SEGURO FACULTATIVO DE SAÚDE
OMISSÃO DE INFORMAÇÕES DO SEGURADO
REQUISITOS DA INVALIDEZ ABSOLUTA
Sumário


I - Introduzido pela parte lastro factual do qual pretende retirar efeitos jurídicos, a subsunção do mesmo compete ao Juiz em função do brocardo de jure novit curia, plasmado no artº5º nº3 do CPC, sem que tal atuação configure excesso de pronúncia.
II - A análise e decisão da  causa apenas podem reportar-se a factos concretamente provados;
III - Provando-se que o Autor,  subscritor de seguro de saúde, omitiu não ter sido operado ou internado num estabelecimento hospitalar e não ter alguma deficiência física ou funcional, quando tinha sido submetido  uma  grave intervenção cirúrgica na anca esquerda onze meses antes e já tinha subscrito antes outro seguro onde respondeu a perguntas de idêntico jaez, tem de concluir-se que com tal omissão pretendeu escamotear informação relevante para a vontade de contratar da seguradora, pelo que o contrato deve ser considerado anulado.
IV - Os seguintes requisitos,   predispostos em contrato de seguro para aferir da existência de invalidez absoluta e definitiva atributiva da indemnização do contrato, a saber:
i) A pessoa segura possuir uma incapacidade superior a 75% (TNI – Tabela Nacional de Incapacidades em vigor à data do sinistro);
ii) Ficar  impossibilitado de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa.
iii) Existir comprovada incapacidade recuperável (quereria dizer-se irrecuperável) para exercer qualquer actividade remuneratória.
podem, no quadro do circunstancialismo do caso concreto, ser, em parte ou no seu todo, considerados nulos, e não exigíveis, por desequilibrantes do contrato e contrários à boa fé – artº 15º do DL Lei  446/85, de 25/10.
V. Tal  verifica-se se se prova que o autor sofre de fortes dores; só consegue caminhar, de forma contínua, poucos metros e sempre com o apoio de duas canadianas; não se consegue manter de pé durante mais que 2/3 minutos; tem dificuldade em curvar-se; necessita de apoio de terceiros para certas tarefas como calçar meias, tomar banho e vestir-se; encontra-se impossibilitado, de forma irreversível, de exercer uma atividade remuneratória coerente com as suas habilitações; foi-lhe atribuída apelas entidades de saúde Helvéticas  uma invalidez de 100%; e, em juntas médicas nacionais, foi-lhe atribuída uma incapacidade/défice funcional permanente da integridade físico-psíquica superior a 50% ou 50 pontos base.

Texto Integral



Relator: Carlos Moreira
Adjuntos: João Moreira do Carmo
Fonte Ramos


ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA, intentou contra a Companhia de Seguros A... SA, ação declarativa, de condenação com processo comum.

Pediu:

A condenação da ré no pagamento da dívida do autor ao B..., S.A., no montante de € 80.000,00, bem como, ao autor, da quantia de € 25.000,00, provenientes dos seguros efetuados e a que respeitam, respetivamente, as apólices ...93 e ...57, em ambos os casos com juros, desde a citação e até integral pagamento.

Alegou:

Contratou o primeiro seguro como condição para um crédito bancário para obras de reconstrução em habitação própria, posteriormente, o segundo, e que ambos garantem o pagamento do capital em caso de invalidez absoluta e definitiva, situação em que o autor se encontra, pelo que reclama o correspondente pagamento.

A ré contestou.

Disse que o contrato celebrado apenas poderia ser acionado no caso de estarem reunidas todas as condições contratuais, e que se não verifica estar o autor totalmente incapacitado de trabalhar, não apresentar uma incapacidade de 75% nem carecer, em permanência, de acompanhamento de terceira pessoa.

Ademais, aquando da celebração do contrato, o mesmo autor prestou falsas declarações relativamente ao seu estado de saúde.

Pediu:

A  improcedência da ação e a sua absolvição.

O autor replicou.

Disse que quanto ao primeiro dos seguros, que só posteriormente começou a sentir dores na anca, dois meses antes da operação, pelo que nada havia a declarar, e que quanto ao segundo, informou o funcionário bancário que preencheu os documentos dessa intervenção, que era, aliás, já do seu perfeito conhecimento.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Julgo a presente acção improcedente, pelo que absolvo a ré do pedido.

Custas pelo autor.»

3.

Inconformado recorreu o autor.

Rematando as suas alegações com as seguintes, aliás, prolixas, conclusões:

1. Salvo o devido respeito, a recorrente entende que a douta sentença em causa não é conforme aos princípios gerais do Direito e às normas jurídicas, porquanto:

- O tribunal recorrido conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento - no que respeita à apreciação da anulabilidade dos contratos de seguro, a qual não foi invocada pela ré (não obstante esta ter alegado a prestação de declarações falsas no momento do preenchimento do questionário clinico);

- A fundamentação fática da sentença impunha uma decisão de direito conforme ao pedido.

2. Na presente ação, o autor pediu a condenação da ré no pagamento das quantias de €80.000,00 e €25.000,00, referentes ao capital seguro dos contratos, do ramo vida, com esta celebrados, titulados pelas apólices ...93 e ...57, respetivamente.

3. O primeiro contrato de seguro foi celebrado em setembro/outubro de 2006, teve início nessa data e foi realizado como condição de concessão de um empréstimo bancário que o autor e a esposa solicitaram ao B..., S.A. (Cfr. i – factos provados - petição, pontos 2, 3, 4, 5 e 6; contestação – 2, da fundamentação de facto da sentença recorrida).

 4. O segundo contrato foi celebrado em 14.08.2008 (Cfr. i – factos provados - petição, ponto 9; contestação – 5, da fundamentação de facto da sentença recorrida).

5. Ambos os contratos abrangiam a cobertura de invalidez definitiva e absoluta, conceito este, que aparece definido nas respetivas condições gerais da seguinte forma:

«Existe invalidez absoluta e definitiva quando se verificam cumulativamente os seguintes factos: a) A pessoa segura possuir uma incapacidade absoluta e definitiva superior a 75% (TNI – Tabela Nacional de Incapacidades em vigor à data do sinistro) com incapacidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa. b) Existir comprovada incapacidade recuperável para exercer qualquer atividade remuneratória.»

6. Cabia ao recorrente provar, como elementos constitutivos do seu direito, que se encontrava na situação de invalidez, tal qual definida nas condições gerais da apólice.

7. Salvo devido respeito, o recorrente considera que logrou fazer a prova que lhe competia e que os fundamentos fáticos da sentença recorrida conduzem à procedência do seu pedido.

8. De facto, da fundamentação fática da sentença recorrida consta:

«i – factos provados

petição

16. Em setembro de 2007, o autor sofreu uma intervenção cirúrgica na anca esquerda.

17. Em julho de 2013, o autor sofreu um acidente doméstico.

19. Em julho de 2013 o autor caiu na banheira da sua casa quando se encontrava a tomar banho.

20. A queda provocou um traumatismo na anca esquerda.

21. A aludida situação provocava (e provoca) fortes dores ao nível da anca e dos membros inferiores e dificultava-lhe (e dificulta) os movimentos com as pernas.

22. Ademais, o autor não conseguia permanecer muito tempo numa qualquer posição, já que as dores ao nível das costas e da anca tornavam-se insuportáveis.

23. Devido a essa situação, o médico ortopedista que acompanhava o autor sugeriu a realização de uma intervenção cirúrgica para colocação de uma prótese total da anca esquerda.

25. A aludida intervenção cirurgia não resolveu o problema do autor e em abril de 2015 este foi sujeito a uma nova intervenção com vista à revisão da prótese.

26. A cirurgia não só não conseguiu efetuar a recolocação artoplástica como acabou por detetar a existência de uma disfunção nervosa ao nível do nervo ciático.

27. O autor padece de perturbações neurológicas ao nível do nervo ciático do aldo esquerdo, como uma paralisia das órteses do pé esquerdo.

28. Devido a essa situação, o autor só consegue deslocar-se com a ajuda de duas canadianas e de uma tal do tipo Heidelberg.

31. O autor só consegue caminhar, de forma contínua, poucos metros e, sempre com o apoio de duas canadianas.

32. Não consegue manter-se na mesma posição durante muito tempo.

34. Sente dores na região lombar do pé.

35. E uma espécie de «formigueiro» em toda essa zona.

37. Face á situação clínica do autor, o seu médico concluiu que aquele se encontrava numa situação de incapacidade para o trabalho de 100%.

38. O Gabinete de Seguros de Invalidez do cantão de Fribourg, após uma avaliação media na pessoa do autor, veio a concluir que aquele se encontrava numa situação de invalidez de 100% desde 01.05.2015. (...)

réplica

22. Face a esse quadro clínico de que padece, o autor encontra-se impossibilitado, de forma irreversível, de exercer uma atividade remuneratória coerente com as suas habilitações.» (Negrito nosso).

9. Face ao aludido quadro factual, encontra-se plenamente demonstrado que o autor padece de uma incapacidade, definitiva (irreversível) e absoluta (impeditiva do exercício de uma qualquer atividade remuneratória coerente com a sua área de preparação técnico profissional).

10. Importa nesta fase esclarecer que o Tribunal acompanhou o juízo técnico cientifico constante do relatório médico pericial realizado nos presentes autos, do qual consta a seguinte anotação quanto á repercussão da doença do autor na atividade profissional: «Repercussão Permanente na Atividade Profissional (corresponde ao rebate das sequelas no exercício da atividade profissional habitual da vitima – atividade à data do evento, isto é, na sua vida laboral, para utilizar a expressão usada na Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, tratando-se do parâmetro de dano anteriormente designado por Rebate Profissional). Neste caso, as sequelas são impeditivas do exercício da sua atividade profissional bem como assim de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.»

