PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
ACÇÃO DE DIVÓRCIO
CAUSA PREJUDICIAL
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CAPACIDADE JUDICIÁRIA
Sumário

I – O processo de acompanhamento de maior não constitui causa prejudicial relativamente à acção de divórcio instaurada pela ali requerida contra o ali requerente.
II – O maior acompanhado pode intentar por si próprio acção de divórcio.

Texto Integral

Processo nº 773/22.0T8PRD-A.P1
(Comarca do Porto Este – Juízo de Família e Menores de Paredes – Juiz 2)

Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Deolinda Varão
2ª Adjunta: Isoleta Costa

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I AA, casada, residente na Viela ..., ..., Felgueiras, intentou, no Juízo de Família e Menores de Paredes do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, acção de acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra o seu marido BB, residente em ..., ..., ..., França, alegando factos que, em sua opinião, são demonstrativos da ruptura definitiva do casamento, para além de existir separação de facto por mais de um ano, estando irremediavelmente comprometida a manutenção da vida em comum do casal.
Efectuada a legal tentativa de conciliação, em 27/04/2022, estando o R. representado por mandatária com poderes especiais, não produziu esta qualquer efeito, tendo sido ordenada a notificação do R. para contestar.
O R. contestou, em 23/05/2022, impugnando os factos alegados pela A., aduzindo que sempre que se desloca a Portugal está com ela, fazendo vida de casal, que a A. foi diagnosticada com perturbações psicóticas e transtornos mentais, só se justificando a presente acção pelos comportamentos doentios que esta tem assumido em face da sua doença, acreditando que a mesma não tem consciência do que efectivamente pretende, muito menos do presente processo, e manifestando não pretender divorciar-se.
Em resposta, a A. impugnou os factos alegados pelo R. na contestação e peticionou a condenação deste como litigante de má fé, por ter alterado conscientemente a verdade dos factos.
Foi elaborado despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Em 05/07/2022 foi designada data para audiência de julgamento, para o dia 27/09/2022.
Por requerimento de 20/09/2022, o R. veio informar que “nesta data” intentou acção especial urgente de acompanhamento de maior contra a A., peticionando o acompanhamento desta por motivos de ordem psiquiátrica reportados, comprovadamente, ao ano de 2020, e requereu a suspensão dos presentes autos até ao trânsito em julgado daquela acção, que considera ser causa prejudicial.
Juntou comprovativo da entrega da petição inicial em 19/09/2022, pelas 19h29m25s.
A A. pronunciou-se, por intermédio do requerimento de 22/09/2022, aduzindo que o requerimento do R. constitui uma manobra dilatória para adiar a audiência de discussão e julgamento, reiterando que este litiga de má fé e defendendo não haver motivo para a suspensão do processo.
Em 23/09/2022 foi proferido o seguinte despacho:
Requerimento de 20.09.2022:
O Réu (…) veio dizer que no dia 20.09.2022 instaurou contra a Autora (…) ação especial urgente de acompanhamento de maior (…).
Nesse seguimento preconiza que, nos termos do artigo 272.º, n.º 1 do CPC, se verifica que o que se discute na ação especial de acompanhamento de maior é uma causa prejudicial relativamente a estes autos de divórcio, porquanto vai apreciar-se uma questão cuja resolução pode modificar a situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão deste pleito.
(…)
Analise-se.
Os factos:
1) A presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge foi instaurada em 24.03.2022 pela Autora, AA, com base na factualidade constante da p.i., cujo teor ora se reproduz.
2) No dia 27 de abril de 2022 realizou-se a tentativa de conciliação, na qual compareceram a Autora, AA, as suas Exmas. Mandatárias e as Exmas. Mandatárias do Réu BB, em representação deste e com procuração com poderes especiais
3) Não se logrou a conciliação dos cônjuges tendo a Autora, AA, dito que se pretende divorciar do Réu.
4) Por sua vez, pelas Exmas. Mandatárias do Réu foi dito que o mesmo não se pretende divorciar da Autora.
5) Foi então o Réu notificado para contestar e na contestação apresentada em 23.05.2022, impugnou os factos, alegando, além do mais, cujo teor ora se reproduz, que a Autora foi diagnosticada com perturbações psicóticas intensas e transtornos mentais e por requerer cuidados, acompanhados de supervisão médica constante, foi internada no dia 15 de julho de 2020.
6) A audiência de julgamento encontra-se designada para o dia 27.09.2022, pelas 09h15.
7) No dia 20.09.2022, o Réu instaurou ação especial de acompanhamento de maior, no processo n.º 1195/22.8T8FLG, que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Local Cível de Felgueiras, J2, referindo que devia ser nomeado para exercer as funções de acompanhante, nos atos da vida social, financeira e familiar (cfr. petição inicial que juntou, cujo teor ora se reproduz, designadamente fundada em doença psiquiátrica existente desde 2020).
