PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
CONTRADIÇÃO ENTRE PERÍCIAS
NEGLIGÊNCIA
ACTIVIDADE MÉDICA
Sumário

I – Existindo perícias médico-legais com resultados contraditórios, nada obsta a que o tribunal adira àquela que dê maiores garantias científicas.
II – Na actividade médica, por natureza potenciadora de diversos riscos, é imposto aos profissionais um dever jurídico especial, obrigando-os à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, assumindo nesse sentido a posição de garante de evitar a verificação de eventos danosos para a saúde e vida dos doentes.

Texto Integral


Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                  

I. Relatório                                                                                                             

1. No âmbito dos autos de Processo Comum (tribunal Singular) registados sob o n.º 1276/18...., da Comarca ..., Juízo Local Criminal ..., foi proferida sentença, em 23/2/2022, cujo Dispositivo é o seguinte:

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se:

a) Condenar a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, p. e p. pelos arts. 15.º, al. a), 26.º e 148.º, n.ºs 1 e 3, por referência ao disposto no artigo 144.º, als. c) e d), todos do CP, na pena de 210 (duzentos e dez) dias de multa, à taxa de 25,00€ (vinte e cinco euros), o que perfaz 5.250,00€ (cinco mil duzentos e cinquenta euros).

b) Condenar a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, p. e p. pelos arts. 15.º, al. a), 26.º e 148.º, n.ºs 1 e 3, por referência ao disposto no artigo 144.º, al. d), todos do CP na pena de 190 (cento e noventa) dias de multa, à taxa de 25,00€ (vinte e cinco euros), o que perfaz 4.750,00€ (quatro mil setecentos e cinquenta euros).

c) Condenar a arguida AA, em cúmulo jurídico das duas penas parcelares referidas em a) e b), pelo concurso efectivo de crimes referidos nessas alíneas, na pena única de 310 (trezentos e dez) dias de multa, à taxa diária de 25,00€ (vinte e cinco euros), o que perfaz 7.750,00€ (sete mil setecentos e cinquenta euros).

d) Condenar a arguida AA no pagamento das custas do processo, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 513.º, n.ºs 1 e 3 do CPP e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III do mesmo Regulamento, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s, atendendo à complexidade do processo, ao número de sessões de audiência de julgamento e ao número de pessoas inquiridas como testemunhas.”

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Notifique.

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Remeta certidão da sentença, com nota que ainda não transitou em julgado, conforme o solicitado (cfr. fl. 301), ao Conselho Médico-Legal.

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Após trânsito:

- Remeta-se boletins à D.S.I.C. – [cfr. art. 5.º, n.ºs 1, 2, al. a) e 3 e 6.º, al. a) da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio].

- Comunique para os efeitos tidos por convenientes ao Conselho Nacional da Ordem dos Médicos.”

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2. A arguida, inconformado com a decisão, veio, em 18/4/2022, interpor recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1. A Meritíssima Juíza do Tribunal a quo dá como provados alguns factos o que, com o devido respeito, implica que não fez a consideração e interpretação devida da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento.

2. Assim, a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

“8) Como consequência directa e necessária da administração daquele fármaco, a ofendida sofreu, nesse mesmo dia, cerca das 18h30m, rotura uterina, pelo que teve que ser submetida a cesariana de urgência, com início às 18h49m e fim às 19h29m.

9) A rotura uterina que a ofendida sofreu em resultado da administração daquele fármaco provocou-lhe dores abdominais excruciantes, tendo o feto entrado na cavidade abdominal da mãe.

10) Ainda como consequência directa e necessária da administração daquele fármaco e da rotura uterina sofrida pela ofendida, o assistente BB nasceu em morte aparente, branco, hipotónico, sem reflexos, sem respiração e sem batimentos, sofreu asfixia aguda, com necessidade de intubação (índice APGAR 1).

(…)

14) A Médica arguida tinha o dever de, conjugando os seus conhecimentos técnicos com os resultantes do acompanhamento da gravidez, obstar à administração daquele fármaco e, assim, evitar a verificação de um evento danoso para a vida e a saúde dos ofendidos.

15) Ao expor a ofendida à acção do “misoprostol”, actuou a arguida sem o cuidado, atenção, perícia e cautelas que, como Médica especialista, naquelas circunstâncias, lhe eram exigíveis e de que era capaz, já que podia e devia ter previsto, que, com a administração daquele fármaco e com a progressão dos seus efeitos e do trabalho de parto com indução, poderia ofender o corpo e a saúde dos ofendidos, resultado que efectivamente se verificou e que a mesma previu, não se conformando com ele, ou provocar-lhes a morte, perigo a que os expôs e que previu, mas com o qual não se conformou e que se conseguiu evitar.

16) A arguida sabia que a rotura uterina, a cujo risco submeteu a ofendida, é uma emergência obstétrica catastrófica, potencialmente fatal para a mãe e para o feto, e era meio apto a causar dores excruciantes, como também sequelas no útero que poderiam comprometer uma gestação posterior.

17) A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente e sabia que a sua conduta, que previu poder ofender os assistentes mas com isso não se conformou, era proibida e punível pela lei penal.

(…)”

3. Para dar estes factos como provados, o Tribunal a quo refere na Sentença o seguinte:

“Quanto à indução do trabalho de parto da assistente, no dia 14-06-2018, com a administração, por via vaginal, de 50 microgramas de misoprostol e as consequências dessa concreta indução para os assistentes, o Tribunal teve em consideração:

1)As declarações da arguida que confirmou a sua profissão, a circunstância de ter acompanhado a segunda gravidez da assistente, (…)

2) Os esclarecimentos do Sr. Perito Dr. CC, nos termos do art. 158.º, n.º 1, al. a) do CPP, subscritor dos Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia de fls. 302 e ss.; fls. 367 e ss. e fls. 566 e ss., que confirmou o teor dos Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia de fls. 302 e ss. e de fls. 367 e ss. (o de fls. 566 e ss., conforme consta da acta de 28.10.2021, chegou aos autos no decurso da audiência de julgamento).

(…)

9) Os Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia de fls. 302 e ss.; de fls. 367 e ss. e de fls. 566 e ss., que foram essenciais para a formação da convicção do Tribunal, e que constituem tais provas periciais meios de prova vinculados, dotados de um especial valor probatório, constituindo o art. 163.º, n.º 1 do CPP uma excepção ao princípio geral da livre apreciação da prova pelo Juiz, princípio esse que está consagrado no art. 127.º do CPP, não divergindo, in casu, o Tribunal dos juízos contidos nesses três pareceres uniformes, coerentes, objectivos e robustos (cfr. art. 163.º, n.º 2 do CPP) que o lograram convencer.

(…)

- Já os Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em relação à assistente de fls. 290 e ss., esclarecimento de fls. 316 e Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal de fls. 350 e ss. em relação ao assistente, que também constituem prova pericial, não lograram o convencimento do Tribunal, divergindo o Tribunal, nos termos do art. 163.º, n.º 2 do CPP desses elementos periciais já que os mesmos são contrários às regras de experiência comum e aos registos clínicos de fls. 20 a 51, 160 a 161, 363 e

Anexo e foram expressamente contrariados e afastados, de forma uniforme, coerente, objectiva e robusta pelos três Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia de fls. 302 e ss.; de fls. 367 e ss. e de fls. 566 e ss. que, esses sim, lograram o convencimento do Tribunal e advêm de Srs. Peritos com formação médica especializada no domínio da obstetrícia.

- Afastados também o foram os artigos estrangeiros de fls. 533 e ss. pois, como se disse supra, o Tribunal logrou ficar convencido com os Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia de fls. 302 e ss.; de fls. 367 e ss. e de fls. 566 e ss. que, mormente, este terceiro parecer de fls. 566 e ss., os (a esses artigos) afasta expressamente, mencionando, nomeadamente, “esses estudos não avaliaram o misoprostol no contexto de maturação/indução do parto em grávidas de termo com cesariana anterior, (…) apresentando variações metodológicas que impedem o realização de meto-análises válidas”, sendo certo e seguro que não concernem, ao contrário dos três pareceres mencionados, à concreta assistente, ao concreto assistente e à concreta dose de misoprostol nas concretas circunstâncias em que foi administrada por decisão da concreta médica arguida.”

4. Face ao exposto, o douto Tribunal a quo formou a sua convicção para grande parte dos factos dados como provados apenas com base nos Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia.

5. É certo que o princípio da livre apreciação da prova é aqui limitado nos termos do disposto no artigo 163.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP) como refere a douta Sentença. Consagra o artigo 163.º, n.º 1 do CPP que “O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.”. Contudo refere o n.º 2 deste mesmo artigo que “Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”

6. E foi exactamente da faculdade contida neste n.º 2 que a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo usou para afastar outra prova pericial, nomeadamente, “os Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em relação à assistente de fls. 290 e ss., esclarecimento de fls. 316 e Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal de fls. 350 e ss. em relação ao assistente, que também constituem prova pericial” que segundo a mesma “não lograram o convencimento do Tribunal, divergindo o Tribunal, nos termos do art. 163.º, n.º 2 do CPP desses elementos periciais já que os mesmos são contrários às regras de experiência comum e aos registos clínicos de fls. 20 a 51, 160 a 161, 363 e Anexo e foram expressamente contrariados e afastados, de forma uniforme, coerente, objectiva e robusta pelos três Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia de fls. 302 e ss.; de fls. 367 e ss. e de fls. 566 e ss. que, esses sim, lograram o convencimento do Tribunal e advêm de Srs. Peritos com formação médica especializada no domínio da obstetrícia.”

7. Fundamentação esta claramente insuficiente porquanto apoia-se sempre na aceitação dos Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia! Pareceres estes que poderiam, como deveriam ser afastados com base no referido artigo 163.º, n.º 2 do CPP por falta de fundamentação e de invocação da respectiva razão de ciência, nomeadamente no que toca ao necessário nexo de causalidade adequada, essencial e determinante para a condenação da aqui Recorrente!

Vejamos,

8. O douto Tribunal dá assim como provados os factos referidos no artigo 4.º do presente, estabelecendo uma relação directa entre a conduta da Recorrente de administrar o fármaco “misoprostol” e a rotura uterina que a ofendida sofreu, mais de 8h30min depois da administração do mesmo! Vejamos então o que referem sobre o assunto os Pareceres que mereceram convencer o douto Tribunal.

9. Consta como primeiro quesito do primeiro Parecer da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia “Se existiu relação de causalidade/causa-efeito entre a administração de “misoprostrol” para indução do parto à ofendida DD, em .../.../...18, quando esta já havia sido submetida a cesariana anterior, e a rutura uterina sofrida nesse mesmo dia.”.

E como resposta este Parecer refere “A incidência e o risco relativo de rotura uterina são significativamente elevados quando se utiliza misoprostol para indução do trabalho de parto, sobretudo, em mulheres que tenham sido submetidas a cesariana em parto anterior, podendo, portanto, admitir-se um nexo de causalidade entre a administração de 50 microgramas de misoprostrol e a rotura uterina.” (sublinhado e negrito nosso).

10. Ou seja, os Peritos referem que se pode admitir o nexo de causalidade, deixando espaço de liberdade no que toca mesmo! Não é referido que a rotura uterina é consequência directa e necessária da utilização do medicamento misoprostrol. Também não é referido que a utilização do medicamento misoprostrol foi o único procedimento que deu origem ou poderia ter dado origem à rotura uterina. A expressão utilizada deixa claramente espaço para outras hipóteses que possam ter dado causa à referida rotura que não a administração do medicamento em causa!

11. Acresce que os Peritos nada referem quanto à fundamentação daquela afirmação! Qual a sua razão de ciência?

12. Do quesito 2. constava “Se a leges artis aconselham uma abordagem diversa e na afirmativa qual:”. E como resposta é dito que “O uso de misoprostol, para indução do parto, em grávidas com cesariana anterior deve ser evitado, dado estar associado a um significativo aumento do risco de rutura uterina. A potência dos efeitos do misoprostol sobre o músculo uterino e a sua longa semivida conferem riscos aumentados de provocar hiperestimulação e hipertonia uterinas, com possíveis efeitos nefastos sobre a integridade do miométrio e sobre a oxigenação fetal, pelo que a sua utilização está contra-indicada em grávidas sujeitas anteriormente a intervenções cirúrgicas sobre o útero, nomeadamente cesariana. (…)”

13. Mais uma vez, o tempo verbal utilizado é “deve ser” ao referir “O uso de misoprostol, para indução do parto, em grávidas com cesariana anterior deve ser evitado, dado estar associado a um significativo aumento do risco de rutura uterina.”, é opcional e não imperativo! (sublinhado e negrito nosso).

14. Não refere que o uso deste medicamento tem de ser evitado, nem que a rotura uterina é consequência directa e necessária da utilização do medicamento misoprostrol. E também não refere que a utilização do medicamento misoprostrol foi o único procedimento que deu origem ou poderia ter dado origem à rotura uterina!

