PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
DIREITO DE VISITA DO PROGENITOR
CRIANÇA EM ACOLHIMENTO RESIDÊNCIA
Sumário


Promoção e Protecção / fase de instrução / visitas a bebé de 6 meses por progenitor registral
I- Não vai contra o superior interesse da criança a decisão que, em sede de processo judicial de promoção e protecção, ainda em fase de instrução, instaurado pelo MºPº contra as progenitores do menor, actualmente com seis meses de idade, a quem foi aplicada a medida de acolhimento residencial, ao proceder à respectiva revisão, decide manter a mesma, e bem assim os contactos com os progenitores a terem lugar na mesma casa de acolhimento especializada.
II- A isso não obsta, só por si e para já, a circunstância de o progenitor, de 49 anos, de nacionalidade portuguesa e a residir em Portugal, que consta como pai no assento de nascimento da criança, eventualmente não ser o pai biológico, uma vez se apurou ter conhecido a progenitora, já em estado de gravidez, numa rede social, a viver no Estrangeiro, e, por querer um filho para si, combinou com ela, alegadamente sem contrapartida, ficar com a criança, que perfilhou, após ter vindo nascer a Portugal, pagas que para o efeito foram pelo progenitor registral as despesas de viagem, vinda e retorno, daquela para o Estrangeiro, e de por isso estarem a ser investigados por ilícito penal.

Texto Integral


Acordam os Juízes na 2ª Secção Judicial do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

a)

O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público veio em 14 de Outubro de 2022 instaurar processo especial de promoção e protecção, ao abrigo do disposto no artigo 72º, 1 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, quanto ao menor de nome AA, nascido em .../.../2022 (actualmente com seis meses de idade) acolhido em Casa de Acolhimento ..., filho de BB e de CC, visando estes.

O processo decorre seus termos.
Está na fase de instrução.
É esse o processo principal, de que este Apenso – o A – é o de recurso em separado.

b)

Com a ref. citius 101791369 e em  31 de Outubro de 2022 o Senhor Juiz prolatou o seguinte douto despacho (revisão da medida – artigo 62º da LPCJP):