11. Mais tarde, em complemento á aludida perícia, o Senhor Perito do Gabinete Médico legal e Forense do ..., a propósito do grau/quantificação da desvalorização das sequelas do autor, veio esclarecer:

«Nas perícias em âmbito de Direito Civil a repercussão na atividade profissional é avaliada de outra forma, nestas, e de acordo com a doutrina médico-legal nesta matéria e com as normas emanadas pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, no que se refere estritamente ao aspeto profissional, esta afetação é designada por Repercussão Permanente na Atividade Profissional e não é alvo de quantificação, mas sim feita uma descrição do rebate das sequelas no exercício da atividade profissional habitual da vítima – atividade á data do evento, isto é, na sua vida laboral, para utilizar a expressão usada na Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, tratando-se do parâmetro de dano anteriormente designado por Rebate Profissional. Ou seja, não é feita valorização numérica com recurso ao anexo I do Dec.Lei 252/07.»

12. A este propósito convém relembrar que a cláusula contratual definidora de invalidez absoluta e definitiva constante dos contratos de seguro em análise (já acima transcrita) não remete para a Tabela Nacional de Incapacidade por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, apontando, apenas, para a Tabela Nacional de Incapacidades à data do sinistro, pelo que, face á legislação em vigor e à natureza da questão jurídica em causa, a avaliação médica, tal qual foi mencionado pelo senhor perito e ordenado pelo Tribunal, foi feita nos termos do Direito Civil.

13. A propósito da apreciação de uma situação, na qual se colocava, também, esta questão da quantificação da incapacidade absoluta e definitiva, o Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se, recentemente, no acórdão de 02.03.2021 (in Proc. n.º 2615/18.1TVRL.G1.S1), nos seguintes termos:

«No mesmo sentido se tem de considerar o facto de, para além do recurso à assistência de terceira pessoa ainda se exigir um grau de incapacidade igual ou superior a 85%.

De facto, exigir um tal grau de incapacidade quando com grau inferior a pessoa se encontra já em situação de invalidez absoluta e definitiva, isto é, total e definitivamente incapaz de exercer atividade remunerada seria da mesma forma frustrar o objetivo visado que é da seguradora vir a proceder ao pagamento quando a pessoa segura esteja absolutamente incapaz. (...)

A finalidade específica do contrato celerado (seguro de vida relativamente à situação decorrente da incapacidade de trabalhar por parte da segurada) é a de garantir que a segurada possa usufruir de um determinado montante compensatório (100% do capital garantido, ou seja €75.000,00) na situação de privação de auferir rendimentos (do trabalho) perante a perda total e definitiva da capacidade de trabalhar.

Nesta ordem de ideias, a cláusula 4.1 ao definir as condições para que a segurada seja considerada em estado de invalidez absoluta e definitiva, porque radicadas na necessidade de assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar os atos elementares da vida corrente e, cumulativamente, apresentar um grau de incapacidade igual ou superior a 85%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidade por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, retira do respetivo âmbito de proteção a grande maioria das situações de invalidez que deixam a pessoa totalmente impossibilitada de trabalhar.

Sendo a intencionalidade dos contraentes ao celebrar este tipo de seguro o de colmatar os prejuízos na sua capacidade económico-financeira perante a perda (por acidente ou doença), total e definitiva, da capacidade de ganho, não há dúvida de que a verificação das condições impostas deixaria gorado o objetivo visado com a celebração do contrato.

Seguindo o raciocínio do acórdão, através da referida cláusula a Ré Seguradora fez introduzir uma limitação que esvazia quase totalmente a garantia de proteção do risco que ao contrato cabia assegurar.

Por conseguinte, a referida cláusula 4.1, nessa parte, não pode deixar de ser entendida como desproporcional e de atropelo à dinâmica de um adequado funcionamento do vínculo contratual estabelecido, violadora, nessa medida do princípio da boa-fé. (...)

Ao eliminar-se tal segmento da referida cláusula a definição de invalidez absoluta e definitiva para efeitos do contrato reconduz-se às situações em que, como consequência de doença, o segurado fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada.» (negritos nossos)

14. In casu, realizado o exame médico-legal na pessoa do autor, o perito, em cumprimento da legislação em vigor, pronunciou-se de forma clara e categórica no sentido da sua impossibilidade física/funcional, permanente, para exercício da sua atividade profissional habitual e de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico profissional.

15. Em consonância com o relatório pericial apresentado nos presentes autos, o Tribunal recorrido veio a considerar provado que

«Face a esse quadro clínico de que padece, o autor encontra-se impossibilitado, de forma irreversível, de exercer uma atividade remuneratória coerente com as suas habilitações.»

16. O aludido facto provado preenche o conceito de invalidez absoluta e definitiva previsto nas condições gerais da apólice, merecendo, todavia, alguma reflexão a análise da segunda valência da definição contratual referente à «impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa».

17. No que a este requisito contratual respeita, da fundamentação fática da sentença recorrida resulta:

 «i – factos provados

petição

(...)

39. O autor presenta limitações funcionais que condicionam a sua capacidade de locomoção e movimento, tem o pé esquerdo paralisado e padece de dores ao nível da anca esquerda até ao pé esquerdo, as quais o impossibilitam de manter uma qualquer posição por mais de poucos minutos.

41. As limitações funcionais do autor impedem-no, também, de exercer certos atos da sua vida diária sem a ajuda de um terceiro,

42. O autor precisa de apoio da sua esposa diariamente para lhe calçar as meias e os sapatos;

43. Para se vestir, dada a dificuldade em se curvar, o autor tem de socorrer-se da ajuda da mulher.

44. O mesmo acontece quando tem de tomar banho.

(...)

contestação

(...)

21. O A. não tem necessidade do apoio permanente de terceira pessoa para o desempenho de todas as suas necessidades do dia a dia e atos normais da vida.»

18. Da aludida fundamentação fática resulta, pois, que o autor, embora não tenha necessidade do apoio de terceira pessoa para todos os atos da sua vida corrente, não pode prescindir do mesmo diariamente, já que existem atos do seu dia-a-dia, como vestir-se, calçar-se e tomar banho, que não consegue fazer sozinho.

19. Ou seja, face ao suporte fático da sentença recorrida (a qual, também, nesta parte aderiu às conclusões constantes do relatório médico-legal), não restam dúvidas que o recorrente necessita da ajuda de terceira pessoa para alguns dos atos de gestão da sua vida pessoal, não conseguindo, por si só, a realização de certos comportamentos elementares da vida corrente.

20. Salvo melhor entendimento, o recorrente considera que os atos enunciados no supra transcrito quadro factual – vestir, calçar, tomar banho – na medida em que se traduzem em atos correntes, normais, básicos de cada dia-a-dia, integram e preenchem o requisito contratual em apreciação, ou seja, colocam o autor numa posição de necessitar do auxílio permanente de terceira pessoa.

21. De qualquer forma, os Tribunais superiores tem sido chamados, e até por diversas vezes, a apreciar e julgar este pressuposto contratual referente à «impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa» e a jurisprudência mais recente tem vindo a considerar que tal requisito é abusivo, por desproporcionalmente violador dos interesses visados com o contrato de seguro e, consequentemente, nulo.

22. A este propósito, e em análise a uma situação de todo idêntica à agora em apreciação, colhe o ensinamento do STJ, no acórdão de 14.12.2016 (in Proc. n.º 1724/11.2TVLSB.L1.S1), o qual se passa a citar:

«A cláusula em apreço parte precisamente desse pressuposto quando exige que o segurado, em consequência de acidente ou sinistro, fique total e definitivamente incapacitado de exercer qualquer atividade remunerada. Parece efetivamente desequilibrado em função da finalidade da cláusula – que, como acima se disse, é o de prevenir o risco de incumprimento por parte do segurado por incapacidade de desenvolver uma atividade remunerada que permita custear o empréstimo – excluir a cobertura num caso em que o segurado não pode exercer qualquer atividade remunerada e até necessita da ajuda de terceira pessoa para alguns atos de gestão da sua vida pessoal e financeira (cfr. pontos 24, 25, 26 e 28 dos factos provados), mas consegue, apesar disso, realizar os atos elementares da vida corrente elegidos pela cláusula. Assim, a exigência concomitante da impossibilidade de realização de qualquer atividade remunerada, aliada ao grau de incapacidade (inferior a 85%), á necessidade de ajuda de terceira pessoa para a realização (cumulativamente) de todos os atos elementares da vida corrente descritos na cláusula, não é justificada, sendo desproporcionada à caracterização do estado de invalidez permanente que o seguro visou prevenir.»

23. De facto, se quando contratou, o recorrente tivesse sido informado que só poderia acionar o seguro na hipótese da sua situação de invalidez ser de tal ordem que necessitasse do apoio permanente de terceira pessoa, o certo é que ele jamais aceitaria tal cláusula, pois o seguro deixaria de cumprir uma das finalidades essenciais por si intencionadas: cobrir a sua incapacidade de ganho.

24. Como mui bem refere a Veneranda Juiz Desembargadora Maria da Purificação Carvalho, no acórdão do TRG, de 19.03.2013 (in Proc. n.º 182/11.6TBVLN.G1), apreciação que sufragamos integralmente:

«Quem agiu em nome da seguradora, que necessariamente sabe que quem negoceia este tipo de seguros visa, antes de mais, acautelar o risco de perda irreversível da capacidade de ganho, teria de o esclarecer devidamente - aliás, salvo melhor opinião, tal cláusula nem lhe deveria ser proposta. Com efeito, se o autor queria prevenir a hipótese de vir a perder (por invalidez) a sua capacidade de ganho (pois é esta que lhe ia permitindo amortizar o empréstimo), como é que estaria interessado num seguro que só muito limitadamente pode acautelar esse risco?»

