciário tenha sido rejeitado por um órgão jurisdicional de cuja decisão [objeto do processo] não haja recurso judicial previsto no direito interno ou por um tribunal de recurso.” Se a questão objeto do processo não admitir recurso, poderá o Estado membro prescindir da revisão ou do recurso relativamente ao incidente do apoio judiciário.

Na versão em espanhol: “Los Estados miembros podrán exceptuar los casos en que la solicitud de justicia gratuita sea denegada por un órgano jurisdiccional contra cuya resolución sobre el fondo del asunto no pueda interponerse recurso en virtud de la legislación nacional, o por un tribunal de apelación.” (sublinhado nosso).

Na versão em língua francesa: “Les États membres peuvent prévoir une exception pour les cas où la demande d'aide judiciaire est rejetée par une juridiction dont la décision sur le fond ne peut faire l'objet d'un appel en droit national ou par une juridiction d'appel.” (sublinhado nosso).

Não havendo, sobre esta matéria, alteração pela DIRECTIVA 2003/8/CE DO CONSELHO de 27 de Janeiro de 2003.

Lei nº 34/2002 de 29 de julho que transpôs para a ordem jurídica interna o direito europeu nesta matéria cumpre, como se disse, a obrigatoriedade de garantir o direito a revisão ou a recurso.

E no caso concreto, sendo impugnado o indeferimento do pedido de apoio judiciário, essa decisão foi objeto de revisão, pelo tribunal de 1ª Instância que a manteve. A decisão da autoridade administrativa que indeferiu o pedido de apoio judiciário foi impugnada judicialmente e foram conhecidos os fundamentos da impugnação por tribunal judicial, o que constituiu a garantia de possibilidade de revisão da mesma.

O art. 19º da mesma Diretiva, reportando-se a “Disposições mais favoráveis”, refere:

“As disposições da presente directiva não obstam a que os Estados-Membros estabeleçam disposições mais favoráveis para os requerentes e beneficiários de apoio judiciário”.

As disposições da Lei nº 34/2002 indo de encontro e absorvendo o normativo da referida Diretiva pode, até, considera-se mais favorável, pois que, mesmo quando o objeto da ação não seja suscetível de recurso ordinário, a decisão de rejeição do pedido de apoio judiciário pela Segurança Social pode sempre ser impugnada e reapreciada por estes serviços, competindo a decisão final ao órgão jurisdicional, o tribunal de primeira instância. O disposto no art. 28º desta Lei é semelhante ao que dispõe a Diretiva 2002/8/CE, no seu art. 15º.

Assim o entendeu também o Ac. deste STJ de 31-03-2022, no Proc. nº 12/21.0T8VCT-A.S1.

O sistema consagrado na Lei nº 34/2002 prevê a possibilidade de revisão da decisão da autoridade administrativa (serviços da Segurança social) por tribunal judicial em apreciação da decisão impugnada.

E para se chegar a esta conclusão não é necessário qualquer esforço de interpretação, nem recorrer ao estatuído no art. 9º do Código Civil. Basta a mera leitura do texto daquelas normas.

O Direito da União vigora automaticamente na ordem jurídica interna de cada um dos Estados-Membros, no caso de Portugal, conforme o n° 4 do art. 8º da Constituição da República Portuguesa, impõe-se que, tendo em conta o princípio da lealdade europeia, os Estados Membros estejam obrigados a adotar todas as medidas necessárias ao cumprimento dos objetivos dos tratados e a não adotar medidas que ponham em causa tais objetivos.

O termo «recurso» não se encontra definido no direito do Conselho da Europa ou no direito da União. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem consagra no art. 13º o direito a um recurso efetivo: «Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por pessoas que atuem no exercício das suas funções oficiais».

No Manual de legislação europeia sobre o acesso à justiça, a fls. 106 pode ler-se: “Nos termos do direito do CdE e do direito da UE, nem o artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, nem o artigo 13.º da CEDH exigem a disponibilização de uma forma específica de recurso. O principal requisito é o de que o recurso seja «efetivo na prática e na lei». A eficácia do recurso não depende da certeza de um resultado favorável. O tipo de recurso necessário vai depender das circunstâncias de cada caso.”

