DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
BOA -FÉ
ABUSO DE DIREITO
PRESSUPOSTOS
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
DOMICÍLIO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
COMPETÊNCIA INTERNA
PRINCÍPIO DA NACIONALIDADE
Sumário


I - No nosso ordenamento jurídico positivo não existe um preceito que tutele de modo genérico a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa coletiva, embora a figura não deixe de encontrar algum suporte em princípios gerais positivamente consagrados, como são os da boa-fé e do abuso de direito.
II - A eventual responsabilidade dos 2.º e 3.º réus, sócios da 1.ª ré, perante a credora autora, resulta de aqueles utilizarem a pessoa coletiva (1.ª ré) para um fim contrário ao direito.
III - E a violação ilícita, pelos réus pessoas singulares, dos deveres de boa fé resultaram no incumprimento do contrato que a autora celebrara com a 1.ª ré.
IV - Verificando-se resultar um misto de responsabilidade civil contratual com responsabilidade civil extracontratual, temos que prevalecerá como determinante a primeira porque está na origem da relação jurídica, sendo, por isso, mais relevante.
V - Vindo alegada a desconsideração da personalidade jurídica da 1.ª ré, tudo funciona como se os 2.º e 3.º réus assumissem o lugar daquela, verificando-se como que um cúmulo entre responsabilidade civil contratual e responsabilidade civil não contratual.
VI - Assim, para efeitos de determinação da competência, em razão da nacionalidade, releva a existência do contrato.
VII - Pelo que, no caso vertente e para determinar a competência dos tribunais em razão da nacionalidade, deve vigorar o critério resultante da aplicação do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12-12, que determina a competência em função do domicílio dos demandados, ou Estado Membro onde os bens eram entregues e os serviço prestados, que é coincidente em ambos os critérios.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.

Space Details – Unipessoal, Lda. intentou a presente acção declarativa comum contra SCI Le Prisme, AA e BB, pedindo a condenação solidária destes a pagar à autora a quantia de €52.971,75, acrescida de juros de mora.

Para tanto, alegou que os 2.º e 3.º réus lhe solicitaram o fornecimento de portas, portões e janelas para um edifício que a 1.ª ré, da qual são representantes legais, pretendia construir em ..., França.

O valor global foi de €124.612,25, a pagar 30% no momento da adjudicação da obra, 50% aquando da entrega do material e 20% no momento da conclusão da obra e a 1.ª ré pagou apenas 34.332,60 € no momento da adjudicação.

A autora remeteu parte do material para as instalações da 1.ª ré em 27.10.2018, outra parte no dia 03.11.2018, remetendo igualmente uma fatura do material já entregue, no valor de 32.184,02 €, e a parte restante em 14.11.2018, remetendo então nova fatura no valor de 30.122,07 €; devido a um erro do fornecedor da autora e dos próprios réus, os 8 portões seccionados entregues à 1.ª ré não possuíam as características (a textura e a cor) pretendias pelos réus; a autora propôs a sua substituição, o que os réus recusaram, por pretenderem terminar a obra rapidamente, de forma a obter os certificados a emitir pela autora, que lhes eram exigidos pelas entidades licenciadora e financiadora do projeto; os trabalhos ficaram concluídos em finais de Novembro de 2018, altura em que a autora emitiu a última das faturas, remetendo também à ré uma ficha para que os 2.º e 3.º réus apontassem eventuais anomalias nos trabalhos, nada tendo sido apontado por estes; interpelados os réus para fazer o pagamento em falta, a 1.ª ré exigiu a substituição dos 8 portões seccionados que tinha recusado anteriormente; mediante promessa dos réus de que pagariam os valores em falta se a autora substituísse os portões e lhes entregasse o certificado do material já instalado, a autora, no cumprimento do que foi então acordado, encomendou novos portões, colocou-os e assumiu o custo da pintura dos novos portões, para além de ter procedido à reparação de danos na caixilharia causados por terceiros; os réus apenas pagaram 10.000,00 € em 24.01.2019 e 22.184,08 € seis meses depois, nada mais tendo pago, apesar das diversas interpelações para esse efeito.

Ao exigirem a substituição dos portões, cuja instalação, em obra, haviam aceitado com o fito de obterem os certificados necessários para se financiarem e a licenciarem, sem procederem ao pagamento das quantias em dívida, os réus agiram clamorosamente contra os ditamos da boa-fé.

Os réus nunca tiveram intenção de proceder ao pagamento das quantias devidas, não passando as promessas de que o iriam fazer de um artifício para se locupletarem à custa da autora, levando-a a praticar atos lesivos dos seus interesses económicos, o que levou a autora a apesentar queixa criminal junto das autoridades francesas.

