EFEITOS PROCESSUAIS DA TRANSMISSÃO POR ACTO ENTRE VIVOS DA COISA OU DIREITO LITIGIOSO NA PENDÊNCIA DA ACÇÃO
Sumário


I. O artigo 263 do Código de Processo Civil trata das consequências processuais da transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, durante a pendência da causa.
“O artigo orienta-se, por razões de economia processual e de protecção da parte contrária, pela irrelevância da transmissão da coisa ou do direito durante a pendência da causa”.
Transmitente e adquirente são a mesma parte sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (art. 581.º, n.º 2).
II. A norma do seu n.º 1 consagra uma situação de substituição processual: o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, agora como substituto do adquirente, que é a parte substituída.

Texto Integral


Decisão sumária (art.656º do Código de Processo Civil), por ser simples a questão a decidir:

            Está em causa a seguinte decisão:

“Nos presentes autos de acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, o B..., S.A., Sociedade Aberta, pede a condenação dos réus AA e BB a pagarem-lhe a quantia de € 13.359,97.

“No decorrer da audiência de julgamento, CC, funcionária do B..., S.A., agência da ..., em ..., disse que em julho de 2022 o autor cedeu o crédito em causa nos presentes autos, por contrato de cessão de créditos, pelo que neste momento não existe qualquer dívida dos ora réus para com o banco autor.

“Notificado para juntar aos autos documento que comprove a referida cessão de

créditos, veio o autor informar ter deduzido incidente de habilitação de cessionário no qual foi junto documento comprovativo da referida cessão de créditos, o qual deu origem ao apenso A dos presentes autos.

“A Exmª Magistrada do Ministério Público, em representação da ré BB, citada editalmente, requereu a absolvição dos réus da instância por inutilidade superveniente da lide.

“Cumpre apreciar e decidir.

“Considerando o teor dos documentos juntos com o apenso A, verifica-se que o autor cedeu o crédito que detinha sobre os réus em causa nos presentes autos, tal como foi referido pela única testemunha ouvida em audiência de julgamento, CC.

“Assim sendo, terá que concluir-se que, neste momento, não existe qualquer dívida dos réus para com o Banco autor.

“Em face do exposto e, nos termos da al. e) do artigo 277º do C.P.C., declaro extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide.” (Fim da citação.)


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Veio o Banco Autor recorrer e apresentar as seguintes conclusões:         

A. A Recorrente não aceita o entendimento vertido na douta sentença recorrida na parte em que decide que se “o autor cedeu o crédito que detinha sobre os réus em causa nos presentes autos” (….), “terá de concluir-se que, neste momento, não existe qualquer dívida dos réus para com o Banco autor.”, e que em consequência, declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, com base nessa factualidade.

B. Na verdade, a decisão recorrida viola as normas legais aplicáveis em caso de transmissão de direito litigioso, mormente o disposto no n.º 1 do artigo 263.º do Código de Processo Civil, segundo o qual “no caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou do direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.”

C. Mais, antes de ser proferida a decisão ora recorrida, foi deduzido incidente de habilitação de cessionário, em que foi alegada a cessão de créditos do crédito em causa nos autos, e oferecidos os documentos comprovativos da mesma, dando origem ao apenso A dos autos sub judice.

D. Assim, a decisão recorrida é nula, por omissão nos fundamentos da decisão, ao não especificar, diante da factualidade apurada e em face da habilitação requerida, a causa de inutilidade e em que medida o efeito jurídico pretendido pelas partes ficou precludido, tornando a decisão desnecessária ou inútil para as partes.

E. Diversamente, não será de admitir tal inutilidade superveniente porquanto quer o autor, quer o habilitante, continuam a ter interesse em ver apreciado o pedido deduzido, sob pena de assim não sendo, se tornar inviável a cessão de quaisquer créditos que sejam objeto de processo judicial pendente.

F. Igualmente incorre a decisão recorrida em contradição entre os fundamentos e a decisão, sendo nula, posto que, diante dos elementos disponíveis, deveria ter concluído que a instância estaria em condições de prosseguir com a habilitação do adquirente do crédito, para substituição deste na posição do Autor.

G. Face ao exposto, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que ao invés do decidido, declare o prosseguimento dos autos, desde logo para ser apreciada e julgada a habilitação do cessionário no processo, nos termos e com os efeitos legais.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            A questão a decidir é a de saber se ocorre a inutilidade superveniente da lide.

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            Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas, sendo certo que a cessão de créditos em causa ocorreu na pendência do processo.

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O artigo 263 do Código de Processo Civil trata das consequências processuais da transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, durante a pendência da causa.

No caso, conforme referido pelo Tribunal recorrido, a transmissão do direito ocorre em julho de 2022, tendo a ação entrado em abril de 2021, ou seja, a transmissão do direito ocorre na pendência da causa.

Como ensina Teixeira de Sousa (Blog, CPC Online, anotação ao artigo em análise):

“O disposto no artigo assenta no pressuposto de que a pendência da causa não retira a nenhuma das partes a legitimidade (material) para a transmissão da coisa ou do direito litigioso. O artigo orienta-se, por razões de economia processual e de protecção da parte contrária, pela irrelevância da transmissão da coisa ou do direito durante a pendência da causa, poupando o autor a ter de instaurar uma nova acção contra o terceiro adquirente e evitando que o réu tenha de ser demandado numa nova acção pelo adquirente. Transmitente e adquirente são a mesma parte sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (art. 581.º, n.º 2).”

A norma (do n.º 1) consagra uma situação de substituição processual: o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, agora como substituto do adquirente, que é a parte substituída.

O transmitente (substituto processual) pode continuar a praticar atos processuais na acção.

A substituição processual termina quando o adquirente, através do incidente de habilitação (art. 356.º), é admitido a substituir o transmitente (n.º 1 in fine), ou seja, quando se verifica a substituição do substituto processual (transmitente) pela parte substituída (adquirente).

Ainda que o adquirente (parte substituída) não venha a substituir o transmitente (substituto processual), a sentença proferida – de sentido favorável ou desfavorável a este transmitente – produz efeitos em relação àquele adquirente (n.º 3).

Com este enquadramento, facilmente se percebe que o interesse na definição do crédito e o aproveitamento do processo imperam sobre a perda de titularidade pela transmissão na pendência da causa.

O transmitente mantém interesse na definição do crédito (que transmitiu), o que o legitima a poder continuar os atos processuais da ação.

O cessionário não foi ainda habilitado.

Assim, não ocorre a decidida inutilidade da lide e o Autor mantém legitimidade como substituto do adquirente.


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            Decisão.

Julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida e ordena-se o prosseguimento dos autos.

Custas pelos Recorridos.

2023-01-24

(Fernando Monteiro)