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O Direito.
Nos termos do disposto no artigo 272º do CPC, «1-O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado. 2 - Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens. 3 - Quando a suspensão não tenha por fundamento a pendência de causa prejudicial, fixa-se no despacho o prazo durante o qual estará suspensa a instância.(…)».
Como ensina Alberto dos Reis (in Comentário ao Código de Processo Civil, vol III, pág.206) uma causa é prejudicial a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda.
Com a suspensão o que se pretende é evitar a possibilidade de a mesma questão vir a ser objeto de decisões incoerentes.
A razão da suspensão reside na dependência de duas causas, sendo que numa se ataca um ato ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra ação, logo aquela é prejudicial em relação a esta.
No caso há que apurar se a ação especial de acompanhamento de maior, que corre termos sob o n.º 1195/22.8T8FLG, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Local Cível de Felgueiras, J2, instaurada no dia 20.09.2022, constitui causa prejudicial e fundamenta a pretendida suspensão da ação de divórcio sem consentimento de outro cônjuge.
Ponderada a factualidade supra, não se vislumbra, no caso, a existência de qualquer causa prejudicial fundada na instauração da referida ação.
Desde logo, a provar-se e a decretar-se a necessidade do acompanhamento de maior no que respeita à Autora tal teria como consequência apenas o estabelecimento da sua representação judiciária.
Ora, o disposto no artigo 17.º do Código de Processo Civil prevê a representação judiciária do incapaz, quer através de representante geral nomeado pelo tribunal competente, quer através de curador ad litem, em caso de urgência.
Também o artigo 1785.º, n.º 2, do Código Civil estabelece que «Quando o cônjuge que pode pedir o divórcio for maior acompanhado, a ação pode ser intentada por ele ou, quando tenha poderes de representação, pelo seu acompanhante, obtida autorização judicial; quando o acompanhante seja o outro cônjuge, a ação pode ser intentada em nome do titular do direito de agir por qualquer parente deste na linha reta ou até ao 3.º grau da l.»
Em face do exposto não se vislumbra em que medida a ação de maior acompanhado pode afetar ou impedir o julgamento da presente ação de divórcio sem consentimento de outro cônjuge, na medida em que, independentemente da decisão que vier a ser proferida nos autos de acompanhamento de maior, sempre a ação de divórcio deveria prosseguir os seus legais trâmites.
Reitera-se que inexiste causa prejudicial.
Neste sentido vide Acórdão RE de 12.04.2018.
Acresce que a existir causa prejudicial, o que não se vislumbra, sempre haveria que se ter em atenção o disposto no n.º 2 do artigo 272º do CPC que estabelece «Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.»
Face ao exposto decide-se:
- Indeferir o pedido de suspensão da instância formulado pelo Réu por não se verificarem os seus legais pressupostos.
(…)”.
Desta decisão veio o R. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«a) A causa prejudicial é aquela onde se discute uma questão que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução daquela questão que está a ser discutida na causa prejudicial irá contender ou destruir o fundamento ou a razão de ser de outra já proposta.
b) Encontra-se pendente ação de maior acompanhado, que irá contender com a presente ação, tanto mais que poderá estar em causa, inclusive, a capacidade da A. no momento da outorga de procuração nos presentes autos.
c) Caso [s]e decrete a necessidade do acompanhamento de maior no que respeita à Autora tal tem como consequência o estabelecimento da sua representação judiciária, pondo-se em causa desde logo a capacidade da aqui A. outorgar procurações.
d) Estando pendente a ação de maior acompanhado, não se sabe se a A. tem capacidade judiciária. Ou seja, a suscetibilidade da parte estar por si em juízo como sujeito passivo ou ativo, e a projeção que os efeitos se vão refletir na sua esfera jurídica, padecem de segurança e certeza jurídica.
e) Nestes autos falta um pressuposto processual que é sancionado com uma exceção dilatória relativa à incapacidade judiciária, verifica-se a irregularidade de representação ou a falta de autorização. Ora, o Tribunal não pode ordenar o prosseguimento dos autos sem que seja assegurado esse pressuposto, nos termos do artigo 6º, nº 2, 27º a 29º e 590º, nº 2 al. a) todos do CPC.
f) Nos direitos pessoais e negócios da vida corrente do beneficiário, dispõe o artigo 147.º do Código Civil que estes são livres, salvo disposição em contrário da lei ou decisão judicial em sentido contrário.
g) A autonomia individual, enquanto corolário do princípio da dignidade humana, origina uma série de direitos que não admitem representação legal, e onde se inclui necessariamente, a liberdade individual, pautada pela liberdade de expressão, de movimentos, de deslocação, de fixação de domicílio, de casar, de ter filhos, entre outras.