A personalidade jurídica da 1.ª ré, que detém um capital social diminuto e não deposita anualmente as suas contas, em contraste com o vasto património dos restantes réus, foi usada de forma ilícita com o claro intuito de estes se locupletarem com grave prejuízo para os interesses financeiros da autora, o que justifica a desconsideração da personalidade jurídica da 1.ª ré e a responsabilização solidária dos restantes réus pelo pagamento da quantia de 52.971,75 € devida pelos trabalhos realizados e que estavam previstos no orçamento, bem como da quantia de 2.900,00 € correspondente aos trabalhos extra realizados pela autora a pedido dos réus, tudo acrescido de juros de mora.

Citados, contestaram todos os RR, arguindo a incompetência internacional do tribunal português, com os seguintes fundamentos:

Os presentes autos têm origem num contrato de fornecimento e instalação de caixilharias em ..., França, sendo demandadas uma pessoa coletiva e duas pessoas singulares com domicílio naquela cidade francesa.

Nos termos do disposto nos artigos 4.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, al. a) e b), do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, a ação devia ter sido proposta no tribunal do domicílio dos demandados ou, em alternativa, no tribunal do lugar do cumprimento da obrigação, ou seja, no lugar onde os serviços foram ou devam ser prestados, o que no presente caso corresponde, em qualquer dos casos, aos tribunas franceses, mais concretamente o Tribunal ....

Respondeu a autora à exceção deduzida, pugnando pela competência internacional dos tribunais portugueses, alegando que alicerçou o pedido por si formulado em factos que importam a desconsideração da personalidade jurídica da ré sociedade, pelo que se discute não apenas o incumprimento por parte da 1.ª ré da obrigação de pagamento do preço acordado com a autora, mas também a responsabilidade por factos ilícitos dos restantes réus e, consequentemente, a sua obrigação de indemnizar a autora pelos prejuízos a esta causados.

Acrescentou que, nos termos do artigo 7.º, n.º 2, al. b), do Regulamento (UE) n.º 1512/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, em matéria extracontratual as pessoas domiciliadas num Estado-membro podem ser demandadas noutro Estado-membro, designadamente perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso, sendo certo que tem sido entendimento da jurisprudência nacional e do TJUE que, quando o facto gerador de responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto causou prejuízos não coincidam, deve ser entendido que a expressão lugar onde ocorreu o facto danoso se refere tanto o lugar onde o prejuízo teve lugar como ao local onde ocorreu o facto produtor de danos.

No conhecimento desta exceção, o tribunal a quo proferiu decisão concluindo:

“Por tudo quanto ficou exposto, concluímos não terem os tribunais portugueses competência para esta acção, a qual cabe na cabe na competência internacional dos tribunais franceses.


*


Inconformada, interpôs a autora recurso de apelação sendo, após deliberação, decidido:

“Nestes termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.

Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.


*


Continuando inconformada a autora interpõe recurso de Revista para este STJ e formula as seguintes conclusões:

“1. Por acórdão datado de 30 de Junho de 2022, de Março de 2022 o Tribunal a quo julgou internacionalmente incompetentes os tribunais portugueses para julgar da presente lide, mantendo assim a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.

2. Decorre do despacho ora em crise o Tribunal recorrido considera que os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para conhecer do objecto do presente pleito, porquanto, entende o mesmo que “a proceder a pretensão da autora, os sócios serão também condenados, solidariamente com a R., no pagamento das quantias peticionadas, numa responsabilização pessoal, mas que, todavia, no nosso entender, não perde a natureza jurídica de responsabilidade contratual decorrente de incumprimento das obrigações que, pelo contrato em causa, foram assumidas pela sociedade comercial”.

3. A decisão recorrida não pode manter-se porque, conforme resulta da petição inicial, a Recorrente peticiona a condenação solidária dos Réus no pagamento da quantia de € 52 921, 71, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento alicerçando o respectivo pedido no levantamento da personalidade jurídica da sociedade Ré.

4. A Recorrente justifica o pedido por si formulado na circunstância de os Recorridos, representantes legais terem gizado um plano que visava o seu locupletamento indevido às custas do empobrecimento da sociedade Recorrida, porquanto incumpriram com a sua obrigação de pagamento dos serviços prestados pela Recorrente, resultando o referido incumprimento das condutas que são contrárias à ética dos negócios, a saber: incumprimento dos planos de pagamento acordados entre Recorrente e sociedade Recorrida, furtar-se às interpelações da Recorrente, imputação à Recorrente erros próprios no decurso dos trabalhos e obrigando a mesma a suportar os respectivos custos de reparação com a falsa promessa de pagamento do material, recusa do pagamento dos valores em falta depois de concluídos os trabalho se depois de obtidos os certificados emitidos pela Recorrente de conformidade dos mesmos, alegação de que os serviços foram prestados de forma defeituosa quando os registos fotográficos juntos demonstram claramente que o alegado cumprimento defeituoso deriva do mau uso; o facto da sociedade em causa ter um reduzido capital social face à respectiva atividade e já não prestar contas desde 2019; o facto de os 2º e 3º Recorridos serem sócios de outras sociedades em idênticas situações, e, de os Recorridos sócios acumularem património, a título privativo, no nosso país.