15. Mais uma vez não se indica a fundamentação destas afirmações. Nem qual a sua razão de ciência?

16. Acresce que este Parecer não se debruça sobre o caso concreto, nomeadamente na circunstância de entre a conduta da Recorrente de administrar o fármaco “misoprostol” e a rotura uterina que a ofendida sofreu, terem decorrido mais de 08h30min! É possível que a administração daquele fármaco por via vaginal tenha dado causa directa e necessária à rotura uterina ocorrida mais de 08h30min depois?!

17. Vejamos agora o Segundo Parecer da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia, com data de 25 de Março 2021, que é emitido para a esclarecer dúvidas com vista à correcta descrição e qualificação dos factos.

18. Perante a exposição apresentada pelo Tribunal a quo, o Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia responde inicialmente, antes da resposta aos quesitos, o seguinte: “No estado actual da investigação, e com o contributo do parecer da consulta técnico-científica (processo n.º ...19), foi já estabelecido o nexo de causalidade entre a administração de 50 microgramas de “misoprostol” e a ruptura uterina sofrida pela ofendida DD, importa contudo esclarecer:”

19. Mais uma vez o Parecer da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia, estabelece o nexo de causalidade entre a administração do medicamento e a rotura uterina sem qualquer fundamentação! Desta vez limita-se a dizer que o nexo de causalidade está estabelecido, pelo que se presume (e presume-se porque nada refere este segundo Parecer quanto a onde é que foi estabelecido esse nexo de causalidade) que se esteja a referir ao primeiro Parecer, com todas as fragilidades que este padece no que se refere ao nexo de causalidade, conforme se alegou nos pontos 7. a 16. das presentes, e que se dão aqui por integralmente reproduzidos!

20. O segundo quesito deste segundo Parecer foi o seguinte: “b) Se é de admitir o nexo de causalidade entre a administração de 50 microgramas de “misoprostol” e /ou a ruptura uterina e as concretas condições em que nasceu o ofendido BB, designadamente, em morte aparente, branco, hipotónico, sem reflexos, sem respiração e sem batimentos, em asfixia aguda, com necessidade de intubação;”. E respondem os Peritos neste Parecer que “Sim é de admitir um nexo de causalidade entre a rotura uterina e as concretas condições neonatais do recém-nascido. Em grávidas com cesariana prévia ou cirurgia uterina major, o uso de misoprostol está contraindicado, por estar associado a um grande aumento do risco de rotura uterina e esta a uma mortalidade e morbilidade neonatal muito significativas.” (sublinhado e negrito nosso)

21. Sublinha-se que na resposta a este quesito referem que se admite, mais uma vez, e não que existe ou há efectivamente, um nexo causal mas entre a rotura uterina e as concretas condições neonatais do recém-nascido. Ou seja, o nexo causal “que se pode admitir” não é entre a administração de 50 microgramas de “misoprotol” e a ruptura uterina, mas sim entre a rotura uterina e as concretas condições neonatais do recém-nascido!

22. Depois prosseguem referindo que “Em grávidas com cesariana prévia ou cirurgia uterina major, o uso de misoprostol está contraindicado (…)” (sublinhado nosso). Ou seja, nesta resposta não é feito qualquer nexo de causalidade entre a administração do fármaco e a factualidade que aconteceu, referindo apenas que o uso do mesmo é contraindicado em grávidas com cesariana prévia ou cirurgia uterina major!

23. Em primeiro lugar, sublinha-se que na resposta ao quesito um, do qual consta “I. No caso concreto e durante a gravidez, é correcta a decisão de optar por parto natural ou devia logo ter-se determinado a realização de cesariana programada? Na segunda hipótese, qual a razão de ciência que suporta tal afirmação?”, é referido o seguinte: “A presença, por exemplo, de cesariana anterior corporal ou segmentar vertical ou incisão em T, e, para alguns autores, de cesariana segmentar transversal com uma única sutura da histerotomia, seria, também, uma contraindicação a uma prova de trabalho de parto, dado o risco acrescido de rotura uterina.”. E imediatamente antes deste excerto respondem os Peritos que “Para aconselhar correctamente a grávida quanto à sua elegibilidade para uma prova de trabalho de parto, é indispensável identificar o tipo de incisão uterina que foi realizada na cesariana anterior e a técnica usada para a encerrar (sutura única versus dupla). Não encontramos no processo informação clínica a este respeito.”

24. Assim, admite-se aqui outro factor - o tipo de incisão uterina que foi realizado na cesariana anterior – que pode também ser uma contraindicação e causa de um risco acrescido de rotura uterina! Ou seja, admite-se aqui que possa haver outro factor que possa ter contribuído para a ruptura uterina sofrida! E não o uso do fármaco aqui em causa!

25. Vejamos agora o quesito 10: “Qual a probabilidade ou o grau de certeza com que se pode afirmar a existência de uma relação de causalidade entre a administração do fármaco e a ruptura uterina no caso concreto, isto é, com 8:30 horas de intervalo entre um evento e o outro?” E respondem os Peritos neste Parecer: “Tendo em consideração que:

7. A indução do trabalho de parto foi realizada na presença de vários factores associados a uma baixa probabilidade de um parto vaginal bem-sucedido;

8. Antes da aplicação da prostaglandina não havia contractilidade uterina (apenas no CTG, está referido esboço de contração);

9. Após a aplicação da prostaglandina (misoprostol), contraindicada pelo seu elevado risco de rotura uterina (5,6% a 10,9%), a parturiente manteve dilatação do colo uterino estacionária desse as 10h00 até às 18h00, apesar da cardiotocografia, após as 11h00 (fls. 107 e 108) revelar a presença de contrações uterinas intensas e com uma frequência de 4 a 5 em 10 minutos (fls.139 a 142);

10. A parturiente apesar de ter contrações uterinas típicas da fase activa do trabalho de parto, manteve dilatação do colo uterino estacionária, o que não se podia considerar normal. Numa parturiente com parto induzido, sobretudo, com uma cicatriz uterina de cesariana anterior, se a estimulação condicionar 3-4 contracções uterinas em cada 10 minutos e não houver progressão da dilatação durante 4 horas, deve considerar-se a indicação de cesariana por trabalho de parto estacionário;

11. A cardiotocografia fetal (CTG) apresentava alterações que podem estar associadas ao início de deiscência de cicatriz uterina (segmentos com características suspeitas de um estado fetal não tranquilizador – desacelerações tardias acentuadas, 13h29-13h40, 14h26-14h46, por vezes, com perda de variabilidade da frequência cardíaca fetal inferior a 5 bpm, após as 17h00 – de referir que o CTG constante no processo não se encontra completo, faltando, nomeadamente, segmentos entre as 13h02-13h29; 13h51-14h20; 14h46-15h12; 15h39-16h05; 16h30-16h57; 17h21-17h49);

12. Em conclusão, pode admitir-se, conforme referimos no nosso parecer emitido em .../.../2019, um nexo de causalidade entre a administração de 50 microgramas de misoprostol e a rotura uterina, devendo afirmar-se com elevado grau de probabilidade, a existência dessa relação.”.

26. Refere assim no ponto 1. deste quesito 10. que “A indução do trabalho de parto foi realizada na presença de vários factores associados a uma baixa probabilidade de um parto vaginal bem-sucedido;” Questiona-se que factores concretos são esses, considerando que todos os critérios para prova de trabalho de parto sugeridas pela DGS estavam presentes: “apresentação cefálica, feto único, última cesariana há mais de 12 meses, inexistência de outras cicatrizes envolvendo o miométrio, inexistência de rotura uterina prévia e nenhuma contra-indicação absoluta para parto vaginal”(cfr. orientação n.º 3/2015, de 19 de Janeiro)?

27. Refere depois na segunda premissa que antes da aplicação da prostaglandina não havia contratibilidade uterina (apenas no CTG está referido esboço de contracção). Questiona-se o que isto significa e como é erigido a premissa para a conclusão lógica? Não se divisa o alcance.

28. Quanto à terceira e quarta premissa, não se percebe em primeiro lugar de onde resulta a percentagem de rotura uterina entre 5,6 e 10.9%. Provavelmente está a ter-se em consideração a selecção de três trabalhos científicos retrospectivos de: Plaut et al 1998; Hill et al 2000 e Aslan et al 2004, com índices de rotura de 5.6 %, 6.3% e 9.7 % respectivamente. Cada um destes estudos tinha apenas 89, 48 e 41 mulheres, respectivamente; E em todos eles foram administradas doses repetitivas de misoprostol 25 a 50 mcg a cada 3 ou 4 horas; houve um total de 12 roturas uterinas dentre 178 mulheres. Estes são os piores resultados de estudos retrospectivos. Se for considerada a soma de todos os outros estudos retrospectivos realizados, há um total de 383 mulheres com um total de 14 roturas, ou seja, uma incidência geral de 3,7% de roturas uterinas para os trabalhos retrospectivos. Se forem considerados os estudos randomizados, que são estudos com mais impacto na literatura científica, há 5 estudos com um total de 102 mulheres que receberam misoprostol por via vaginal tendo cesariana anterior e um total de 3 roturas uterinas, ou seja 2,9% de roturas. Neste enquadramento, questiona-se como se chegou a esta percentagem de roturas uterinas entre 5,6 e 10,9% e quais os estudos e dados científicos em que tal premissa de baseia, tendo em conta o referido e os estudos científicos juntos com a contestação apresentada nos presentes Autos.

29. Depois e em segundo lugar, tem de se questionar se o facto de, após a aplicação do medicamento, nada ter sucedido, mantendo-se a situação estacionária, não constitui uma indicação clara de que o fármaco administrado em causa não produziu qualquer efeito?

30. Cabe referir quanto à quinta premissa que se verificaram efectivamente duas desacelerações que se tratavam na verdade de desacelerações variáveis isoladas e breves, com imediata recuperação e excelente variabilidade logo após. Estas desacelerações são características de desacelerações variáveis que segundo os critérios revisados da FIGO de 2015, constituem a maioria das desacelerações durante o trabalho de parto e traduzem uma resposta mediada por baroreceptores ao aumento da pressão arterial como ocorre com a compressão do cordão umbilical. Raramente estão associadas a hipoxia ou acidose fetal a menos que evoluam para um formato em “U” juntamente com variabilidade reduzida dentro da desaceleração ou duração superior a 3 minutos. Às 14:46 volta a ocorrer nova desaceleração variável muito breve e concomitante ao esvaziamento vesical, que pode ter sido a causa da desaceleração ou até mesmo uma breve perda da captação. Entre as 17:00 e 17:30 houve ligeira diminuição de variabilidade, sem nunca ter estado abaixo de 5 bpm de amplitude, ou seja não pode ser considerada uma verdadeira redução de variabilidade segundo os critérios da FIGO 2015. De toda o modo, após 30 minutos com ligeira redução de variabilidade, mas ainda assim dentro dos parâmetros normais (entre 5-25 bpm de amplitude), o feto retoma uma maior variabilidade, ou seja, em tempo muito inferior ao considerado anormal pelos critérios da FIGO. Segundo estes critérios uma verdadeira redução de variabilidade seria abaixo de 5 bpm de amplitude e com duração superior a 50 minutos. Assim sendo nenhum destes eventos registados na cardiotocografia podem estar associadas a um “início de deiscência da cicatriz uterina”. Não eram sequer alterações consideradas suspeitas ou patológicas segundo os critérios revisados de 2015 da FIGO (Guidelines on intrapartum fetal monitoring FIGO 2015).

31. De qualquer forma acredita-se ser impossível que a consulta técnico-científica do INMLCF avalie correctamente o traçado se a própria afirma que faltam vários trechos do traçado que não foram facultados (coincidentemente todos os trechos que faltavam na avaliação estavam absolutamente normais). Questiona-se, pois, qual a base científica para a construção da quinta premissa, já que a mesma não corresponde aos critérios internacionalmente definidos?

32. E questiona-se, claro, mais uma vez, a conclusão, que é no mínimo ambígua, isto é, nunca se pretendeu saber se se pode “admitir um nexo de causalidade”, o que se pretende é uma resposta concreta: foi o medicamente aplicado às 10h da manhã que causou concretamente a rotura uterina às 18:30h? Não se pretende saber se pode ter sido essa a causa; pretende saber-se se foi essa efectivamente a causa.

33. Do quesito 11. consta o seguinte: “Pode afirmar-se sem margem para qualquer dúvida razoável que a administração do misoprostol no caso concreto determinou, mais de 8:30h depois a sua administração, a ruptura uterina que se veio a verificar? Se sim, qual a razão de ciência para suportar tal conclusão?”

