ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO
DANOS CAUSADOS NO LOCADO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Sumário


I – Age com culpa e, por isso, está obrigado a indemnizar o locador, o locatário que, propositadamente, cortou os cabos eléctricos e telefónicos, arrancou os disjuntores e armações das lâmpadas, obrigando a nova instalação eléctrica.
II – Se os danos não estiverem quantificados, podem ser calculados por apelo a critérios de equidade.
III – Merecem a tutela do direito os danos não patrimoniais causados ao proprietário do locado, com o fundamento em se ver privado do uso do locado, dada a extensão dos danos existentes.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

AA e mulher BB intentaram a presente ação declarativa com processo comum contra:

1ª - CC,

2ª - R..., UNIPESSOAL LIMITADA, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia total de 12.528,71, referente à reparação dos danos provocados pelas rés nos termos descritos nos arts. 31.º, 36.º e 37.º da petição inicial, acrescida dos juros de mora e até efetivo e integral pagamento.

Alegaram, em síntese:

-são donos e legítimos proprietários de uma fração autónoma destinada a comércio, designada pela letra ..., correspondente ao rés-do chão direito e logradouro, do prédio sito na Avenida ..., Lugar ..., da União de freguesias ... e ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...39 e descrito na CRP ... sob o n.º ...28 e aí inscrito a seu favor através das Ap. ... de 1989/12/28 – Aquisição e AP. ...21 de 2014/12/19.

-As rés foram condenadas por sentença transitada em julgado a reconhecerem o direito de propriedade dos autores sobre a fração acima identificada e a procederam à sua entrega aos autores, livre e desimpedida de pessoas e bens.

-Quando os autores se deslocaram ao estabelecimento verificaram que a mesma apresentava vários danos, e que grande parte dos mesmos, tinham sido provocados propositadamente.

Reclamam uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

As rés contestaram, por exceção (ineptidão e ilegitimidade da 1ª ré, porque apenas ocupou a fração enquanto gerente da segunda e não a título pessoal) e por impugnação.

Dispensou-se a realização da audiência prévia e decidiu-se pela improcedência das exceções. Fixaram-se os temas da prova.

Realizou-se a audiência de julgamento e na sequência da qual foi proferida sentença que julgou parcialmente provada e procedente a ação, e condenou as rés a pagar aos autores o valor global de 7.000€, acrescido de juros de mora até efetivo e integral pagamento.

Inconformada com o decidido, as rés CC e R..., UNIPESSOAL LIMITADA interpuseram recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. As RR, não se conformam com a sentença recorrida, que as condenou no pagamento da indemnização por danos patrimoniais no montante de 6.000€ e por danos não patrimoniais no montante de 1.000€, fixados segundo juízos de equidade, pretendendo a reapreciação da matéria de facto e de direito, de acordo com o disposto nos art.º 639º, e art.º 640º ambos do CPC.

2. A sentença padece de nulidade, por falta de fundamentação, por violação do disposto nos art.º 607º, n.º 4 e 615º n.º 1 al. c) e d) ambos do CPC, na medida em que se verifica a existência de contradição entre os factos provados e não provados; é omissa, quanto ao exame crítico das provas, e por se verificar contradição entre grande parte da fundamentação da sentença e a decisão, que reporta a inexistência da intencionalidade das RR, na produção dos danos, e por outra via condena as RR.

3. Ora, desde logo, existe contradição entre os factos dados como provados sob o n.º 16 e a al) a) dos factos não provados. Na medida em que, ora se refere que as RR. praticaram danos propositadamente no imóvel na parte elétrica, e deu-se como não provado, que as RR. provocaram propositadamente todos os danos visualizáveis no local.

4. Por outra via, a sentença é omissa quanto à análise critica da prova, sendo esta meramente feita por indicação. Dela não consta, a análise crítica das provas apresentadas, mostrando e explicando as razões que objetivamente o determinam a ter (ou não) por provado determinado facto.

5. O tribunal a quo, deu como provado nos factos 16 que alguns danos foram provocados propositadamente, contudo apenas indica, como tendo sido provocados propositadamente os relativos à parte elétrica. E no ponto 32 dos factos provados, dá como provado que parte dos danos, devem-se a humidades e infiltrações, ora estamos perante matéria de facto dado como provada, inconclusiva e indeterminável, não sendo suficiente para determinar a condenação da RR.

6. Grande parte da fundamentação da sentença, nomeadamente no que diz respeito à convicção do tribunal, é contraditória com a intencionalidade necessária na produção dos danos

7. Da matéria de facto e da fundamentação da sentença recorrida, resulta que a mesma não se revela clara e percetível, demonstrando-se entre si incoerente. Ora se diz que alguns danos forma provocados propositadamente ora se fundamenta que alguns são derivados da idade do prédio, infiltrações de humidades.

8. As RR, vêm impugnar a decisão da matéria de facto, pois, a douta Sentença recorrida, padece de erro de julgamento nesse âmbito. Pretendendo a reapreciação da matéria de facto gravada. Em concreto,

9. Foram incorretamente julgados os factos dados como provados sob os n.ºs 15, 16, 19, 20, 21, 22, - na parte a que se refere que o teto tinha buracos, 24, 25, 28, - na parte a que se refere aos danos provocados pelas RR, 29, e 41 e os factos dados não provados da alínea b), c), d) e e).

10. Porquanto, os depoimentos constantes da gravação da audiência, concretamente depoimento da testemunha DD, (depoimento gravado de 20210715144040_3459399_2871946 do minuto 2:53 a 18:59), depoimento da testemunha EE (depoimento gravado sob o nº 20210715153605_3459399_2871946 do Min: 3:09 até 10:07; do minuto 12: 28 até 14: 38; do minuto 16:51 a 17:17, do minuto 19:24 até final) do depoimento da testemunha FF (gravado sob o nº 20201008160708_3459399_2871946 ao Min 3:35 até 4:29, do minuto 4:35 até 9:38, do minuto 7:53 até 8:29, do minuto 16:12 até 16:39, do minuto 17: 33 até 19:35), depoimento da testemunha, GG (gravado sob o nº 20210715103507_3459399_2871946, Min 13:30 até 20:18, do minuto 26:10 até final), e a prova documental junta impõem inequivocamente a alteração da matéria de facto dada como provada ora impugnada, dando-a como não provada, e a matéria de facto dada como não provada, ora impugnada ser dada com provada.

11. Foi inquirida sobre o orçamento elaborado quanto à parte elétrica a testemunha GG, que não conhecia o imóvel em data anterior à entrega, considerou a existência de um quadro elétrico na parede do lado direito, no sentido de quem entra na loja, que tinha os fios cortados, sem disjuntores. Admite a existência de outro quadro elétrico que se encontrava colocado no pilar, tendo os fios curtos (quadro este que as testemunhas DD e EE, descreveram ser o quadro geral, onde ligavam e desligavam a luz do estabelecimento, uma vez que ou demais nunca foram acabados e nunca funcionaram), questionado se testou se este quadro, o mesmo referiu que não

12. Com relevo para a decisão, também referiu tal testemunha, que as tomadas se encontravam partidas, admitindo tal facto, ser compatível com o uso normal. Mais referiu que as armaduras das lâmpadas do r/chão estavam colocadas, faltando apenas os vidros e lâmpadas, admitindo que era normal, as substituírem-se as lâmpadas partirem-se os vidros. Mais referiu que ao nível do piso da cave, este não dispunha de projetores, apenas tinha um furo com dois fios, evidenciando que existia uma lâmpada ou candeeiro.

13. Confrontado com o orçamento, referiu que o mesmo, era para a colocação de tudo novo, inclusivamente, a colocação de projetores ao nível do piso da cave, quando anteriormente a mesma não dispunha.

14. Ora a par disto, não se pode descurar que a instalação elétrica do imóvel, já foi instalada há mais de 20 anos.

15. Quanto ao orçamento apresentado pela testemunha FF, para reparação das paredes, tetos, pintura, tubagens de água e colocação de portas. Importa ter em consideração que esta testemunha não se deslocava ao local, há muitos anos, portante não sabe como se encontrava o imóvel. Fez o orçamento, de que viu acha. Refere que os tetos tinham danos que se via que era pelo tempo, o decurso dos anos, outras partes notavam-se infiltrações. Da experiência que tem, refere que os furos existentes nas paredes, se tratava da fixação das estantes, o que eram muitas. Facto, confirmado pelas testemunhas DD, EE que referem que o estabelecimento ao nível do R/chão, estava com todas as suas paredes dotadas de estantes.

16. Ora, em face dos depoimentos da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugados com os depoimentos, cuja reapreciação se pretende e que se encontram transcritos, mal andou a M. Juiz a quo a condenar as RR.