5. A evocação da figura da desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica não é inócua nos presentes autos uma vez que nela que assenta a pretensão da Recorrente da condenação solidária dos Réus nas quantias peticionadas nos presentes autos.

6. Na verdade, atenta a forma como a ora Recorrente construiu a sua pretensão, a responsabilidade extracontratual resultante da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade Recorrida erige-se como a principal causa de pedir nos presentes autos.

7. A desconsideração da personalidade jurídica é, ao contrário do que resulta da decisão ora em crise geradora de responsabilidade civil extracontratual porquanto assenta ou em situações de fraude à lei ou de abuso de direito.

8. O art. 7º, 2) do Regulamento (EU) nº 1215 /2012 do Parlamento Europeu e do Conselho que em matéria extracontratual as pessoas domiciliadas num Estado membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, designadamente perante o Tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso, encerrando tal preceito uma derrogação ao princípio geral de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro da União devem ser demandadas perante os tribunais desse mesmo Estado.

9. Tem sido entendimento da jurisprudência, apoiada na jurisprudência do TJUE que, quando o facto gerador de responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto causou prejuízos não coincidam que a expressão lugar onde ocorreu o facto danoso deve ser entendida de que se refere tanto ao lugar onde o prejuízo teve lugar como ao local onde ocorreu o facto produtor de danos.

10. Em face do supra exposto, mister torna concluir que os Tribunais portugueses são competentes para decidir do objecto da presente acção por a causa de pedir da mesma assentar na responsabilidade extracontratual dos Recorridos.

11. Ainda que se entenda que se verifica in casu uma situação de concurso entre responsabilidade contratual e extracontratual, a questão que se coloca é ade saber se a Recorrente tem, ou não a faculdade de optar pelo regime da responsabilidade extracontratual com a consequência de, quanto à questão da competência internacional, serem os tribunais portugueses competentes para conhecer do objeto do presente pleito.

12. Assim sendo, face à inexistência de norma que determine qual o Estado-membro competente para decidir em caso de concurso entre responsabilidade civil contratual e extracontratual e à dúvida existente sobre tal matéria, deve proceder-se ao reenvio prejudicial para o TJUE, ao qual deve ser colocada a seguinte questão:

- em matéria civil e comercial em caso de concurso entre responsabilidade contratual e extracontratual, assiste ou não à parte, a faculdade de optar pelo regime da responsabilidade extracontratual com a consequência de as pessoas domiciliadas num Estado-membro poderem ser demandadas perante o tribunal onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso?

Termos em que

Deve a decisão recorrida ser revogada pois só assim se fará JUSTIÇA!

Respondem as rés e concluem:

“1º O Acórdão recorrido não merece censura, sendo a sua fundamentação clara e acertada.

2º A Recorrente peticionou a condenação solidária dos recorridos gerentes, não o fazendo a título subsidiário, opção que reforça que pretende a condenação daqueles por incumprimento de obrigações contratuais.

3º Porém, para que os recorridos possam ser condenados, impõe-se apreciar previamente o desaparecimento da presença formal da pessoa coletiva, isto é, aferindo a validade da sociedade comercial, bem como dos atos praticados pelos seus órgãos de administração.

4º Uma vez que a sociedade tem sede em França, tal é da exclusiva competência dos Tribunais Franceses - art.º 24º /2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.

5º Ainda que estivesse em causa responsabilidade extracontratual, a Recorrida não alegou na PI que houve prejuízos que se produziram em território português, facto necessário para poder invocar a interpretação que sustenta para o art.º 7º /2) do referido Regulamento.

6º Aliás, conforme está documentado nos autos, a Recorrente, alegando os mesmos factos da PI, apresentou uma denúncia criminal na jurisdição francesa contra os agora recorridos - sociedade e gerentes -, para adiante vir a formular naquela jurisdição o pedido cível contra todos.

7º Esta denúncia reforça a competência internacional dos Tribunais franceses - art.º 7º /3 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.

8º Não podendo a questão ser discutida senão na jurisdição francesa, o reenvio prejudicial para o TJUE suscitado pela Recorrente é inútil.

9º Por fim, importa destacar que a sociedade recorrida limitou-se a não cumprir parcialmente a sua prestação (o pagamento do remanescente do preço), enquanto a contraprestação da Recorrente não estivesse concluída, o que até à data, não ocorreu.