Da revisão da medida.
Os presentes autos dizem respeito ao menor AA, nascido em .../.../2022 (dois meses de idade) acolhido na Casa de Acolhimento ..., filho de BB e de CC.
Em 25-07-2022, os progenitores assinaram com a CPCJ ... um acordo de promoção e protecção, ao abrigo do qual foi aplicada à criança a medida cautelar de acolhimento residencial, com a duração de seis meses e revisão trimestral.
Por despacho de 18-10-2022 determinou-se a notificação dos progenitores para, querendo, se pronunciarem sobre a revisão da medida cautelar de acolhimento residencial.
O Ministério Público veio promover a suspensão das visitas do progenitor CC porquanto tais visitas não servem o superior interesse desta em desenvolver laços afectivos com um estranho, com os argumentos de que CC não é o progenitor da criança, apesar de a ter perfilhado; que nas suas próprias declarações enquanto arguido, o mesmo assume que não é o pai biológico da criança, mas apenas que pretende cuidar dela como se fosse filho; que assumiu que conheceu a progenitora pela rede social Whatsapp, que a contactou unicamente com o intuito de estabelecer uma relação de amizade, que no decurso das conversas confessou à progenitora a sua vontade de ser pai, que tem uma relação com um companheiro, sendo que, nessa altura, desconhecia a questão da gravidez, estando a progenitora ainda no ....
O progenitor veio opor-se à suspensão das visitas, mais requerendo a entrega do menor cfr. requerimentos de 24-10-2022 e de 26-10-2022 [9144044].
A Defensora do menor veio aderir à promoção do Ministério Público - cfr. requerimento de 27-10-2022 [9148649].
Vejamos.
O juízo do Ministério Público sobre a suspensão das visitas, ainda que devidamente fundamentada e perceptível no seu desiderato, basta-se com a convicção indiciária de que o progenitor não é o verdadeiro progenitor do menor e que a confiança para adopção vai ser decretada.
Ora, sem ferir tal convicção, importa dizer que, para nós e no âmbito desta revisão cautelar, aderir a essa convicção indiciária como se fosse uma convicção judicial corresponderia à violação de fundamentos e princípios basilares de Direito processual.
Em qualquer processo de promoção e protecção em que a confiança à adopção seja o projecto de vida, a suspensão de contactos antes do decretamento da medida corresponde a uma antecipação do efeito da inibição das responsabilidades parentais.
Não o fazemos, por exemplo, durante o prazo de recurso do próprio acórdão que decreta a medida após debate judicial.
Ou seja, mesmo nos processos em que o perigo surge do agregado familiar de origem, após o decretamento do acolhimento, a suspensão de visitas exige uma ponderação acrescida, qualificada e estruturada sobre a suspensão de visitas.
No nosso caso não há qualquer perigo concreto, actual ou efectivo para o menor caso essas visitas se mantenham. Neste aspecto, inexistindo perigo concreto, actual ou efectivo, o Ministério Público pretende a suspensão apenas e só como medida cautelar da confiança, numa espécie de providência cautelar da adopção sem demonstração de perigo de lesão mas apenas de aparência do direito. Este racional, em processos de promoção e protecção deve demandar algum juízo “cum grano salis”, especialmente porque pode ferir o decurso do processo de fragilidades processuais susceptíveis de contender com a validade de uma decisão final, que se quer tomada em total respeito pela legalidade adjectiva e substantiva.
Depois, a convicção indiciária que estriba a promoção corresponde apenas e só as declarações informais e confessórias do progenitor e que se apresentam irrelevantes para o processo-crime e até para a acção de impugnação da paternidade que, entretanto, foi deduzida.
Ou seja, para o julgador do processo-crime e da acção de impugnação, aquelas declarações nunca poderão valer como confissão desses factos, sendo necessário, para a formação da convicção judicial sobre a falsidade da declaração de perfilhação, o decurso do processo com a aquisição probatória de forma legal, válida e por recurso aos meios de prova tipificados na lei.
Assim, inexistindo perigo concreto, actual ou efectivo para o menor caso essas visitas se mantenham, afigura-se-nos contraproducente que se permita a formação de convicção judicial absoluta neste processo sobre os mesmos factos e sobre os quais a formação dessa convicção nos processos próprios se encontra impedida.
O que vale por dizer o seguinte, se o Ministério Público entende formada tal convicção pode sempre requerer o encerramento da instrução e o prosseguimento do processo para debate judicial e para decretamento da medida de confiança para adopção. E anota-se também uma advertência final: a proceder esta linha de argumentação a medida de confiança vai sempre proceder ou o pai registado não é o verdadeiro pai - estaríamos perante o perigo de uma rampa deslizante em todas as situações em que na fase da instrução a medida de confiança se apresentasse como a única possível.
Atente-se que o processo foi autuado a 17-10-2022, e logo em 18-10-2022, o Tribunal solicitou ao ISS, I.P. SATT a elaboração de relatório social de avaliação diagnóstica no prazo de 30 dias, com vista ao apuramento das condições de vida dos progenitores e definição do projecto de vida da menor, com eventual proposta de medida de promoção e protecção.
Esse relatório ainda nem sequer está junto aos autos.
Este é o sentido do nosso arrazoado e para efeitos apenas e só da revisão neste momento: a antecipação de um efeito definitivo de uma medida de confiança para
adopção, a propósito de uma revisão cautelar de medida provisória, estando pendentes processos crimes e de impugnação de paternidade, sem perigo concreto, actual ou efectivo para o menor, corresponderia a um exercício desproporcional, arbitrário e ab-rogante dos princípios vertidos no art.º 4.º da LPPCJP, nomeadamente:
a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto suspender as visitas implica a descontinuidade de relações de afecto definidas pelo acordo de promoção e protecção vigente, sendo o interesse do progenitor em manter as visitas um interesse presente no caso e ainda que não prevalente;
d) Intervenção mínima - a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja acção seja indispensável à efectiva promoção dos direitos e à protecção da criança e do jovem em perigo - suspender as visitas implica a promoção de direitos do menor não actuais, concretos ou efectivos, antes da decisão final e antes do encerramento da instrução;
e) Proporcionalidade e actualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade - suspender as visitas implica a antecipação de uma situação de perigo que não se verifica neste momento, interfere nos direitos de convívio parental sem qualquer decisão judicial de inibição ou que fundamente essa cessação e elimina os direitos de convívio parental em absoluto mas em tutela cautelar;
h) Prevalência da família - na promoção dos direitos e na protecção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adopção ou outra forma de integração familiar estável a suspensão das visitas de forma cautelar e provisória, inexistindo perigo concreto, actual ou efectivo para o menor caso essas visitas se mantenham, implicará a afectação dos convívios do menor com o progenitor detentor das responsabilidades parentais.
Numa palavra: o acolhimento residencial com a manutenção de visitas permite, de outro modo, o respeito por aqueles princípios face à situação de perigo indiciada quanto aos factos susceptíveis de integrarem crime de tráfico de seres humanos cometido pelos progenitores do menor.
A proposta do progenitor de colocação do menor em meio familiar surge, portanto, duplamente improcedente, seja pela manutenção do juízo indiciário sobre aquele perigo, seja por inexistência de quaisquer elementos atendíveis sobre a execução dessa medida alternativa.