25. Acresce que, de acordo com o critério referente à interpretação dos contratos e das cláusulas contratuais gerais (artigo 236º do CC e artigo 10º do DL 446/95), é de concluir que um contraente normal a quem fosse apresentada tal cláusula, se compreendesse o seu teor não a aceitaria, porque logo se convenceria de que o seguro de pouco lhe valeria em caso de vida, e, se não atingisse o seu verdadeiro alcance, ficaria convencido de que, se viesse a ficar privado da capacidade de ganho, lhe valeria o seguro.

26. De forma que, citando, ainda, a supra invocada Juíza Desembargadora: «Num contrato de seguro-vida uma invalidez absoluta e definitiva será para um declaratário normal um estado da pessoa que o deixe totalmente (completamente, sem restrição) incapaz para o resto da vida, de exercer a sua atividade, designadamente laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência.»

27. Pelas considerações expostas (concluindo):

Atentos os factos constantes da fundamentação da sentença recorrida e a interpretação que a jurisprudência tem vindo a fazer das cláusulas contratuais gerais insertas nos contratos de seguro de vida, o recorrente considera que, in casu, se encontra preenchido e verificado o conceito de invalidez absoluta e definitiva tal qual definido nas condições gerais dos contratos celebrados com a recorrida.

 Posto isto,

28. A recorrida/seguradora invocou a prestação de falsas declarações por parte do autor no momento do preenchimento dos respetivos questionários clínicos, sendo certo que o Tribunal recorrido veio a julgar a ação improcedente precisamente com base nesta alegação, fundamentando:

«Tudo ponderado, pela prestação, aquando da celebração do contrato, de falsas declarações relativamente ao seu quadro clinico e ao seu estado de saúde, os contratos padecem de vício de anulabilidade, não devendo a seguradora ser condenada a prestar a sua parte.» (Sublinhado nosso)

29. Salvo devido respeito e sempre melhor opinião, o recorrente considera que, neste passo, o Tribunal recorrido não andou bem, pois pronunciou-se sobre questão da qual não podia tomar conhecimento, além do que, da fundamentação fática da sentença não resultam factos que fundamentem a aplicação do regime da anulabilidade, tal qual o mesmo se encontra previsto no artigo 429º do Código Comercial.

30. Ou seja, o recorrente considera que da fundamentação fática da sentença recorrida não resultam elementos que permitam enquadrar o presente caso numa situação jurídica de anulabilidade do contrato de seguro; por outro lado, a anulabilidade não foi invocada pela ré/seguradora e, como tal, não pode ser conhecida pelo Tribunal.

- Quanto ao primeiro ponto – Dos requisitos da anulabilidade do contrato de seguro por declarações falsas/omissões

31. Da fundamentação fática da sentença e no que respeita às falsas declarações prestadas pelo autor, releva:

«i – factos provados

(...) contestação (...)

7. O Autor no boletim Doc.1, respondeu negativamente a todas as perguntas, nomeadamente se tinha estado internado no hospital, se sofria de deficiência física ou funcional ou se tinha realizado intervenção cirúrgica.

8. Pelo mesmo documento comprometeu-se que tinha respondido com exatidão ao questionário de saúde.

9. O Autor para o seguro ... declarou que Declaro mão estar sob observação médica ou tratamento regular, ... não ter sido operado ou internado em estabelecimento hospitalar, ... não ter alguma deficiência física ou funcional...

10. No campo 10 do boletim de adesão consta: «...Tomo conhecimento das condições Contratuais e que as coberturas desta Apólice só terão efeito na condição da proposta de seguro ter sido aceite pela A... SA, desde que não me encontre em estado de incapacidade nessa data e que qualquer omissão ou falsa declaração pode anular a minha adesão ao contrato...»

16. A Ré recebeu participação de sinistro pelo B..., S.A., por mail de 18-12-2015, no qual se encontrava anexado um relatório médico que referia citalgia crónica pós prótese da anca em 2013 e um documento de atribuição de pensão de invalidez.

27. O A. declarou que não tinha sido operado ou internado em estabelecimento hospitalar, o que não correspondia à verdade.

28. O Autor omitiu da Ré que tinha realizado operação á anca esquerda em 2007.»

32. O boletim doc. n.º 1 supra citado constitui o questionário clinico referente ao primeiro contrato de seguro. Relembra-se que este contrato foi celebrado em 30.03.2006 (cfr. i - factos provados, contestação, ponto 2 da sentença recorrida) e que o aludido boletim clinico (junto com a contestação) tem data aposta de 30.01.2006.

33. O recorrente preencheu «não» a todas as perguntas desse questionário clinico e, conforme consta dos factos provados da sentença recorrida, em particular ás questões se tinha estado internado em hospital, se sofria de deficiência física ou funcional ou se tinha realizado intervenção cirúrgica.

34. Ora, salvo melhor entendimento, o recorrente não atinge qualquer grau de falsidade em tais declarações. De facto, em 2006, data em que preencheu o aludido questionário, o autor não tinha sofrido qualquer intervenção cirúrgica (a não ser uma ao fémur esquerdo, na sequência de um acidente de moto, ocorrida em 1991, num passado, pois, muito remoto, a qual escaparia á memória de qualquer cidadão, ainda que cuidadoso e atento) e não padecia de qualquer deficiência física ou funcional.

35. Nessa data, conforme foi apurado pelo B..., S.A., que intermediou a realização do contrato de seguro, o autor encontrava-se perfeita e plenamente apto, funcional e capaz, exercendo uma atividade profissional que lhe permitia, inclusive, ter acesso a um crédito bancário de €80.000,00.

36. Só em setembro de 2007, mais de um ano e meio depois do preenchimento do aludido boletim clinico e da celebração do respetivo contrato de seguro, é que o autor sofreu uma intervenção cirúrgica na anca esquerda (cfr. i - factos provados, petição, ponto 16, da sentença recorrida) e, ainda assim, tal situação não implicou qualquer alteração na sua vida profissional, tendo-se aquele mantido em plena e igual atividade laboral até julho de 2013, data em que veio a sofrer um acidente (cfr. i- factos provados, petição, pontos 17, 19, 20 da sentença recorrida).

37. Mesmo que se entenda, como o Tribunal recorrido entendeu, que o autor sentia dor e que, à data o preenchimento do aludido questionário clinico, teria, por força dessa situação, de prever a realização da cirurgia que veio a concretizar em 2007, certo é que, no momento em que assinou o aludido boletim, jamais aquele poderia antever que iria ficar incapacitado ou deixar de trabalhar, pois esta situação e conforme resulta claramente dos factos provados, dos exames médicos juntos aos autos e do relatório pericial, foi completamente imprevisível e inusitada, pois constituiu um efeito da queda/acidente doméstico que veio a ocorrer em julho de 2013. Até este momento, e não obstante a intervenção realizada em setembro de 2007, o autor estava bem e capaz. A aludida intervenção cirúrgica, ocorrida em 2007, em nada alterou a capacidade física e funcional do autor, pelo contrário, melhorou a sua situação de saúde, e aquele manteve, sem qualquer diminuição, agravamento ou inferioridade, a atividade profissional que sempre exerceu.

38. Relativamente ao boletim de adesão referente ao segundo dos contratos de seguro aqui em causa (documento n.º 3 junto com a contestação), resulta, sem margem para dúvida, que o autor não respondeu ao questionário clinico que no mesmo está inserto. Ou seja, o questionário clinico ficou em branco.

39. Ora, ao não responder, não se pode concluir que o recorrente respondeu sim ou não.

40. E quanto á consideração da existência de eventuais omissões, colhe, aqui o ensinamento explanado no douto acórdão desta Relação de Coimbra, de 10.09.2019, em que foi relator o Venerando Juiz Desembargador Carlos Moreira (in Proc. n.º 2029/15.5TBLRA.L1):

«Na verdade, no domínio das hipóteses, é também congeminável que a omissão tenha constituído, simples e singelamente, um mero lapso material involuntário do aderente, aliás motivado pelas consabidas e relevantes prototípicas causas normalmente emergentes nestes casos, a saber: a desatenção do aderente quanto ao teor da minuta apresentada, máxime quanto ao teor de cláusulas insertas no meio da mesma e em letras pequenas, motivada, v.g., por estarem já definidos e aceites pelas partes os elementos essenciais do contrato, como seja o valor segurado e o montante do prémio do seguro.

Assim sendo, a relevância de tal omissão no sentido pretendido pela ré apenas adviria, como, aliás, bem referido é na sentença, se se provasse que ela, em si mesma, foi culposa e intencional, no sentido de o omitente com ela pretender escamotear as suas anteriores doenças.

O ónus probatório de tal jaez e finalidade sobre a recorrida impendia. Mas ela não logrou cumpri-lo. Acresce que o «boletim de adesão» encontra-se assinado, em último lugar e já depois de assinatura do autor, pelos representantes do banco e, presumidamente, com conhecimento da seguradora.

Ora a estes representantes, porque seguramente tarimbados nestas matérias, porque com perfeito conhecimento da totalidade do teor do boletim de adesão, e porque as suas assinaturas se encontram apostas na mesma página onde consta o questionário de saúde, o que permitia uma fácil apreensão da falta de respostas a tal questionário, era exigível que se apercebessem da omissão.

 E, consequentemente, logo no momento, instar o autor a dar as respostas ao mesmo. Não o tendo feito, como deviam, é admissível a conclusão de que se aperceberam de tal omissão e, com a mesma se conformaram, aceitando, mesmo assim outorgar o contrato. Pelo que, é o caso de chamar à colação o velho brocardo que, se mal andaram, sibi imputet.»

41. O art. 429º do Código Comercial estabelece que:

«Toda a declaração inexata, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o contrato nulo.»