17. Sendo que, as testemunhas DD, não obstante ser filha da R. CC, e a Testemunha EE, conheciam bem o imóvel, acompanharam as mudanças, tendo apresentado um discurso ao longo de todo o depoimento sereno, convincente, coincidente, sem contradições e com poucas discrepâncias e contradições. De todo o modo esclarecendo, detalhadamente, que existia um quadro de eletricidade, cuja instalação nunca foi concluída, a que se referem as fotografias juntas aos autos. Facto, também confirmado, pela testemunha GG, que foi ao imóvel, para dar o orçamento, para a parte elétrica, alegando desconhecer o imóvel em data anterior.

18. Também foi confirmado pelas três indicadas testemunhas a existência de humidades no imóvel, a existência de um buraco no teto, em consequência de tal facto, bem como a existência de buracos nas paredes, justificados pela existência da loja dotada de estantes, destinadas à finalidade do estabelecimento, destinado à venda de roupas.

19. Quanto ao facto n.º 29 dado como provado, que se pretende ver reapreciado, a prova produzida quanto a este, relativamente aos danos morais, foi filho dos AA, a testemunha HH, que referiu, que os pais ficaram chateados a testemunha II, referiu que Autora ficou chateada, a testemunha JJ, disse que sobretudo o pai ficou mal.

20. Ora as testemunhas inquiridas quando aos danos não patrimoniais, foi o filho dos AA, cunhado do A. e irmão da Autora e a filha dos AA, referindo todos que os AA se encontravam chateados, facto que não merece tutela do direito para ser ressarcido. Além de que todas as testemunhas estão de relações cortadas com os AA., evidenciando más relações, pelo que os meios de prova que incidiram sobre os danos não patrimoniais era insuficiente para dal tal facto como provados, devendo o mesmo ser dado como não provado.

21. Atenta a aludida matéria de facto, dever-se-iam dar como não provados os factos constantes nos nº 16, 19, 20, 21, 24, dos “factos provados” uma vez que não foram suficientemente seguros e inequívocos, de forma a fundar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável, de que as RR, tenham provocado propositadamente os danos no imóvel, nomeadamente cortar os cabos de eletricidade, fios, disjuntores e inclusive arrancar as armações das lâmpadas. E deviam dar-se como provados os factos das  al. b), c) e d) da matéria de facto não provada.

22. Por outra via, os factos indicados como incorretamente julgados, estão em contradição evidente, com os factos não provados, na media em que, na al) a dos factos não provados da sentença recorrida, a Meritíssima juíza a quo deu como não provado que as RR tenhas provocado propositadamente todos os danos.

23. No que diz respeito concretamente ao facto 41 dados como provados, importa esclarecer que tais factos não foram alegados pelos AA., tendo a M. Juiz a quo, aditado tal facto, e dando-o como provado, com base nas declarações da testemunha HH, o que se manifesta, de todo insuficiente, atenta a má relação, evidenciada entre este a R. CC, e atenta qualquer outro meio probatório, que permitisse dar tal facto como provado, nomeadamente, quais as obras de reparação e melhorias, por si executadas e, quais a s que foram ou não concluídas, devendo tal facto ser dado como não provado

24. Para a análise da alteração da matéria de facto pretendida, devem ter-se em consideração, os documentos juntos aos autos, a saber as fotografias juntas, juntas pelos AA. como prova da verificação dos danos aquando a data da entrega do imóvel, das quais resulta que são visíveis os seguintes danos (as duas fotografias juntas sob o doc 6. A 1º, 2º e 3º fotografia junta com o doc ..., e a 2º fot. Junta sob o doc. ...): Buracos na parede – uma fotografia que evidencia pequenos furos existentes nas paredes laterias, compatíveis com a existência das estantes no imóvel, e que se destinaram à sua fixação; Uma fissura na parede – compatível com vicio do próprio imóvel; No teto ao nível do r/chão –verificam-se a existência das armações das lâmpadas colocadas.

25.Também se deve ter em consideração análise do Documento junto com a P.I. sob o doc ... - a sentença proferida no âmbito do processo 1281/15...., junta sob o doc. ... com a P.I. (que consta dos factos provados sob os n.s 1 a 14), devendo ter-se em consideração a matéria de facto nela dada como provada, a sua fundamentação e sua decisão, para melhor compreensão da questão suscitada nos presentes autos de que se recorre. Concretamente, o facto da ocupação ilícita das RR. no imóvel, dada como assente na sentença de que se recorre. Facto que não reporta a fundamentação da anterior decisão, antes, justificou a ocupação das RR. como mera detenção, tolerada pelos AA.

26. As RR. foram condenadas com base na responsabilidade por factos ilícitos, de acordo com o disposto no art. 483º do CC e com base em critérios de equidade, nos termos do disposto no art. 566º n.º 3, e apenas relativamente aos danos da parte elétrica e quanto aos danos verificados nas paredes e tectos;

27. Para tanto, a sentença recorrida ao declarou que se encontram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, conforme o disposto no art.º 483° do C.C., fazendo uma errada interpretação e aplicação deste normativo, violando-o de forma evidente.

28. Não se encontra verificada a existência de um facto voluntário e ilícito, o nexo de Imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade.

29. Da prova produzida, não se provou que foram as RR. que cortaram os fios de eletricidade, arrancaram os disjuntores e as armações das lâmpadas, assim, como realizaram buracos nos tectos e paredes.

30. Pelo que, não resultou provado o facto voluntario praticado dolosamente ou negligente por parte das RR, adequado a produzir os danos dados como provados, apenas no que se refere à parte elétrica, e furos nas paredes e tetos.

31. Da prova produzida, cuja reapreciação da prova grava se pretende, resulta que os quadros elétricos e fios, disjuntores nunca foram acabados, o que não se pode imputar as RR., que o quadro geral sito no pilar não foi testado e conforme a testemunha GG não tinha os fios cortados, apenas refere que era curtos, pelo que face aos depoimentos seria esse quadro que fornecia a parte elétrica do estabelecimento visto que os outros nunca foram acabados.

32. Relativamente aos buracos no teto apenas resulta a prova a existência de um buraco no teto resultante da humidade, que com os anos e infiltrações das águas levou ao apodrecimento do pladur o que fez com que este caísse, facto que determinou o buraco ai existente alheio a qualquer intervenção das RR., conforme resulta dos depoimentos cuja reapreciação se pretende, e dos factos dados como provados sob o n.º 33. Não tendo resultado provados a existência de quaisquer outros danos no tecto.

33.No que diz respeito aos danos na parede a prova foi suficientemente segura a referir que os mesmos se devem a humidades infiltrações e a fixação das estantes, expositores, utilizadas pelas RR, na sua atividade comercial (factos provados nos pontos 32 e 37).

34. Por outra via, fundamenta a Mm. Juiz a quo, a responsabilidade por factos ilícitos, com base na ocupação ilícita que as RR. faziam do imóvel.

34. No entanto, a “ocupação ilícita”, por si só não determina a ocorrência de quaisquer danos, e por outra via, no âmbito da sentença proferida entres as mesmas partes a que se faz referência nos pontos 10 e 11 da matéria dos factos provados as RR., eram detentores do imóvel, ocupando o imóvel por tolerância dos AA/recorridos, não se verificando assim qualquer ocupação ilícita.

35. Assim não se verifica a violação do direito de propriedade dos AA/Recorridos, art.º 1311 do CC., uma vez que a atuação das Recorrentes não lesa o direito de propriedade daqueles.

36. Os verificados danos (parte elétrica e paredes e tetos), devem-se ao uso humidades, trabalhos inacabados e a idade do referido imóvel, conforme já descrito, fundamentado no enquadramento dos factos.

37. Posto isto, não se verifica nexo de causalidade entre o facto voluntario e o dano, uma vez que não existe facto voluntario das RR., com vista a causarem os danos, logo não existe ilicitude por parte destas.

38. Para além de que, da prova nada resulta que as RR., provocaram propositadamente os danos supra descritos no imóvel.

39. Porquanto, não se mostram verificados, no caso, os pressupostos de responsabilidade civil por factos ilícitos nos termos do art.º 483º do Código Civil, devendo por isso as RR., ser absolvidas dos pedidos em causa.

40. Conclui-se, pois, perante a factualidade dada por não provada, na alínea a) dos factos não provados, e em face da alteração da matéria de facto pretendida, que as RR não provocaram propositadamente todos os danos no imóvel, não se mostrando assim preenchidos os elementos da responsabilidade civil por factos ilícitos de acordo com o art.º 483 do CC.