34. O Relator refere na sua resposta, nomeadamente, o seguinte: “(…) Ou seja, tratava-se de uma situação em que a indução do trabalho de parto foi efectuada em condições que a manterem.se, como aconteceu, recomendava a repetição da cesariana. Também existem na literatura científica relatos de situações em que algumas roturas uterinas ocorreram muitas horas após a administração de misoprostol (10 horas), sendo opinião dos autores que isso não significa que o misoprostol não contribuiu para a rotura. A absorção vaginal de misoprostol é bastante variável, observando-se frequentemente um atraso na resposta ao fármaco. Sabe-se que misoprostol, semelhantemente ao que acontece no colo do útero, tem um efeito local nas fibras de colagénio do segmento inferior uterino (dissociação das fibras de colagénio, desencadeamento de actividade proteolítica), o que fragiliza e enfraquece a cicatriz uterina em si mesma, vindo a rotura a acontecer mais tarde, inclusivamente, na presença de contratilidade normal. Aliás, a taquissistolia e a hiperestimulação uterinas, efeito colateral bem conhecido do misoprostol, nem sempre surgem nas grávidas com rotura uterina após a administração do misoprostol. Em conclusão, não se vislumbrando qualquer outro factor causal a que se possa, sem margem para qualquer dúvida, atribuir o porquê da rotura uterina, apenas se pode inferir que no caso concreto a rotura uterina se ficou a dever à utilização indevida e não recomendada do misoprostol. Na realidade, o misoprostol entrou em uso clínico para induzir o parto, mesmo em grávidas com integridade uterina, sem haver dados da sua segurança clínica, sobretudo, na grávida de termo.” (sublinhado e negrito nosso)

35. Não se entende, este nexo causal por exclusão de partes! Quer dizer de acordo com os Peritos, não existe outro factor causal a que se possa, sem qualquer margem para dúvida, atribuir o porquê da ruptura uterina, mas pode-se atribuir esse nexo causal ao uso do misoprostol, com alta probabilidade, ou seja, com margem para dúvida! Com o devido respeito, não faz qualquer sentido!

36. Ainda quanto este quesito, bem como na resposta ao quesito 12., tem de se colocar também uma outra dúvida essencial: qual a literatura científica que relata situações em que algumas “roturas uterinas ocorreram após a administração de misoprostol (10 horas)” e onde se pode encontrar os autores que eventualmente defendem que tal se ficou a dever ao misoprostol?

37. Mais uma vez e sempre, o que se pretende saber é se a rotura uterina verificada às 18:30h se ficou inequivocamente a dever à aplicação do misoprostrol e não a outra causa, considerando designadamente que já existe um risco normal associado a roturas uterinas em grávidas com cesariana anterior de 0,5%? Não bastam meias palavras ou hipóteses remotas, são necessárias certezas.

38. Com a sua defesa, a Recorrente juntou vários estudos científicos das mais reputadas instituições e autores internacionais que se debruçam sobre a fármaco-cinética do misoprostol, os efeitos colaterais e os efeitos no útero, tanto quando aplicado por via vaginal como por via oral. Estudos estes que como já se referiu, e com o devido respeito, o Tribunal a quo para a sua tomada de decisão afastou, sem a devida fundamentação, fundando-se apenas nestes Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia!

39. Na verdade, há mais de 40 estudos publicados sobre o assunto até 2007, sendo a rota vaginal bastante conhecida e sabendo-se com segurança que o início da acção do fármaco por via vaginal ocorre cerca de 20 minutos após a administração e o pico de acção ocorre após 70 a 80 minutos da administração, tendo um tempo de acção de cerca de 4 horas. Um dos mais importantes trabalhos, de Lippincott e Williams (Obst Gynecol 2006), evidencia que após 300 minutos (5 horas) da administração do misoprostol por qualquer via (vaginal, oral ou rectal) o nível plasmático da medicação é mínimo. Não existe qualquer trabalho que evidencie presença de níveis plasmáticos de misoprostol após 360 minutos (6 horas) da sua aplicação. Assim sendo, na prática clínica, após no máximo 6 horas o misoprostol volta a ser aplicado, porque se considera que a administração anterior já não tem qualquer efeito.

40. Desta forma, não é possível afirmar que no caso concreto a rotura uterina tenha sido causada pela administração de misoprostol. A rotura ocorreu cerca de 8:30 horas após a administração do fármaco, estando a utente com uma actividade uterina contráctil de fraca intensidade e indolor e, apesar de mais frequente, com intensidade semelhante às contracções que apresentava anteriormente à aplicação do misoprostol.

41. Tudo isto é compatível com uma única conclusão: o fármaco não produziu o seu efeito, nem na primeira hora, em que era suposto actuar, nem em qualquer outra.

42. E por isto não pode deixar de se questionar como se justifica a resposta ao quesito 12, sobretudo a conclusão do ponto 7 do quesito, quando diz que existe conformidade temporal e continuidade sintomatológica”?

43. Com efeito, a Recorrente não se pode conformar com uma conclusão de existência de nexo de causalidade por “exclusão de partes”, como decorre da resposta ao quesito 12, e sobretudo considerando que, como reconhece o Relator, que, de base, já existe um risco de rotura uterina que ronda os 0,5%. Ora, este risco de base significa que em cada 200 partos e de forma espontânea, sem qualquer razão aparente, ocorre uma rotura uterina: 1 em cada 200. Em face disto e considerando que todas as evidências científicas e a experiência com a utilização do fármaco em causa, que apontam para que ao fim de 6h, no limite dos limites, já não há vestígios do mesmo no organismo, não será mais lógico concluir que a rotura ocorreu porque tinha mesmo de ocorrer, porque estava dentro desta margem de risco inicial, de 0,5%? Ora, admitir que a rotura uterina não ocorreu por causas naturais, entrando dentro daquele intervalo de 0,5% de risco, mas que ao invés decorreu da aplicação do misoprostol, cerca de 8:30h é, com o devido respeito, uma improbabilidade estatística, uma quimera!

44. Por tudo o exposto, mal andou o Tribunal a quo ao considerar a existência de nexo de causalidade entre a administração do fármaco misoprostol e a rotura uterina sofrida! As incongruências constantes do Parecer da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia e as restantes provas juntas ao processo, nomeadamente, o Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em relação à assistente de fls. 290 e ss., esclarecimento de fls. 316 e Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal de fls. 350 e ss. em relação ao assistente, e os artigos estrangeiros de fls. 533 e ss. impunham decisão diversa da recorrida. Para o efeito veja-se o disposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01/07/2015, Processo n.º 168/09.0TATND.C2.

45. Acresce que a Recorrente foi, com o devido respeito, incorrectamente condenada pelo Tribunal a quo pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física grave por negligência p(s). p(s). pelas disposições conjugadas dos arts. 15.º, al. a), 26.º e 148.º, n.ºs 1 e 3, por referência ao disposto no artigo 144.º, als. c) e d) (relativamente à assistente DD) e d) (relativamente ao assistente BB), todos do CP. Para o efeito, vejamos quanto ao ilícito negligente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/04/2016, Processo n.º 1032/08.6TAVCT.G1.

46. Ainda sobre o nexo de causalidade veja-se o disposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/06/2020, Processo n.º 1131/13.2TACBR.C1:

“Socorrendo-nos, uma vez mais, do ensinamento de Taipa de Carvalho, «… a exclusão da imputação (do resultado à conduta) afirmar-se-á quer, ex post se tenha a certeza ou quase certeza de que o resultado se teria produzido na mesma, quer haja uma probabilidade ou até apenas a dúvida razoável, uma vez que in dubio pro reo» e mais adiante «… para haver imputação é necessário que exista entre a conduta (ação ou omissão) e o resultado um nexo causal concreto, ou seja, é necessário que tenha sido a conduta a causa efetiva do resultado. Ora, sendo esta efetiva relação causal um elemento do tipo nos crimes de resultado, ele tem de ser objeto de prova. Donde que, havendo dúvida razoável sobre se efetivamente a conduta foi causa do resultado, ter-se-á, por força do princípio in dubio pro reo, de considerar como não provada a imputação e, portanto, de absolver o arguido do crime de resultado» - [cf. ob. cit., pág. 311-313] – negrito nosso.” (sublinhado e negrito nosso).

47. E refere ainda este acórdão, citando alguns Autores quanto ao princípio in dubio pro reo o seguinte:

“Quanto ao princípio in dubio pro reo é o correlato processual do princípio da presunção da inocência do arguido, pois gozando o arguido de tal presunção (artigo 32, n.º 2 da Constituição da República), toda e qualquer dúvida razoável com que o tribunal fique reverterá a favor daquele. O princípio in dubio pro reo aplica-se sem qualquer limitação, e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também as causas de exclusão da ilicitude (v. g. a legitima defesa), de exclusão da culpa. Em todos estes casos, a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, pp. 211-9.”

Não adquirindo o tribunal a "certeza" (a convicção positiva ou negativa da verdade prática) sobre os factos (...), a decisão tem de ser, por virtude do princípio in dúbio pro reo, a da absolvição (p. 55). Neste sentido não é o princípio in dubio pro reo uma regra de ónus-da-prova, mas justamente o correlato processual da exclusão desse ónus. (...)” Castanheira Neves, Processo Criminal, 1968, pp. 55-60.” (sublinhado e negrito nosso).

48. Assim, mal andou o Tribunal a quo ao dar como provados os factos constantes do ponto 2. das presentes Conclusões.

49. O Tribunal a quo ao dar como provados os supra identificados factos, com base na motivação que invocou, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do CPP, o artigo 163.º, n.º 2 do CPP., bem como, o disposto nos artigos 15.º, alínea a), 148.º, n.os 1 e 3, por referência ao disposto no artigo 144.º, alíneas. c) e d) e d, todos do CP.

50. Por tudo o exposto, mal andou o Tribunal a quo ao considerar a existência de nexo de causalidade entre a administração do fármaco misoprostol e a ruptura uterina sofrida. E mal andou o Tribunal a quo ao considerar como provados os factos supra referenciados na Sentença proferida, devendo os mencionados factos ser dados como não provados.

51. Nestes termos, com os presentes fundamentos e face à inexistência de nexo de causalidade, deve a Sentença aqui em crise ser substituída por outra que absolva a aqui Recorrente da prática de dois crimes de ofensa à integridade física grave por negligência p(s). p(s). pelas disposições conjugadas dos artigos. 15.º, alínea a), 26.º e 148.º, n.os 1 e 3, por referência ao disposto no artigo 144.º, alíneas. c) e d) (relativamente à assistente DD) e d) (relativamente ao assistente BB), todos do CP.”

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3. O recurso, em 22/4/2022, foi admitido.

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            4. Os assistentes, em 26/5/2022, responderam ao recurso, defendendo, desde logo, que deve ser rejeitado, por manifestamente improcedente e, se assim não for entendido, que deve ser julgado como não provido, tendo, em resumo, contra-alegado o seguinte: 

            1) A recorrente pretende apenas que seja feita uma diferente valoração da prova produzida, de acordo com e entendimento que a própria dela faz.

            2) Os três Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia em que o Tribunal a quo fundamenta a sua convicção quanto às questões científicas estabelecem com rigor o nexo de causalidade em causa nos autos.

            3) Uma prova pericial que atesta o nexo de causalidade sempre se bastará com um juízo de probabilidade relativamente à verificação de um determinado facto e/ou evento ser causa de uma consequência.

            4) Não existe qualquer erro do Tribunal a quo no que diz respeito à apreciação da prova, designadamente ao nível da ponderação dos diferentes Pareceres juntos aos autos.

                                                                       ****

5. O Ministério Público, em 31/5/2022, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, contra-alegando, em resumo, o seguinte: 

1) A prova pericial encontra-se bem valorada pelo tribunal a quo.

2) Não existe qualquer dúvida quanto ao nexo de causalidade.

3) A recorrente limita-se a colocar em causa o processo de convição que levou à valoração da prova feita pelo tribunal a quo.

4) Não há na sentença qualquer vício relacionado com a apreciação da prova.

                                                                       ****

6. Nesta Relação, o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, em 15/7/2022, emitiu douto Parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

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            7. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, tendo sido exercido pela arguida, em 12/9/2022, o direito de resposta.

            Na sequência, os assistentes, em 26/972022, vieram trazer aos autos uma exposição quanto à resposta apresentada pelos assistentes, a qual, por despacho de 29/9/2022, não foi admitida, pelo que foi, em 30/9/2022, desentranhada dos autos, conforme fls. 729.

                                                                       ****                                                              

8. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II. Decisão Recorrida:

            “I. RELATÓRIO:

Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação, em processo comum e com intervenção do Tribunal Singular, contra:

AA, filha de EE e de FF, natural de ... – ..., nascida em .../.../1977, casada, M... em funções no Centro Hospitalar ..., NIC ...39-9ZY6, residente na Urbanização ..., ... ...;

imputando-lhe factos que, em abstracto, são susceptíveis de integrar a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de dois crimes de ofensa à integridade física grave por negligência, previstos e punidos (doravante p(s). e p(s).) pelas disposições conjugadas dos arts. 15.º, 26.º e 148.º, n.ºs 1 e 3, por referência ao disposto no artigo 144.º, als. b), c) e d) (relativamente à ofendida/assistente DD) e d) (relativamente ao ofendido/assistente BB), todos do Código Penal (doravante, designado CP).

*

Os assistentes deduziram pedido de indemnização civil que, por despacho de 24.06.2021, foi remetido para os Tribunais civis.