*
Considerando a precedente instrução dos presentes autos, e a evidente sinalização de perigo para o desenvolvimento do menor decorrente da situação familiar precedente do seu nascimento e aquando da sua gestação e da indiciação de condutas de crime de tráfico de seres humanos pelos seus progenitores com paternidade biológica não correspondente à perfilhação; considerando a evolução e os resultados positivos da intervenção em meio institucional; considerando as necessidades de desenvolvimento do menor e a pendência de processo-crime e de acção de impugnação de paternidade; afigura-se-nos que a evolução da situação do AA e o seu inerente contexto idiossincrático demandam que se mantenha a medida de acolhimento residencial, por ser a única capaz de assegurar e garantir a protecção e salvaguarda pessoal, beneficiando de apoios institucionais e em beneficio do seu desenvolvimento.
*
Pelo exposto, ao abrigo dos artigos 35.º, n.º 1 al. f), 49.º, 50.º, 51.º, 61.º, 62.º, n.º 1 e 3, al. c), 84.º e 85.º, todos da LPPCJP, por tal se revelar útil, necessário e proporcional ao superior interesse do menor AA, determino a manutenção da medida de acolhimento residencial aplicada, sendo a institucionalização a ocorrer onde a criança já se encontra e com plano de visitas aos progenitores em meio institucional.
Notifique.
*
Oficie ao CAT para que informe os autos da suspensão das visitas do progenitor e esclareça do motivo pelo qual tais visitas foram suspensas sem despacho judicial.

c)

Inconformado, recorre o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público, recurso admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado, e efeito meramente devolutivo. Cfr. fls. 19 verso deste Apenso – o A

Alega o Recorrente, rematando assim:

1. O Ministério Público promoveu em 20.10.2022 (ref. 101691991) a suspensão dos contactos à criança AA, nascido em .../.../2022, por parte do requerido CC, atenta a indiciada consciência da falsidade da declaração de perfilhação da criança perante funcionário do registo civil, tendo o Tribunal a quo decidido no despacho recorrido (ref. 101791382 de 31.10.2022): «Pelo exposto, ao abrigo dos artigos 35.º, n.º 1 al. f), 49.º, 50.º, 51.º, 61.º, 62.º, n.º 1 e 3, al. c), 84.º e 85.º, todos da LPPCJP, por tal se revelar útil, necessário e proporcional ao superior interesse do menor AA, determino a manutenção da medida de acolhimento residencial aplicada, sendo a institucionalização a ocorrer onde a criança já se encontra e com plano de visitas aos progenitores em meio institucional.
2. A questão que o caso concreto suscita consiste em saber se serve ou não o superior interesse da criança recém-nascida a criação e desenvolvimento de laços afectivos a pessoa que assumiu a paternidade por perfilhação, mas que perante terceiros, incluindo perante a CPCJ, assume não ser o progenitor biológico, que apenas conheceu a progenitora da criança (que regressou ao ... após o nascimento daquela e nunca a visitou na casa de acolhimento residencial) no quinto mês de gestação, tendo sido constituído arguido (juntamente com a progenitora), pela prática do crime de tráfico de seres humanos, p. e p. pelo artigo 160.º do Código Penal e que não se encontra inscrito na Segurança Social como candidato a adopção.
3. In casu, é inequívoco que a filiação paterna da criança resultou de declaração prestada pelo requerido CC perante oficial do registo civil, o que por sua vez resultou no lavrar do Assento de Nascimento n.º 964 de 2022 da Conservatória do Registo Civil ..., com menção de CC como sendo o progenitor e de DD e EE como sendo os avós paternos da criança.
4. Nos presentes autos não nos encontramos na fase de julgamento (debate judicial), mas antes na fase instrutória (investigação) do processo de promoção e protecção, inexistindo uma única norma legal ou princípio processual ou constitucional que proíba a valoração nesta fase instrutória do processo judicial de promoção e protecção das declarações que o progenitor registado prestou em sede de inquérito criminal, na qualidade de arguido, pelo que as mesmas deviam ter sido valoradas pelo Tribunal a quo.
5. Tal como deveriam ter sido valoradas as declarações formais da progenitora prestadas no âmbito do mesmo inquérito criminal, valendo quanto às mesmas o que se deixou dito no parágrafo precedente. Com o acrescento de que se trata de declarações de uma outra pessoa que não a do progenitor registado, das quais resulta que este homem não é o pai da criança.
6. Deveriam ter sido também valoradas as declarações formais prestadas pelo progenitor registado e pela progenitora perante a CPCJ, registadas no respectivo processo de promoção e protecção. São declarações formais, por expressamente previstas no formalismo estabelecido nos artigos 94.º/1 e 97.º/2 da LPCJP, ainda que registadas a fls. 9-10 de modo simplificado [cf. artigo 97.º/3 da LPCJP];
7. Existem ainda as testemunhas da negação da paternidade da criança pela progenitora e pelo requerido CC e que são as Sras. Técnicas Gestoras do processo de promoção e protecção que ouviram e registaram as declarações, identificadas no processo de promoção e proteção da CPCJ: FF e GG.
8. O que se pretende nestes autos é que Tribunal a quo não ignore as informações que, por ora, estão disponíveis e são conhecidas: existe uma pessoa que afirma perante terceiros que não é o pai da criança, que insiste em visitá-la na casa de acolhimento residencial, que insiste em agir como se fosse progenitor, que insiste em criar laços afectivos com a criança e sobre a qual existem suspeitas fundadas da prática de crime de tráfico de pessoas (art. 160.º do Código Penal) – o que, por si só, constitui, nos termos previstos no artigo 3.º/1 da LPCJP, um perigo para o desenvolvimento futuro da criança em termos de construção da sua identidade pessoal e história familiar, para além de poder constituir um potencial perigo para a sua integridade física e psíquica caso seja levada para parte incerta por quem, efectivamente, lhe é um estranho, ainda por cima indiciado pela prática de um crime contra a liberdade pessoal.
9. A fls. 2 do processo de promoção e protecção da CPCJ consta a sinalização da criança por parte de HH, do Centro Hospitalar ..., onde aquela nasceu, e que tem o seguinte teor, que se reproduz infra, da qual se destaca que a progenitora declarou que «veio para Portugal no dia 29 de Junho de 2022» e que «encontra-se instalada na casa de um amigo que registou a criança como pai: CC, solteiro, sem filhos de mais ou menos 40 anos, massagista de profissão».