Sem prescindir, e subsidiariamente,

41. A condenação das RR., segundo os critérios de equidade nos termos do artigo. 566 nº3 do CC, não se revela possível, na medida em que os factos não são deficientes dada a inconclusividade relativamente à causa dos danos.

42. Violou a sentença o disposto nas seguintes disposições legais, o n.º 1 do art.º 205 da CRP, art.º 154, art.º 607 n.º 4 e art.º 615 n.º 1 al. b) e c) todos do CPC, art.º 483º e art.º 566 N.º 3 do CPC.

43. Deve, pois, a Douta sentença ser revogada e substituída por outra, nos termos sobreditos, que absolva as RR.

NESTES TERMOS, DEVERÃO VOSSA EXCELÊNCIAS DECIDIR REVOGAR A DECISÃO RECORRIDA, NOS TERMOS SOBREDITO, E SUBSTITUIR POR OUTRA, DOUTAMENTE PROFERIDA POR ESTE VENERANDO TRIBUNAL, QUE ABSOLVA AS RR.

Os recorridos AA e mulher BB apresentaram contra-alegações, sustentando em síntese que o recurso deve ser mantido.

O recurso foi admitido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

OBJETO DO RECURSO

Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidades da sentença recorrida.
2. Falta de cumprimento dos ónus de prova do artigo 640º do CPC: não indicação dos meios de prova para cada um dos factos impugnados e sugestão de nova redação para os mesmos.
3. Alteração da decisão quanto à matéria de facto.
4. Pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito.
5. Critérios de fixação dos valores indemnizatórios.

FUNDAMENTOS DE FACTO

O Tribunal de 1ª instância fixou a matéria de facto da seguinte forma:

Factos provados, com relevo para a decisão da causa, dos essenciais alegados e dos complementares e instrumentais decorrentes da instrução.

1) Os Autores são donos e legítimos proprietários de uma fração autónoma destinada a comércio, designada pela letra ..., correspondente ao rés-do chão direito e logradouro, do prédio sito na Avenida ..., Lugar ..., da União de freguesias ... e ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...39 e descrito na CRP ... sob o n.º ...28 e aí inscrito a seu favor através das Ap. ... de 1989/12/28 – Aquisição e AP. ...21 de 2014/12/19 - Cfr. Docs. n.º ..., ... e ... da p.i e admitido por acordo.

2) Encontrando-se o referido prédio registado a favor dos mesmos, através das APs. ... de 1989/12/28 – Aquisição e AP. ...21 de 2014/12/19 – idem e admitido por acordo.

3) Os Autores, por si e seus antecessores, vêm fruindo aquele prédio, como coisa sua, onde têm os seus pertences, neles recebendo em tempos os amigos e familiares, onde guardavam objetos e materiais e utensílios que comercializavam, procedendo a obras de manutenção e restauro, obras de melhoria, emprestando-o aos seus filhos, pagando os respetivos impostos ao Estado, há mais de 20, 30 e 40 anos, comportando-se como seus exclusivos donos e senhores, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem interrupção, de forma contínua e permanente, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem o de outros, como sendo seus verdadeiros donos, como de facto o foram e são, agora, os autores supra identificados.- admitido por acordo.

4) Pese embora não resulte do teor dos documentos o prédio dos Autores já era constituído em propriedade horizontal, mas só posteriormente os proprietários formalizaram a divisão do prédio através da constituição da propriedade horizontal,- admitido por acordo

5) Desde há cerca de 50 anos, era naquele referido rés-do chão do referido imóvel que quer o Autor quer o seu pai exerciam a atividade comercial, que ambos exerciam, de alfaiataria.- idem

6) Pelo menos em 1985 senão antes, os Autores, já como possuidores e proprietários do referido rés-do-chão do imóvel, a que agora corresponde a fração de sua propriedade, decidiram ceder, de forma gratuita, o referido espaço aos seus filhos HH e KK e para que os mesmos ali pudessem exercer a atividade comercial de venda de roupa a que então se dedicavam conjuntamente. – admitido por acordo.

7) Quando o filho KK, decidiu emigrar, há cerca de vinte, vinte e poucos anos, a referida loja passou a ser ocupada apenas pelo seu outro irmão HH- admitido por acordo.

8) Entretanto, o HH, casou e passou a exercer a atividade comercial em conjunto com a sua mulher a aqui Ré DD, mantendo a posse dessa loja e do estabelecimento comercial aí instalado e aí exercendo a mesma atividade comercial. – admitido

9) Passados alguns anos, a primeira Ré, sogra do HH, filho dos Autores, começou a frequentar e a permanecer grandes períodos no espaço comercial supra identificado.- admitido por acordo

10) Factos estes que aliás já se encontram provados por sentença proferida em 13/06/2018 e transitada em julgada, no âmbito do processo n.º 1281/15...., que correu termos no Juízo Central Cível ... – Juiz ..., onde os Autores peticionaram que lhes fosse reconhecido o direito de propriedade sobre a referida fração, identificada em 1.º, bem como para as aqui Rés procederem à sua entrega no estado em que se encontrava. – admitido por acordo.

11) Assim e nessa sequência foi proferida sentença que decidiu: “Julgo parcialmente procedente por provada a presente ação comum instaurada pelos autores AA e BB contra as rés DD, CC, “R... Unipessoal, Ld.ª” e, em consequência: I. Absolvo a ré DD, dos pedidos contra si formulados pelos supra identificados autores; II Declaro que os supra identificados autores são proprietários da fração autónoma destinada a comércio, designada pela letra ..., correspondente ao rés do chão direito e logradouro, do prédio sito na Avenida ..., Lugar ..., da União de freguesias ... e ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...39 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...28, ... – Condeno as rés CC e “R... Unipessoal, Ld.ª” a reconhecerem o direito de propriedade dos autores sobre a fração identificada no ponto anterior desta decisão e a procederam à sua entrega aos autores, no prazo de 30 dia após o trânsito em julgado da presente decisão, livre e desimpedida de pessoas e bens; IV – Absolvo as rés dos demais pedidos contra si formulados.” - Cfr. Doc. n.º ... e admitido por acordo.

12) Na mesma sentença foi julgado improcedente o pedido reconvencional indemnizatório, por se entender que as obras feitas pela Ré R..., UNIPESSOAL LIMITADA não serem benfeitorias, nem ter havido enriquecimento ilícito pelos AA.- vide sentença junta

13) Em .../.../2015, já após o divórcio do filho dos AA com a filha da Ré, aqueles interpelaram as RR no sentido de não permitirem mais a ocupação do espaço pela R..., UNIPESSOAL LIMITADA sem o pagamento de um renda, o que não foi aceite pelas RR.

14) Na sequência da sentença proferida as Rés, através da sua ilustre mandatária, entregaram as chaves do imóvel no escritório do mandatário dos Autores, ora subscritor, em outubro de 2018 – admitido por acordo.

15) Assim que os Autores se deslocaram à fração verificaram que a mesma apresentava vários danos.

16) Alguns dos quais provocados propositadamente, nomeadamente os relativos à parte elétrica. – fotos juntas, em conjugação com a prova testemunhal e regras da normalidade e da experiência comum.

17) Como consta da decisão judicial supra referida, a fração em causa dizia respeito a um estabelecimento comercial, de venda de roupas, estando devidamente preparado para o efeito, com expositores, prateleiras, espelhos, provadores.

18) Quando foi entregue pelas Rés, os espelhos colocados nos pilares das lojas estavam partidos, sobretudo na parte inferior – fotografias juntas e prova testemunhal

19) Todos os cabos de eletricidade e telefone do estabelecimento foram cortados, danificando assim todas as ligações quer de luz quer de comunicações - Idem.

20) Foram arrancados, pelas RR disjuntores dos quadros e cortados os fios, impossibilitando a utilização dos mesmos e obrigando a nova instalação elétrica.

21) Estavam arrancadas armações das lâmpadas, focos e campânulas (estas ao nível da cave), tendo sido cortados os fios.

22) As paredes apresentavam-se com rachadelas e furos, tal como o teto, que tinha buracos.

23) Uma das portas de madeira estava retirada do local e encostada a uma parede e não existia uma outra porta, que estava antes junto aos vestiários.

24) Foi arrancado o tapete de entrada que ali se encontrava colocado no chão, ao nível do pavimento.