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A arguida apresentou contestação, nos termos que constam de fls. 436 e ss., concluindo, em suma, que “não violou a legis artis no caso concreto e entende que da sua conduta e das suas decisões não resultou, nem directa nem indirectamente, a ruptura uterina verificada, pelo que deve ser absolvida da presente acusação.”

Arrolou testemunhas e juntou documentos.

*

Procedeu-se à audiência de julgamento, com observância do formalismo legal, como das respectivas actas conta.

                                                                       *

Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância que presidiram à prolação do despacho que designou dia para julgamento, nada obstando à apreciação do mérito da causa.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: 2.1. FACTOS PROVADOS:

Da matéria relevante para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1) A arguida, titular da Cédula Profissional n.º ...75 emitida pela Ordem dos Médicos, é

Médica Especialista em Ginecologia e Obstectrícia e exerce funções, nomeadamente, no Centro Hospitalar ... (doravante designado CH...).

2) A arguida, no exercício das suas funções, naquele Centro Hospitalar, de Médica Especialista em Ginecologia e Obstectrícia, acompanhou a segunda gravidez da ofendida/assistente DD.

3) Aquando da primeira consulta, no CH..., ocorrida em 06-12-2017, a arguida tomou efectivo conhecimento que a ofendida tinha sido sujeita, anteriormente, a cesariana, em ..., por “incompatibilidade feto pélvica e sofrimento fetal agudo”.

4) A arguida acompanhou a gestação e observou a ofendida, pelo menos, nos dias 16-01-2018, 07-02-2018, 20-02-2018, 08-03-2018, 10-03-2018, 20-03-2018, 18-04-2018, 08-05-2018, 22-05-2018, 29-05-2018, 05-06-2018 e 12-06-2018.

5) Na consulta ocorrida em 12-06-2018, a Médica arguida delineou a indução do parto para quinta-feira seguinte, ou seja, 14-06-2018.

6) No dia 14-06-2018, entre as 09h10m e as 10h05m, a Médica arguida observou a ofendida, conforme programado, e prescreveu e determinou a administração, por via vaginal, de 50 microgramas de “misoprostol”, fármaco utilizado para a indução do parto.

7) A ofendida ficou em observação e apresentava, às 12h00m, CTG (cardiotocografia: que mede a frequência cardíaca do feto) não tranquilizadora, e, às 14h53m, períodos de desacelerações pós contracções, observados pela Médica arguida, acompanhados de recuperação.

8) Como consequência directa e necessária da administração daquele fármaco, a ofendida sofreu, nesse mesmo dia, cerca das 18h30m, rotura uterina, pelo que teve que ser submetida a cesariana de urgência, com início às 18h49m e fim às 19h29m.

9) A rotura uterina que a ofendida sofreu em resultado da administração daquele fármaco provocou-lhe dores abdominais excruciantes, tendo o feto entrado na cavidade abdominal da mãe.

10) Ainda como consequência directa e necessária da administração daquele fármaco e da rotura uterina sofrida pela ofendida, o assistente BB nasceu em morte aparente, branco, hipotónico, sem reflexos, sem respiração e sem batimentos, sofreu asfixia aguda, com necessidade de intubação (índice APGAR 1).

11) A arguida, Médica especialista, não podia ignorar que a administração de “misoprostol”, para indução do parto, em grávidas com cesariana anterior, como era o caso, é contraindicada, por representar um significativo aumento do risco de rotura uterina.

12) A arguida, Médica Obstectra, não podia ignorar que a administração de “misoprostol”, para indução do parto, aumenta o risco de taquissistolia e desacelerações da frequência cardíaca fetal.

13) A Médica arguida conhecia a situação clínica e história pregressa da cirurgia realizada pela ofendida que impunha um procedimento diverso, designadamente, realizar uma cesariana programada ou aguardar o início espontâneo do trabalho de parto.

14) A Médica arguida tinha o dever de, conjugando os seus conhecimentos técnicos com os resultantes do acompanhamento da gravidez, obstar à administração daquele fármaco e, assim, evitar a verificação de um evento danoso para a vida e a saúde dos ofendidos.

15) Ao expor a ofendida à acção do “misoprostol”, actuou a arguida sem o cuidado, atenção, perícia e cautelas que, como Médica especialista, naquelas circunstâncias, lhe eram exigíveis e de que era capaz, já que podia e devia ter previsto, que, com a administração daquele fármaco e com a progressão dos seus efeitos e do trabalho de parto com indução, poderia ofender o corpo e a saúde dos ofendidos, resultado que efectivamente se verificou e que a mesma previu, não se conformando com ele, ou provocar-lhes a morte, perigo a que os expôs e que previu, mas com o qual não se conformou e que se conseguiu evitar.

16) A arguida sabia que a rotura uterina, a cujo risco submeteu a ofendida, é uma emergência obstétrica catastrófica, potencialmente fatal para a mãe e para o feto, e era meio apto a causar dores excruciantes, como também sequelas no útero que poderiam comprometer uma gestação posterior.

17) A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente e sabia que a sua conduta, que previu poder ofender os assistentes mas com isso não se conformou, era proibida e punível pela lei penal.

18) Nenhum dos assistentes tem, actualmente, qualquer sequela ou lesão relacionável com a rotura uterina mencionada no ponto 8 dos factos provados, além obviamente da cicatriz decorrente da cesariana de urgência efectuada.

19) No dia 26 de Outubro de 2017, a assistente DD deslocou-se ao consultório privado da arguida na Clínica ..., sita na Alameda ... ..., por motivo de gravidez.

20) Nessa primeira consulta, no consultório privado, ficou registado que se tratava de uma utente grávida, de 31 anos de idade, saudável e na segunda gravidez, sendo que o primeiro filho nascera em 2011, em ..., através de uma cesariana, indicada, segundo informações facultadas pela utente, por suspeita de sofrimento fetal e falta de dilatação fetal e “gravidez complicada com APP”.

21) Indicou igualmente a utente que já se tinha deslocado à urgência hospitalar por pequenas perdas de sangue.

22) Foi realizada uma ecografia ao embrião que evidenciou gravidez evolutiva de 7 semanas e embrião vivo de 12 mm com vitalidade.

23) A utente pediu para manter a vigilância com a médica arguida no Centro Hospitalar ... (CH...), tendo sido agendada consulta para o dia 6 de Dezembro de 2017.

24) Às 26 semanas de gravidez, a utente deslocou-se às urgências do CH... com queixa de contractilidade uterina e foi internada para iniciar Atosibano e maturação pulmonar, para inibição de trabalho de ameaça de parto pré-termo, recebendo alta no 5o dia de internamento. sendo orientada a repouso relativo, abstinência sexual e manutenção das medicações prescritas que foram suspensas às 36 semanas.

25) Durante vigilância ecográfica às 38 semanas, foi identificada uma dilatação pielocalicial unilateral renal fetal, no 3o trimestre, que foi vigiada regularmente até o final da gravidez.

26) No dia 12 de Junho de 2018, já com gravidez de 40 semanas e 2 dias, a utente foi avaliada pela médica arguida e informada de que, por princípio, às grávidas do Serviço de Obstetrícia do CH... era proposta a interrupção da gravidez por volta das 41 semanas.

27) Como a médica arguida estaria de urgência no dia 14 de Junho, dia em que a utente completaria 40 semanas e 4 dias de gravidez, propôs que a interrupção da gravidez fosse iniciada nesse dia, com indução do trabalho de parto.

28) Nesse mesmo dia 12 de Junho, a médica arguida realizou toque vaginal, verificou as condições fetais, registou que a grávida apresentava 31 cm de altura do fundo do útero com colo formado, posterior, com 0,5 cm de dilatação e estado fetal tranquilizador e considerou que havia condições que possibilitavam um parto vaginal com indução no dia 14 de Junho.

29) Em nenhum momento, desde que se conheceram, solicitou a utente a realização de cesariana eletiva.

30) No dia 14 de junho de 2018, a utente foi admitida no Centro Hospitalar ..., foi realizada monitorização fetal (RCT), que evidenciou feto com vitalidade normal, foi realizada avaliação obstétrica, pela médica arguida, que evidenciou feto em apresentação cefálica e toque vaginal com colo uterino formado, posterior e com 1 cm de dilatação.

31) A grávida apresentava um índice obstétrico de indução (índice de Bishop) desfavorável.

32) A utente já tinha realizado uma cesariana anterior, há cerca de 7 anos, por “incompatibilidade feto pélvica e sofrimento fetal agudo” como consta do ponto 3, a idade da grávida era inferior a 35 anos, o índice de massa corporal era normal e a altura da grávida superior a 160 cm.

33) Não tinha a médica arguida, no dia 14.06.2018, referência ao tipo de incisão realizada na cesariana prévia, não tendo conhecimento se era diferente da segmentar anterior que é habitualmente realizada.

34) Segundo a orientação 002/2015 (Indução de Trabalho de Parto) da DGS (Direção Geral de Saúde), a maturação cervical e indução do trabalho de parto está indicada nas situações que que beneficiam com a terminação da gravidez, sendo uma delas a gravidez que atinge as 41 semanas completas.

35) Ainda segundo a mesma orientação da DGS, as contraindicações absolutas para a maturação cervical e a indução do trabalho de parto são a existência de duas ou mais cesarianas anteriores, ou uma cesariana anterior com incisão não segmentar, a cirurgia prévia envolvendo o miométrio e todas as situações que contraindicam o parto vaginal e, segundo a mesma orientação, em grávidas com cesariana prévia, o uso de misoprostol deve ser evitado, por estar associado a um grande aumento do risco de rotura uterina.

36) Segundo a orientação 003/2015 (parto vaginal após cesariana) também de 19 de Maio, da DGS (Direção Geral de Saúde), “a administração de fármacos com acção ocitócica para preparação do colo ou estimulação da contractilidade aumenta ligeiramente o risco de rotura do útero. A utilização de misoprostol em mulheres com cesariana anterior está contraindicada, por estar associada a um aumento significativo do risco de rotura uterina.”

37) Segundo a orientação 002/2015 (Indução de Trabalho de Parto) da DGS (Direção Geral de Saúde), os métodos farmacológicos que podem ser utilizados para maturação cervical são dinoprostona em dispositivo vaginal de libertação lenta, dinoprostona em gel intravaginal ou em comprimidos intravaginais, misoprostol em comprimidos intravaginais ou métodos mecânicos (sonda de Foley dilatada com soro fisiológico).

38) O propess não deve ser utilizado em grávidas com cesariana anterior.

39) O misodel (substância activa misoprostol) não deve ser utilizado em grávidas com cesariana anterior.

40) O misoprostol está contraindicado em grávidas porque induz contracções uterinas e está associado a aborto, parto prematuro, morte fetal e malformações fetais.

41) O folheto informativo do Cytotec (misoprostol) menciona a possibilidade de ruptura uterina como um efeito indesejável raro, com incidência entre 1/1000 e 1/10.000, tendo sido comunicada ruptura uterina com pouca frequência após a toma de prostaglandinas durante o segundo e terceiro trimestre apesar de mais frequente em mulheres multíparas ou em mulheres com uma cicatriz de cesariana.

42) A utente foi internada para indução no dia 14.06.2018 e devido ao mencionado no ponto 7 encaminhou-se a parturiente, cerca do 12h00, para o bloco de partos para a realização de monitorização (rct) contínua, apresentando cerca de 3 contrações a cada 10 minutos.

43) Não foi realizada repetição de misoprostol, infusão de ocitocina ou ruptura de membranas.

44) Por volta das 18:00h, a médica arguida realizou toque vaginal e percebeu que a utente mantinha as mesmas características de dilatação desde a entrada no internamento (1 cm de dilatação) e explicou à utente que a melhor opção era realizar uma cesariana urgente e avisou o bloco operatório, telefonando aos elementos da equipa: a colega de urgência, a médica pediatra e médica anestesista.

45) Como acabara de ocorrer um procedimento cirúrgico urgente, a médica anestesista perguntou se seria possível aguardar alguns minutos para proceder à cesariana, a fim de preparar a sala no bloco operatório e a médica arguida concordou, informando, então, a utente de que ainda seria necessário aguardar mais algum tempo.

46) Cerca das 18:30 horas, a utente passou a queixar-se de dores intensas abdominais, pelo que foi avaliada pela médica arguida, estando a utente com essas dores intensas e o tónus uterino alterado foi, então, levada para o bloco operatório por suspeita de uma iminência de rotura uterina.

47) Ao chegar ao bloco operatório, às 18h49, foram imediatamente realizados procedimentos de monitorização, algaliação e anestesia geral em consideração a uma possível situação grave.

48) Antes de iniciar a cesariana, a médica arguida realizou a auscultação do feto, verificando que o mesmo estava com frequência cardíaca presente e normal.

49) Durante a cesariana, a médica arguida diagnosticou uma rotura uterina com saída primeiramente da placenta e após saída do feto que estava na cavidade abdominal da mãe, fora do útero, e foi extraído em apresentação pélvica, histerorrafia (encerramento) sem intercorrências.