h) Para que possa a A. prosseguir com a ação de divórcio, nos moldes em que foi instaurada, necessitou, obrigatoriamente, de outorgar procuração a mandatário, o que, implica, desde logo, ter capacidade para tal ato, o que importa aferir e a dita ação de maior acompanhado servirá para o efeito.
i) Também se discute nos presentes autos, a capacidade da A. entender o alcance do próprio processo de divórcio (veja-se o douto despacho saneador), pelo que, não foi uma questão levantada pelo R. apenas nesta fase, muito menos para adiar o julgamento.
j) Caso venha a ser julgada procedente a ação de maior acompanhado, nenhum direito será retirado à A., bem pelo contrário, ser-lhe-á nomeado um acompanhante para o efeito, que não será o R. no caso de divórcio, prevendo, inclusive, a lei estes casos específicos.
k) Existe uma causa prejudicial pendente, onde se pretende apurar da capacidade (Judiciária) da aqui A. cuja decisão influencia os presentes autos conforme supra referido.
l) Mostram-se assim violados os supra referidos artigos (6º, nº 2, 27º a 29º, 272º e 590º, nº 2 al. a) CPC, e artigo 147.º do Código Civil), bem como um pressuposto processual relativo á sua capacidade judiciária.
m) Termos em que, revogando o despacho proferido, deve ser proferida decisão no sentido da suspensão da presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.
Termos em que, V/EXAS VENERANDOS DESEMBARGADORES, acolhendo as conclusões que antecedem, revogando o despacho proferido e proferindo decisão no sentido da suspensão da presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, farão a costumada JUSTIÇA!».
A A. apresentou contra-alegações, defendendo que o recurso deve ser indeferido, pois a personalidade e a capacidade judiciárias da A. já foram analisadas no despacho saneador e o R., que não invocou essa excepção na contestação, nada disse, nem recorreu do despacho, e que a decisão recorrida se deve manter, por não haver fundamento para a suspensão do processo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), e tendo ainda em conta, no caso, o disposto no art. 617º, nºs 2 e 3, e no art. 652º, nº 3, do C.P.C., são as seguintes as questões a tratar:
a) apreciar da admissibilidade do recurso;
b) apurar se há lugar à suspensão da instância por existência de causa prejudicial.
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Vejamos a primeira questão.
A recorrida defende que o recorrente não pode invocar a questão da capacidade judiciária da A. por tal questão, sendo uma excepção, não ter sido invocada na contestação e estar decidida no despacho saneador, do qual o R. não recorreu.
Porém, o R. não está a invocar a questão da capacidade no presente recurso, apenas a utiliza como argumento que esgrime para defender a existência de causa prejudicial e a ocorrência de motivo justificado para suspender a instância, sendo este o objecto do recurso.
Logo, não se coloca a objecção apresentada pela recorrida.
Sempre se dirá, de todo o modo, que o despacho saneador proferido foi o denominado “saneador tabelar”, que apenas afirmou tabelarmente a existência dos pressupostos processuais, mas não conheceu expressamente de qualquer deles, não formando caso julgado formal.
Nada obsta, portanto, à admissibilidade do recurso.
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Passemos à segunda questão, sendo a factualidade relevante a que consta do relatório antecedente.
O recorrente defende que a acção de acompanhamento de maior que instaurou contra a recorrida constitui causa prejudicial, com os seguintes argumentos (apresentados unicamente nas alegações de recurso):
- pode estar em causa a capacidade da A. no momento da outorga da procuração nos presentes autos;
- não se sabe se a A. tem capacidade judiciária;
- o tribunal não pode ordenar o prosseguimento dos autos sem que seja assegurado esse pressuposto processual;
- a acção de maior acompanhado servirá para aferir da capacidade da A., nomeadamente para outorgar procuração a mandatário;
- também se discute nos autos a capacidade de a A. entender o alcance do próprio processo de divórcio, questão já anteriormente levantada pelo R.;
- naquela acção pretende-se apurar da capacidade judiciária da A., decisão que influencia os presentes autos.
Resumem-se, pois, a duas as questões colocadas pelo recorrente como devendo ser decididas na acção de maior acompanhado com influência nos presentes autos:
- a capacidade judiciária da A. para instaurar a presente acção, outorgar procuração para o efeito e nela estar por si;
- a capacidade de a A. entender o alcance do próprio processo de divórcio.
Quanto a esta segunda questão, foi alegada pelo R. na contestação e foi levada aos temas da prova (pontos 42 e 43 dos temas da prova), por constituir matéria que pode infirmar os factos alegados na petição inicial, designadamente no que respeita à vontade da A. de se divorciar e à efectiva existência de ruptura da vida em comum.