25) As RR retiraram ainda um radiador de aquecimento que se encontrava fixo na parede, e que levaram consigo. (Cfr. Doc. n.º ...0 que se anexa)

26) Em 08/11/2018, os Autores interpelaram as Rés, através do seu mandatário ora subscritor, para procederem ao pagamento da reparação dos danos que propositadamente causaram, incumprindo assim a sentença proferida no âmbito do processo n.º 1281/15..... (Cfr. Docs 4 e 11 da p.i)

27) Foram inclusive enviados orçamentos para reparação dos referidos danos, a saber:

-reparação das ligações elétricas, de comunicações, projetores, lâmpadas, tomadas, quadros, no valor de 2.213,71 euros – Cfr. Doc. n.º ...2

-reparação de paredes e pinturas, colocação de porta na cave e no rés-do-chão, - reparação de tubagens de água, no valor de 4.600,00 euros (Cfr. Doc. n.º ...3 que se anexa);

-substituição dos espelhos nos vários pilares, no valor de 1.000,00 euros;

-colocação de tapete, no valor de 80,00 euros;

-colocação do radiador, no valor de 135,00 euros.

28) As Rés não pagaram qualquer das quantias para reparação dos danos pelas mesmas provocados, encontrando-se até ao presente o prédio no estado em que as Rés o deixaram.

29) Toda esta situação tem trazido uma grande tristeza e incómodos e ansiedade aos Autores, que já tiveram de passar por um processo judicial para lhes ser entregue o prédio, e que mesmo com uma decisão que lhes reconheceu o direito de propriedade e que determinou a sua entrega, se vêm impedidos de o usar devido aos danos que ali foram provocados.

30) À carta dos AA responderam as RR, através da sua mandatária, conforme documento nº ... da contestação e cujo teor e conteúdo se dá por integralmente reproduzido.

31) O imóvel em causa foi cedido pelos AA, no ano de 1985 aos filhos para nele instalar a referida atividade comercial e desde então, foi objeto de várias obras ao longo dos anos, umas realizadas pelo filho dos AA e outras, mais recentemente, pela 2ª R. – vide sentença junta.

32) Parte dos danos nas paredes e tetos devem-se também a humidades e infiltrações e que se foram agravando ao longo dos tempos.

33) O buraco que existe no teto, concretamente junto à porta da entrada principal, deve-se à entrada de humidade provocada pelas infiltrações de água, tendo, consequentemente, o teto em pladur caído, pelo que foi posta uma cartolina presa com pionès para atenuar o efeito do buraco ali existente.

34) O que terá sucedido por volta do ano de 2014, após a saída do filho dos AA do estabelecimento.

35) Alguns dos espelhos dos pilares foram estalando ao longo dos anos, com a utilização do espaço.

36) E o tapete da entrada estava velho, devido ao uso e idade.

37) Alguns dos furos da parede deveram-se à fixação das estantes utilizadas pelas RR na sua atividade comercial.

38) A maioria das obras feitas no espaço, até 2013, foram ordenadas e pagas pela Ré R..., UNIPESSOAL LIMITADA –sentença transitada em julgado

39) Ainda que pudesse ser o filho dos AA quem as orientasse ou executasse e, a partir do momento em que o casal DD e HH se separaram, pela Ré CC.

40) A porta do escritório foi levada pelo HH, ex-genro da Ré e filho dos AA.

41) Até ao momento em que este estava no estabelecimento, ia fazendo obras de reparação e melhorias, por conta da R..., UNIPESSOAL LIMITADA, e tudo estava em funcionamento, nomeadamente a parte elétrica.

Factos não provados (que não estejam já em contradição com os provados)

a) As RR provocaram propositadamente todos os danos visualizáveis no local.

b)  As infiltrações e humidades agravaram-se (em finais de 2016, princípios de 2017), em virtude de ter havido uma inundação proveniente do andar superior do imóvel.

c) Os cabos cortados correspondem a um quadro elétrico cuja ligação nunca foi concluída.

d) O quadro que constitui sua parte integrante nunca teve ligações promovidas por fios, nem caixa, porta ou aro.

e) Apenas foram retiradas as lâmpadas do teto e os candeeiros da cave, que pertenciam à 2ª Ré, tendo, no entanto, sido conservadas as armações das respetivas lâmpadas e extraídos os candeeiros com todo o zelo, de modo a não provocar lesões na estrutura.

FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Nulidades da sentença recorrida

Os recorrentes defendem que a sentença padece de nulidade, por falta de fundamentação, por violação nos art.º 607º, nº 4 e 615º, nº 1, al. c) e d), ambos do CPC, na medida em que se verifica a existência de contradição entre os factos provados e não provados: é omissa, quanto ao exame crítico das provas, e por se verificar contradição entre grande parte da fundamentação da decisão e a decisão, que reporta a inexistência da intencionalidade das rés na produção dos danos, e por outra via condena as rés. Existe contradição entre os factos dados como provados sob o nº 16 e al. a) dos factos não provados, na medida em que ora se refere que as rés praticaram danos propositadamente no imóvel na parte elétrica e deu-se como não provado, que as RR. provocaram propositadamente todos os danos visualizáveis no local. Por outro lado, a sentença é omissa quanto à análise crítica da prova, sendo esta meramente feita por indicação. Mais refere que o tribunal a quo, deu como provado nos factos 16 que alguns danos foram feitos propositadamente, contudo apenas indica, como tendo sido provocados propositadamente os relativos à parte elétrica E no ponto 32 dos factos provados dá como provado que parte dos danos, devem-se a humidades e infiltrações, pelo que estamos perante uma matéria de facto dada como provada, inconclusiva e indeterminável, não sendo suficiente para determinar a condenação das RR. (Conclusões 2., 3 e 4 e 5).

O Tribunal a quo pronunciou-se sobre as nulidades arguidas da seguinte forma:

“Alegam as recorrentes que a sentença proferida é nula com os seguintes fundamentos:

-Contradição entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada.

-A sentença, não contém o exame crítico das provas.

-Na sentença os fundamentos estão em oposição com a decisão, existem ambiguidades ou obscuridades que tornam a decisão ininteligível;

-Contradição entre grande parte da fundamentação da sentença com a intencionalidade das RR, na produção dos danos.

Salvo melhor opinião, nenhuma das nulidades se verifica, mas apenas uma discordância da fundamentação da decisão.

Por exemplo, e no que toca à contradição entre os factos dados como provados sob o n.º 16 e a al) a) dos factos não provados. Com efeito, não se percebe onde está a contradição, bem pelo contrário, já que se demostra que só parte dos danos foram intencionalmente provocados (vg na parte elétrica) e não em todos os que havia no local. E a parte não é o todo, logo, não há contradição.

Entendemos que a fundamentação é clara e explicita quanto aos meios de prova subjacentes e à intima e livre convicção a que se chegou.

Por conseguinte, e aderindo à resposta dos Recorridos, nesta parte, mantém-se o decidido, sem prejuízo de superior e distinto entendimento.”

O art.º 615.º n.º 1 do C.P.C. estabelece que a sentença é nula quando, entre outras situações:

“b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”

Relativamente à nulidade prevista na al. b), tem tido acolhimento a tese de que só verifica nos casos de falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade[1].

Quanto à nulidade prevista na al. c), diz-nos o Ac. do STJ, de 13-09-2011[2] “A nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão só ocorre quando a fundamentação adoptada conduz logicamente a determinada conclusão e, a final, o juiz extrai outra, oposta ou divergente.”

No mesmo sentido, podemos acima citar o Ac. do STJ, de 29-04-2021[3] “A nulidade por contradição entre os fundamentos e decisão verifica-se sempre que, considerada a decisão final como o desenlace de um raciocínio, se regista, a final, uma contradição – uma contradição lógica – entre os pressupostos e a conclusão (todos os argumentos apontavam para certa decisão e, sem que nada o fizesse esperar, a decisão final foi a oposta ou diferente da que se anunciava)”.                 Assim, a contradição entre factos provados, entre factos provados e não provados, ou quando a matéria contemplada na decisão de facto é insuficiente para a tomada de posição sobre o pedido formulado não determinam qualquer nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão ou por omissão de pronuncia nos termos do art.º 615.º do C.P.C. Nestas circunstâncias podemos estar perante um erro ou vício da decisão de facto, situações que encontram acolhimento na previsão do art.º 662.º do C.P.C. relativamente à modificabilidade da decisão de facto, à luz do qual devem ser avaliadas[4].

Por fim, e no que respeita à nulidade por omissão de pronúncia prevista na alínea d), tem-se entendido de que só ocorre quando a omissão de conhecimento, relativamente a cada questão, é absoluta e já não quando seja meramente deficiente ou quando se tenham descurado as razões e argumentos invocados pelas partes, não relevando, portanto, para este efeito, as argumentações, razões ou juízos de valor aduzidos por aquelas em abono da sua posição. Como tal, destinando-se as nulidades da decisão a remover aspetos de ordem formal que, eventualmente, inquinem a decisão, não é a arguição das mesmas adequada para manifestar discordância e pugnar pela alteração do decidido, designadamente no que se reporta aos factos provados e não provados[5].