50) O recém-nascido foi entregue imediatamente à pediatra.

51) Além da rotura uterina, não houve qualquer tipo de complicação adicional durante a cirurgia ou no pós operatório /puerpério, excepto por uma anemia que foi medicada com ferro oral.

52) Consta do “resumo das características do medicamento-cytotec”, no ponto 5.2. “propriedades farmacocinéticas”: “O Cytotec é rápido e extensamente metabolizado num ácido misoprostol, principal matabolito activo em circulação. Em voluntários saudáveis, a absorção de misoprostol é rápida. Os níveis plasmáticos máximos (Tmax) do principal metabolito activo (ácido misoprostol) são proporcionais à dose, sendo atingidos cerca de 12 + 3 minutos após toma única. A semivida de eliminação plástica (t1/2) do misoprostol é de 20 a 30 minutos. A média das concentrações máximas plásticas (Cmax) após toma única, mostra uma relação linear com a dose administrada para um intervalo de 200 e 400 microgramas. Observou-se em estudos clínicos que não existe acumulação do ácido misoprostol no sangue após tomas múltiplas e o estado de equilíbrio plasmático é atingido em dois dias.”

53) A médica arguida procedeu a uma cesariana de emergência com a maior brevidade possível, evitando o agravamento da situação e conseguindo evitar algumas das complicações que da rotura uterina poderiam ter ocorrido, como, por exemplo, a necessidade de histerectomia, hemotransfusões e eventuais lesões de órgãos adjacentes.

54) Também houve assistência suficientemente rápida para extrair o recém-nascido.

55) O assistente teve alta da neonatologia no seu 8º dia de vida para a consulta de risco neonatal por encefalopatia hipóxico isquémica com hipotonia cervical.

56) Actualmente, à presente data (3 anos e 8 meses após o ocorrido), o assistente aparenta ter um desenvolvimento normal.

57) Actualmente, à presente data, a assistente não tem sequelas decorrente da complicação sofrida (rotura uterina).

58) A arguida é Médica Especialista em Ginecologia Obstetrícia e, pelas funções que exerce no Centro Hospitalar ..., aufere, mensalmente, cerca de 2.415,75€ ilíquidos, auferindo, pelas funções que exerce no consultório privado, mensalmente, cerca de 2.000,00€ ilíquidos.

59) A arguida vive, em casa própria, com o marido e dois filhos menores de idade, de 8 e 11 anos.

60) O marido da arguida é Médico Especialista em ... e, pelas funções que exerce no Centro Hospitalar ..., aufere, mensalmente, cerca de 1.700,00€ líquidos, auferindo, pelas funções que exerce no consultório privado, mensalmente, cerca de 2.000,00€ ilíquidos, sendo que o marido da arguida também é professor universitário, não se tendo apurado quanto aufere a esse título.

61) A arguida e o seu marido despendem a título de empréstimo bancário que contraíram 730,00€ mensais.

62) A arguida é licenciada em medicina.

63) A arguida tem escoliose, despendendo cerca de 100,00€ mensais em fisioterapia. 64) A arguida não tem antecedentes criminais registados.

*

2.2. FACTOS NÃO PROVADOS:

Com relevância para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente que:

(…).

*

2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO E EXAME CRÍTICO DA PROVA PRODUZIDA:

*

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

3.1. DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DA CONDUTA DA ARGUIDA:

(…).

*

3.2. DA ESCOLHA E DA DETERMINAÇÃO DAS MEDIDAS DA PENA A APLICAR À ARGUIDA     :

(…).

*

3.3. DAS CUSTAS:

(…)

****

III. Apreciação do Recurso:

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente.

As questões a conhecer são as seguintes:

– Saber se:

1) há erro de julgamento quanto aos pontos 8, 9, 10, 14, 15, 16 e 17, dos factos dados como provados;

2) a recorrente deve ser absolvida da prática dos dois crimes de ofensa à integridade física por negligência.

****   

****        

            QUESTÃO PRÉVIA:

A sentença recorrida foi proferida em 23/2/2022.

A recorrente veio interpor recurso em 18/4/2022, tendo o mesmo sido admitido, face ao justo impedimento invocado.

Acontece que, em 9/5/2022, foi junto aos autos, a fls. 686/690, um documento relativo ao Processo Disciplinar do Conselho Disciplinar Regional do Centro da Ordem dos Médicos n.º .../...20, em que está em causa a conduta da arguida contida no objeto do processo.

Na sua resposta ao Parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, a recorrente, após referir que este “decidiu ignorar totalmente a existência desta Perícia, não fazendo qualquer referência á mesma no seu Parecer”, faz diversas alusões ao teor do respetivo documento, de modo a reforçar a sua anterior alegação.

Pois bem, é preciso ter bem presente que o objeto do recurso é a decisão proferida.

Assim, para apreciar se esta foi justa ou injusta não interessa senão comparar a decisão com os dados que o juiz decidente possuía à data em que a proferiu.

Deste modo, não é possível, na fase processual em que nos encontramos, levar em consideração novos elementos de prova que não tiverem sido considerados na decisão recorrida, quer através da junção de documentos no momento da interposição do recurso, quer por meio da junção aos autos, após esse momento processual, de outra prova da mesma natureza.

A junção do documento de fls. 686/690, em 9/5/2022, impossibilitou que o mesmo fosse sujeito ao princípio do contraditório, durante a audiência de julgamento.

A sua junção afasta-se da disciplina constante no artigo 165.º, n.º 1, do CPP, sendo líquido que o Tribunal ad quem não pode apreciar elementos de prova que o tribunal recorrido não tenha apreciado.

Na verdade, é de há muito pacífico, na doutrina e na jurisprudência que os recursos estão configurados no nosso sistema processual penal como remédios jurídicos, visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar novas decisões sobre matérias ou questões novas que não foram, nem podiam ter sido, suscitadas ou conhecidas pelo tribunal recorrido (cfr. Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal- Notas e Comentários, Coimbra, 2008, com abundantes referências doutrinais e jurisprudenciais, págs. 848-849) - "A missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pela tribunal de que se recorreu foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes; o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questão nova, salvo se isso for cometido oficiosamente pela lei" –. Acs. do ST J de 6-2-87 e de 3-10-89, BMJ n.º 364, pág 714 e n.º390, pág. 408; “Se a Relação atendesse ao conteúdo dos documentos agora juntos, não formularia um juízo sobre a justeza da decisão recorrida, considerando os elementos ao dispor do tribunal a quo, mas estaria a proferir decisão nova sobre a questão” (Ac. da Rel. do Porto de 9-12-2004, proc.º n.º 0415010, rel. Fernando Monterroso, in www.dgsi.pt.).

Assim sendo, não pode ser tomado em consideração, neste momento processual, o documento junto aos autos a fls. 686/690.

****

– Do erro de julgamento quanto aos pontos 8, 9, 10, 14, 15, 16 e 17, dos factos dados como provados:

O recorrente considera que os factos agora em causa devem ser considerados como não provados, por entender que o Tribunal a quo apreciou a prova de modo errado.

O erro de julgamento, consagrado no artigo 412.º, n.º 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.             

Uma vez que o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, do CPP:              

«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) - Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) - As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c)- As provas que devem ser renovadas».    

A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

De essencial, importa reter que o recorrente deve explicitar por que razão a prova apresentada “impõe” decisão diversa da recorrida.

É preciso ter bem presente que, perante o objeto da ação penal, tal como se mostra definido pela acusação ou pela pronúncia, havendo-a, se os meios de prova ou de obtenção de prova (thema probandum) produzidos em julgamento, consentirem duas ou mais decisões de facto (thema decidendum) e o julgador, fundamentadamente, optar por uma delas em detrimento da outra ou outras, a decisão que proferir sobre matéria de facto é, em princípio, inatacável, ainda que o recorrente haja feito do thema probandum uma leitura diversa da levada a cabo pelo julgador.

E, em sede de apreciação pelo Tribunal Superior, o recorrente não lhe poderá opor a sua convicção e reclamar que por ela opte ou a sufrague, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova e esquecendo que, como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo nº 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, “Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.

Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respetiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do favor rei.

****

Concretizemos, já de seguida, a impugnação de facto trazida aos autos.

A recorrente, referindo-se à fundamentação de facto que consta da sentença ora em crise, alega que “o douto Tribunal a quo formou a sua convicção para grande parte dos factos dados como provados apenas com base nos Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia”, afastando outra prova pericial existente nos autos.

Na perspetiva da recorrente, os Pareceres em que o Tribunal a quo formou a sua convicção deveriam ser afastados por falta de fundamentação e de invocação da respetiva razão de ciência, nomeadamente no que toca ao necessário nexo de causalidade adequada.

Em primeiro lugar, salienta que, relativamente ao primeiro Parecer da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia, consta o seguinte:

A incidência e o risco relativo de rotura interina são significativamente elevados quando se utiliza misoprostol para indução do trabalho de parto, sobretudo, em mulheres que tenham sido submetidas a cesariana em parto anterior, podendo, portanto, admitir-se um nexo de causalidade entre a aadministração de 50 microgramas de misoprostol e a rotura uterina

Do teor acabado de transcrever, a recorrente retira que o mesmo “deixa claramente espaço para outras hipóteses que possam ter dado causa à referida rotura que não a administração do medicamento em causa”, acrescentando que os Peritos não indicam a razão de ciência.

Em segundo lugar, ainda quanto ao mesmo Parecer, a recorrente refere que dele consta o seguinte:

“O uso de misoprostol, para indução do parto, em grávidas com cesariana anterior, deve ser evitado, dado estar associado a um significativo aumento de risco de rotura uterina. A potência dos efeitos do misoprostol sobre o músculo uterino e a sua longa semivida conferem riscos aumentados de provocar híper estimulação e hipertonia uterinas, com possíveis efeitos nefastos sobre a integridade do miométrio e sobre a oxigenação fetal, pelo que a sua utilização está contra-indicada em grávidas sujeitas anteriormente a intervenções cirúrgicas sobre o útero, nomeadamente cesariana…

Do teor acabado de transcrever, a recorrente conclui que o Parecer não refere que o uso do medicamento em causa tem de ser evitado, nem que a rotura uterina é consequência direta e necessária da utilização do misoprostol, nem que o uso deste foi o único procedimento que deu origem ou poderia ter dado origem à rotura uterina, acrescentando, de novo, que os Peritos não indicam a razão de ciência.

Em terceiro lugar, a recorrente afirma que este primeiro Parecer não se debruça sobre o caso concreto, na medida em que não se refere ao tempo que decorreu entre a administração do fármaco e a rotura interina (mais de 08 horas e 30 minutos).

Em quarto lugar, a recorrente salienta que, relativamente ao segundo Parecer da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia, este foi emitido para esclarecer dúvidas com vista à correta descrição e qualificação dos factos, sendo certo que dele consta o seguinte:

No estado atual da investigação, e com o contributo do parecer da consulta técnico-científica (processo n.º ...19), foi já estabelecido o nexo de causalidade entre a administração de 50 microgramas de misoprostol e a rotura uterina sofrida pela ofendida…

Com base no teor da transcrição acabada de ser feita, a recorrente defende que o Parecer estabelece o nexo de causalidade entre a administração do medicamento e a rotura uterina sem qualquer fundamentação, uma vez que, na sua perspetiva, se limita a remeter para o primeiro Parecer que contém fragilidades quanto ao mencionado nexo.

Em quinto lugar, ainda quanto a este segundo Parecer, a recorrente chama a atenção para a seguinte passagem:

Sim, é de admitir um nexo de causalidade entre a rotura uterina e as concretas condições neonatais do recém-nascido. Em grávidas com cesariana prévia ou cirurgia uterina major, o uso de misoprostol está contraindicado, por estar associado a um grande aumento de risco de rotura uterina e esta a uma mortalidade e morbilidade neonatal muito significativa”.

Do teor acabado de transcrever, a recorrente conclui que o nexo causal que se pode admitir não é entre a administração de 50 microgramas de misoprostol e a rotura uterina, mas sim entre esta e as concretas condições neonatais do recém-nascido e, ainda, que o fármaco apenas está contraindicado.

Em sexto lugar, a recorrente salienta que, relativamente ao terceiro Parecer da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia, dele consta o seguinte:

 - “A presença, por exemplo, de cesariana anterior corporal ou segmentar vertical ou incisão em T, e, para alguns autores, de cesariana segmentar transversal com uma única sutura da histerotomia, seria, também, uma contraindicação a uma prova de trabalho de parto, dado o risco acrescido de rotura uterina”;

- “Para aconselhar corretamente a grávida quanto à sua elegibilidade para uma prova de trabalho de parto, é indispensável identificar o tipo de incisão uterina que foi realizada na cesariana anterior e a técnica usada para a encerrar (sutura única versus dupla). Não encontramos no processo informação clínica a este respeito”.

A recorrente retira do exposto que é admitido neste Parecer outro factor que pode também ser uma contraindicação e causa de um risco acrescido de rotura uterina.

