PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA A FILHOS
VALORES PAGOS POR UM DOS PROGENITORES EM SUBSTITUIÇÃO DOS DEVIDOS A TÍTULO DE ALIMENTOS
OBRIGAÇÃO NATURAL
Sumário


I - O art. 310, al. f), do Código Civil só se reporta a pensões alimentícias, não tendo aplicação aos casos em que, a título e interesse pessoal, um progenitor pretende cobrar do outro uma verba por ele paga e que substituiu valores que não foram satisfeitos por este.
II - A obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça.
Não pode ser repetido o que for prestado espontâneamente em cumprimento de obrigação natural, exceto se o devedor não tiver capacidade para efetuar a prestação.

Texto Integral


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

AA veio deduzir incidente de incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais contra BB, alegando que, não obstante o decidido a esse respeito em sede da regulação das responsabilidades parentais feita e homologada no âmbito de processo de divórcio por mútuo consentimento que indica, o requerido não fez a atualização devida da prestação alimentar fixada e não liquidou despesas de educação, médicas e medicamentosas, encontrando-se em dívida o valor de 10.151,94€.

O Requerido contestou, alegando que sempre havia pago tudo o que lhe havia sido pedido, incluindo valores que os próprios filhos requeriam, para além das prestações de alimentos fixadas em seu benefício, desconhecendo em absoluto a existência das despesas agora mencionadas como não tendo sido pagas; invocou ainda a prescrição das atualizações não feitas.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar parcialmente procedente o incidente deduzido, fixando-se a quantia em dívida à data do presente incidente (30.5.21) em 9.380,88€, condenando-se o requerido a pagá-la em conformidade, mas absolvendo-se do que, de mais, havia sido peticionado.


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Inconformado, o Requerido recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1ª) A sentença recorrida julgou parcialmente procedente o incidente de incumprimento, condenando o Recorrente no pagamento da quantia de 9.380,88 euros, relativa à atualização da prestação alimentícia, despesas escolares e, comparticipação nas despesas médicas.

2ª) Na decisão da matéria de facto, o Tribunal recorrido deveria ter dado como provado os pontos 11º a 14º da oposição em como, a Recorrida ou, mesmo, os alimentados nunca remeteram qualquer comprovativo de despesas ou interpelaram o Recorrente para o seu pagamento.

3ª) Atendendo, à não junção de qualquer comprovativo de envio postal/ eletrónico ou por outro meio de contacto ao Recorrente que, passou a residir desde 2011 no Brasil.

4ª) O não envio de tais comprovativos ou lhe, ser transmitido a existência de pretensas despesas provocou erro na vontade do Recorrente quando fez pagamentos à Recorrida e/ou aos alimentados, em valor não inferior a 5.700,00 euros além, do pagamento sempre, tempestivo da pensão alimentícia de 200,00 euros mensais;

5ª) As obrigações peticionadas no presente incidente só não foram liquidadas como tais, por não terem sido, apresentadas pela Recorrida.

6ª) À mesma impunha-se-lhe, o dever de boa fé e, do principio da informação atempada ao Recorrente da existência de obrigações vencidas.

7ª) E, não de se, locupletar à custa do património do Recorrente omitindo a existência da obrigação;

8ª) Os pagamentos realizados no referido montante de pelo menos 5.700,00 euros constituem pagamento de obrigação inexistente, a que se reporta o artigo 476º, nº 1, do Código Civil, segundo o qual, sem prejuízo do disposto acerca das obrigações naturais, o que for prestado com a intenção de cumprir uma obrigação pode ser repetido, se esta não existia no momento da prestação.

9)ª Ao reconhecer-se, estarem quantias em divida relativas a atualizações, despesas escolares e, comparticipação em despesas medicas e medicamentosas sem ponderar a prescrição invocada em sede de oposição sobre, o valor das atualizações e, sem abater os valores transferidos configura-se, um abuso de direito e, um enriquecimento ilícito dadas à custa do património do Recorrente, o Tribunal a quo, não cuidou de que, todos os cidadãos tem o direito a uma causa seja objeto de decisão mediante processo equitativo, com função jurisdicional para acautelar os legítimos interesses legalmente protegidos na justa composição do litigio.

10ª) O Tribunal recorrido violou por erro de aplicação e, interpretação as normas legais previstas nos artigos 20º n4; 202º nº2 da CRP e, artigos 310º; 318º; 304º; 320º; 783º; 2004º e 2005º do Código Civil e 411º do Código de Processo Civil.


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A Requerente contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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As questões a decidir são as seguintes:

A falta de interpelação;

O enriquecimento da Requerente decorrente da desconsideração do pagamento provado em 17 dos factos.

A prescrição relativa ao valor das atualizações não realizadas desde 2011.

O abuso do direito da Requerente.