A situações alegadas pelas recorrentes relativamente às quais a mesma conclui pela existência de contradições e omissões da decisão sobre a matéria de facto por parte do tribunal de 1ª instância e que se circunscrevem à matéria de facto em discussão, mais não são do que alegados vícios da decisão de facto, não determinando a nulidade da sentença nos termos do art.º 615.º n.º 1, do CPC.

Em suma, a sentença recorrida não padece das nulidades invocadas pelas recorrentes.


2. Falta de cumprimento dos ónus da prova do artigo 640º do CPC- Falta de indicação dos meios de prova para cada um dos factos que impunham decisão diversa e decisão sobre os pontos de factos impugnados diversa da recorrida.

Sustentam os recorridos que as recorrentes, apesar de identificarem os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados (conclusão nº 2), não associaram a cada um o respetivo meio de prova que, na sua opinião, impunham decisão diversa, nem tão pouco, articularam factos “reapreciados” que, na sua ótica, deviam figurar nos autos.

Dispõe o art.º 640º do CPC sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”

“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

(…).

No caso em apreço, os recorrentes, nas conclusões recursórias, especificam os concretos pontos de facto que impugnam, referindo que devem ser julgados não provados os factos dados como provados e julgados provados os factos dados como não provados, e no corpo das alegações, indicam os meios de prova convocados (documentos e passagens dos depoimentos em foco).

Encontram-se assim preenchidos os requisitos formais do ónus de impugnação exigidos pelo art.º 640º, nºs 1, als. b) e c), do CPC. A insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória exposta pelo recorrente é matéria a apreciar em sede do mérito da decisão impugnada[6].

Ora, analisadas as alegações de recurso, entendemos que foi cumprido de forma suficiente os ónus de impugnação previstos no artigo 640º do CPC, pelo que não se impõe, a rejeição liminar deste recurso quanto à impugnação da matéria de facto.

 
3. Alteração da decisão quanto à matéria de facto

As recorrentes consideram que foram incorretamente julgados os factos dados como provados sob os n.ºs 15, 16, 19, 20, 21, 22, - na parte a que se refere que o teto tinha buracos, 24, 25, 28, - na parte a que se refere aos danos provocados pelas rés, 29, e 41 e os factos dados não provados das alíneas b), c), d) e e).

Comecemos por apreciar a motivação da convicção do tribunal a quo que foi a seguinte:

O Tribunal a quo, após análise dos meios de prova e na sua livre convicção, retirou as seguintes ilações (que se reproduzem):

“- O imóvel foi entregue aos AA em muito mau estado, como o revelam as fotos juntas e confirmaram as testemunhas dos AA que lá se dirigiram após a entrega da fração, que revelaram estupefação e que, no geral, ficaram com a perceção de que aquilo havia sido propositadamente vandalizado.

-De todas essas testemunhas, que viram o local após a entrega, deu-se especial credibilidade ás que nada têm a ver com as partes, por não serem família nem ex-trabalhadores, nem amigos, nomeadamente os senhores que orçamentaram os danos, quer na parte elétrica, quer para colocar o espaço minimamente condigo, reparando paredes e tetos.

-Ficou-se com a convicção segura do péssimo relacionamento entre as partes desde que, literalmente, “se zangaram as comadres”, após os conflitos que culminaram no fim do relacionamento entre a testemunha DD, filha da Ré, e a testemunha HH, filho dos AA.

-E que esse mau relacionamento pessoal, que culminou na prisão da testemunha HH, levou a que, neste processo, sobretudo a testemunha DD, filha da Ré, imputasse àquele, o “agressor”, todo e qualquer tipo de defeito, anomalia ou dano verificado no imóvel, transferindo para o bem, digamos, instintiva e humanamente, todo o mal pessoal que lhe possa ter acontecido.

- Mas, de forma distante e com a objetividade que se pretende, da conjugação dos diversos depoimentos, acredita o tribunal que até 2013/2014, sensivelmente, data em que o HH e DD se separaram e o primeiro abandonou o exercício de facto da gerência da R..., UNIPESSOAL LIMITADA e deixou de aí comparecer, o imóvel ia sendo mantido e até melhorado. E que não eram visíveis os danos que agora existem, aquando da entrega, ou seja, os buracos nas paredes e tetos, devido à decoração do espaço, e que os quadros elétricos funcionavam, tal como as lâmpadas, focos, holofotes, etc; poderia haver já alguns espelhos partidos, mas em menor grau.

Note-se que a própria DD foi dizendo que era o então marido quem ia fazendo as obras, tendo lhe escapado até que só ele usava os outros quadros e disjuntores quando queria acender outras luzes (o que significa que funcionavam).

- Também as testemunhas da Ré asseguraram que havia luz no edifício e que foram deixados os fios das campânulas da cave, o que não se verificou aquando da entrega, o que só pode significar que foi propositadamente inutilizada a instalação elétrica, pelas RR.

- Outros danos, como os buracos na parede, manchas na pintura, ocorreram porque as RR retiraram os objetos que lá se encontravam, ainda que da sua propriedade (vg, focos, ar condicionado, radiador)

- Ainda assim, é evidente, face às regras da experiência comum, que um prédio antigo, com humidades, se não for constantemente intervencionado sofre também um desgaste natural, sendo que as RR foram interpeladas para celebrarem contrato e pagarem renda ou o entregarem em abril de 20105 e só o fizeram em outubro de 2018, mais de 3 anos depois, nada tendo mais feito no estabelecimento para o conservar.

- Não foi alegado nem provado como era o interior do edifício antes de ter sido entregue ao filho, pelos AA, há muitos, muitos anos, sabendo-se apenas que a R..., UNIPESSOAL LIMITADA fez obras no espaço.

Mas o tribunal acreditou nas testemunhas dos AA quando referiram que à data em que os AA interpelaram as RR para pagarem renda ou entregarem o espaço, não estava no estado de degradação e destruição em que foi entregue.

- Diga-se, ainda que caso existissem danos antes de 2013/2014, provocados por obras “executadas”, em termos materiais, pelo HH, como foi aventado (buracos na fixação das estantes, buracos para o quadro do alarme, etc) quem fez e suportou essas obras foi a Ré R..., UNIPESSOAL LIMITADA, como resulta provado na decisão judicial atras referida.

- Obras essas, levadas a cabo pela Ré que fundamentou um pedido reconvencional de 42.000€ e, portanto, quem provocou os alegados danos sempre seria a R..., UNIPESSOAL LIMITADA.

Ou seja, não podem as RR e suas testemunhas alegar numa ação que o que lá fizeram foram benfeitorias, para ali pedir uma indemnização (de resto improcedente porque se entendeu, e bem, não serem benfeitorias) e aqui alegar que foi o filho dos AA, para justificar os danos.”

De harmonia com o disposto no artigo 662º, nº 1, do CPC “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa

A recorrente invoca como meios de prova para alterar a matéria de facto os depoimentos gravados das testemunhas DD, EE, FF e GG;  I- a prova documental junta pelos AA./recorridos com a P.I. (duas fotografias juntas sob o doc. nº ..., primeira fotografia junta com o doc. ..., segunda e terceira fotografia junta sob o doc. ..., a terceira fotografia junta sob o doc. ...; II-o teor da missiva remetida ao mandatário das RR. em reposta à imputação dos danos, junta com a contestação sob o doc. ... (facto provados 30); III- o documento junto com a P.I. sob o doc. ...- a sentença proferida no âmbito do processo 1281/15...., IV- Os orçamentos que constam dos factos provados indicados sob o nº 27 (do orçamento junto com a P.I. sob o nº 12, referente à reparação das ligações elétricas, de comunicações, projetores, lâmpadas, tomadas e quadros, no montante de €2.213,71 e orçamento junto com a p.i. sob o nº 13, referente à reparação de paredes e pinturas, colocação de porta na cave e no rés do chão, reparação de tubagens de água, no valor de €4600).

No que se refere à reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, é de recordar que no nosso ordenamento jurídico vigora o principio da livre apreciação da prova, principio que expressamente se consagra no art.º 607º, nº 5, do CPC.

E trata-se sempre de uma reapreciação limitada, uma vez que não temos acesso à linguagem não verbal das partes e das testemunhas que, necessariamente, também influiu na formação da convicção do tribunal a quo.