10º Não há assim qualquer fundamento para se alterar a decisão do Acórdão Recorrido.

Termos em que, não deve ser concedido provimento ao presente recurso, com as legais consequências, fazendo-se assim JUSTIÇA!


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O recurso foi admitido – art. 629º, nº 2 al. a), do CPC.

Cumpre apreciar e decidir.


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Os factos relevantes são os supra expostos.

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Conhecendo:

São as questões suscitadas pelo recorrente e constantes das respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 608º, 635º, nº 3 a 5 e 639º, nº 1, do C.P.C.        

No caso, tendo sido a ação proposta perante os Tribunais Portugueses, a questão a analisar e decidir respeita a saber se os tribunais portugueses, têm, ou não, competência para apreciar e decidir esta ação.

Na contestação foi invocada a exceção absoluta da incompetência do tribunal, em razão da nacionalidade.

A 1ª Instância concluiu que “Ora, no caso vertente, a responsabilidade assumida pela ou por via da 1.ª ré é, como vimos, uma responsabilidade contratual.

Claro que nada obsta a que os factos geradores de responsabilidade contratual, por violação de deveres contratualmente assumidos, posam configurar também uma violação de direitos subjectivos de outrem e, por isso, possam relevar em sede de responsabilidade extracontratual.

(…)

No caso vertente, ainda que se possa afirmar a concorrência entre a responsabilidade contratual e extracontratual, é absolutamente claro que a eventual responsabilidade extracontratual dos réus está estreitamente relacionada com a violação do contrato descrito na petição inicial. Note-se que a própria autora afirma, no artigo 67 da petição inicial, «que os ora 2.º e 3.º réus violaram ostensiva e gravemente a boa fé e a ética dos negócios…», pedindo a condenação solidária de todos os réus a pagar-lhe a quantia que mais não é do que o preço devido por força do referido contrato.

Assim sendo, não podemos considerar preenchido o conceito de responsabilidade extracontratual previsto no artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento Bruxelas I (reformulado), inteiramente coincidente com o artigo 5.º, ponto 3, do Regulamento n.º 44/2001 (Regulamento Bruxelas I), na interpretação que o TJUE faz destas normas, pelo que a competência dos tribunais nacionais não encontra justificação na excepção à regra geral aí consagrada.

De todo o modo, ainda que assim não se entendesse, o facto de a autora ter optado por demandar, na mesma acção, a 1.ª ré com base na responsabilidade contratual e os demais réus com fundamento na responsabilidade aquiliana, obstava à aplicação desta excepção, impondo-se o recurso à regra geral do artigo 4.º.

E o contrário não resulta do artigo 8.º, n.º 1, igualmente invocado pela autora, pois este permite a opção entre o tribunal do domicílio de qualquer dos réus, mas que, no caso, é comum a todos, e não entre o tribunal do domicílio de um réu e o lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.

Acresce que, nos termos do disposto no n.º 3, do mesmo artigo 7.º do Regulamento Bruxelas I (reformulado), «[s]e se tratar de acção de indemnização ou de acção de restituição fundadas em infracção penal, perante o tribunal em que foi intentada a acção pública, na medida em que, de acordo com a sua lei, esse tribunal possa conhecer da açcão cível». Ora, é a própria agora a afirmar que apresentou uma queixa criminal perante as autoridades francesas, sendo certo que a ordem jurídica francesa confere aos tribunais criminais competência para arbitrar a indemnização devida pela prática de factos criminosos, como nos dá nota Daniel Duarte Trigo Vargues da Conceição na sua tese de mestrado (Pedido de indemnização civil – O princípio do pedido, Lisboa 2011, p. 6, que pode ser consultada no seguinte endereço electrónico: https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/12079/1/trabalhofinal1.pdf) e está plasmado no Code de Procédure Pénale, designadamente nos seus artigos 2.º e 10.º (disponível em https://www.legifrance.gouv.fr/codes/id/LEGITEXT000006071154/).

Por tudo quanto ficou exposto, concluímos não terem os tribunais portugueses competência para esta acção, a qual cabe na competência internacional dos tribunais franceses.

O acórdão recorrido entendeu: “O pedido formulado nos autos é o de condenação solidária dos réus a pagar à autora a quantia de €52.971,75, acrescida de juros de mora vencidos, no valor de €10.076,00 e vincendos.

A causa de pedir para a primeira ré é, tão só, a existência de um contrato de empreitada, cujo preço esta não pagou integralmente.

Dúvidas não surgem quanto à incompetência internacional dos tribunais portugueses no que a esta estritamente concerne.