42. Não obstante a terminologia refletida na aludida disposição legal, a doutrina e a jurisprudência «foram assinalando que a natureza particular dos interesses em jogo e a inexistência de violação de qualquer norma imperativa determinam que deva ser a anulabilidade a consequência ou a sanção ligada à emissão de declarações inexatas ou reticentes do segurado, suscetíveis de influírem na existência ou condições do contrato de seguro». (citação extraída do acórdão do TRC, de 10.09.2019, in Proc. n.º 2029/15.5T8LRA.C1).

43. Da letra da aludida disposição legal, resulta, desde logo, que só poderá ocorrer uma situação de omissão ou prestação de declarações inexatas para os efeitos previstos nesse normativo, quando o segurado ou tomador tenha conhecimento dos factos ou circunstâncias inexatamente declaradas ou omitidas.

44. A lei exige, pois, que se trate de circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro – só neste caso é que o seguro poderá ser anulável.

45. Ora, face ao supra exposto, não resulta da fundamentação fática da sentença recorrida qualquer facto que conduza a uma tal conclusão.

46. Importa relembrar que a situação de invalidez absoluta e definitiva do autor ocorreu, como consequência de um acidente doméstico que sofreu em 2013, o qual aquele não podia antever (ainda que, conforme se diz na sentença recorrida, a colocação de uma prótese – o que sucedeu já na vigência do primeiro contrato de seguro - só por si, acarrete algumas fragilidades).

47. Era, pois, impossível que na data em que o autor assinou os boletins de adesão em causa, pudesse prever ou supor a situação clinica de doença que deu origem à sua invalidez definitiva e absoluta, a qual ocorreu, como já se disse, em consequência direta do acidente doméstico que veio a sofrer em 2013.

48. Com efeito, a doença do recorrente que conduziu à sua invalidez absoluta e definitiva tem a sua origem, numa relação causa/efeito, no acidente sofrido pelo autor em julho de 2013, o qual provocou um traumatismo da anca (cfr. i – factos provados, petição, pontos 19 a 28 da sentença recorrida).

Por outro lado,

49. Para que os contratos de seguro em causa fossem anuláveis, não basta que fosse feita prova quanto á existência de falsas declarações ou omissões do segurado; era, ainda, necessário que tivesse ficado demonstrado um outro elemento factual essencial à verificação deste regime: a recorrida/seguradora tinha de ter provado que a inexatidão/omissão das declarações do recorrente influíram sobre a existência ou condições do contrato.

50. Ora, face ao supra exposto, não resulta da fundamentação da sentença recorrida qualquer facto que conduza a uma tal conclusão.

51. A este propósito, a letra do citado artigo 429 do Código Comercial é clara: «…e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato».

52. Conforme ensina o já citado acórdão de 10.09.2019 desta Relação de Coimbra (Proc. n-º 2029/15.5T8LRA,C1), em que foi relator o Venerando Juiz Desembargador Carlos Moreira:

«Traduzindo-se as declarações inexatas ou reticentes em factos impeditivos ou extintivos da validade do contrato incumbe à seguradora, por força do preceituado pelo artigo 342º, n.º 2, do Código Civil, o ónus da prova da sua influência sobre a existência ou condições do contrato, de que tiveram lugar para iludir alguma cláusula contratual.»

 - Quanto ao segundo ponto – Do conhecimento (oficioso) do vício de anulabilidade

53. Por último, resta, ainda, referir, que o Tribunal recorrido considerou que os contratos de seguro em causa padeciam de vício da anulabilidade, quando, na verdade, em momento algum, a recorrida/seguradora invocou essa sanção.

54. É verdade que, na contestação, a seguradora chega a falar em nulidade/anulabilidade, que reclama arguir em sede própria, nunca, o tendo feito, todavia, expressa e contundentemente no presente processo.

55. Ora, como é sabido, a anulabilidade não é de conhecimento oficioso, pelo que não tendo sido arguida pela recorrida, não podia ser decretada, como o fez o Tribunal recorrido.

Por tudo o exposto e sempre com o devido respeito, o recorrente considera que o douto acórdão em crise não está de acordo com os princípios gerais de direito e com o disposto nos artigos 236 do CC, 10 do DL 3446/95 e 429 do C. Com e 500 do Código Civil, pelo que reclama a procedência do presente recurso.

Contra alegou a ré, pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

1- O Douto Tribunal a quo identificou correctamente as questões relevantes para a boa decisão da causa, nomeadamente a apreciação da anulabilidade dos contratos de seguro subscritos entre as partes e melhor apreciou os factos, não podendo satisfazer a pretensão do Apelante.

2- O Apelante intentou a presente acção judicial, pedindo a condenação da Apelada no pagamento das quantias de 80 000 Euros (oitenta mil euros) e 25 000 Euros (vinte e cinco mil euros), respeitantes ao capital seguro dos contratos de seguro, ramo vida, cujas apólices são respectivamente ...93 e ...57, por alegar estar numa situação de invalidez absoluta e definitiva.

3- O primeiro contrato de seguro, apólice ...93 entrou em vigor no dia 30 de Março de 2006 e o segundo contrato de seguro, Apólice ...57 entrou em vigor no dia 14 de Agosto de 2008.

4- Dos factos considerados como provados é possível concluir que o Apelante prestou falsas declarações aquando da subscrição de ambos os seguros, omitindo as operações cirúrgicas que já tinha efectuado e omitindo o seu verdadeiro estado de saúde.

5- Em sede própria, a Apelada alegou a prestação de falsas declarações por parte do Apelante e invocou a anulabilidade dos contratos, não tendo o Meritíssimo Juiz a quo tomado conhecimento de matéria que lhe estava vedada por não ter sido alegada.

6- Ao decidir da forma plasmada na Douta Sentença o Meritíssimo Juiz cumpriu o disposto no artigo 5º do Código de Processo Civil, não estando sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

7- A fundamentação fáctica da sentença que permitiu concluir pela prestação de falsas declarações, salvo melhor opinião, é inatacável e os argumentos usados pelo Apelante são contraditórios e incongruentes.

8- Duas intervenções cirúrgicas, um em 1991 e outra em 2007, (mesmo uma) um adulto nunca são esquece, e não as declarando aquando da subscrição dos contratos de seguro, o Apelante não agiu de acordo com as regras da boa fé exigidas.

9- Em 2007 o Apelante sofreu uma intervenção cirúrgica à anca esquerda, e em 1991 sofreu intervenção cirúrgica ao fémur, factos omitidos aquando da subscrição do seguros de vida que entraram em vigor em 30 de Março de 2006 e em 14 de Agosto de 2008.

10- O Apelante assinou o contrato, sendo que no ponto 10 do mesmo documento diz-se” Declaro não estar sob observância médica ou em tratamento médico regular, não ter interrompido por mais de 15 dias consecutivos, nos últimos 5 anos, a minha actividade laboral por motivos de saúde, não ter sido operado ou internado num estabelecimento hospitalar, não ter fármaco dependência ou toxicomania, não ter alguma deficiência física ou funcional e não ter sido objecto de recusa ou agravamento de prémio aquando da subscrição de um Seguro de Vida. Tomo conhecimento das Condições Contratuais e que as coberturas desta Apólice só terão efeito na condição da Proposta de Seguro ser aceite pela A... SA, desde que não me encontre em estado de incapacidade nessa data e que qualquer omissão ou falsa declaração pode anular a minha adesão ao contrato.” (sublinhado nosso).

11- Analisando toda a matéria de facto considerada provada, existiu omissão, tendo o Apelante perfeito conhecimento dos factos e circunstâncias omitidas, e a conclusão não pode deixar de ser a anulabilidade dos contratos de seguro celebrados e o não pagamento dos capitais dos seguros ao Apelante, ou ao Tomador.

12- Prescreve o corpo do art. 429º do Cod. Com. Aplicável aos contratos de seguro dos autos, dado serem celebrados antes de 1/1/2009, que “toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo”.

13- Também não estão preenchidos os requisitos para que se verifique a invalidez absoluta e definitiva do Apelante.

14- Em ambos os contratos de seguro subscritos, consta a cláusula referente à Invalidez Absoluta e Definitiva exigindo-se cumulativamente os seguintes factos: a) A pessoa segura possuir uma incapacidade funcional irrecuperável igual ou superior a 75%/TNI – Tabela nacional de Incapacidade em vigor à data do sinistro) com impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa; b) Existir comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remuneratória.”

15- A incapacidade de que o Apelante padece foi quantificada em 56 pontos como consta do Relatório do IML de 14/10/20121 e notificação com a referência ...;

16- Estando o Apelante ciente do teor da referida cláusula, não lhe assiste razão, já que os requisitos exigidos são cumulativos e, para além do grau de incapacidade do Apelante, verificado à data do sinistro, o Apelante não necessita do apoio permanente de terceira pessoa para a sua subsistência funcional e não possui uma comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remuneratória.

17- O Apelante não tem necessidade do apoio permanente de terceira pessoa para o desempenho de todas as suas necessidades do dia a dia e actos normais da vida.

18- O Apelante não está impedido de exercer uma qualquer actividade remuneratória.

19- O Apelante não está, portanto, numa situação de invalidez absoluta e definitiva de acordo com o estabelecido nos contratos de seguro subscritos, o que, em consequência, determina a improcedência da sua pretensão.

20- Face à matéria de facto dos autos considerada provada e à matéria de facto considerada não provada, é possível concluir que o Apelante foi informado, por quem representava a Apelada, dos requisitos da cláusula respeitante à invalidez definitiva e absoluta, bem como da necessidade do apoio de terceira pessoa.

21-A fundamentação do julgamento da matéria de facto foi Douta e detalhadamente efectuado pelo Meritíssimo Juiz a quo, resultando a convicção assumida do conjunto dos meios de prova.

22-Concluindo, o Apelante prestou falsas declarações aquando da subscrição de ambos os seguros, o que determina a anulabilidade dos contratos e a inexigibilidade da prestação por parte da Apelada, o que por esta foi alegado em sede própria.