10. A fls. 9-10 do processo de promoção e protecção da CPCJ consta o registo da diligência de audição da progenitora e de CC realizada em 22.07.2022, do qual resulta, além do mais, que a progenitora «vive em ... há 7 anos», que o «casal conheceu-se pela net há cerca de 5 meses. Mãe descobriu que estava grávida aos 5 meses de gestação» e que «foi o CC que pagou o bilhete de avião ida e volta. Perspetivas de futuro: mãe pensa regressar em Setembro ao ..., deixando o AA com CC».
11. Ou seja, quando os progenitores se conheceram «há cerca de 5 meses», ou seja, em Fevereiro de 2022, já decorria o quinto mês de gestação; por si só, este dado objectivo, que não envolve qualquer confissão do progenitor quanto à falsidade do acto de perfilhação perante oficial do registo civil, impõe concluir que, a ser assim, nunca o requerido, residente em Portugal, poderia ser o progenitor biológico de uma criança que se encontrava no quinto mês de gestação de uma mulher, residente no ..., que, até então, não havia conhecido.
12. Mais: após a prolação do despacho ora impugnado, a Segurança Social confirmou que o requerido CC não se encontra inscrito como candidato a adopção – cf. ofício junto em 04.11.2022, ref. CITIUS 9169890 – reforçando o sentido probatório dos elementos constantes dos presentes autos, que “gritam” que o mesmo não é o pai biológico da criança.
13. O projecto de vida desta criança não passará pela confiança ao requerido CC, por tal equivaler a uma adopção encapotada, manifestamente ilegal; pelo que, em sede de revisão da medida cautelar de acolhimento residencial aplicada ao abrigo do acordo de promoção e protecção assinado em 25.07.2022 na CPCJ, que inclui na cláusula 2.ª, n.º 3, o compromisso de «Os pais nos contactos com o recém nascido deverão previamente acordar os mesmos com a Instituição em concreto com a Directora técnica da mesma», o Tribunal deve verificar as condições de execução da medida e determinar a continuação da sua execução «em coerência com o projecto de vida da criança», nos termos previstos no artigo 62.º, n.º 2, alínea c) e n.º 4 da LPCJP..
14. A decisão de revisão da medida de promoção e protecção deverá, na perspectiva do Ministério Público, estabelecer uma limitação, temporária, ao exercício das responsabilidades parentais do requerido CC, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, alínea h), 4.º/1, 12.º, 27.º/1 e 28.º/1 do RGPTC, sendo que «o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita,
devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna» [art. 987.º do CPC], relativamente ao superior interesse da criança e considerando o ilegítimo interesse do “progenitor” visitante na manutenção do vínculo afectivo – cf. artigos 27.º/1 e 40.º/3 do RGPTC.
15. Ao decidir indeferir a promovida suspensão de contactos entre a criança e o “progenitor”, o despacho recorrido incorreu em ilegalidade, por violação do disposto nos artigos 4.º/1, 27.º/1 e 40.º/3 do RGPTC.
16. Estas normas devem ser interpretados no sentido de impor ao Tribunal a tomada de decisão provisória de limitação ao exercício das responsabilidades parentais, no sentido da suspensão de visitas/contactos com a criança, por tal corresponder ao seu superior interesse em não desenvolver laços afectivos por quem se apresenta, indiciariamente, como falso progenitor e que, assumindo o estatuto de arguido em inquérito pela prática de crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo artigo 160.º do Código Penal, insiste em visitar a criança na instituição de
acolhimento – pois tais circunstâncias criam, nos termos previstos no artigo 3.º/1 da LPCJP, um perigo para o futuro desenvolvimento harmonioso da criança em termos de construção da sua identidade pessoal e história familiar, para além de criar um potencial perigo para a sua integridade física e psíquica caso seja levada para parte incerta por quem, efectivamente, lhe é um estranho e indiciado pela prática de um crime contra a liberdade pessoal.
17. Pelo que, pugna o Ministério Público pela revogação do despacho recorrido, por padecer de ilegalidade decorrente da violação das normas previstas nos artigos 4.º/1, 27.º/1 e 40.º/3 do RGPTC, devendo ser substituído por outro que, revendo a medida cautelar e determinando a continuação da sua execução, estabeleça a suspensão dos contactos entre o requerido CC e a criança.