(…)

Porém, já para os demais réus, ao aludido contrato acresce a alegação de que nunca tiveram intenção de proceder ao pagamento das quantias devidas e que a personalidade jurídica da 1.ª ré, que detém um capital social diminuto e não deposita anualmente as suas contas, em contraste com o vasto património dos restantes réus, foi usada de forma ilícita com o claro intuito de estes se locupletarem com grave prejuízo para os interesses financeiros da autora, o que justifica a desconsideração da personalidade jurídica da 1.ª ré e a responsabilização solidária dos restantes réus pelo pagamento.

E aqui reside o cerne da questão a decidir para efeitos de atribuição de competência,     face à dualidade de regimes em decorrência da responsabilidade ser de natureza contratual ou extracontratual.

(…)

Todavia, como decorre de tudo quanto ficou dito, tratando-se de matéria contratual, a acção deve ser proposta perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão, o mesmo é dizer o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.

Esta norma tem plena aplicação, ainda que se pretenda a condenação solidária dos sócios da sociedade contratante, por recurso à desconsideração da personalidade jurídica, posto que a responsabilidade destes, perante o credor, não perde a natureza de responsabilidade contratual.

Assim, a questão essencial a resolver é a de saber se estamos perante uma relação contratual que abrange todos os réus, ou não.

Vem alegado pela autora, na petição, que que os 2.º e 3.º réus lhe solicitaram o fornecimento de portas, portões e janelas para um edifício que a 1.ª ré, da qual são representantes legais, pretendia construir em França.

O valor global foi de €124.612,25, a pagar 30% no momento da adjudicação da obra, 50% aquando da entrega do material e 20% no momento da conclusão da obra e a 1.ª ré pagou apenas 34.332,60 € no momento da adjudicação.

A autora remeteu parte do material para as instalações da 1.ª ré em 27.10.2018, outra parte no dia 03.11.2018, remetendo igualmente uma fatura do material já entregue, no valor de 32.184,02 €, e a parte restante em 14.11.2018, remetendo então nova fatura no valor de 30.122,07 €.

Devido a um erro do fornecedor da autora e dos próprios réus, os 8 portões seccionados entregues à 1.ª ré não possuíam as características (a textura e a cor) pretendias pelos réus; a autora propôs a sua substituição, o que os réus recusaram, por pretenderem terminar a obra rapidamente, de forma a obter os certificados a emitir pela autora, que lhes eram exigidos pelas entidades licenciadora e financiadora do projeto.

Os trabalhos ficaram concluídos em finais de Novembro de 2018, altura em que a autora emitiu a última das faturas, remetendo também à ré uma ficha para que os 2.º e 3.º réus apontassem eventuais anomalias nos trabalhos, nada tendo sido apontado por estes.

Interpelados os réus para fazer o pagamento em falta, a 1.ª ré exigiu a substituição dos 8 portões seccionados que tinha recusado anteriormente.

Mediante promessa dos réus de que pagariam os valores em falta se a autora substituísse os portões e lhes entregasse o certificado do material já instalado, a autora, no cumprimento do que foi então acordado, encomendou novos portões, colocou-os e assumiu o custo da pintura dos novos portões, para além de ter procedido à reparação de danos na caixilharia causados por terceiros.

Os réus apenas pagaram 10.000,00 € em 24.01.2019 e 22.184,08 € seis meses depois, nada mais tendo pago, apesar das diversas interpelações para esse efeito.

Ao exigirem a substituição dos portões, cuja instalação, em obra, haviam aceitado com o fito de obterem os certificados necessários para se financiarem e a licenciarem, sem procederem ao pagamento das quantias em dívida, os réus agiram clamorosamente contra os ditamos da boa-fé.

Os réus nunca tiveram intenção de proceder ao pagamento das quantias devidas, não passando as promessas de que o iriam fazer de um artifício para se locupletarem à custa da autora, levando-a a praticar atos lesivos dos seus interesses económicos, o que levou a autora a apesentar queixa criminal junto das autoridades francesas.

A personalidade jurídica da 1.ª ré, que detém um capital social diminuto e não deposita anualmente as suas contas, em contraste com o vasto património dos restantes réus, foi usada de forma ilícita com o claro intuito de estes se locupletarem com grave prejuízo para os interesses financeiros da autora, o que justifica a desconsideração da personalidade jurídica da 1.ª ré e a responsabilização solidária dos restantes réus pelo pagamento da quantia de 52.971,75 € devida pelos trabalhos realizados e que estavam previstos no orçamento, bem como da quantia de 2.900,00 € correspondente aos trabalhos extra realizados pela autora a pedido dos réus, tudo acrescido de juros de mora.