23- Independentemente da anulabilidade dos contratos, o Apelante não está numa situação de invalidez absoluta e definitiva, improcedendo, igualmente, a sua pretensão. 24-Por todo o exposto, devem improceder todas as alegações e conclusões da Apelação, confirmando-se na íntegra, a Douta Sentença recorrida, mantendo-se, em consequência, a absolvição da Apelada.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são  as seguintes:

1ª-  Nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

2ª – Inexistência de factualidade que permita concluir pela anulabilidade dos contratos.

3ª – Procedência da ação perante os factos apurados.

5.

Foram dados como provados os seguintes factos que urge considerar e apreciar.

petição

2.

O autor e cônjuge recorreram a um empréstimo junto do B..., S.A.

3.

Como condição de concessão do aludido empréstimo, a referida instituição bancária exigiu ao autor que contratasse um seguro de vida que garantisse, para si e para a sua esposa, as coberturas de morte e invalidez absoluta e definitiva.

4.

Razão pela qual, em setembro/outubro de 2006, o autor contratou com a ré, para si e para a sua esposa, um seguro do ramo vida, o qual se encontra titulado pela apólice n.º ...93.

5.

O referido contrato teve início nessa data.

6.

E garante o pagamento do capital seguro em caso de morte e em caso de invalidez absoluta e definitiva.

7.

O capital seguro é de €80.000,00.

9.

Depois da realização do aludido contrato de seguro, o autor contratou, igualmente com a ré, um outro seguro do ramo vida, denominado «seguro ...» o qual se encontra titulado pela apólice n.º ...57.

10.

O aludido seguro abrange, igualmente, as coberturas de vida e invalidez absoluta e definitiva e o capital seguro é de €25.000,00.

12.

Nos termos das condições gerais dos mencionados contratos de seguro: «Existe invalidez absoluta e definitiva quando se verificam cumulativamente os seguintes factos: a) A pessoa segura possuir uma incapacidade superior a 75% (TNI – Tabela Nacional de Incapacidades em vigor à data do sinistro) com impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa. b) Existir comprovada incapacidade recuperável para exercer qualquer actividade remuneratória.»

14.

O autor nasceu em .../.../1973.

15.

Em data que não foi possível apurar, o autor emigrou para a ..., onde, desde então, trabalhava no sector da construção civil.

16.

Em setembro de 2007, o autor sofreu uma intervenção cirúrgica na anca esquerda.

17.

Em julho de 2013, o autor sofreu um acidente doméstico.

19.

Em julho de 2013 o autor caiu na banheira da sua casa quando se encontrava a tomar banho.

20.

A queda provocou um traumatismo da anca esquerda.

21.

A aludida situação provocava (e provoca) fortes dores ao autor ao nível da anca e dos membros inferiores e dificultava-lhe (e dificulta) os movimentos com as pernas.

22.

Ademais, o autor não conseguia permanecer muito tempo numa qualquer posição, já que as dores ao nível das costas e da anca tornaram-se insuportáveis.

23.

Devido a essa situação, o médico ortopedista que acompanhava o autor sugeriu a realização de uma intervenção cirúrgica com vista a uma artosplatia total da anca esquerda.

24.

Em dezembro de 2013 o autor foi sujeito à aludida intervenção cirúrgica para colocação de uma prótese total da anca esquerda.

25.

A aludida intervenção cirúrgica não resolveu o problema de saúde do autor e em abril de 2015 este foi sujeito a uma nova intervenção com vista à revisão da prótese.

26.

A cirurgia não só não conseguiu efetuar a recoloção artoplástica como acabou por detetar a existência de uma disfunção nervosa ao nível do nervo ciático.

27.

O autor padece de perturbações neurológicas ao nível do nervo ciático do lado esquerdo, com uma paralisia das órteses do pé esquerdo.

28.

Devido a essa situação, o autor só consegue deslocar-se com a ajuda de duas canadianas e de uma tala do tipo Heidelberg.

31.

O autor só consegue caminhar, de forma contínua, poucos metros e, sempre, com o apoio de duas canadianas.

32.

Não se consegue manter de pé durante mais que 2/3 minutos;

33.

Não consegue manter-se na mesma posição durante muito tempo.

34.

Sente dores na região lombar até ao pé;

35.

E uma espécie de «formigueiro» em toda essa zona.

37.

Face à situação clinica do autor, o seu médico concluiu que aquele se encontrava numa situação de incapacidade para trabalho de 100%.

38.

O Gabinete de Seguros de Invalidez do cantão de Fribourg, após uma avaliação médica na pessoa do autor, veio a concluir que aquele se encontrava numa situação de invalidez de 100% desde 01.05.2015.

39.

O autor apresenta limitações funcionais que condicionam a sua capacidade de locomoção e movimento, tem o pé esquerdo paralisado e padece de dores ao nível da anca esquerda até ao pé esquerdo, as quais o impossibilitam de manter uma qualquer posição por mais de poucos minutos.

41.

As limitações funcionais do autor impedem-no, também, de exercer certos atos da sua vida diária sem a ajuda de um terceiro.

42.

O autor precisa de apoio da sua esposa diariamente para lhe calçar as meias e os sapatos;

43.

Para se vestir, dada a dificuldade em se curvar, o autor tem de socorrer-se da ajuda da mulher.

44.

O mesmo acontece quando tem de tomar banho.

53.

O autor continuou a liquidar as mensalidades ao B..., S.A. até ao momento.

contestação

2.

A Ré como seguradora, celebrou com o B..., S.A. como tomador e beneficiário e o A., como pessoa segura, um contrato de seguro de vida titulado pela apólice nº ...93, certificado ...80, com entrada em vigor em 30.03.2006, relativo a empréstimo Hipotecário no valor de Euros 80.000,00, cujos Boletim de Adesão, Informação à Pessoa Segura e Condições Gerais do crédito Hipotecário B..., S.A. aqui se dão por integralmente reproduzidos, nos seus precisos termos.

3.

Consta na informação à pessoa segura: “– O que é a Invalidez Absoluta e Definitiva? Existe Invalidez Absoluta e Definitiva quando se verificarem cumulativamente os seguintes factos: A) a pessoa segura possuir uma incapacidade funcional irrecuperável igual ou superior a 75% /TNI – Tabela Nacional de Incapacidades em vigor à data do sinistro), com impossibilidade de susbsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa; b)Existir comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remuneratória. Como data de reconhecimento da invalidez que origina o pagamento da respectiva indemnização, entende-se a data em que a A... SA recepciona todos os documentos que considera necessários para a conclusão do processo e nunca a data de reconhecimento atribuída pela segurança social ou outro regime facultativo ou obrigatório que a substitua.

4.

Nas condições gerais da Apólice consta e é reproduzida a cláusula mencionada na informação à pessoa segura – Cláusula 2.2.

5.

O A., como aderente/pessoa segura, celebrou com a Ré, como seguradora, e B..., S.A. como Tomador, na data de 14-08-2008, um contrato de seguro de vida ..., pelo prazo de 30 anos, através da Apólice ...57 , com capital de Euros 25.000,00, cujos boletim de adesão, Condições Particulares e Condições Gerais, aqui se dão por integralmente reproduzidos, nos seus precisos termos.

6.

O A. preencheu os boletins de adesão ou deu instruções ao funcionário bancário para os preencher segundo a sua vontade e, após assinar, foram conferidas as assinaturas pelos serviços do banco.

7.

O Autor no boletim Doc. 1, respondeu negativamente a todas as perguntas, nomeadamente se tinha estado internado no hospital, se sofria de deficiência física ou funcional ou se tinha realizado intervenção cirúrgica.

8.

Pelo mesmo documento comprometeu-se que tinha respondido com exactidão ao questionário de saúde.

9.

O Autor para o seguro ... declarou que Declaro não estar sob observação médica ou em tratamento regular, ….não ter sido operado ou internado num estabelecimento hospitalar, … não ter alguma deficiência física ou funcional….”

10.

No campo 10 do boletim de adesão consta: “….Tomo conhecimento das Condições Contratuais e que as coberturas desta Apólice só terão efeito na condição da proposta de seguro ter sido aceite pela A... SA, desde que não me encontre em estado de incapacidade nessa data e que qualquer omissão ou falsa declaração pode anular a minha adesão ao contrato….”

12.

0 Contrato garantia a Morte ou Invalidez Absoluta e Definitiva da pessoa segura e o capital contratado foi de 25.000,00€.

13.

Consta nas condições gerais da Apólice ... : Cláusula 2.2 …b) Invalidez Absoluta e Definitiva…Considera-se existir invalidez absoluta e definitiva quando se verifiquem cumulativamente os seguintes factos: Possuir a pessoa segura uma incapacidade funcional irrecuperável igual ou superior a 75% (TNI)… com incapacidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa. - Possuir a pessoa segura comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remunerada.”

14.

O B..., S.A. recebeu as propostas/boletins, preenchidos e assinados pela A. e remeteu os aos Serviços da Ré, onde, após aceitação, foram emitidas as Apólices.

15.

Na sequência da aceitação mencionada no que respeita ao ..., a Ré remeteu ao A. na data de 3-09-2008, para a morada da Apólice, a carta de felicitação de celebração do seguro, as condições particulares do seguro de vida ... e as condições gerais da Apólice.

16.

A Ré recebeu participação de sinistro pelo B..., S.A., por mail de 18-12-2015, no qual se encontrava anexado um relatório médico que referia ciatalgia crónica pós prótese da anca em 2013 e um documento de atribuição de pensão de invalidez.

21.

O A. não tem necessidade do apoio permanente de terceira pessoa para o desempenho de todas as suas necessidades do dia a dia e actos normais da vida.

27.

O Autor declarou que não tinha sido operado ou internado em estabelecimento hospitalar, o que não corresponde à verdade.

28.

O Autor omitiu da Ré que tinha realizado operação à anca esquerda em 2007.

réplica

22.