Conforme refere Ana Luísa Geraldes[7] “A alteração deve ser efectuada com segurança e rodeada das necessárias precauções, centrando-se nas desconformidades encontradas entre a prova produzida em audiência - após efectiva audição dos respectivos depoimentos -e os fundamentos indicados pelo julgador da 1ª instância e nos quais baseou as suas respostas, e que habilitem a Relação, em conjunto com outros elementos probatórios e nos termos das als. a) e b) do nº 1 do art.º 712º do CPC, a concluir em sentido tido diverso, quanto aos concretos pontos de facto impugnados especificadamente pelo Recorrente.

Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.

Quer isto dizer que, nessa reapreciação da prova feita pela 2ª instância, não se procura obter uma nova convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável, atendendo aos elementos que constam dos autos, e aferir se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido.

O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade”.

Por outro lado, a prova deve ser valorada de forma holística, ou seja, no seu conjunto, reclamando uma ponderação global, segundo o standard da “probabilidade lógica prevalecente”, em que havendo versões contraditórias sobre determinado facto, o julgador deve escolher das diferentes probabilidades a que, perante o conjunto dos elementos probatórios, se evidencie como a mais provável[8]”.

Procedeu-se à audição integral de toda a prova gravada, conjugando-a com a análise da prova documental junta aos autos, nomeadamente as fotografias do local onde funcionou o estabelecimento comercial em causa.

Assim, tendo presente as assinaladas limitações ao exercício da reapreciação da prova, vejamos, então, aquilo que foi possível inferir da prova produzida.

Pretendem as apelantes que seja dada como não provada a matéria descrita nos pontos de facto provados que seguidamente se transcrevem:

15. Assim que os autores se deslocaram à fração verificaram que a mesma apresentava vários danos.

Os recorrentes alegam que este ponto deve dado como não provado com base nos depoimentos das testemunhas LL, EE, FF e GG e a prova documental junta.

Este ponto está relacionado com os pontos 16, 19, 20, 21, 22 e 24, pelo que será apreciado conjuntamente com estes.

16. Alguns dos quais provocados propositadamente, nomeadamente os relativos à parte elétrica.

19. Todos os cabos de eletricidade e telefone do estabelecimento foram cortados, danificando assim todas as ligações quer de luz quer de comunicações.

20. Foram arrancados, pelas RR disjuntores dos quadros e cortados os fios, impossibilitando a utilização dos mesmos e obrigando a nova instalação elétrica.

21. Estavam arrancadas armações das lâmpadas, focos e campânulas (estas ao nível da cave), tendo sido cortados os fios.

                  Alegam os recorrentes que estes factos foram dados como provados apenas com base no depoimento da testemunha HH, que pese embora já não fosse ao imóvel desde 2014, confirmou a existência de danos da parte elétrica, negando que as estantes estivessem aparafusadas à parede, que existissem humidades no imóvel, factos que foram confirmados pelas demais testemunhas, inclusive pelas testemunhas dos AA. GG e MM. O depoimento a testemunha HH revelou-se tendencioso e vingativo, pelo facto de ter estado em cumprimento de pena de prisão, pelo crime de violência doméstica, cometido contra a filha da R. CC, e testemunha DD. Acresce que o seu depoimento não é coerente com a matéria de facto dada como provada nos pontos 5, 6, 7 e 8, no qual se dá como provado que o imóvel há mais de 50 anos é destinado a estabelecimento comercial, sendo que das fotos do relatório pericial realizado em 2017 no âmbito do processo anterior, verificam-se sinais evidentes de humidade no imóvel e existência de obras na cave inacabadas.

                  Referiram ainda que se devia ter tido em conta os depoimentos das testemunhas DD, filha da R. CC, EE, que conheciam bem o imóvel e acompanharam as mudanças, assim como do GG, que foi ao imóvel para dar o orçamento, para a parte elétrica.

                  No Ac. do TRL, de 2-07-1996[9], sumariou-se o seguinte, com o qual se concorda:

                  “I- A testemunha que está de "relações cortadas, com uma das partes não se torna, por esse motivo, inábil para depor, nem o seu depoimento é necessariamente destituído de qualquer valor; se assim fosse, tomar-lhe depoimento seria um acto inútil, proibido por lei, nos termos do artigo 137 do Código de Processo Civil.

                  II - A relação existente entre o depoente e qualquer das partes deve ser tida em conta pelo julgador, mas para que use das precauções necessárias para surpreender a verdade dos factos narrados pela testemunha.”

                  Assim sendo, não se pode entender a priori que o depoimento da testemunha HH é destituído de qualquer valor probatório. Na verdade, e na sequência da audição integral do seu depoimento gravado, entendemos que o mesmo se revelou espontâneo, coerente e fundado, sendo de realçar que foi o fundador da R. R..., UNIPESSOAL LIMITADA, saiu do estabelecimento comercial em 2014 e voltou lá depois dos AA (seus pais) terem recebido as chaves, tendo sido ele que o pôs a funcionar, nomeadamente na parte elétrica, tendo contratado para o efeito uma empresa certificada (a E...). O seu depoimento está em consonância com os depoimentos das testemunhas FF, GG, NN, II e JJ, que foram ao estabelecimento comercial, depois dos AA. ter recebido as chaves, assim como com os documentos juntos aos autos, nomeadamente fotografias e orçamentos.

                  É certo que ouvidos os depoimentos das testemunhas DD, EE e OO apresentaram uma versão diferente dos factos, que aponta no sentido de que “a loja foi entregue conforme existia, não estragaram nada” (segundo declarações da testemunha DD).

                  Porém, esta versão, mostra-se contraditória com os depoimentos das testemunhas que foram considerados credíveis, assim como com os documentos juntos aos autos (fotografias e orçamentos).

                  Afigura-se-nos assim que não pode ser censurada a valoração atribuída pelo julgador de dar especial credibilidade às testemunhas que por não serem família, nem ex-trabalhadores nem amigos das partes, orçamentaram os danos, quer na parte elétrica, quer para colocar o espaço minimamente condigno, reparando paredes e tetos.

22. O teto tinha buracos.

24. Foi arrancado o tapete de entrada que ali se encontrava colocado no chão, ao nível do pavimento.

25. As rés retiraram ainda um radiador de aquecimento que se encontrava fixo na parede, e que levaram consigo.

As recorrentes alegam que estes factos devem ser dados como não provados com base nos depoimentos das testemunhas LL, EE, FF e GG e prova documental junta.

Estes factos devem manter-se provados com base nos depoimentos das testemunhas arroladas pelos autores, ora recorridos, que se mostraram credíveis, pelas razões acima expostas e prova documental junta, pelo que nada justifica que se tenha agora em conta depoimentos contraditórios com os que foram dados como credíveis.

28. As rés não pagaram qualquer quantia para reparação dos danos pelas mesmas provocados, encontrando-se até ao presente o prédio no estado, em que as Rés o deixaram.

O pagamento é um facto extintivo, cuja prova recaía sobre os réus, ora recorridos, nos termos do artigo 342º, nº 2, do Código Civil, o que não foi feito.

29. Toda esta situação tem trazido uma grande tristeza e incómodos e ansiedade aos autores, que já tiveram de passar por um processo judicial para lhes ser entregue o prédio, e que mesmo com uma decisão que lhes reconheceu o direito de propriedade e que determinou a sua entrega, se vêm impedidos de o usar devido aos danos que ali foram provocados.

Alegam as recorrentes que as testemunhas inquiridas sobre esta factualidade foram o filho, cunhado do A. e irmão da autora e filha dos AA. referindo todos que os AA. se encontravam chateados, sendo que estas testemunhas estão de relações cortadas com os AA.

Conforme, acima já foi dito, as relações cortadas, assim como as relações familiares com as partes, não retiram por si só valor probatório.

Assim sendo, e tendo em conta os danos no estabelecimento comercial que foram dados como provados, e fazendo apelo às regras de experiência comum, encontra-se perfeitamente justificada a factualidade dada como provada.

41. Até ao momento em que esteve estava no estabelecimento, ia fazendo obras de reparação e melhorias, por conta da R..., UNIPESSOAL LIMITADA, e tudo estava em funcionamento, nomeadamente a parte elétrica.

Os recorrentes contestam que este facto tenha sido dado como provado com base nas declarações da testemunha HH, o que consideram insuficiente, atenta a sua má relação com a R. CC e a inexistência de outro meio probatório.

Conforme resulta do acima exposto, o facto da testemunha HH ter uma má relação com a R. CC (sua ex-sogra) não torna o seu depoimento necessariamente destituído de qualquer valor. Acresce que a factualidade em causa foi confirmada pelo depoimento da testemunha DD (que foi casada com a testemunha HH) que referiu expressamente “que ele é que fazia lá obras.