Em sétimo lugar, ainda quanto ao terceiro Parecer da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia, a recorrente refere que dele consta o seguinte:

“1. A indução do trabalho de parto foi realizada na presença de vários factores associados a uma baixa probabilidade de um parto vaginal bem-sucedido;

2. Antes da aplicação da prostaglandina não havia contractilidade uterina (apenas no CTG, está referido esboço de contração);

3. Após a aplicação da prostaglandina (misoprostol), contraindicada pelo seu elevado risco de rotura uterina (5,6% a 10,9%), a parturiente manteve dilatação do colo uterino estacionária desse as 10h00 até às 18h00, apesar da cardiotocografia, após as 11h00 (fls. 107 e 108) revelar a presença de contrações uterinas intensas e com uma frequência de 4 a 5 em 10 minutos (fls.139 a 142);

4. A parturiente apesar de ter contrações uterinas típicas da fase activa do trabalho de parto, manteve dilatação do colo uterino estacionária, o que não se podia considerar normal. Numa parturiente com parto induzido, sobretudo, com uma cicatriz uterina de cesariana anterior, se a estimulação condicionar 3-4 contracções uterinas em cada 10 minutos e não houver progressão da dilatação durante 4 horas, deve considerar-se a indicação de cesariana por trabalho de parto estacionário;

5. A cardiotocografia fetal (CTG) apresentava alterações que podem estar associadas ao início de deiscência de cicatriz uterina (segmentos com características suspeitas de um estado fetal não tranquilizador – desacelerações tardias acentuadas, 13h29-13h40, 14h26-14h46, por vezes, com perda de variabilidade da frequência cardíaca fetal inferior a 5 bpm, após as 17h00 – de referir que o CTG constante no processo não se encontra completo, faltando, nomeadamente, segmentos entre as 13h02-13h29; 13h51-14h20; 14h46-15h12; 15h39-16h05; 16h30-16h57; 17h21-17h49);

6. Em conclusão, pode admitir-se, conforme referimos no nosso parecer emitido em .../.../2019, um nexo de causalidade entre a administração de 50 microgramas de misoprostol e a rotura uterina, devendo afirmar-se com elevado grau de probabilidade, a existência dessa relação.”

Está alegado que o parecer não é claro, colocando a recorrente em causa as premissas em que o parecer se baseia e, ainda que, nunca se pretendeu saber se se pode “admitir um nexo de causalidade”, mas sim saber uma resposta concreta quanto à causa da rotura uterina ter sido a administração de misoprostol, pelas 10 horas da manhã.

Em oitavo lugar, ainda quanto ao terceiro Parecer da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia, a recorrente refere que dele consta o seguinte:

“(…) Ou seja, tratava-se de uma situação em que a indução do trabalho de parto foi efectuada em condições que a manterem.se, como aconteceu, recomendava a repetição da cesariana. Também existem na literatura científica relatos de situações em que algumas roturas uterinas ocorreram muitas horas após a administração de misoprostol (10 horas), sendo opinião dos autores que isso não significa que o misoprostol não contribuiu para a rotura. A absorção vaginal de misoprostol é bastante variável, observando-se frequentemente um atraso na resposta ao fármaco. Sabe-se que misoprostol, semelhantemente ao que acontece no colo do útero, tem um efeito local nas fibras de colagénio do segmento inferior uterino (dissociação das fibras de colagénio, desencadeamento de actividade proteolítica), o que fragiliza e enfraquece a cicatriz uterina em si mesma, vindo a rotura a acontecer mais tarde, inclusivamente, na presença de contratilidade normal. Aliás, a taquissistolia e a hiperestimulação uterinas, efeito colateral bem conhecido do misoprostol, nem sempre surgem nas grávidas com rotura uterina após a administração do misoprostol. Em conclusão, não se vislumbrando qualquer outro factor causal a que se possa, sem margem para qualquer dúvida, atribuir o porquê da rotura uterina, apenas se pode inferir que no caso concreto a rotura uterina se ficou a dever à utilização indevida e não recomendada do misoprostol. Na realidade, o misoprostol entrou em uso clínico para induzir o parto, mesmo em grávidas com integridade uterina, sem haver dados da sua segurança clínica, sobretudo, na grávida de termo.”

Relativamente ao que acaba de ser transcrito, a recorrente refere não entender “este nexo causal por exclusão de partes”, reforçando a ideia de que não transparece dos três mencionados Pareceres uma certeza quanto ao nexo de causalidade adequada.

Em nono lugar, a recorrente alude aos vários estudos científicos que juntou aos autos e que colocam em crise a convicção a que chegou o Tribunal a quo.

                                                           ****

A prova pericial existente nos presentes autos, face ao objeto do processo, assume especial relevo.

Daí que não seja de estranhar que os factos dados como provados, agora em causa, assentem, em larga medida, nos três Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia, datados de 20/11/2019, 17/3/2020 e 15/12/2021, todos assinados pelo Senhor Professor Doutor GG, tanto mais que o seu subscritor, quanto a eles, prestou esclarecimentos durante a audiência de julgamento.

A prova pericial reveste a natureza de prova vinculada ou tarifária, radicada na certeza e segurança das decisões, consagração da experiência comum, facilidade e celeridade das decisões.

E reveste-se de grande importância a distinção entre prova de livre apreciação e prova vinculada porque dela derivam importantes efeitos, importando a sua violação a infração de regras de direito.

Nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do CPP, o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.

Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência – n.º 2, da citada norma; acresce, então, um dever qualitativo de fundamentação quando cotejado com a livre apreciação da prova, consagrada no artigo 127.º, do CPP.

Em princípio, deriva da norma, o juiz deve acatar o juízo técnico, científico ou artístico; pode dele divergir, mas tem que fundamentar a divergência. Se o não fizer viola a norma citada do n.º 2, do artigo 163º, do CPP

O preceito é claramente inspirado na doutrina do Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1, 209, expendendo que os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz; mas já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é passível de uma crítica igualmente material ou científica.

Escreve aquele penalista que perante um certo juízo cientificamente provado, de acordo com as exigências legais, o tribunal guarda a sua inteira liberdade no que toca à apreciação da base de facto pressuposta; quanto, porém, ao juízo científico, a apreciação há de ser científica também, e estará, por conseguinte, subtraída em princípio à competência do tribunal.

Ora, é inegável, salvo o devido respeito pela posição da recorrente, que os três mencionados Pareceres convergem na mesma direção, ou seja, de que a administração de determinado fármaco esteve na origem da rotura uterina e suas consequências.

No que tange ao primeiro Parecer, a fls. 302/305, dele entendemos por bem salientar o seguinte:

“(…).

A incidência e o risco relativo de rotura uterina são significativamente elevados quando se utiliza misoprostol para indução do trabalho de parto, sobretudo, em mulheres que tenham sido submetidas a cesariana em parto anterior, podendo, portanto, admitir-se um nexo de causalidade entre a administração de 50 microgramas de misoprostol e a rotura interina

(…).

O uso de misoprostol, para indução do parto, em grávidas com cesariana anterior, deve ser evitado, dado estar associado a um significativo aumento de risco de rotura uterina. (…), pelo que a sua utilização está contra-indicada em grávidas sujeitas anteriormente a intervenções cirúrgicas sobre o útero, nomeadamente cesariana. Para uma grávida que tem uma cicatriz uterina de cesariana anterior, existem basicamente duas opções relativas ao parto seguinte, programar uma tentativa de parto por via vaginal ou decidir pela realização de nova cesariana. (…) De acordo com as recomendações das principais sociedades científicas profissionais, a tentativa de parto vaginal após cesariana anterior deve ser precedida de uma planificação e avaliação dos riscos (…) e, sobretudo no caso de indução do parto, atender às condições obstétricas de indução, evitar prostaglandinas, utilizar ocitocina (saber quando a suspender (…), realização de nova cesariana, que pode ter de ser realizada em condições de emergência. (…). Conforme já referido, dever-se-ia ter procedido de forma diversa. Tratava-se de uma situação clínica em que está contraindicada a prescrição de misoprostol.”

Quanto ao segundo Parecer, a fls. 366/369, dele entendemos por bem salientar o seguinte:

“(…) foi já estabelecido o nexo de causalidade entre a administração de 50 microgramas de misoprostol e a rotura interina sofrida pela ofendida DD. Importa, contudo, esclarecer:

(…)

A rotura uterina é uma emergência obstétrica potencialmente fatal para a mãe e para o feto, pelo que, tendo-se observado uma efetiva rotura uterina, esta colocou em perigo a vida da grávida. Após uma rotura uterina, num útero já anteriormente cicatricial (primeira cesariana) o risco de recorrência em nova gravidez é, segundo alguns autores, suficientemente elevado (33% em alguns estudos), estando geralmente associado a morbilidade materna e/ou fetal significativa, de tal forma que aconselham as mulheres que sofreram rotura uterina a não conceber novamente. Contudo, existem, também, alguns estudos com séries significativas de mulheres grávidas com roturas uterinas, em úteros cicatriciais, em que não se observou qualquer complicação na gestação subsequente. O que todos estes estudos recomendam é que a mulher deve ser devidamente aconselhada e informada e que o parto seguinte deve ser por cesariana eletiva bem programada. A rotura uterina é considerada uma complicação obstétrica catastrófica, geralmente imprevisível, (…).

Sim, é de admitir um nexo de causalidade entre a rotura uterina e as concretas condições neonatais do recém-nascido. Em grávidas com cesariana prévia ou cirurgia uterina major, o uso de misoprostol está contraindicado, por estar associado a um grande aumento do risco de rotura uterina e esta a uma mortalidade e morbilidade neonatal muito significativas.

(…).

Sim, o estado clínico neonatal configura uma situação de concreto perigo concreto para a vida do recém-nascido. É em resultado da rápida intervenção dos cuidados intensivos neonatais que a taxa de mortalidade neonatal não é, ainda, mais elevada, embora possam resultar sequelas graves nos recém-nascidos que sobrevivem.”

Relativamente ao terceiro Parecer, a fls. 565 verso/571, dele entendemos por bem salientar o seguinte:

“(…). Conforme referimos na resposta dada ao quesito 2 do nosso parecer emitido em .../.../2019, a grávida tinha duas opções- A primeira, caso desejasse ter um um parto por via vaginal, e fosse clinicamente elegível, era aceitar submeter-se a uma prova de trabalho de parto que, conforme a evolução das circunstâncias clínicas, poderia, ou não, terminar com o nascimento por via vaginal. A segunda alternativa era optar pela realização de uma cesariana programada, ou não programada, determinada pelo desencadeamento espontâneo do trabalho de parto ou outra indicação que, eventualmente, surgisse no decurso da gestação.

(…). Deve ser dada à grávida a possibilidade de optar pela realização de uma prova de trabalho de parto, visando um parto vaginal após a cesariana anterior, desde que excluídas eventuais contraindicações. (…). A par do referido na orientação da DGS 003/2015, de 19/01/2015, faz parte das legis artis, em geral, obter e registar no processo clínico o consentimento informado da grávida, informação que não encontramos no processo fornecido.

(…).

Em conclusão, perante qualquer das contraindicações referidas nos pontos anteriores, ou na ausência de informação segura relativamente às mesmas, atendendo ao princípio de precaução, a grávida teria de ser aconselhada a optar pela realização de uma cesariana programada. (…) A decisão de continuar a optar por parto vaginal ou pela realização de cesariana programada era, e teria de ser sempre, da grávida, depois de devidamente informada e esclarecida, (…).

Dado que, de facto, às 40 semanas e 4 dias, foi desencadeada a indução do trabalho de parto, a questão essencial que se coloca é a de saber se esse procedimento foi o adequado em face da situação clínica e abstrética da grávida.

1. Na falta de respostas seguras às questões levantadas na resposta ao quesito anterior (ausência de contraindicações ao parto vaginal), a decisão de indução não se pode considerar correta.

            (…).

            3. (…) Nestas circunstâncias, não se considera correto proceder à indução do parto. Desde que o estado fetal fosse tranquilizador e a grávida continuasse a optar por uma prova de trabalho de parto, o recomendado era continuar a aguardar o início espontâneo do trabalho de parto ou optar por uma cesariana, caso a grávida não aceitasse aguardar pela tentativa de parto vaginal ou existissem causas fetais que recomendassem o nascimento.

            (…).

            6. Mesmo numa situação em que fosse admissível proceder à indução do trabalho de parto (índice obstétrico de indução favorável) era obrigatório informar a grávida do motivo pelo qual não se aguardava o início espontâneo do trabalho de parto, que o risco de rotura uterina passaria a ser mais elevado 0,7% a 1,5%, no caso de se recorrer a uma perfusão com ocitocina; que, no seu caso (idade gestacional > 40 semanas e sem antecedentes parto vaginal), a probabilidade da indução ser bem-sucedida, com nascimento por via vaginal, passava para 40%; que a indução do parto em comparação com o parto espontâneo está associada a risco aumentado de cesariana de emergência (1,5 vezes) e a rotura da cicatriz uterina (duas a três vezes), situação que se agrava, ainda mais, nas situações de tentativa de parto vaginal mal sucedida, incluindo rotura catastrófica do útero, com risco de asfixia neonatal e de morte perinatal.