Face a esse quadro clinico de que padece, o autor encontra-se impossibilitado, de forma irreversível, de exercer uma atividade remuneratória coerente com as suas habilitações.

Nos termos do artº 662º nº1 do CPC e considerando os relatórios periciais de fls. 161 e sgs. e 182/83 aditam-se os seguintes factos:

Com base na Tabela nacional de Incapacidades foi atribuído ao autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 50, 5 pontos.

Com base na Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho  e Doenças Profissionais foi fixado um coeficiente de incapacidade permanente parcial resultante do acidente atual em 51,5%.

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

Nos termos do artº 615º nº1 al e) do CPC, a sentença é nula quando:

 O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento

Daqui decorre que, em respeito dos princípios do dispositivo, da substanciação e da autorresponsabilidade das partes, o juiz apenas pode apreciar e decidir as questões que forem suscitadas pelas partes ou daquelas cujo conhecimento oficioso a lei permite ou impõe (como no caso das denominadas exceções impróprias), salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras questões, de acordo com o preceituado no nº 2 do mesmo artigo 608º.

Nesta linha, constituem questões, por exemplo, cada uma das causas de pedir múltiplas que servem de fundamento a uma mesma pretensão, ou cada uma das pretensões, sob cumulação, estribadas em causas de pedir autónomas, ou ainda cada uma das exceções dilatórias ou perentórias invocadas pela defesa ou que devam ser suscitadas oficiosamente.

Assim, já não integram o conceito de questão as situações em que o juiz deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito – cfr. Ac. STJ de 16.11.2021, p. 1436/15.8T8PVZ.P1.S1.

Por outro lado há que atentar que, no que tange aos  poderes de cognição do tribunal, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – artº 5º nº3 do CPC.

Posto é que se mova dentro da questão suscitada ou no âmago do modo jurídico delineado pelas partes.

No caso vertente.

Verifica-se que a ré suscitou a questão das falsas declarações do autor aquando do preenchimento do questionário de saúde atinente aos contratos de seguro em causa – artº 25º e sgs. da contestação.

Este assume-se, aliás, como um dos seus principais argumentos de defesa.

E pretendendo de tal alegação, em cumulação com outros fundamentos defensivos, retirar efeitos jurídicos quanto ao desfecho da ação, rectius quanto à sua improcedência.

Por conseguinte, a demandada  fez o que lhe era basilarmente exigível: introduziu em juízo  lastro factual relevante, para, sendo ele sujeito ao crivo da prova e provando-se, tais consequências poderem/deverem ser retiradas.

Isto, como emerge do citado segmento normativo, independentemente de a alegante não ter subsumido, ou ter erradamente subsumido, tal alegação factual nas normas legais pertinentes/atinentes.

Este poder/dever cumpre, como se viu, ao juiz, em função do brocardo de jure novit curia.

Assim sendo, a apreciação de tal factualidade provada quanto às alegadas e provadas falsas declarações e a sua subsunção na figura da anulabilidade  - aliás também alegada, ou, concedendo, ventilada, pela ré -  não constitui excesso de pronúncia.

5.2.

Segunda questão.

O Sr. Juiz concluiu pela anulabilidade dos contratos aduzindo, o seguinte, sinótico mas essencial, discurso argumentativo:

«…o autor, atentos os factos provados, quando se apresentou a contratar o primeiro dos seguros, havia já sofrido uma intervenção cirúrgica que lhe veio a provocar um quadro por vias do qual sentia “dor, muita dor”, de tal modo que se tornou inevitável, cerca de um ano depois, uma intervenção no sentido de lhe colocar uma prótese da anca esquerda. Ele não podia, obviamente, ignorar essa situação que, quotidianamente, o atacava e diminuía. Todavia, nesse primeiro contrato, e ao preencher o documento que se traduziria numa proposta contratual, declarou ele – ainda e acordo com os factos provados – que não “tinha estado internado no hospital”, que não “sofria de deficiência física ou funcional” e que não “tinha realizado intervenção cirúrgica”; documento que firmou, concluindo que havia acabado de responder ao questionário de saúde “com exactidão”. Na mesma senda, e já com uma prótese total da anca esquerda, ao preencher a documentação referente ao segundo dos contratos, o autor voltou a declarar “não estar sob observação médica ou em tratamento regular”, bem como “não ter sido operado ou internado num estabelecimento hospitalar” e ainda “não ter alguma deficiência física ou funcional”. Declarações que, como se provou, não correspondem à verdade, nem é admissível que o aqui autor as pudesse ter emitido em a consciência essa mesma falta de veracidade. Questiona o autor que lhe não foi comunicado o conteúdo dessas cláusulas, ou que o mesmo lhe não foi explicado. Todavia, quando uma pessoa padece das limitações físicas a que o autor está, lamentavelmente, sujeito, o que é que há a explicar nestes questionários de saúde? Raciocínio que, ademais, igualmente tem sido seguido pela jurisprudência. Vejamos, a título de exemplo, a Relação do Porto: “Os ‘questionários de saúde’ pré-elaborados, aos quais se responde preliminarmente à celebração de um contrato de seguro, não correspondem a cláusulas contratuais gerais do contrato de seguro para efeito de vinculação da seguradora aos deveres de comunicação e informação dessas cláusulas em contratos de adesão” (5). Pelo que há, unicamente, que valorar o comportamento omissivo do autor, ao esconder o seu historial clínico e de saúde.

Primeiramente, o regime legal genérico para os contratos não permite estas atitudes. Desde logo por via do disposto no nº 1 do art.º 227º do código civil, “quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé“. Como todos no direito, a boa fé é um conceito que permite inúmeras dissertações; todavia, sofrer, infelizmente, da situação de saúde de que o aqui autor padece, e declarar, ao contratar seguros de saúde, o que ele declarou, jamais pode deixar de ser tido como um comportamento em que a boa fé não esteve, manifestamente, presente. Trata-se, outrossim, de um caso em “que é emitida uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar o declaratário“, ou seja, de acordo com o disposto no nº 1 do art.º 244º do mesmo diploma, uma reserva mental. Ou uma situação de erro, independentemente de se poder discutir se foi ou não provocado por dolo (cfr. art.ºs 252º nº 1 e 253º nº 1 do mesmo código civil). Tudo vícios que se projectam, decisivamente, na validade do negócio que venha (ou não) a ser celebrado.

De seguida, é o próprio regime específico do contrato de seguro que fulmina este tipo de declarações. Desde logo porque elas, como já referido, fazem com que se passe de um regime de acordo de vontades para uma autêntica burla, em que a seguradora é levada não a assumir um risco, mas a ter, obviamente, que realizar a sua prestação contratual porque ela, desde o início, estava – sem o conhecimento da ré – naturalisticamente garantida. Nestes termos, e por via do disposto no nº 1 do art.º 24º do Decreto-lei nº 72/2008 de 16 de Abril, “o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador“. Dever que, agora por via do estatuído no nº 1 do art.º 25º do mesmo diploma, se omitido, fulmina o contrato em causa com o vício da anulabilidade. Como pede a seguradora. Esta é uma situação que o nosso mais alto Tribunal tem analisado, e cujas decisões são claras: “Apuradas omissões ou inexactidões dolosas, na declaração inicial do risco prestada, importam tais circunstâncias perder o equilíbrio das prestações no contrato seguro, sabendo nós que o legislador, no que tange ao qualificado contrato de seguro, teve a preocupação de estabelecer uma simetria de obrigações entre o dever do segurado/tomador do seguro de prestar informações verdadeiras e o dever da seguradora de escrutinar as declarações prestadas pelo tomador do seguro, pelo menos, as relevantes para apreciação do risco. Na celebração do contrato, recai sobre o tomador do seguro, ou o segurado, por serem estes quem está em melhores condições para conhecer o risco, cuja cobertura se pretende, a obrigação de declaração exacta do risco, abstendo-se de omitir ou usar de reticências quanto a quaisquer factos ou circunstâncias que possam influir na aceitação ou nas condições do contrato, impondo-se considerar, na demonstração da omissão ou declaração inexacta, a anulabilidade do contrato, sendo facilmente inteligível a importância que assume a declaração inicial do risco. Se o segurado omitiu dolosamente informações sobre a sua saúde que eram relevantes para a apreciação do risco pela seguradora, concede-se à seguradora o direito de opor a anulabilidade do contrato, nos termos do art. 25.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, remetendo-nos para uma situação em tudo idêntica ao regime da anulabilidade do erro causada por dolo estatuído no direito substantivo civil – art. 254.º do CC – no contexto do erro sobre o objecto do negócio – art. 251.º do CC – e art. 247.º do CC – sendo pertinente saber se o erro foi factor determinante da declaração negocial emitida – essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro – e se o destinatário da declaração conhecia ou devia conhecer essa essencialidade, sendo estes os requisitos comuns de anulabilidade” (6 ).  Por último, o próprio clausulado dos contratos em apreço o prevê, mormente nas cláusulas 3.2 das respectivas condições gerais, declarando não coberta a invalidez decorrente de situações pré existentes.

…importa tentar aferir como o Supremo Tribunal de Justiça se tem posicionado relativamente a esta matéria, desde logo, e no mínimo, por via da regra ínsita no nº 3 do art.º 8º do código civil:…“Ao celebrar um contrato de seguro de vida, o segurado tem o ónus de não encobrir qualquer facto que possa contribuir para a percepção do risco por parte da seguradora, sendo certo que se o não fizer, ocultando factos relevantes sobre o seu estado de saúde, perde o direito à contraprestação da seguradora. A informação relevante não é apenas o diagnóstico, sempre posterior aos sintomas da doença, mas toda a informação que à luz de um critério normal, se revele importante sobre o estado de saúde do segurado. Trata-se de uma obrigação que além de resultar das condições gerais do contrato, é a única consentânea com as regras da boa-fé (art.º 227.º do CC) “.