d)

Respondeu o Progenitor, concluindo:

1. Consideramos pelos fundamentos atrás elencados que o Ministério Público (MP), em toda a sua motivação, não teve em atenção a questão que apontou como partida: o superior interesse do AA.
2. O MP assentou a sua fundamentação, independentemente de em algumas passagens ser discutível a sua ponderação, numa orientação fortemente vincada em tipologias que não correspondem directamente ao objectivo do despacho recorrido.
3. As alegações do MP assentam em questões meramente formais, muitas das quais ultrapassados em várias fases da instrução em curso, nomeadamente sobre a perfilhação do menor - e algumas em discussão quer num processo de inquérito, quer num processo civil – acção ordinária-Paternidade.
4. Por vezes o MP reveste a figura de um juiz, acusando e condenando o recorrido, como facilmente se depreende nas suas alegações, esquecendo a questão central dos presentes autos: o superior interesse do AA.
5. O MP demonstra inequivocamente que teria uma outra posição sobre o recorrido, caso o mesmo se tivesse «inscrito na Segurança Social como candidato à adopção», como fez alusão na questão introdutória das suas alegações.
6. Em toda a sua alegação o MP esquece que o relacionamento entre o recorrido e
o AA, devido às circunstâncias que são do conhecimento de todos os intervenientes processuais, é o que a experiência de um Homem Comum dita sobre o relacionamento entre progenitores e filhos: o AMOR!
7. O recorrido, se seguisse as orientações que nos ilide o MP, teria «abandonado»
o «caso AA». Porventura nem este menor teria vindo ao Mundo, tal era a vontade da mãe, tendo em atenção o passado desta, em que, com 25 anos de idade já teve dois filhos, os quais lhe foram retirados, devido à sua personalidade e carências económicas e sociais. E o MP tem conhecimento destes factos.
8. O recorrido não desiste de satisfazer o seu desejo de ser pai, independentemente da natureza biológica. O AA merece ter um pai, acima de tudo.
9. O afecto que o recorrido criou e tem manifestado com o AA, e este reciprocamente, não poderá ser alienado por vontades meramente formais e que não correspondem à evolução de uma sociedade que se pretende humana, justa e equitativa.
10. Impedir o recorrido de manter o seu afecto com o AA, ao fim de quase 4 (quatro) meses de idade, é um acto injusto e desumano, tendo em atenção a natureza e a especificidade do presente caso. Mais, a prolação do MP viola grosseiramente os direitos constitucionais quanto aos Direitos, Liberdade e Garantias das pessoas, e neste caso em especial, por se tratar do relacionamento entre pretenso progenitor e filho!
11. Concordamos com o juiz do Tribunal a quo quando refere que «a convicção indiciária que estriba a promoção corresponde apenas e só a declarações informais e confessórias do progenitor e que se apresentam irrelevantes para o processo-crime e até para a acção de impugnação da paternidade que, entretanto, foi deduzida»
12. Por todo o exposto, o recorrido corrobora o despacho do Mmº. juiz do tribunal a quo, o qual esteve muito bem, na defesa intransigente dos interesses
superiores do menor, AA.
13. Devendo, pois, ser mantido o referido despacho.
Assim, se fazendo Justiça.

e)

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II- ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Pelas conclusões das alegações do recurso se afere e delimita o objecto e o âmbito do mesmo.
“Questões” são as concretas controvérsias centrais a dirimir.

III - OBJECTO DO RECURSO 

As questões que se colocam ao julgador através da presente apelação são:

I – saber quais os factos a ter em conta;
II- saber se o douto despacho com a ref. citius 101791369 de  31 de Outubro de 2022, na parte em que mantém o plano de visitas aos progenitores do AA em meio institucional, se deve, ou não confirmar.


IV- mérito do recurso

1ª questão

O complexo fáctico-processual a ter em conta é o que consta do relatório supra para que se remete.