            (…).

            Devido ao risco aumentado de rotura interina, o uso de misoprostol no terceiro trimestre para amadurecimento cervical ou indução de trabalho está contraindicado em grávidas com útero cicatricial. Todas as orientações e recomendações emitidas pelas Sociedades Científicas de Obstetrícia e Ginecologia, elaboradas por comités de peritos após revisão exaustiva dos estudos com a melhor evidência científica, são unânimes em contraindicar o uso do misoprostol em grávidas com parto anterior por cesariana. (…), evitando a indução em mulheres com um tipo de incisão anterior desconhecido, um colo do útero desfavorável ou gravidez com mais de 40 semanas, utilizando exclusivamente ocitocina, mas apenas em situações com colo do útero favorável. Acresce que o titular da autorização de introdução no mercado (AIM) do CYtotec (misoprostol) não o licenciou para utilização na maturação cervical/indução do trabalho de parto, não tendo realizado qualquer ensaio clínico em grávidas com parto anterior por cesariana. Trata-se de um fármaco que, de acordo com o resumo das caraterísticas do medicamento, tem como única indicação terapêutica o tratamento da úlcera gástrica ou duodenal ativas, pelo que a sua utilização em grávidas de termo é considerada uma utilização fora das indicações terapêuticas, comumente designadas por off-label. De acordo com a norma da DGS 015/2013, atualizada em 04/11/2015, o uso off-label de medicamentos de dispensa hospitalar exige o consentimento informado, dado por escrito.

            (…).

            Em conclusão, pode admitir-se, conforme referimos no nosso parecer emitido em .../.../2019, um nexo de causalidade entre a administração de 50 microgramas de misoprostol e a rutura uterina, devendo afirmar-se, com elevado grau de probabilidade, a existência dessa relação.

            (…).

            No caso em concreto, observou-se uma rotura uterina na sequência da indução do parto com misoprostol, numa grávida com útero cicatricial. Como já referido, o titular da autorização de introdução no mercado (AIM) nunca realizou ensaios clínicos em grávidas de termo para avaliar o perfil farmacocinético do misoprostol administrado por via vaginal, por isso, nunca solicitou a sua aprovação para esta situação clínica. A partir do momento em que o misoprostol começou a ser utilizado, sobretudo para maturação cervical/indução do parto, houve vários alertas para os riscos de rotura interina nestas circunstâncias. O titular da AIM refere que o misoprostol está contraindicado em mulheres grávidas pelo risco de rotura uterina, o qual aumenta com o avanço da idade gestacional e com a cirurgia uterina prévia, incluindo cesariana. Existe evidência científica que mostra que a maioria das roturas uterinas ocorre durante a indução de parto no terceiro trimestre quando, à presença de cicatriz uterina anterior, estão associados outros fatores de risco de rotura uterina (más condições de indução, grávida sem qualquer parto vaginal anterior, idade gestacional superior a 40 semanas), como existiam no caso em apreço. Ou seja, tratava-se de uma situação em que a indução do trabalho de parto foi efetuada em condições que, a manterem-se, como aconteceu, recomendava a repetição da cesariana. Também existem na literatura científica relatos de situações em que algumas roturas uterinas ocorreram muitas horas após a administração de misoprostol (10 horas)., sendo opinião dos autores que isso não significa que o misoprostol não contribuiu para a rotura. (…). Em conclusão, não se vislumbrando qualquer outro fator causal a que se possa, sem margem para qualquer dúvida, atribuir o porquê da rotura interina, apenas se pode inferir que no caso concreto a rotura interina se ficou a dever à utilização indevida e não recomendada do misoprostol. Na realidade, o misoprostol entrou em uso clínico para induzir o parto, mesmo em grávidas com integridade uterina, sem haver dados da sua segurança clínica, sobretudo, na grávida de termo. (nosso negrito).

            (…).

            É do conhecimento geral dos médicos Obstetras que o titular da autorização da introdução no mercado do Cytotec, quando se começou a generalizar a sua utilização na gravidez de termo, escreveu, nomeadamente, a todos os Obstetras dos Estados Unidos, instando-os a nunca usar o misoprostol para a indução do parto. Essa instrução foi efetuada por pressão da Agência Americana do Medicamento (FDA), que nunca aprovou a introdução do misoprostol para a indução do trabalho de parto em úteros cicatriciais e recebeu uma série de relatos de sérias consequências observadas em induções com misoprostol. É certo que podem ser citados estudos que avaliaram a eficácia do fármaco, a questão é que esses estudos não avaliaram o misoprostol no contexto de maturação/indução do parto em grávidas de termo com cesariana anterior, mas em situações de aborto medicamentoso ou hemorragia pós-parto, apresentando variações metodológicas que impedem a realização de meta-análises válidas. Assim, independentemente da sua posição profissional, um médico especialista em Obstetrícia e Ginecologia, sabe que:

1. O misoprostol está contraindicado em grávidas com útero cicatricial e que existem relatos de casos de rotura uterina passadas várias horas após a sua administração;

            (…).

            6. O misoprostol entrou em uso clínico para induzir o parto sem estarem disponíveis dados sobre a sua segurança, o que tem levado, reiteradamente, todas as sociedades científicas a contraindicar a sua utilização na indução do trabalho de parto em grávidas com cicatriz de cesariana anterior pelo risco significativo de rotura interina.

            7. Em conclusão, não identificando qualquer outra causa a que, inequivocamente, possa atribuir a rotura uterina e as suas consequências, relacionáveis com o trabalho de parto induzido com fármaco contraindicado e em condições obstétricas não recomendadas, apenas poderá atribuir aquele desfecho à não observância das leges artis, existindo conformidade temporal e continuidade sintomatológica com essa não observância, nas circunstâncias concretas do “parto vaginal após cesariana anterior” em apreço.”

                                                                       ****

            Face às transcrições acabadas de fazer, sempre salvo o devido respeito pela posição defendida pela recorrente, dúvidas não podem existir quanto ao que esteve na origem da rotura uterina da assistente e de tudo o mais em causa nos autos.

            Os referidos pareceres são objetivos, convergentes e não apresentam discrepâncias, encontram-se assinados pelo Senhor Professor Doutor GG, são provenientes do Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P – Delegação do Centro, não tendo sido posta em causa, em momento algum, a respetiva autoridade e credibilidade científicas.

            Mais, no terceiro Parecer, é indicada bibliografia especializada para a qual remete o Senhor Professor Doutor GG, estando, assim, plasmada nos autos a respetiva razão de ciência.

E não se diga que os dois Relatórios de Perícia de Avaliação do Dano Corporal dos assistentes, subscritos pelo Senhor Doutor HH, de fls. 290 e seguintes, em conjugação com o esclarecimento de fls. 316, e de fls. 350 e seguintes, devem servir para colocar em crise os anteriores mencionados Pareceres.

            Os dois relatórios, elaborados em 6/6/2019 e 12/1/2021 não têm a virtualidade de colocar em causa o teor dos três Pareceres anteriormente citados, já que nem sequer se pronunciam quando às possíveis consequências da administração do misoprostol, incidindo as suas conclusões apenas no tempo de cura a que esteve sujeita a assistente após o parto e à relação deste com os eventos episódicos de doença do assistente.

Com efeito, quanto ao primeiro, respeitante à assistente, dele apenas se retira, em jeito de conclusão, a fls. 294, que a mesma “foi submetida a cesariana urgente por suspeita de rotura uterina, tendo sido desencadeados os procedimentos próprios de uma cesariana, bem como o tempo de cura correspondeu ao tempo normal para tal.

Refira-se, ainda, que, a fls. 316, consta o seguinte esclarecimento: “A rotura uterina pode configurar uma situação com complicação de hemorragia grave, porém, no caso em apreço pelos elementos disponíveis e pelos registos, foi o quadro rapidamente detetado e a assistência imediata, tendo-se mantido hemodinamicamente estável bem como o recém-nascido não apresentou complicações pelo que não se configuraram queixas de ter posto em perigo a vida”.

No que concerne ao segundo, referente ao assistente, dele apenas se retira, como conclusão, a fls. 353, que “os eventos episódicos de doença que tem vindo a apresentar não é de admitir relação com o parto”.

Convém ter presente que a prova pericial mais apropriada é aquela que se apresenta melhor fundamentada e veicula maiores razões de ciência e objetividade, o que passa, necessariamente, pela coerência, motivação e racionalidade das conclusões.

Ora, é inegável que os dois Relatórios de Perícia de Avaliação do Dano Corporal não apresentam uma fundamentação clara das suas conclusões, ao contrário do que acontece com os outros três Pareceres, sendo, assim, de aceitar que o Tribunal a quo os não tenha levado em consideração, pelas razões que constam da fundamentação de facto.

De notar, em particular, que o esclarecimento que consta de fls. 316 surge como algo alheio à realidade, quando em confronto com o depoimento da testemunha II (ver ponto 6 da fundamentação de facto da sentença ora em crise).

Aliás, existindo perícias médico-legais com resultados contraditórios, nada obsta a que o Tribunal adira aos fundamentos de uma delas, a partir do momento em que uma das perícias dê maiores garantias científicas. Foi isso que aconteceu nos presentes autos e, justificadamente, pois a prova resulta de três Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia.

Quanto aos “vários estudos científicos das mais reputadas instituições e autores internacionais que se debruçam sobre a fármaco-cinética do misoprostol, os efeitos colaterais e os efeitos no útero, tanto quando aplicado por via vaginal como por via oral” juntos pela recorrente aos autos, quando muito, permitem uma outra valoração da prova, mas não impõem a pretendida alteração da matéria de facto.

Todos sabemos quão difícil é ser obtida unanimidade entre a comunidade científica, aliás, como em tudo na vida, pelo que, concedendo que os mencionados estudos se afastam daquilo que consta dos Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia, isso não significa, sem mais, que constituam a posição mais correta sobre o assunto, desde logo porque são de conteúdo genérico, não se reportando ao caso concreto.

Acresce que a arguida, enquanto Médica Especialista em Ginecologia e Obstetrícia, não podia desconhecer que, a par desses estudos científicos, outros há que vão no sentido daquilo que podemos ler nos Pareceres da Consulta Técnico-Científica do Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia, nomeadamente que “é do conhecimento geral dos médicos Obstetras que o titular da autorização da introdução no mercado do Cytotec, quando se começou a generalizar a sua utilização na gravidez de termo, escreveu, nomeadamente, a todos os Obstetras dos Estados Unidos, instando-os a nunca usar o misoprostol para a indução do parto. Essa instrução foi efetuada por pressão da Agência Americana do Medicamento (FDA), que nunca aprovou a introdução do misoprostol para a indução do trabalho de parto em úteros cicatriciais e recebeu uma série de relatos de sérias consequências observadas em induções com misoprostol.”

Ora, esta posição de certa comunidade científica vai claramente no sentido de que um parto não deve ser induzido com misoprostol, pelos perigos que isso potencia.

Em síntese, a literatura médica a que se reporta a recorrente merece todo o respeito, mas não serve para infirmar aquilo que, no caso concreto, o Conselho Médico-Legal de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia trouxe aos autos, face ao que consta dos respetivos Pareceres, não dando origem a qualquer dúvida razoável.

Não estamos, no caso em apreço perante qualquer violação do princípio da presunção de inocência, estabelecido no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.

De acordo com Cavaleiro Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos.

O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto.

Como todos sabem, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213.

Todavia, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido.

Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997.        

O princípio geral do processo penal ora em análise é aplicável apenas nos casos em que, apesar de toda a prova recolhida, continuam os factos relevantes para a decisão a não poderem considerar-se como provados por continuar a subsistir dúvida razoável do Tribunal.

O princípio in dubio pro reo não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos.

É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.

Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.

No caso vertente, o Tribunal “a quo” não se quedou por um non liquet de facto, ou seja, não permaneceu na dúvida razoável sobre os factos relevantes à decisão, pelo que não há lugar a qualquer aplicação do princípio in dubio pro reo (a dúvida reside apenas na recorrente e não no Tribunal).

A dúvida razoável, aquela que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética.

Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (19966), p. 25.

Assim, para a revogação da sentença, importaria demonstrar, não só duas versões diferentes dos mesmos factos (o que acontece em quase todas as audiências de julgamento), mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido.

Ora, não foi trazida aos autos qualquer outra causa plausível que pudesse ter originado a rotura uterina e suas consequências, de modo a que pudesse existir qualquer dúvida razoável.

Por conseguinte, não se vislumbrando o alegado erro de julgamento, não há que proceder à pretendida alteração da matéria de facto.

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2) da prática dos dois crimes de ofensa à integridade física por negligência:

A recorrente defende que deve ser absolvida, face à inexistência de nexo de causalidade entre a administração do fármaco misoprostol e a rotura uterina sofrida pela assistente.

             Vejamos.