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Os factos provados são os seguintes (não impugnados):

1. A requerente e o requerido são pais de CC e DD, nascida em .../.../2000 e nascido em .../.../2002, respetivamente.

2. Acordo de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais relativo aos filhos de ambos foi homologado por decisão de .../.../2010, definitiva, proferida no âmbito do processo de Divórcio por Mútuo Consentimento que correu termos pela Conservatória do Registo Civil ..., sob o n.º 44285/2009, no qual foi decretado o divórcio e dissolvido o casamento que os progenitores haviam celebrado entre si no dia 28 de agosto de 1999.

3. Por via de tal decisão, os dois filhos do casal ficaram entregues à guarda e aos cuidados da mãe.

4. No que concerne à pensão de alimentos e despesas extraordinárias, ficou acordado o seguinte: “SÉTIMA: O pai prestará a título de alimentos para os filhos, a quantia de € 100 (cem euros) mensais a cada um, num total de € 200 (duzentos euros), quantia que deverá ser transferida para a conta bancária da mãe com o NIB  ...43 até ao dia oito de cada mês; OITAVA: As prestações previstas no artigo anterior serão atualizadas, anualmente, no mês de Janeiro, por aplicação da percentagem de aumento do vencimento aplicável à função pública, com início em 2011; NONA: O pai suportará as despesas com a educação dos filhos, nomeadamente, as mensalidades da escola, renovação de matrícula, livros, material escolar e almoços; DÉCIMA: O pai comparticipará todas as despesas extraordinárias havidas com os filhos, designadamente médicas e medicamentosas, de rotina ou por motivos de doença.”

5. Os jovens, nos dias de hoje, residem ainda com a progenitora.

6. Contudo, CC frequenta o ensino superior, no curso de ..., no Instituto Politécnico de ....

7. No ano letivo anterior, DD frequentava o curso de ..., no Colégio ..., em ..., tendo este ano ingressado no ensino superior.

8. Não obstante a decisão em análise, o requerido apenas tem liquidado o valor fixado em singelo no montante total de € 200,00, mas nunca atualizou o seu valor, conforme foi estabelecido na cláusula oitava antes aludida.

9. Em livros, material escolar, festas escolares, visitas de estudo, instrumentos de avaliação refeições escolares e explicações, de CC, entre os anos de 2013 e 2018, a progenitora despendeu a quantia de 1.118,95€.

10. No mesmo período a mesma pagou a quantia de 3.959,52€ com finalidade exacta não apurada, mas que em todo o caso, em parte se destinavam a transportes de e para a escola e emolumentos correspondentes a serviços exatos não apurados.

11. Em propinas de CC referentes aos anos letivos 2018/2019, 2019/2020 e 2020/2021 (contabilizado até 31/03/2021) pagou € 2.012,52.

12. Em livros, material escolar, refeições escolares e explicações, de DD, entre os anos de 2013 e março de 2021 a progenitora despendeu a quantia de 1.344,17€.

13. No mesmo período a mesma pagou a quantia de 67,29€ com finalidade exacta não apurada, mas que em todo o caso, em parte se destinavam a transportes de e para a escola emolumentos, fotografias e passe a ele respeitantes.

14. Em medicamentos, tratamentos dentários, aparelhos, consultas médicas, aquisição de lentes para CC, até março de 2021 a mãe pagou a quantia global de 1 596,78€.

15. Em medicamentos, tratamentos dentários e consultas médicas para DD, até março de 2021 a mãe pagou a quantia global de 1 498,63€

16. A partir de outubro de 2018, CC passou a pagar a renda mensal (€ 100,00) com arrendamento de um TO na cidade ..., acrescendo a tal valor as despesas de água, luz e gás, no valor global pago entre outubro de 2018 a março de 2021 de €3.000,00.

17. Desde 2013 até ao presente, para além do depósito regular de 200€ mensais, o requerido efetuou depósitos e entregas em dinheiro, cujo valor global ascende a montante exato não apurado, mas em todo o caso de pelo menos 5.700€, a pedido dos filhos e com destino à aquisição de veículo, reparação de veículos, pagamento de carta de condução, de multa de trânsito, vestuário, calçado e outras finalidades de valor exato não apurado.


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            Na condenação em crise, estão em causa as seguintes parcelas:

A título de atualizações não feitas nas pensões, o requerido está em dívida, para com a requerente, no valor de € 3.357,54.

A título de despesas referidas nos factos 9, 11, 12, 14 e 15, a responsabilidade do requerido respeita às quantias de 1.118,95€, 2.012,52€, 1344,17€ e 1.547,70€.

Alega o Recorrente que, desde 2013 até à data da propositura da presente ação, liquidou o valor de, pelo menos, € 5.700,00 (cinco mil e setecentos euros).