2ª questão

O douto despacho com a ref. citius 101791369 de  31 de Outubro de 2022, procedeu à revisão da medida aplicada e revalidou a medida de promoção e protecção de acolhimento residencial do menor AA, sendo a institucionalização a ocorrer onde o menino já se encontra, e com plano de visitas aos Progenitores a levar a cabo nesse mesmo meio.
Uma vez que a Progenitora está no ..., de onde é natural, os contactos em apreço reconduzem-se aos do Progenitor com o menino.

O Mº Pº sustenta a revogação da medida cautelar, no sentido de manter a continuação da mesma, mas com a suspensão dos contactos entre o Requerido, CC, e a criança.
 
Em termos gerais temos que o ora Requerido, reformado por invalidez e massagista de profissão, tem a nacionalidade portuguesa, é filho de pais portugueses, natural de ..., ..., onde nasceu em .../.../1974, é residente no Ed. Belavista, Bloco ..., ..., ..., ....
Com o propósito de concretizar o desejo de ter um filho seu, conheceu nas redes sociais uma senhora brasileira, grávida, com muitas dificuldades económicas, com quem se entendeu, alegadamente sem contrapartida, de modo que suportou do seu bolso a viagem de vinda e volta da senhora a Portugal e daqui para o .... Aqui a Senhora teve a criança, o menor AA, regressando ao .... O ora Requerido perfilhou o AA e é o seu pai registral. Não será, portanto, o seu pai biológico.

Está acolhido em meio residencial, onde o Progenitor o tem ido visitar.

*
De acordo com os autos, estarão em curso diligências no sentido de punir criminalmente o ora Requerido e fazer reverter a inscrição da paternidade no registo de nascimento do AA.
 
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A situação que nos ocupa cinge-se à defesa do superior interesse do menor, ainda bebé, actualmente com seis messes de idade, pois a tal mandam obedecer os artigos 1º e 4º da LPCJP.

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I - O processo judicial de promoção e protecção é de jurisdição voluntária (art.100º, da Lei nº147/99, de 1/9, que aprovou a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo), pelo que não há, propriamente, um conflito de interesses a compor, mas um só interesse a regular, muito embora possa haver um conflito de representações ou opiniões acerca do mesmo interesse.
II - Os princípios a que obedece a intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo, encontram-se previstos no art.4º, destacando-se, em primeiro lugar, o interesse superior da criança e do jovem (cfr. a al. a)).
III - Depois, entre outros, haverá que ter em consideração, por um lado, o princípio da proporcionalidade e actualidade, nos termos do qual a intervenção deve ser a necessária e adequada à situação concreta de perigo no momento em que a decisão é tomada, só podendo interferir na vida da criança ou do jovem e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade (cfr. a al. e)).
IV - E, por outro lado, os princípios da responsabilidade parental e da prevalência da família, segundo os quais a intervenção deve ser efectuada de modo que os pais assumam os seus deveres, devendo ser dada prevalência às medidas que integrem a criança ou o jovem na sua família (cfr. as als. f) e g)).
V - As medidas de promoção e protecção ou são executadas no meio natural de vida, como acontece, por exemplo, com a de apoio junto dos pais, ou em regime de colocação, como acontece, designadamente, com a de acolhimento em instituição (cfr. o art.35º, nºs 1, als. a) e f), 2 e 3). Cfr. Ac. TRL de 3-12-2013, proferido no processo nº 260/09.1TBCSC-A.L1-7, Relator Roque Nogueira, acessível no web site da dgsi.net.
 
Estamos na fase de instrução do processo.