Por um lado, temos a responsabilidade contratual da 1ª ré sociedade e, por outro, o alargamento da responsabilidade aos 2º e 3º réus, por desconsideração da personalidade jurídica da 1ª ré, face ao alegado de que a 1ª ré foi instrumento utilizado pelos 2º e 3º réus para recebimento dos materiais sem qualquer intenção de os pagarem e assim se locupletarem à custa da autora.

Como refere o Ac. desta Secção, de 07-11-2017, no Processo nº 919/15.4T8PNF.P1.S1, “I - O princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção de práticas ilícitas ou abusivas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros.

II - Assim, quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam.

No nosso ordenamento jurídico positivo não existe um preceito que tutele de modo genérico a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa coletiva (como acontece, por exemplo no Brasil), embora a figura não deixe de encontrar algum suporte em princípios gerais positivamente consagrados, como são os da boa-fé (onde normalmente encontra fundamento quando aplicada em concreto a desconsideração da personalidade da pessoa coletiva -art. 762º, nº 2, do CC) e do abuso de direito (art. 334º, do CC), e também possam ser vistos como seus afloramentos concretos alguns casos tipificados de responsabilidade dos sócios, como são os previstos, p. ex., nos arts. 58º nº 1 a), 58º nº 3 e 84º do CSC ou, até, no art. 378º do CT.

Conforme Ac. deste STJ, de 3-02-2009, no Processo nº 08A3991:

Estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias reprováveis que, na vertente do abuso da responsabilidade limitada (que não se confunde com a do abuso da personalidade), podem conduzir à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade, avultando, de entre elas: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; as relações de domínio grupal.

Para além destas situações, também se podem perfilar outras em que a sociedade comercial é utilizada pelo sócio para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente, assumiu, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa.

A aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem carácter subsidiário, pois só deverá ser invocada quando inexistir outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar.”

Assim, a responsabilidade dos 2º e 3º réus, sócios da 1ª ré, embora tenha por fundamento a utilização abusiva da personalidade coletiva (da 1ª ré), ou seja, violando normas e princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, para obterem de interesses estranhos ao fim social desta, o genes desse aproveitamento ilícito emerge do contrato de fornecimento que esta (1ª ré) celebrou com a autora, e ao qual não apresentou a contraprestação do preço.

A conduta dos réus pessoas singulares e sócios da 1ª ré, na formação do contrato e no pós contrato celebrado entre a autora e a 1ª ré foi contrária aos elementares deveres decorrentes da boa-fé, atuando, no plano geral e abstrato pois os factos ainda não estão provados, como causa adequada da produção do dano concernente à não entrega da contraprestação respeitante aos materiais fornecidos pela autora à 1ª ré, que alegadamente não teria património para a garantir.

A eventual responsabilidade dos 2º e 3º réus, sócios da 1ª ré, perante a credora autora, resulta de aqueles utilizarem a pessoa coletiva (1ª ré) para um fim contrário ao direito. E utilizaram, atuando em nome dela nas negociações preliminares, na celebração do contrato e na fase de execução fazendo com que a 1ª ré não cumprisse a contraprestação a que se obrigou.

Na origem da responsabilidade (não contratual) que possa ser assacada aos réus pessoas singulares está, pois, o contrato, e a autora peticiona os danos que lhe resultaram do não cumprimento desse contrato. A violação ilícita, pelos réus pessoas singulares, dos deveres de boa fé resultaram no incumprimento do contrato.

Verificando-se resultar um misto de responsabilidade civil contratual com responsabilidade civil extracontratual, temos que prevalecerá como determinante a primeira porque está na origem da relação jurídica, sendo, por isso, mais relevante.

Neste sentido podemos ver o Ac. deste STJ de 07-02-2017, no Proc. nº 4444/03.8TBVIS.C1.S1 onde, e citando Rui de Alarcão, Direito das Obrigações (lições policopiadas), Coimbra,1983, 210, é referido que “o mesmo facto humano pode provocar um dano simultaneamente contratual e extracontratual”.

Vindo alegada a desconsideração da personalidade jurídica da 1ª ré, tudo funciona como se os 2º e 3º réus assumissem o lugar daquela, verificando-se como que um cúmulo entre responsabilidade civil contratual e responsabilidade civil não contratual.

Como referido neste Ac. do STJ de 07-02-2017, “Porém, a questão está em saber se se deve aceitar a solução do cúmulo, quando se estiver perante uma hipótese de facto, em abstrato, qualificável com guarida nas duas responsabilidades, se essa deve ser a resposta correta para as situações de concurso de normas.

Cada uma destas modalidades de responsabilidade civil possui esfera particular ou autónoma de atuação, a reclamar uma relação de consunção, não se podendo afirmar que se encontram numa relação de especialidade, caso em que a responsabilidade extracontratual estaria afastada.