Pretendem ainda as apelantes que seja dada como provada a matéria descrita nos pontos de facto não provados que seguidamente se transcrevem:

b) As infiltrações e humidades agravaram-se (em finais de 2016, princípios de 2017), em virtude ter havido uma inundação proveniente do andar superior do imóvel.

c) Os cabos cortados correspondem a um quadro elétrico cuja ligação nunca foi concluída.

d) O quadro que constitui sua parte integrante nunca teve ligações promovidas por fios, nem caixa, porta ou aro.

e) Apenas foram retiradas as lâmpadas do teto e os candeeiros da cave, que pertenciam à 2ª Ré, tendo, no entanto, sido conservadas as armações das respetivas lâmpadas e extraídos dos candeeiros com todo o zelo, de modo a não provocar lesões na estrutura.

Alegam as recorrentes que estes factos devem ser dados como provados com base nos depoimentos das testemunhas DD, EE e GG, conforme consta da transcrição destes depoimentos. As demais testemunhas não poderiam afirmar tais factos, uma vez que umas não conheciam o imóvel e outras não visitavam o imóvel há muitos anos.

Os depoimentos das testemunhas DD e EE não se mostraram credíveis, relativamente aos factos dados como provados, pelas razões acima expostas, pelo que não se justifica alterar a posição assumida.

Por fim, cumpre referir que não existe qualquer contradição entre os factos dados como provados sob o nº 16 e a al. a) dos factos dados como não provados, cujas redações se recordam mais uma vez.

16. Alguns dos quais provocados propositadamente, nomeadamente os relativos à parte comum. Este ponto está relacionado com o ponto 15 “Assim que os autores se deslocaram à fração verificaram que a mesma apresentava vários danos”.

a) As RR. provocaram propositadamente todos os danos visualizáveis no local.

Da conjugação destes pontos, afigurar-se-nos que se deve entender que com exclusão dos danos na parte elétrica que foram causados de propósito, e do radiador de aquecimento que se encontrava fixo na parede e que levaram consigo (ponto s25), todos os outros danos que se visualizam no local não foram causados propositadamente, pelo que não se pode concluir por contradição entre factos, não obstante se reconhecer a redação algo confusa na sentença recorrida.

Em suma, tudo ponderado, afigura-se-nos que a 1.ª instância decidiu bem a matéria factual impugnada.

4. Pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos
Na sentença recorrida considerou-se o seguinte:
“Aquando da entrega as RR retiraram tudo quanto lá havia sido colocado.
                  E ao fazerem-no provocaram ainda mais danos, ainda que da parte deles se creia não terem sido dolosamente provocados.
   Como se referiu, ao retirarem, por exemplo, as prateleiras, radiador, cortina de vento e ar condicionado, deixaram as paredes e tetos marcados e furados, e tornaram visíveis outros buracos que a R..., UNIPESSOAL LIMITADA (e não o filho dos AA. porque ele executava em nome da R..., UNIPESSOAL LIMITADA, como está assente) possa ter antes feito.
   Acresce que outros danos, relativos à instalação elétrica, inutilizando-a em absoluto, foram intencionalmente provocados, cortando a ré, diretamente ou por interposta pessoa, os fios e tirando disjuntores.
   Ou seja, a ocupação ilícita pelas RR provocou vários danos materiais no imóvel pelo que se impõe que as mesmas tivessem reparado e entregue o imóvel, em condições minimamente condignas e funcionais.
Aliás, choca ao sentimento comum, do cidadão médio, que alguém esteja a ocupar um imóvel com um estabelecimento aberto ao público, sem qualquer contrapartida e entregue no estado que se comprovou.
Não admira, por isso, que os AA, ao verem o espaço nesse estado, e depois de já terem passado por uma ação para reaverem o que é seu, tenham sofrido angústias, sofrimento, tristeza, revolta.”
Os recorrentes sustentam que não se mostram verificados, no caso, os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, nos termos do artigo 483º do Código Civil, nomeadamente a existência de factos voluntários e ilícitos praticados dolosamente ou negligente por parte das RR, assim como o nexo de imputação do facto ao agente e o nexo de causalidade.

Cumpre, pois, averiguar se estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.

Dispõe o art.º 483º do Código Civil que “aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Da leitura deste normativo verifica-se a existência de vários pressupostos que condicionam a responsabilidade civil por factos ilícitos também conhecida por responsabilidade subjetiva ou delitual.

É necessário, desde logo, que haja um facto voluntário do agente (não um mero facto natural causador de danos). Este facto consiste em regra numa ação, ou seja, num facto positivo (apropriação ou destruição de coisa alheia) que importa a violação de um dever geral de abstenção, do dever de não ingerência na esfera de ação do titular do direito absoluto. Mas pode também traduzir-se num facto negativo, numa abstenção, numa omissão, entendendo-se que a omissão é causa do dano, sempre que haja o dever jurídico de praticar um ato que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano.

Por isso, facto voluntário significa apenas facto objetivamente controlável ou dominável pela vontade.

Para fundamentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o ato ou a omissão; não é necessária uma conduta predeterminada, uma ação ou omissão orientada para certo fim.

Fora do domínio da responsabilidade civil ficam apenas os danos causados por causas de força maior ou pela atuação irresistível de circunstâncias fortuitas.

Em segundo lugar, é necessário que o facto do agente seja ilícito, isto é, que constitua a violação de um direito de outrem (os direitos absolutos, nomeadamente os direitos sobre as coisas ou direitos reais, os direitos da personalidade, os direitos familiares e a propriedade intelectual) e violação da lei que protege interesses alheios (infração de leis que, embora protejam interesses particulares, não conferem aos respetivos titulares um direito subjetivo a essa tutela, e de leis que, tendo também ou até principalmente em vista a proteção de interesse coletivos, não deixam de atender aos interesses particulares subjacentes, de indivíduos ou grupo de pessoas).

Em terceiro lugar, tem que haver um nexo de imputação do facto ao lesante (culpa); o agente tem que ser imputável (pessoa com capacidade natural para prever os efeitos e medir o valor dos seus atos e para se determinar de harmonia com o juízo que faça acerca destes, ou seja, discernimento e capacidade de determinação) e é necessário que tenha agido com culpa.

A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente e pode revestir duas formas distintas: o dolo e a negligência ou mera culpa.

Em quarto lugar tem que haver dano, para haver obrigação de indemnizar é condição essencial que o facto ilícito culposo tenha causado prejuízo a alguém.

E por fim tem que haver um nexo causal entre o facto e o dano, ou seja, um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder afirmar-se, à luz do direito, que o dano é resultante da violação, pois só quanto a esse a lei manda indemnizar o lesado[10].

Pressupostos esses cujos ónus de alegação e prova impende ao lesado (art.º 342º, nº 1), a não ser que beneficie de uma presunção legal (art.º 350º, nº 1), o que a acontecer transfere para o lesante o ónus de ilidir essa presunção (art.º 350º, nº 2).

Em face da prova dada como provada, constatamos a existência de vários danos, cumprindo, porém, distinguir entre os vários tipos de danos existentes no estabelecimento comercial:

-Quanto à parte elétrica:

-foram provocados de propósito (facto 16);

-todos os cabos de eletricidade e telefone do estabelecimento foram cortados, danificando assim todas as ligações quer de luz quer de comunicações (facto 19);

-foram arrancados, pelas RR. disjuntores dos quadros e cortados os fios, impossibilitando a utilização dos mesmos e obrigando a nova instalação elétrica (facto 20);

-estavam arrancadas armações das lâmpadas, focos e campânulas (estas ao nível da cave), tendo sido cortados os fios (facto 21);

-foi apresentado às rés orçamento para reparação das ligações elétricas, de comunicações, projetores, lâmpadas, tomadas e quadros no valor de €2.213,71.

-Quanto aos espelhos:

-os espelhos colocados nos pilares estavam partidos, sobretudo na parte inferior (facto 18);

-alguns dos espelhos dos pilares foram estalando ao longo dos anos, com a utilização do espaço (facto 35).

-a substituição dos espelhos nos vários pilares, foi orçado no valor de €1.000,00.

-Quanto ao tapete da entrada:

-foi arrancado o tapete de entrada que ali se encontrava colocado no chão, ao nível do pavimento (facto 24);

-o tapete da entrada estava velho, devido ao uso e idade (facto 36).

-a colocação de tapete foi orçada em €80,00 (facto 27).

-Quanto ao radiador:

-os RR. retiraram ainda um radiador de aquecimento que se encontrava fixo na parede, e que levaram consigo (facto 25);

-a colocação do radiador foi orçado em €135,00.