E acrescenta: “Nos termos do direito da UE, o TJUE reconheceu a obrigação dos Estados-Membros de proporcionarem recursos que sejam suficientes para garantir a tutela jurisdicional efetiva dos direitos nos domínios abrangidos pelo direito da União.”

E nos termos do direito da União, a garantia a um recurso perante uma «instância nacional» não tem de ser uma instância judicial.

Dispõe o art. 267º do TRATADO SOBRE O FUNCIONAMENTO DA UNIÃO EUROPEIA, que: “O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a) Sobre a interpretação dos Tratados;

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.”

É entendimento pacífico que o reenvio não é obrigatório, mesmo quando o tribunal decide em última instância, desde que a norma a aplicar for de tal modo clara e evidente que não deixa qualquer dúvida razoável quanto à sua interpretação quer para o tribunal que aprecia quer para os demais tribunais dos Estados Membros.

E, no caso concreto, como já referido, a Diretiva apenas impõe que os Estados Membros garantam a possibilidade de revisão ou de interposição de recurso das decisões de rejeição dos pedidos de apoio judiciário. Sendo a possibilidade de interposição de recurso alternativa à possibilidade de revisão, ou seja, exige-se uma segunda apreciação e decisão ou, por revisão da decisão da autoridade administrativa ou por via de recurso quando a primeira decisão já é jurisdicional.

E refere o Ac. deste STJ já indicado no despacho reclamado, de 31-03-2022, no Proc. nº 12/21.0T8VCT-A.S1, que “No que toca às versões inglesa, espanhola, francesa e italiana do n.º 3 do artigo 15.º da Directiva 2002/8/CE do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, entende-se que não consagram a necessidade de dois graus de recurso judicial da decisão de rejeição dos pedidos de apoio judiciário. Não se vê, assim, como sustentar a desconformidade do regime português de irrecorribilidade da sentença, previsto no n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004,de 29 de Julho.

Inês Quadros, in “A função subjectiva da competência prejudicial do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”, Almedina, Coimbra 2006 página 46 expõe:

“(…Para que se configure uma obrigação de reenviar é preciso que se verifique em primeiro lugar que, no âmbito da resolução de um caso, o juiz se depare com uma dúvida sobre a validade ou o alcance dessa norma; em segundo lugar, que a resolução dessa dúvida seja essencial para a resolução do caso, e não meramente acessória, por fim, em terceiro lugar que o Juiz nacional se encontre perante um caso do qual já não cabe recurso”.

A obrigação de reenvio prejudicial decorrente do art. 267º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia cede quando a interpretação dos dispositivos em causa seja clara e não suscite, por isso, dúvida razoável.

O reenvio prejudicial para o TJUE é, em princípio facultativo, dependendo exclusivamente do poder discricionário do Tribunal nacional, sendo certo que existem alguns casos em que o mesmo se torna obrigatório.

Porém, a aparente obrigatoriedade decorrente de um pedido de reenvio ter sido feita a um Órgão jurisdicional cujas decisões, que à luz do direito interno, sejam insuscetíveis de recurso ordinário, veio a ser resolvida pelo caso Cilfit de 6 de Outubro de 1982, onde se conclui que a convocação das instâncias comunitárias só se justificará, quando as instâncias nacionais considerem que o recurso àquelas é necessário para a solução do pleito e mais, que haja sido suscitada uma dúvida quanto à interpretação desse direito.

Neste sentido, o Ac. deste STJ de 17-03-2016, no Proc. nº 588/13.6TVPRT.P1.S1, que decidiu: “VI. O reenvio prejudicial para o TJUE é, em princípio facultativo, dependendo exclusivamente do poder discricionário do Tribunal nacional, sendo certo que existem alguns casos em que o mesmo se torna obrigatório.

VII. A aparente obrigatoriedade decorrente de um pedido de reenvio ter sido feita a um Órgão jurisdicional cujas decisões, que à luz do direito interno, sejam insusceptíveis de recurso ordinário, veio a ser resolvida pelo caso Cilfit de 6 de Outubro de 1982, onde se conclui que a convocação das instâncias comunitárias só se justificará, quando as instâncias nacionais considerem que o recurso àquelas é necessário para a solução do pleito e mais, que haja sido suscitada uma dúvida quanto à interpretação desse direito.