*
O AA está na fase do primeiro dente.
Neurologicamente o conjunto do cérebro médio, sub-cortical terminou a mielinização. A do sistema nervoso superior, cortical, vai começar lentamente.
O sistema nervoso do bebé é ainda muito frágil, sem nenhum sistema regulador.
Depende da mãe. É lactente. Todo gira à volta desta figura.
Se ela inexiste, ou se vários rostos femininos ocupam o seu lugar, porque por exemplo anda e colo em colo e não privilegia nenhum deles, a evolução afectiva da criança fica dificultada.
A mãe é quem deve satisfazer os desejos imediatos da criança, sem o negar, sob pena de provocar alterações importantes.
A mãe protege, tranquiliza.
Nos casos de ausência total da mãe, ou se qualquer substituto maternal, a necessidade de relações afectivas é tal que a criança tende a criar o laço, primordial, indispensável, com uma mãe substituta.
Na ausência de qualquer figura materna, a criança fica privada da condição essencial para o seu crescimento e desenvolvimento geral afectivo motor e psíquico.
O atraso pode ser mais ou menos acentuado, ou até revertido, consoante a falta da mãe ou a interrupção do seu contacto, ocorra mais tarde.
Nos primeiros meses, a ausência da mãe ou do substituto, provoca apatia na criança, fica numa indiferenciação patológica.
A partir do 6º mês, nesta situação, a criança entra num estado de regressão cada vez maior de evolução. Pára o desenvolvimento físico, perde peso, fica imóvel e bebetada.
A carência total da mãe provoca na criança um deficit intelectual de 50% no primeiro ano e um acréscimo de exposição às infecções.
Começam as angústias para a criança. O universo desértico, o desertismo no estádio materno, o desertismo familiar, o desertismo da instituição onde se encontra.
As perturbações mentais são ineevitáveis.

Aos doze meses a criança alcança a posição vertical, a partir dos dezoito meses entra na fase de educação dos esfíncteres e, por volta dos dois anos, começa a dominar a linguagem falada.

A mãe continuará a ser muito importante, mas o papel do pai, assume cada vez mais relevância.
Até aqui o pai estava presente, aparecia como satélite da mãe, dando a esta equilíbrio afectivo e segurança. A partir daqui a atitude da mãe indica uma certa frustração.
Até aos dois anos de idade não é necessário estabelecer qualquer relação afectiva directa do pai com a criança.
A partir dos dois anos de idade tudo de passa de um modo diferente na relação pai-criança.
Cfr. Roger Mucchielli, in A Personalidade da Criança, Clássica Editora, 5ª ed., pág. 38 a 51 e 60.

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O superior interesse da criança, critério orientador do julgador ( e demais intervenientes ) na promoção e protecção, visa assegurar que a criança se desenvolva, física e psicologicamente, num ambiente de segurança, para tal carecendo do amor verdadeiro, e todo o carinho e dedicação que os outros lhe possam dedicar. 

Não podemos padronizar as situações diversas, premonizando que se irá criar como projecto de vida para o menor, a sua futura adopção.

Não podemos esquecer que o Requerido, é o pai registral do menor. Cfr. assento do nascimento constante de fls. 27.

Ao que consta dos autos, o Requerido desejou ter um filho seu. Cfr. declarações prestadas na Polícia Judiciária de fls. 41 verso e ss.
Também para ele a perfilhação do menor faz parte, certamente, de um seu projecto de vida.

A ligação pai-criança até aos dois anos de idade da criança, não é, como vimos, em situações de existência de casal, necessária em absoluto.

No caso, a AA está em segurança no que diz respeito a ter as necessidades básicas e cuidados assegurados, por quem sabe, assim como acompanhamento técnico.
Como vimos, a institucionalização da criança, e a privação dos cuidados da mãe biológica, trazem problemas, carecendo de uma constante atenção, de um aplicado trabalho e de monitorização multidisciplinar.

Porém, o convívio e contacto com o Requerido, se efectivamente carregado de amor genuíno, pode desenhar-se como um bálsamo para o desenvolvimento harmonioso do AA.

A manutenção do plano de visitas aos progenitores do AA em meio residencial, deve continuar - Artigos 4º, 35º, 1, f), 50º, 51º, 62º, 1 e 3, c), da LPCJP – uma vez que assim garante e concretiza, por ora, a segurança e a estabilidade necessárias ao seu desenvolvimento. 

Decisão ulterior e de maior vulto aguarda pelo menos o resultado dos relatórios sociais e de acompanhamento da evolução da situação no terreno.

V-DECISÃO:

Pelo que fica exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão na parte impugnada.

Sem custas.

Coimbra, 24 de Janeiro de 2023.


(Rui  António Correia  Moura)                                

(João Moreira do Carmo)

(Fonte Ramos)