-Quanto às paredes:

-as paredes apresentavam-se com rachadelas e furos (facto 22);

-parte dos danos nas paredes deve-se também a humidades e infiltrações que se foram agravando ao longo dos tempos (facto 32).

-Quanto ao teto:

-o teto tinha buracos (facto 22);

-parte dos danos nos tetos devem-se também a humidades e infiltrações que se foram agravando ao longo dos tempos (facto 32);

-o buraco que existe no teto, concretamente junto à porta da entrada principal, deve-se a entrada de humidade provocada pelas infiltrações de água, tendo, consequentemente, o teto em pladur caído, pelo que foi posta uma cartolina presa com pionês para atenuar o efeito do buraco ali existente (facto 33);

-quanto às portas:

-uma das portas de madeira estava retirada do local e encostada a uma parede e não existia uma outra porta, que estava antes junto aos vestiários (facto 23);

-A porta do escritório foi levada pelo HH, ex-genro da ré e filho dos autores (facto 40).

Com relevância, importa ainda considerar os seguintes factos:

-A fração em causa dizia respeito a um estabelecimento comercial, de venda de roupas, estando devidamente preparado para o efeito, com expositores, prateleiras, espelhos e provadores (facto 17).

-o imóvel em causa foi cedido pelos AA. no ano de 1985 aos filhos para nele instalar a referida atividade comercial e desde então, foi objeto de várias obras, ao longo dos naos, umas realizadas pelo filho dos AA. e outras mais recentemente, pela 2ª ré (facto 31).

Em face do exposto, entendemos que só se mostram verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos relativamente aos danos verificados na parte elétrica do estabelecimento comercial e ao radiador.

Quanto ao tapete, paredes, portas e teto, não se mostram preenchidos os requisitos do facto ilícito, culpa e nexo de causalidade entre facto e dano.


5. Critérios de fixação dos valores indemnizatórios

   Quanto a este aspeto, considerou-se na sentença recorrida:

                     “Entendemos, por isso, ser devida uma indemnização, quer pelos danos patrimoniais quer pelos não patrimoniais.

   Já no que concerne ao montante, o tribunal não pode deixar de recorrer à equidade, enquanto justiça do caso concreto- art.º 566º, nº 3 do CC.

   É que, se houve danos intencionais na fração, outros há que também decorrem de infiltrações e falta de manutenção, ou seja, decorrentes de negligência ou mera culpa, em parte imputáveis às RR., mas outras não, face à idade do imóvel e deficiente impermeabilização.

   Todavia, não podemos olvidar que se as RR deixaram paredes com buracos ou “furinhos”, a mesma terá de ser integralmente reparada, não sendo viável outra solução de reparação que não seja reparar e pintar integralmente paredes e tetos.

   O nosso raciocínio vai no sentido de encontrar um valor equilibrado para os danos materiais, mas que necessariamente englobe o necessário para a reposição das paredes e tetos e toda a parte eléctrica (excluindo os demais danos), que neste momento, por culpa das RR. não está em funcionamento.

Acrescentamos apenas que os orçamentos juntos pelos AA. datam de 2018 e que, como as testemunhas, seus autores, referiram que é do conhecimento geral, atualmente já não se conseguirão fazer as obras por esses valores, devido ao exponencial aumento de preços, devido à pandemia e que irão influenciar ainda mais devido à guerra na europa.

Ainda assim, tendo por base os dois orçamentos juntos entendemos ser justo e equilibrado, fixar um valor de indemnização global pelos danos patrimoniais em 6.000€.

No que concerne aos comprovados danos não patrimoniais, serão fixados em 1.000,00€.”

Os recorrentes alegam que a condenação das RR., segundo os critérios de equidade nos termos do art.º 566º, nº 3 do CC, não se revelava possível, na medida em que os factos não são deficientes dada a inconclusividade relativamente à causa dos danos (Conc. 41).

                  Dispõe o artigo 566º do CPC com a epígrafe “Indemnização em dinheiro”:

                  1 – A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.

2 – Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem

como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.

3 – Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

Conforme acima se aludiu, só se verificam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos relativamente aos danos na parte elétrica do estabelecimento e quanto ao radiador.

Dado que resultou provado que a reparação das ligações elétricas, de comunicações, projetores, lâmpadas, tomadas e quadros, foi orçado em €2.213,71 e a colocação do radiador foi orçado no valor de €135,00, as rés constituíram na obrigação de indemnizar no valor global de €2.348,71 (resultante da soma daqueles dois valores), a título de indemnização por danos patrimoniais, não havendo necessário de recorrer ao critério subsidiário da equidade.

                  Quanto aos danos não patrimoniais, provou-se que “Toda esta situação tem trazido uma grande tristeza e incómodos e ansiedade aos autores, que já tiveram de passar por um processo judicial para lhes ser entregue o prédio, e que mesmo com uma decisão que lhes reconheceu o direito de propriedade e que determinou a sua entrega, se vêm impedidos de o usar devido aos danos que ali foram provocados”.

                   Estes danos merecem indiscutivelmente a tutela do direito[11], nos termos do artigo 496º, nº 1, do Civil, sendo que em principio, estes danos devem calcular-se de acordo com a equidade (art.º 496º, nº 4, do Código Civil).

   Os apelantes apenas puseram em causa, que aqueles danos merecessem a tutela do direito.

Não impugnaram o valor indemnizatório que foi fixado na sentença recorrida, pelo que não sendo uma questão suscitada, não compete a este tribunal pronunciar-se nesta parte.

                                                                       x

Em conclusão: a apelação procede parcialmente, fixando-se o valor indemnizatório global em €3.348,71, sendo €2.348,71, a título de danos patrimoniais e €1.000,00, a título de danos não patrimoniais, sendo que os juros de mora relativamente a este valor se vencem, desde a sentença recorrida[12].

Das Custas:

As custas deste recurso e da 1ª instância são da responsabilidade das autoras e rés, na proporção do decaimento- artigo 527º do CPC.

(…)

DECISÃO

Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando-se a decisão recorrida que passa a ter a seguinte redação:

Decide-se julgar parcialmente provada e procedente a ação, condenando as rés a pagar aos autores a quantia global de €3.348,71 (três mil, trezentos e quarenta e oito euros e setenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal até integral pagamento, sendo que relativamente ao valor de €2.348,71, os juros se vencem desde a citação e quanto ao valor de €1.000,00 os juros se vencem deste a sentença recorrida.

As custas deste recurso e da 1ª instância são da responsabilidade das autoras e rés, na proporção do decaimento.

                                                                                                    Coimbra, 23 de janeiro de 2023

Mário Rodrigues da Silva- relator

Cristina Neves- adjunta

Teresa Albuquerque- adjunta

Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original



([1]) Ac. do TRG, de 16-06-2016, proc. 253/10.6TMBRG-A.G1, relator Miguel Baldaia de Morais, www.dgsi.pt.
([2]) Proc. 2903/05.7TBCSC.L1.S1, relator Nuno Cameira, www.dgsi.pt.
([3]) Proc. 704/12.5TVLSB.L3.S1, Catarina Serra, www.dgsi.pt.
([4]) Ac. do TRP, de 24-01-2018, proc. 19656/15.3T8PRT.P1, relatora Inês Moura e Ac. do TRG, de 15-12-2022, proc. 783/20.1T8BRG.G1, relatora Alexandra Viana Lopes, www.dgsi.pt.
([5]) Ac. do STJ, de 30.11.2022, proc. 2603/19.0T8PDL.L1.S1, relator Fernando Baptista, www.dgsi.pt.

([6]) Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, pp. 205-206.
([7]) Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto, pp.17-18, http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf.

([8]) Michele Taruffo, La Prueba de Los Hechos, 2002, pág.292 e segs.
([9]) Proc. 0002441, relator Pais do Amaral, www.dgsi.pt.

([10]) Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 4ª ed., pgs. 445 e ss.
([11]) Tem sido considerado dano grave não só aquele que é “exorbitante ou excecional”, mas também aquele que “sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade. Um dano considerável que, no seu mínimo espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação- cf. Ac. do STJ, de 4-03-2008, proc. 08A164, relator Alves Velho, www.dgsi.pt.
([12]) Da aplicação ao caso dos autos da norma do art.º 805.º, n.º 3, segunda parte, do CC, tal como interpretada pelo AUJ n.º 4/2002, resulta que os juros de mora incidentes sobre os quantitativos indemnizatórios fixado equitativamente de forma atualizada devem ser contados desde a data da sentença e não desde a data da citação- Ac. do STJ, de 30-11-2022, proc. 1896/20.5T8FNC.L1.S1, relatora Maria da Graça Trigo, www.dgsi.pt.