Com efeito, o nexo sinalagmático interliga, em princípio, tanto as prestações fundamentais, emergentes da celebração do contrato (sinalagma genético), como as prestações da mesma natureza, provenientes do desenvolvimento da relação contratual (sinalagma funcional).

Para além do dever de prestação, existem, igualmente, numa relação contratual, certos deveres acessórios de conduta ou deveres laterais, deveres de cuidado e de proteção, independentemente dos deveres primários de prestação, impostos pela boa-fé, e que as partes devem observar, que se destinam a proteger a pessoa ou os bens da contraparte, cuja violação originará responsabilidade contratual ou o cumprimento defeituoso.

(…)

Alarga-se, assim, a esfera da responsabilidade contratual em relação à responsabilidade aquiliana, porquanto “o genérico dever de «neminem laedere» é absorvido, sempre que estão em causa comportamentos ligados ao fim contratual, nos quadros da responsabilidade «ex contractu»” (Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Almedina, 1982, 341, e nota (2)).

(…)

Porém, a questão da coexistência ou da prevalência dos dois tipos de responsabilidade coloca-se sempre que um único facto humano do comportamento do agente provoque uma lesão que abra ao credor a tutela contratual e, simultaneamente, a tutela delitual, em relação ao mesmo facto ilícito que se encontre na origem simultânea dos dois, que represente, ao mesmo tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito extracontratual, sendo certo que não pode haver cumulação de responsabilidades resultantes do mesmo facto jurídico, quando tal acarrete duplicação de indemnizações.

Com efeito, havendo um só dano, resultante de um único facto, e não danos distintos, e uma só conduta e não duas condutas diferentes, quer do ponto de vista naturalístico, quer do ponto de vista jurídico, com dois regimes legais de proteção do lesado que preveem tal conduta e visam reparar tal dano, mas cada regime com a sua teleologia própria, nada justifica a duplicação de ações ou concorrência de pretensões, pelo que, existindo concurso de títulos de imputação ou concurso de pretensões, há uma alternatividade de pedidos que dependem da mesma factualidade, estando em causa um pedido de indemnização com um duplo fundamento, em que o lesado pode escolher o título mais favorável a empregar, o regime contratual ou o regime extracontratual, não parecendo de aceitar a existência de duas ações, antes intentando apenas uma ação, existindo uma unidade de pedido indemnizatório e de indemnização.

Assim, as hipóteses de concurso da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual em análise reconduzem-se à figura do concurso aparente, legal ou de normas, em que só, supostamente, se pode falar de um concurso, porque o que se verifica é uma única conduta ilícita, a merecer, portanto, uma única indemnização.

Não se trata, então, de um concurso de ações que gozam de uma total autonomia, mas antes de uma única acção, a que corresponde no plano material um único direito, fundamentada em diversas normas.

Na verdade, no âmbito do concurso de ambas as variantes da responsabilidade civil, qualquer uma delas, isoladamente considerada, esgotaria a tutela que a ordem jurídica pretende consagrar para estas situações, bastando a fundamentação de uma dessas pretensões para assegurar a procedência da ação.

Em relação ao réu, exige-se já uma cumulação de fundamentos de improcedência, pois que a ação só é improcedente se o forem todas as pretensões concorrentes, pelo que, em função do princípio da autonomia privada, sendo aplicáveis, paralelamente, as duas espécies de responsabilidade civil, perante uma situação concreta, o facto tenha, em primeira linha, de considerar-se ilícito contratual, consumindo o regime da responsabilidade contratual o da responsabilidade extracontratual, como fundamento da indemnização, de acordo com o princípio da consunção, e daí que, existindo um contrato, o credor só pode obter reparação, em sede contratual.”

Assim, para efeitos de determinação da competência, em razão da nacionalidade, releva a existência do contrato.

No caso vertente, o pedido formulado nos autos é o de condenação solidária dos réus a pagarem à autora a quantia de €52.971,75, acrescida de juros de mora vencidos, no valor de €10.076,00 e vincendos. É formulado um mesmo pedido, com diferentes fundamentos.

No caso, os materiais fornecidos em Portugal tinham como destino de aplicação a França.

E nos termos do Regulamento, o art. 7º determina:

“As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:

1)

a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

- no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,

- no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;

c)Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a);

2)Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso;

(…)”

Relativamente aos réus pessoas singulares foi indicada morada em território nacional, mas não foi possível efetuar-se a citação porque como informa a Srª Agente de Execução em 10-07-2021 (a ação foi proposta em 31-03-2021) “não foi possível concretizar a citação dos réus porquanto estes não estão a residir em Portugal, presumivelmente emigrados em ....

Mais informar que obteve informação junto de residentes que só muito pontualmente o apartamento está ocupado.

É visível que a caixa de correio tem muito correio por levantar.