            Sendo um tipo de crime negligente que está em causa, sabido é que este tem como característica o facto de a conduta típica não aparecer definida na lei. São tipos abertos, cabendo à jurisprudência completá-los.

            A nossa lei estabelece o conceito legal de negligência no art.º 15 do Código Penal, aí se prevendo que:

            "Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

            a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou

            b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto".

            Distinguem-se, assim, na alínea a) a negligência consciente e na alínea b) a inconsciente.

            Na negligência consciente o agente representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actua sem se conformar com essa realização — o agente previu a possibilidade do resultado, por exemplo, um acidente, e apesar disso actua, ou deixa de tomar as medidas recomendadas na situação concreta.

            Na negligência inconsciente o agente não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto — o agente nem sequer pensou nas consequências, embora pudesse tê-lo feito e devesse tê-las previsto.

            Hoje é doutrina dominante que a negligência contém um tipo de ilícito e um tipo de culpa.

            Isto é, como violação de um dever de cuidado objectivo, faz parte do tipo de ilícito, como censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que o agente é capaz, é elemento de culpa. Tal é, aliás, consagrado na própria definição legal de negligência, plasmada no referido artigo 15° do Código Penal.

            Em concreto, a lesão da integridade física terá que ser objectivamente imputada a uma conduta (ou omissão) do agente. O que supõe a violação de um dever objectivo de cuidado.

            Por isso importa considerar se esse dever existe, qual a sua medida, e a relação causal que entre a sua violação e o resultado produzido.

            “Muito embora o legislador penal nada diga (…) acerca da medida do cuidado exigível do agente, pode afirmar-se que esta coincide com o necessário para evitar a ocorrência do resultado típico (…). A afirmação de um tal dever de cuidado far-se-á, caso a caso, em função das particulares circunstâncias da actuação do agente, constituindo auxiliares importantes nessa determinação as normas jurídicas que impõem aos seus destinatários específicos deveres e regras de conduta no âmbito de actividades perigosas (por exemplo, as normas de circulação rodoviária). Mas não só se torna evidente que não são apenas essas normas as fontes do dever jurídico de cuidado, como, por outro lado, a sua violação não constitui mais do que um indicio da efectiva lesão desse dever por parte do seu destinatário, assumindo neste contexto um peso fundamental a especifica configuração do caso concreto e a sua analise (grau de perigosidade do comportamento, importância dos bens jurídicos envolvidos, entre outros factores)” – Paula Ribeiro de Faia, inComentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, página 261.

            Assim, o dever objectivo de cuidado decorre, em grande parte, das circunstâncias particulares do caso, ou de normas que visam diminuir ou limitar os riscos próprios de certas actividades.

            Na lição de Figueiredo Dias (inTemas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, páginas 359 e seguintes), “o cuidado objectivamente devido possui, ele próprio, os seus específicos elementos típicos. Dito de outra maneira, porventura mais clara: do que se trata é de normas de cuidado que servem concreta e especificamente o tipo de ilícito respectivo, não da observância geral do cuidado com que toda pessoa deve comportar-se no seu relacionamento interpessoal e comunitário. Deste modo assume importância fundamental, na aferição do preenchimento por uma conduta do tipo de ilícito negligente, a determinação do cuidado objectivamente devido no caso concreto (“segundo as circunstâncias”, nas palavras do artigo 15.º, n.º 1).”

            Seguindo de perto a arrumação doutrinária deste eminente professor (ob. loc. cit.) o dever específico (e objectivo) de cuidado pode derivar de:

            a) Normas jurídicas de comportamento, pelo que “a violação de normas deste teor constituirá indício por excelência de uma contrariedade ao cuidado objectivamente devido, mas pode em caso algum fundamentá-la definitivamente (…) Na expressão de Roxin, “o que in abstracto é perigoso, pode deixar de ser no caso concreto”;

            b) Normas não jurídicas de tráfego correntes em certos domínios de actividade, “Trata-se aqui de normas escritas (não jurídicas) de comportamentos, fixadas ou aceites por certos círculos profissionais e análogos destinadas a conformar as actividades respectivas dentro de padrões de qualidade, nomeadamente, a evitar a concretização de perigos para bens jurídicos que de tais actividades pode resultar” – são exemplo destas normas de tráfego as chamadas leges artis nos mais variados ramos de actividade, desde a medicina à engenharia, à caça e a outros desportos;

            c) Modelo padrão, na ausência de normas escritas (jurídicas ou não), “torna-se indispensável o apelo aos costumes profissionais comuns ao profissional prudente, ao profissional padrão, e, ainda na sua falta, impõe-se o recurso directo ao cuidado objectivamente imposto pelo concreto comportamento socialmente adequado.” – esta última fonte de critérios definidores do dever objectivo de cuidado deverá, pois, ter em conta aquilo que é o comportamento correspondente “àquele que, em idêntica situação, teria um homem fiel aos valores protegidos”. O apelo ao modelo padrão deverá, todavia, ser enquadrado, como adiante se observará, com os conhecimentos e experiência especiais do agente.

            Salienta-se que o dever de cuidado é limitado pelo princípio da confiança: ninguém terá em princípio de responder por faltas de cuidado de outrem, antes se pode confiar em que as outras pessoas observarão os deveres que lhes incumbem.

            Note-se que, na actividade médica, por natureza potenciadora de diversos riscos, é imposto aos profissionais um dever jurídico especial, obrigando-os à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, assumindo nesse sentido a posição de garante de evitar a verificação de eventos danosos para a saúde e vida do doente (Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, “Responsabilidade Médica em Portugal”, in BMJ n.º 332, pág. 64),

            A previsibilidade objectiva do resultado ocorre quando, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer, o resultado produzido é consequência idónea (adequada) da conduta do agente. Assim, objectivamente previsível tem que ser, não só o próprio resultado, como igualmente o processo causal, ainda que apenas nos seus traços essenciais.

            Aqui entra-se na teoria da adequação que pressupõe uma condição do resultado que não se possa eliminar mentalmente, mas só a considera causal se for adequada para produzir o resultado segundo a experiência geral. Não está em causa unicamente a conexão naturalística entre acção e resultado, mas também uma valoração jurídica.

            Excluem-se, consequentemente, os processos causais atípicos que só produzem o resultado típico devido a um encadeamento extraordinário e improvável de circunstâncias. Deste modo, não haverá realização causal (adequada) se a produção do resultado depender de um curso causal anormal e atípico, ou seja, se depender de uma série completamente inusitada e improvável de circunstâncias com as quais, segundo a experiência da vida diária, não se poderia contar.

            Acresce que não basta para a imputação de um evento a alguém, para que o resultado tenha surgido em consequência da conduta descuidada do agente, sendo ainda necessário que tenha sido precisamente em virtude do carácter ilícito dessa conduta que o resultado se verificou.

            Com efeito, "as acções negligentes de resultado pressupõem uma estrutura limitadora da responsabilidade que se perfila de forma dúplice: de um lado, a violação de um dever objectivo de cuidado (...), valorado também pelo critério individual e geral, e de outro, a exigência de um especial nexo, no "sentido de uma conexão de condições entre a violação do dever e o resultado.” – Faria Costa, inO Perigo em Direito Penal”, Coimbra Editora, 1992, página 487.

            No fundo, faltará o nexo de ilicitude se o resultado se teria igualmente verificado observando o agente o cuidado devido.

            Dizendo doutro modo: o resultado só é objectivamente imputável ao agente se assentar na respectiva acção e no nexo de ilicitude. Falta este no caso em que o resultado se teria produzido também se o agente tivesse respeitado o cuidado a que estava obrigado.

            Consequentemente, nos crimes negligentes de resultado, como o homicídio (artigo 137º do Código Penal) ou a ofensa à integridade física (artigo 148º do Código Penal), a provocação do resultado e a violação do dever de cuidado, só por si, não preenchem o correspondente ilícito típico. Conclui-se, pois, que para além da causalidade da conduta, o resultado tem que ser "obra" do sujeito, tem que lhe ser objectivamente imputável. Com a realização do tipo de ilícito fica indiciada a ilicitude da conduta.

            Porém, a negligência supõe que o agente seja capaz de cumprir o dever de cuidado e de prever o resultado típico.

            Só age negligentemente quem estava em condições de satisfazer as exigências objectivas de cuidado — podendo então ser-lhe censurada a conduta violadora do dever de cuidado e o facto de ter agido não obstante a previsibilidade do resultado.

            Dizendo por outras palavras: para que exista culpa negligente é necessário que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que estava obrigado; deve, portanto, comprovar-se se o autor, de acordo com as suas qualidades e capacidade individual, estava em condições de satisfazer as correspondentes exigências objectivas.

            Para tanto, deve ter-se em atenção a sua inteligência, formação, experiência de vida; deve olhar-se também às especialidades da situação em que se actua.

            Ao tipo de culpa dos crimes negligentes pertence assim a previsibilidade individual (subjectiva).

            A previsibilidade do resultado típico e do processo causal nos seus elementos essenciais deverá verificar-se pois não só no plano objectivo, mas igualmente no plano subjectivo, de acordo com a capacidade individual do agente.

            Destarte, se o agente tiver capacidades e experiência acima da média, não será com recurso às capacidades do “homem médio” em geral que se fará apelo para apurar se aquele agente poderia ou deveria ter actuado de modo diferente, mas sim às capacidades do “homem da espécie e com as qualidades e capacidades do agente” (Figueiredo Dias, in Ob. Cit., página 377 e seguintes).

            O tipo de culpa negligente divide-se entre inconsciente (menos grave) e consciente (mais grave).

            Na negligência inconsciente o agente não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto, ficando excluída a previsibilidade individual, especialmente por falhas de inteligência ou de experiência.

            Na negligência consciente o agente representa sempre como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime.

            Deve atentar-se que as condutas realizadas ao abrigo de um determinado risco permitido não são negligentes (não chegam a preencher o tipo de ilícito negligente), isto se o agente não criou ou incrementou qualquer perigo juridicamente relevante, já que não existe sequer a violação de um dever de cuidado.

            Já perspectivando a problemática específica do caso concreto, haverá que atender, por último, às possíveis causas de justificação que eventualmente determinam, consoante os casos, o afastamento do tipo de ilícito, designadamente pelo consentimento expresso ou presumido da vítima.

            Sobre esta matéria discorre Paula Ribeiro de Faria (ob. cit. páginas 270 e 271): “Relativamente ao consentimento as opiniões dividem-se. Se bem que não pareça haver divergências quanto aos pressupostos gerais de que depende a eficácia desta causa de justificação, há quem entenda que basta para afastar a ilicitude da lesão da integridade física o assentimento do titular do respectivo bem jurídico na sua colocação em perigo (o aceitar uma boleia de um condutor embriagado, o participar num jogo de futebol que pode ter por consequência, aliás fortemente possível, uma série de nódoas negras; neste sentido, JESCHECK 479); e quem considere que isto é insuficiente, devendo por conseguinte o ofendido aceitar o próprio resultado (BURGSTALLER, WK 88 36). Acentuando no entanto a diferença entre as duas situações, COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal 340 ss.. Assim, enquanto no primeiro grupo de casos referidos estaríamos perante a chamada heterocolocação em perigo consentida, para designar aquelas situações em que “uma pessoa não empreende acções com as quais se coloca a si mesma em perigo, nem enfrenta um risco já existente, mas se expõe, com plena consciência do risco, a uma situação de perigo que é obra exclusiva de terceiro”, no segundo caso (ou seja quando o ofendido consente no próprio resultado lesivo) tratar-se-á já de uma heterolesão consentida, com a consequente recua da tutela penal em consonância com a vontade manifestada. Aqui, trata-se de um verdadeiro e próprio consentimento, de uma manifestação de autonomia do titular do bem jurídico, acolá, a não punição do agente funda-se não num critério de autonomia, mas de heteronomia, como diz o autor para designar a necessária responsabilidade de cada um pelos seus actos (e riscos por ele assumidos), o que significa que terá que suportar a perda de tutela jurídica (…)”.

            A este propósito convém notar que, para se verificar a denominada heterocolocação em perigo pela vítima, a lesão provocada terá de se encontrar abrangida pelo perigo existente e aceite e não por outro.

                                                                       ****

            Face ao exposto, nenhum reparo merece a sentença recorrida no que diz respeito à subsunção jurídica dos factos, tendo em consideração que a pretensão da recorrente ora em causa só teria razão de ser caso tivesse sido alterada a matéria de facto no sentido por si defendido, o que não aconteceu.

            Com efeito, como consta da fundamentação da sentença recorrida, existiu da parte da arguida uma violação do dever objetivo de cuidado que sobre a mesma recaía no sentido de ter evitado uma administração de um fármaco contraindicado numa indução de parto, nas circunstâncias descritas, em vez de ter optado por realizar uma cesariana programada/eletiva ou aguardar o início espontâneo do trabalho de parto.

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IV. Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

 Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

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(Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

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Coimbra, 25 de janeiro de 2023

José Eduardo Martins (relator)

Isabel Valongo (adjunta)

Paulo Guerra (adjunto)