Acresce, ainda, que este comportamento não tem que ser artificioso, pode unicamente ser omissivo, desde que essa omissão seja do conhecimento do próprio segurado – como, dos factos provados, neste caso, indubitavelmente se extrai. Ouçamos a Relação de Guimarães: “Não se exige que o declarante tenha agido com dolo, sendo suficiente que a declaração inexacta ou reticente se deva a culpa sua, embora seja necessário que o segurado ou o tomador tenha conhecimento dos factos ou circunstâncias inexactamente declaradas ou omitidas”.

Dilucidemos.

Urge ter presente que a ação e as pretensões nela deduzidas apenas pode ser analisada e decidida em função dos factos provados – e, eventualmente e em função das regras do ónus da prova, dos factos não provados-.

Ora, quanto ao primeiro contrato não se antolham factos  provados dos quais possa concluir-se, como concluiu o Sr. Juiz, que o autor, no preenchimento da declaração ou questionário de saúde,  prestou falsas declarações ou omitiu factos relevantes em função dos quais a ré poderia determinar a sua vontade de contratar ou não contratar.

Efetivamente, e como alega o recorrente, este contrato foi celebrado em março de 2006 e só em setembro de 2007 é que se provou que o ele foi submetido a uma intervenção cirúrgica na anca esquerda.

Destarte, não colhe respaldo factual a asserção vertida na sentença de que «o autor, atentos os factos provados, quando se apresentou a contratar o primeiro dos seguros, havia já sofrido uma intervenção cirúrgica que lhe veio a provocar um quadro por vias do qual sentia “dor, muita dor”, de tal modo que se tornou inevitável, cerca de um ano depois, uma intervenção no sentido de lhe colocar uma prótese da anca esquerda…».

(sublinhado nosso)

Se o julgador se referia a uma admitida, pelo autor, intervenção ao fémur esquerdo, decorrente de acidente ocorrido em 1991, deveria tê-la, adrede, mencionado.

Mais.

Deveria  esta intervenção  não apenas ficar plasmada nos factos apurados, como deveria ela ser considerada causa das fortes dores, as quais, segundo o julgador, foram a causa da intervenção cirúrgica de 2007.

Ora tal facto basilar essencial de 1991  não foi identificado e nem foi provado.

Pelo que a relação de causa efeito estabelecida entre  uma intervenção cirúrgica anterior ao contrato, e a necessidade de outra intervenção cirúrgica em 2007 não pode ser estabelecida/concluída.

Efetivamente, e perante tal não prova,  a referência a uma anterior intervenção cirúrgica queda-se apenas no domínio do putativo e hipotético, e, assim, sem virtualidade e força bastantes para permitir as ilações retiradas pelo Julgador.

O provado no ponto 27 relativo à contestação, a saber: «O Autor declarou que não tinha sido operado ou internado em estabelecimento hospitalar, o que não corresponde à verdade»  é inócuo.

Trata-se de uma asserção conclusiva a qual, para ser acolhida, tinha de ser alicerçada, a montante, em factualidade concretamente provada.

Não corresponde à verdade porquê?

Porque terá sido submetido a uma operação com consequente internamento.

Mas qual operação?  Não consta nos factos provados.

Logo, tal conclusão é inamissível/inatendível.

Por conseguinte se conclui que, relativamente a  este contrato, a anulabilidade não pode ser decretada.

Já quanto ao contrato de 2008 é diferente.

Aqui provou-se na factualidade da contestação que:

9.

O Autor para o seguro ... declarou que Declaro não estar sob observação médica ou em tratamento regular, ….não ter sido operado ou internado num estabelecimento hospitalar, … não ter alguma deficiência física ou funcional….”

10.

No campo 10 do boletim de adesão consta: “….Tomo conhecimento das Condições Contratuais e que as coberturas desta Apólice só terão efeito na condição da proposta de seguro ter sido aceite pela A... SA, desde que não me encontre em estado de incapacidade nessa data e que qualquer omissão ou falsa declaração pode anular a minha adesão ao contrato….”

Ora provou-se no ponto 16 da factualidade da petição:

16.

Em setembro de 2007, o autor sofreu uma intervenção cirúrgica na anca esquerda.

Assim sendo, facilmente se conclui que o autor falseou, ou, no mínimo, omitiu factos do seu conhecimento quanto a anterior intervenção cirúrgica e internamento que ele sabia serem relevantes para condicionar a vontade da seguradora.

No rigor dos princípios o autor omitiu qualquer sinalização – de sim ou não -  no questionário de saúde.

E ele esteira-se  em Acórdão desta Relação o qual, em situação similar, deu razão ao segurado.

Mas cada caso é um caso e deve ser analisado e solucionado em função dos seus concretos contornos fáctico circunstanciais.

E os dois casos não são totalmente coincidentes nestes contornos.

Aqui provou-se concretamente o supra vertido em 9, 10 e 16.

O autor já tinha celebrado anterior contrato de seguro e procedido a tal sinalização no questionário.

Assim, ele sabia, ou, o que é o qb., era-lhe exigível que soubesse, que neste contrato outrossim teria de responder a um questionário de idêntico jaez.

Ademais, a operação de 2007 tinha ocorrido há menos de um ano e foi grave, pois que incidiu sobre a anca, pelo que as suas sequelas certamente que perduraram por largos meses ou estavam ainda presentes.

Destarte, o facto de omitir resposta a tal questionário, mais do que considerar-se ter sido um simples esquecimento ou mera distração, tem de concluir-se ter assumido um cariz voluntarista no sentido de escamotear  do conhecimento da seguradora a intervenção cirúrgica e o internamento de 2007.

Nesta conformidade, a declaração de anulabilidade deste contrato, nos termos  legais e de exegese jurídica chamados à colação na sentença, e que se acolhem, deve ser chancelada.

5.3.

Terceira questão.

Há apenas que apreciar se assiste jus à indemnização impetrada pelo autor  relativamente ao contrato de 2006, o qual, como se viu, deve ter-se por válido e eficaz.

Relativamente a este contrato, as condições gerais da apólice fixam os requisitos/pressupostos do estado de invalidez absoluta e definitiva, quid que atribui jus à   indemnização nos seguintes termos provados no ponto 12:

12.

Nos termos das condições gerais dos mencionados contratos de seguro: «Existe invalidez absoluta e definitiva quando se verificam cumulativamente os seguintes factos: a) A pessoa segura possuir uma incapacidade superior a 75% (TNI – Tabela Nacional de Incapacidades em vigor à data do sinistro) com impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa. b) Existir comprovada incapacidade recuperável para exercer qualquer actividade remuneratória

Nesta matéria provou-se, com relevância, lógica e cronológicamente, o seguinte acervo factual:

16. Em setembro de 2007, o autor sofreu uma intervenção cirúrgica na anca esquerda.

17. Em julho de 2013, o autor sofreu um acidente doméstico.

19. Em julho de 2013 o autor caiu na banheira da sua casa quando se encontrava a tomar banho.

20. A queda provocou um traumatismo na anca esquerda.

21. A aludida situação provocava (e provoca) fortes dores ao nível da anca e dos membros inferiores e dificultava-lhe (e dificulta) os movimentos com as pernas.

22. Ademais, o autor não conseguia permanecer muito tempo numa qualquer posição, já que as dores ao nível das costas e da anca tornavam-se insuportáveis.

23. Devido a essa situação, o médico ortopedista que acompanhava o autor sugeriu a realização de uma intervenção cirúrgica para colocação de uma prótese total da anca esquerda.

25. A aludida intervenção cirurgia não resolveu o problema do autor e em abril de 2015 este foi sujeito a uma nova intervenção com vista à revisão da prótese.

26. A cirurgia não só não conseguiu efetuar a recolocação artoplástica como acabou por detetar a existência de uma disfunção nervosa ao nível do nervo ciático.

27. O autor padece de perturbações neurológicas ao nível do nervo ciático do aldo esquerdo, como uma paralisia das órteses do pé esquerdo.

28. Devido a essa situação, o autor só consegue deslocar-se com a ajuda de duas canadianas e de uma tal do tipo Heidelberg.

31. O autor só consegue caminhar, de forma contínua, poucos metros e, sempre com o apoio de duas canadianas.

32.

Não se consegue manter de pé durante mais que 2/3 minutos;

33.

Não consegue manter-se na mesma posição durante muito tempo.

. (...)

39. O autor apresenta limitações funcionais que condicionam a sua capacidade de locomoção e movimento, tem o pé esquerdo paralisado e padece de dores ao nível da anca esquerda até ao pé esquerdo, as quais o impossibilitam de manter uma qualquer posição por mais de poucos minutos.

37. Face á situação clínica do autor, o seu médico concluiu que aquele se encontrava numa situação de incapacidade para o trabalho de 100%.

38. O Gabinete de Seguros de Invalidez do cantão de Fribourg, após uma avaliação media na pessoa do autor, veio a concluir que aquele se encontrava numa situação de invalidez de 100% desde 01.05.2015

41. As limitações funcionais do autor impedem-no, também, de exercer certos atos da sua vida diária sem a ajuda de um terceiro,

42. O autor precisa de apoio da sua esposa diariamente para lhe calçar as meias e os sapatos;

43. Para se vestir, dada a dificuldade em se curvar, o autor tem de socorrer-se da ajuda da mulher.

44. O mesmo acontece quando tem de tomar banho.

réplica

22. Face a esse quadro clínico de que padece, o autor encontra-se impossibilitado, de forma irreversível, de exercer uma atividade remuneratória coerente com as suas habilitações

(sublinhado nosso)

Perante este quadro factual, entendemos que ele preenche, direta, ou ao menos, razoável e equilibradamente interpretado, indiretamente, os aludidos requisitos contratuais.