A administração de condomínio confirmou que a morada que dispõem é no estrangeiro”.

Pelo que a autora vem requerer “Space-Details- Unipessoal, L.da, nos autos supra identificados, vem, atento o teor da informação que antecede, requerer que a citação dos demais Co-Réus seja realizada na 84 ..., ...00 ..., ..., França”.

Onde foi efetuada a citação por carta.

Ora, o domicílio dos réus é em França.

Como refere o Acórdão recorrido, “Apesar de se ter chegado a colocar a questão do país da residência dos segunda e terceiro RR, a mesma mostra-se hoje ultrapassada na instância recursiva, podendo dar-se como adquirido que todos os RR têm domicílio em França.

O Direito da União vigora automaticamente na ordem jurídica interna de cada um dos Estados-Membros, no caso de Portugal, conforme o n° 4 do art. 8º da Constituição da República Portuguesa, impõe-se que, tendo em conta o princípio da lealdade europeia, os Estados Membros estejam obrigados a adotar todas as medidas necessárias ao cumprimento dos objetivos dos tratados e a não adotar medidas que ponham em causa tais objetivos.

O art. 37º, n.º 2, da Lei Orgânica do Sistema Judiciário, incumbe a lei de processo de fixar os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, dispondo o artigo 59º do CPC que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º do mesmo diploma.

O Regulamento Europeu que rege a competência judiciária em matéria cível e comercial é o denominado Regulamento Bruxelas I bis (Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012).

Com exceção das ações previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 2, 24.º e 25.º deste Regulamento, onde não se inclui a presente ação, é condição de aplicabilidade das regras nele contidas que o demandado tenha domicílio num Estado Membro. E concluímos que os réus têm domicílio em França.

Dispõe o art. 4º do Regulamento:

“1. Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro.

2. As pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado-Membro em que estão domiciliadas ficam sujeitas, nesse Estado-Membro, às regras de competência aplicáveis aos nacionais”.

As regras de competência do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012, aplicam-se desde que o demandado tenha domicílio num Estado-Membro, sendo que à competência dos tribunais desse Estado-Membro, decorrente das normas do Regulamento, não obsta a circunstância de o demandado não ser nacional desse Estado (ou de nenhum outro Estado da União Europeia).

Como este Regulamento internacional vincula o Estado Português em matéria de competência judiciária aplicável à presente ação, é, portanto, à luz desse mesmo Regulamento Bruxelas I, bis, que deve ser determinada a competência internacional.

Pelo que, no caso vertente e para determinar a competência dos tribunais em razão da nacionalidade, deve vigorar o critério resultante da aplicação do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012, que determina a competência em função do domicílio dos demandados, ou Estado membro onde os bens eram entregues e os serviços prestados, que é coincidente em ambos os critérios.

Assim que, por acertada a decisão das Instâncias, se mantém o acórdão recorrido.


*


Sumário elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC:

I-No nosso ordenamento jurídico positivo não existe um preceito que tutele de modo genérico a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa coletiva, embora a figura não deixe de encontrar algum suporte em princípios gerais positivamente consagrados, como são os da boa-fé e do abuso de direito.

II- A eventual responsabilidade dos 2º e 3º réus, sócios da 1ª ré, perante a credora autora, resulta de aqueles utilizarem a pessoa coletiva (1ª ré) para um fim contrário ao direito.

III- E a violação ilícita, pelos réus pessoas singulares, dos deveres de boa fé resultaram no incumprimento do contrato que a autora celebrara com a 1ª ré.

IV- Verificando-se resultar um misto de responsabilidade civil contratual com responsabilidade civil extracontratual, temos que prevalecerá como determinante a primeira porque está na origem da relação jurídica, sendo, por isso, mais relevante.

V- Vindo alegada a desconsideração da personalidade jurídica da 1ª ré, tudo funciona como se os 2º e 3º réus assumissem o lugar daquela, verificando-se como que um cúmulo entre responsabilidade civil contratual e responsabilidade civil não contratual.

VI- Assim, para efeitos de determinação da competência, em razão da nacionalidade, releva a existência do contrato.

VII- Pelo que, no caso vertente e para determinar a competência dos tribunais em razão da nacionalidade, deve vigorar o critério resultante da aplicação do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro de 2012, que determina a competência em função do domicílio dos demandados, ou Estado membro onde os bens eram entregues e os serviços prestados, que é coincidente em ambos os critérios.


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Decisão:

Em face do exposto acorda-se em julgar o recurso improcedente, nega-se a revista, e mantem-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário.

Lisboa, 17-01-2023


Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Jorge Arcanjo – Juiz Conselheiro 1º adjunto

Isaías Pádua – Juiz Conselheiro 2º adjunto