VIII. O aludido «dever» de reenvio, não se afirma com um carácter absoluto, perdendo tal significância, quando a questão suscitada for idêntica a outra já suscitada em processo idêntico e assim decidida a titulo prejudicial, reconhecendo assim que a «correcta aplicação do direito comunitário pode impor-se com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida razoável quanto à solução a dar à questão suscitada», doutrina do «acto claro» em contraposição à teoria do «acto aclarado», com a finalidade de evitar que os Órgãos Judiciais da UE sejam chamados a intervir quando já haja antecedentes decisórios quanto às mesmas questões e/ou em casos paralelos, apresentando-se os Acórdãos do Tribunal de Justiça como um misto de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, na sua faceta de apreciação abstracta típica e a concreção da regra do precedente.

E no mesmo sentido os Acs. deste STJ, 26-11-2020, no Proc. 30060/15.3T8LSB.L3.S1 e de 08-02-2022, no Proc. nº 389/17.2T8VNG.P1.S1, referindo este : “VIII - O TJUE tem admitido três excepções à obrigação de reenvio: - se a questão de interpretação não é pertinente; - se existe jurisprudência constante desse tribunal sobre a matéria; - se a norma da União for perfeitamente clara e não suscitar qualquer dificuldade de interpretação.

A interpretação, de que basta a possibilidade de garantia de reapreciação (por revisão ou recurso) da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário, não é desconforme ao Direito da União Europeia nem à jurisprudência do TJUE, não ficando, assim, demonstrado que a decisão danosa (que rejeitou o pedido de apoio judiciário ao autor) violou o Direito da União Europeia.

Já supra nos referimos à interpretação das normas da Diretiva e à clareza da mesma em termos de interpretação.

Além de que é uniforme a jurisprudência quer dos Tribunais Judiciais, quer do Tribunal Constitucional, no sentido de que podem verificar-se restrições ao direito de recurso e de que esse direito não é ilimitado.



Não se vislumbram razões para se ordenar o reenvio prejudicial solicitado.


*


Por tudo o exposto concluímos, como no despacho proferido, que não é admissível recurso.

Assim que, deve manter-se o despacho do relator que indeferiu o requerimento de reclamação contra o despacho que não admitiu o recurso de revista, por inadmissibilidade do mesmo.


*


Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art. 663 nº 7 do CPC:

I- A Constituição não impõe que o direito de acesso aos tribunais, em matéria cível, comporte um triplo ou, sequer, um duplo grau de jurisdição, apenas estando vedado ao legislador ordinário uma redução intolerável ou arbitrária do conteúdo do direito ao recurso de atos jurisdicionais.

II- Estipulando a lei do apoio judiciário que a decisão do juiz de 1ª Instância é irrecorrível, dessa inadmissibilidade de recurso não resulta violação de princípios ou de normas com consagração na Constituição, nem violação de normas constantes de Diretivas da União Europeia.

III- Lei nº 34/2002 de 29 de julho que transpôs para a ordem jurídica interna o direito europeu em matéria de apoio judiciário (Diretiva 2002/8/CE do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios transfronteiriços, através do estabelecimento de regras mínimas comuns relativas ao apoio judiciário no âmbito desses litígios) cumpre a obrigatoriedade de garantir o direito a revisão ou a recurso.

IV- É entendimento jurisprudencial pacifico (quer a nível nacional quer do Tribunal Europeu) que o reenvio prejudicial não é obrigatório, mesmo quando o tribunal decide em última instância, desde que a norma a aplicar for de tal modo clara e evidente que não deixa qualquer dúvida razoável quanto à sua interpretação quer para o tribunal que aprecia quer para os demais tribunais dos Estados Membros.

V- A obrigação de reenvio prejudicial decorrente do art. 267º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia cede quando a interpretação dos dispositivos em causa seja clara e não suscite, por isso, dúvida razoável.

Decisão:

Acordam os Juízes desta Secção em julgar improcedente a reclamação para a conferência e confirmar o despacho de 10-10-2022, que manteve a não admissão do recurso e, indefere-se o pedido de reenvio prejudicial para o TJUE

Custas pelo impugnante com taxa de justiça de 4 Ucs, nos termos do art. 7 nº 4 do RCP e Tabela II anexa.

Lisboa, 29-11-2022

Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Jorge Arcanjo– Juiz Conselheiro 1º adjunto

Isaías Pádua – Juiz Conselheiro 2º adjunto