Estes requisitos são três, a saber:

i) A pessoa segura possuir uma incapacidade superior a 75% (TNI – Tabela Nacional de Incapacidades em vigor à data do sinistro);

ii) Ficar  impossibilitado de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa.

iii) Existir comprovada incapacidade recuperável (quereria dizer-se irrecuperável) para exercer qualquer actividade remuneratória.

A jurisprudência vem entendendo que nestes casos  de aferição da presença, ou não presença, da situação de invalidez absoluta, os requisitos fixados pela seguradora devem ser interpretados  sensata, equilibrada e razoavelmente, de sorte a que as finalidades do seguro sejam consecutidas e ele não descambe numa inutilidade para o segurado por, na prática, tais requisitos serem de impossível ou muito difícil verificação.

Tal entendimento é essencialmente alcandorado no facto de as cláusulas contratuais constituírem cláusulas contratuais gerais padronizadas sujeitas ao regime do Decreto-Lei  446/85, de 25/10, no âmbito do qual se deve operar uma interpretação tendencialmente mais favorável ao aderente, porque parte mais frágil e menos informada.

Havendo que, no âmbito deste diploma, perspetivar o estatuído nos seus artºs 15º e 16º, a saber:

Artigo 15.º

Princípio geral

São proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé.

Artigo 16.º

Concretização

Na aplicação da norma anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada, e, especialmente:

a) A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;

b) O objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado.

Assim, e para além dos arestos citados nas conclusões, vejam-se mais os seguintes, todos publicados em dgsi.pt.

Ac. da RP de 23.02.2017, p. 2377/12.6T2AVR.P1:

I - Quem recorre à utilização de cláusulas contratuais gerais encontra-se numa posição de superioridade relativamente aos aderentes, que são privados de interferir na “modelação” das cláusulas, o que determina o dever daquele levar em consideração os interesses destes, no que só assim encontra correspondência a uma conduta conforme à boa fé.

II - A finalidade de um seguro de vida e incapacidade absoluta, celebrado a favor de um Banco tendo como garantia o pagamento do capital mutuado, é a de prevenir a situação do segurado ficar sem a possibilidade de auferir rendimentos, por ter ficado afectado na sua capacidade de trabalho, não podendo exercer actividade geradora de proventos.

III - A cláusula que exige, na consideração da situação de invalidade absoluta e definitiva, que a pessoa segura necessite ainda de recorrer de modo contínuo à assistência de terceira pessoa para os actos normais da vida diária, nada tem a ver com a afectação da sua capacidade de trabalho e de obter rendimentos, antes vai além da razão de ser do contrato, determinando um desequilíbrio das prestações contratuais e frustração da confiança do segurado, sendo por isso abusiva por desproporcionada e contrária boa fé.

Ac. RL de 010.06.2017, p. 3366/10.0TBTVD.L1-8:

A cláusula contratual geral, inserida num contrato de seguro, que, para lá da demonstrada invalidez para o trabalho por parte do segurado, exige que o mesmo se encontre dependente de terceira pessoa, é uma cláusula ferida de nulidade, já que estabelecida em proveito exclusivo da seguradora, numa flagrante violação dos princípios da boa fé e proporcionalidade.

- A razão de ser deste tipo de seguro é proteger o particular que celebra um contrato de mútuo imobiliário com um Banco, vindo posteriormente a ser acometido de doença (ou acidente) que o torne inteiramente incapaz de efectuar trabalho remunerado, e assim, de angariar os rendimentos que lhe permitam fazer face aos pagamentos do empréstimo contraído com a instituição bancária.

- Visa o contrato igualmente a diminuição de riscos do Banco, em tais circunstâncias, de modo a que, verificada a incapacidade de o segurado exercer actividade remunerada e continuar a satisfazer as suas obrigações contratuais, possa o Banco receber esse montante da Seguradora.

- Assim, o que está em causa é a total incapacidade para o trabalho do sinistrado; exigir, para lá disto, uma dependência constante de terceira pessoa para os actos da vida corrente, é um modo de limitar drasticamente as situações em que o pagamento pela seguradora é desencadeado, mesmo quando a incapacidade total para o trabalho é evidente.

- Trata-se de uma cláusula abusiva e como tal proibida.

Ac. do STJ de 27.09.2016, p. 240/11.7TBVRM.G1.S1:

IV. É abusiva (por atentatória do vetor da boa-fé), proibida e nula a cláusula especial constante das condições de contrato de seguro de grupo destinado ao pagamento do saldo de um empréstimo por crédito à habitação em caso de invalidez absoluta e definitiva do aderente, que exige acrescidamente para a caracterização desse estado de invalidez que o aderente fique na obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar os atos ordinários da vida corrente.

V. Tal cláusula introduz um significativo desequilíbrio contratual entre as partes (na prática esvazia largamente a utilidade do seguro), na medida em que o fim precípuo do dito seguro é obrigar o segurador a pagar ao banco mutuante no caso do aderente ficar impossibilitado de o fazer por si, e esta finalidade satisfaz-se com a própria impossibilidade e sem necessidade do aderente ficar também dependente da referida assistência permanente.

Ac. STJ de 14.12.2016, p. 1724/11.2TVLSB.L1.S1:

II - Uma cláusula que prevê a exigência concomitante da impossibilidade de realização de qualquer atividade remunerada, aliada ao grau de incapacidade (inferior a 85/prct.), a necessidade de ajuda de terceira pessoa para a realização (cumulativamente) de todos os atos elementares da vida corrente descritos na cláusula, não é justificada, sendo desproporcionada a caracterização do estado de invalidez permanente que o seguro visou prevenir.

III - O segmento duma cláusula que exige, para além do apoio de terceira pessoa, que se encontre incapaz de, cumulativamente, realizar os actos elementares da vida corrente…. para efeitos de definição de invalidez absoluta e definitiva, de modo a permitir a cobertura prevista no contrato de seguro, no caso concreto em apreciação, é contrária a boa-fé, por desproporcionalmente violadora dos interesses visados com a celebração de tal contrato, sendo, consequentemente, parcialmente nula (artigo 15.° do Decreto-Lei n.o 446/85, de 25/10 e artigo 292.° do Código Civil).

IV - Impõe-se a exclusão do referido segmento, ou seja, na parte em estabelece, para além da necessidade do segurado carecer da assistência de terceira pessoa, que a mesma se destine assistir o segurado a realizar cumulativamente os actos elementares da vida corrente: Lavar-se, Alimentar-se, Vestir-se e Deslocar-se no local de residência habitual.

V - Sendo ainda de considerar que o preenchimento de todos os requisitos cumulativos previstos na cláusula 8.2., quando a incapacidade é inferior a 85/prct., é excessivamente limitativa da obrigação assumida contratualmente pela seguradora, enunciada no artigo 4.° pontos 4.1.,4.3.2. das Condições Particulares e cláusula 8, ponto 8.1. das Condições Especiais, em relação ao risco segurado, que retira praticamente utilidade ao contrato de seguro, razão pela qual, no segmento acima considerado, também a mesma se tem por proibida ao abrigo do artigo 21° alínea a), do regime das CCG e, por conseguinte, nula (artigo 12.° do mesmo diploma legal).

No caso vertente assim é.

A elevada incapacidade exigida (75%) aliada à exigência  cumulativa dos restantes requisitos, coloca a realização/verificação dos efeitos do contrato em caso de sinistro, na prática da vida corrente, no domínio do  meramente ideal e do quase inalcançável.

Frustra-se, assim, o desejado equilíbrio na defesa e salvaguarda dos direitos e deveres dos contraentes, que sempre deve estar imanente e presidir às cláusulas anuídas, sob pena de os contratos assumirem o jaez de leoninos, o que se deve evitar.

Destarte, afastada a necessidade de perspetivação, aplicação dos requisitos contratualmente exigidos, por - desde logo o da exigência da intervenção auxiliar de terceira pessoa -,  contrários à boa fé e contendentes com o aludido equilíbrio – artº 15º do cit.  DL - , resta saber, se a factualidade apurada assume dignidade e relevância bastantes para atribuir ao autor jus à indemnização de 80 mil euros impetrada.

Determinantemente há que considerar que o autor sofre de fortes dores; só consegue caminhar, de forma contínua, poucos metros e sempre com o apoio de duas canadianas; não se consegue manter de pé durante mais que 2/3 minutos; tem dificuldade em curvar-se; necessita de apoio de terceiros para certas tarefas como calçar meias, tomar banho e vestir-se.

De tal modo que   provou-se encontrar-se impossibilitado, de forma irreversível, de exercer uma atividade remuneratória coerente com as suas habilitações.

E tanto assim que as próprias entidades de saúde Helvéticas concluíram que ele se encontrava numa situação de invalidez de 100% desde 01.05.2015.

Ademais, os exames médicos nacionais constantes por peritos médico legais atribuíram-lhe uma incapacidade/défice funcional permanente da integridade físico-psíquica superior a 50% ou 50 pontos base.

Certo é que estamos perante  valores que não atingem  o valor contratualmente predisposto pela ré de 75%.

Mas, há que convir, são bastantes para terem a virtualidade de consubstanciar handicaps físico-psíquicos extremamente significativos e intoleravelmente afetantes de uma normal e saudável vida.

Assim sendo,  tudo visto e ponderado, conclui-se que tais valores incapacitantes, concatenados com outras mazelas e sequelas sofridas e mantidas pelo autor, lhe devem conceder, numa exegese, sensata, razoável, equilibrada e humanista, o direito à indemnização com base neste contrato celebrado.

Procede, parcialmente, o recurso.

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder parcial provimento ao recurso, revogar a sentença na parte em que absolveu a ré relativamente ao primeiro  contrato de seguro, e, agora, condenar, ex vi deste seguro, a ré a pagar ao autor a quantia de  oitenta mil euros, acrescidos dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

Custas na proporção da presente sucumbência.

Coimbra, 2023.01.24.