Ora, como ficou provado (ponto 17), o referido valor teve como destino a “aquisição de veículo, reparação de veículos, pagamento de carta de condução, de multa de trânsito, vestuário, calçado e outras finalidades.”

Primeiro, como é percebido, este pagamento não é relativo a obrigação inexistente. Não estando previsto no regime fixado, o pagamento tem em vista a liquidação de despesas dos filhos. Se o devedor não pode desconhecer o regime fixado, aquele fá-lo na base de um mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça.

Nestes casos, conforme o previsto nos arts. 402 a 404 do Código Civil, não pode ser repetido o que for prestado espontâneamente em cumprimento de obrigação natural, exceto se o devedor não tiver capacidade para efetuar a prestação.

Como não se discute esta capacidade, o que prestou a esse título não pode ser imputado ao pagamento das despesas previstas no regime fixado.

O enriquecimento pelos factos referidos em 17 não é da Requerente. Já quanto às despesas provadas em 9, 11, 12, 14 e 15, a Requerente teve um empobrecimento.

A falta de interpelação do Requerido não teve qualquer consequência prática na condenação (juros ou outra), servindo para tal a notificação no presente processo.

Mesmo que o Requerido tivesse sido antes interpelado, ele não evitaria a sua responsabilidade pelas despesas documentadas. É certo que poderia pensar de modo diverso a sua “obrigação natural”, mas esta seria discutida com os filhos envolvidos e não com a mãe destes.

Assim, não faz sentido a invocação do art.783 do Código Civil, pois “as dívidas” não são da mesma espécie e o seu credor não é o mesmo.


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O Recorrente invoca a prescrição do crédito do valor das atualizações das pensões de alimentos, alegando que existiu um erro na aplicação do artigo 310, f), do Código Civil (CC).

A Requerente não reclama o pagamento das pensões de alimentos, pois essas foram pagas.

Se atentarmos ao pedido e à causa de pedir, percebemos que a Requerente se apresenta em nome próprio e não na condição de representante dos filhos, já maiores. Aquela alega que supriu com meios económicos próprios todos os valores não pagos pelo Requerido.

Nesta situação, o valor suprido pela Requerente, que ela exige ao devedor, não se define como obrigação alimentícia, é um seu sucedâneo.

A pensão alimentícia define-se apenas na relação entre os filhos e o devedor.

O invocado art. 310, f), do CC, que deve ser interpretado literalmente, também dada a sua natureza, só se reporta a pensões alimentícias.

(“As previsões das normas que instituem prazos de prescrição mais curtos do que o prazo ordinário de prescrição são sujeitas a interpretação literal, uma vez que constituem excepção ao regime regra de prescrição ordinária em 20 anos, o qual vem previsto no art. 309 do CC”.)

Neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13/02/2014, no proc. 25-C/1996, em www.dgsi.pt.

Além disso, o fundamento para a prescrição (acumulação de valores prejudicial ao devedor) não se coloca com a mesma intensidade nas duas verbas; o valor e a regularidade são diferentes, sendo aquele mais alto e esta mais regular (mensal e não anual) na pensão alimentícia.

Mais, o devedor pagou sempre a pensão, reconhecendo-a.

Não tendo aplicação o prazo curto invocado, a obrigação do devedor para com a prestadora substitutiva só prescreve decorrido o prazo geral de vinte anos, previsto no artigo 309.º do Código Civil.


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O instituto do abuso de direito representa um remédio, uma válvula de segurança capaz de evitar que um direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito.

A inércia decorrente da passagem do tempo, só por si, é insuficiente para criar a confiança no Réu de que a Requerente não cobrará a dívida.

Para a segurança relativa à passagem do tempo existe na lei a figura da prescrição e, como vimos, o prazo aplicável é o geral, que não decorreu (2011 – 2031).

A restante discussão realizada não permite concluir pela alegada e referida ofensa clamorosa no exercício do direito aos valores despendidos pela Requerente.

O Requerido não podia desconhecer a sua obrigação e nada fez para a regularizar.

Conforme a sua conclusão 5ª, retira-se que o mesmo, se tivesse sido antes interpelado, teria pago o reclamado. O que não se sabe é, se mesmo assim, já não teria pago aos filhos “veículo, reparação de veículos, pagamento de carta de condução, de multa de trânsito, vestuário, calçado e outras”.

O crédito da Requerente foi acionado após a maioridade dos filhos, porventura para não o confundir com o destes.

Neste contexto, não ocorre abuso do direito em causa.


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            Uma última nota sobre a invocação da bolsa de estudos dos filhos: esta não tem qualquer implicação no incumprimento processado; podendo ter implicações na pensão alimentar, a questão deve ser colocada aos filhos.

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Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas do recurso pelo Recorrente, vencido (art.527º, nº 2, do Código de Processo Civil).

            Coimbra, 2023-01-24


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Rui Moura)