Assim sendo, será necessariamente objecto de prova na audiência de julgamento e de apreciação na sentença final, não havendo qualquer necessidade de aguardar sobre o que se possa conhecer na acção de maior acompanhado, que não tem como escopo, sequer, o de apreciar se a A. é capaz especificamente de entender o alcance do presente processo, ou os motivos que a levaram a instaurar a acção.
Veja-se que o acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as excepções legais ou determinadas por sentença (art. 140º, nº 1, do C.C.), destinando-se a maiores impossibilitados por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres (art. 138º do C.C.).
Ou seja, o que está em causa é determinar de que forma se mostra necessário que a pessoa em causa seja acompanhada e qual a extensão que esse acompanhamento possa ter, sendo que o mesmo se limita ao necessário (art. 145º do C.C.) e é livre, nomeadamente, o exercício de direitos pessoais (art. 147º do C.C.), para além de que nem haverá lugar à medida sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam (art. 140º, nº 2, do C.C.).
Como se vê, o que irá ser decidido a título principal na acção de maior acompanhado em nada interfere com a decisão a proferir nos presentes autos sobre o mérito da pretensão da A., mesmo que tal se deva à prova dos referidos factos alegados pelo R..
Quanto à questão da capacidade judiciária, a sua existência ou não também não depende do que venha a ser decidido na acção de maior acompanhado.
Com efeito, sendo a capacidade judiciária um pressuposto processual (susceptibilidade de estar, por si, em juízo – art. 15º, nº 1, do C.P.C.), a mesma tem de ser apreciada e a sua eventual falta regularizada no próprio processo.
Aliás, sendo a sua falta uma excepção, a mesma deveria ter sido invocada pelo R. na contestação, sem prejuízo da possibilidade do seu conhecimento oficioso pelo juiz.
No caso, porém, à data da instauração da acção, e enquanto a mesma prossegue, não há qualquer incapacidade da A., que está na plena posse do exercício dos seus direitos, não havendo qualquer decisão transitada em julgado que os limite. E não há incapacidade judiciária retroactiva.
O que poderia suceder é que, não havendo qualquer sentença judicial definitiva a reconhecer uma eventual situação de incapacidade da A., se verificasse que esta estivesse de facto incapacitada para reger a sua pessoa, para compreender o alcance e significado dos seus actos. Tal situação está prevista na lei e tem uma regulamentação própria, a ter lugar nos próprios autos, nos termos do art. 17º do C.P.C..
Ora, a A. esteve presente na tentativa de conciliação no dia 27/04/2022 e nenhuma dúvida se levantou aos presentes, designadamente à Sra. Juiz que presidiu à diligência, sobre a sua capacidade (nada consta da acta respectiva em sentido contrário, nomeadamente nada foi requerido nesse sentido pela mandatária do R., com poderes especiais para o representar).
E no processo nenhuma questão foi levantada, designadamente pelo R., nesse sentido, mesmo perante os factos que alegou na contestação, até 7 dias antes da data designada para a audiência de julgamento, quando apresentou o requerimento de suspensão da instância.
Mesmo nesse requerimento, o R. não faz alusão a qualquer questão respeitante à capacidade da A., nem concretiza o motivo pelo qual deve haver lugar à suspensão no caso concreto, limitando-se a invocar argumentos genéricos e de direito [“verifica-se que o que se discute na ação especial de acompanhamento de maior é uma causa prejudicial relativamente a estes autos, porquanto vai apreciar-se uma questão cuja resolução pode modificar a situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão deste pleito. Assim, visto que a ação agora intentada é causa prejudicial e a decisão a proferir naqueles autos irá influenciar a decisão a proferir nestes, com vista à economia e à coerência dos julgamentos entre duas ações pendentes, considerando a especial conexão entre ambas (…)”].
Ademais, ao contrário do que alega o recorrente, na acção de maior acompanhado não se pretende apurar da capacidade judiciária da A., designadamente para efeitos da presente acção.
Como já se disse, o escopo da acção de maior acompanhado é o de assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres.
Além de que, tendo em conta que estamos perante uma acção de divórcio, o eventual decretamento do acompanhamento à A. nunca a impediria de instaurar esta acção, atento o que dispõe o art. 1785º, nº 2, do Código Civil: Quando o cônjuge que pode pedir o divórcio for maior acompanhado, a acção pode ser intentada por ele ou, quando tenha poderes de representação, pelo seu acompanhante, obtida autorização judicial.
Ou seja, quer o maior acompanhado por si só, quer o seu acompanhante que tenha poderes de representação e tenha obtido autorização judicial, podem instaurar acção de divórcio.
Aliás, sendo este um direito pessoal do indivíduo (está em causa a vertente da realização da pessoa e de livremente se poder desvincular de um casamento cujo vínculo está em ruptura, já que na vertente patrimonial os efeitos do divórcio resultam directamente da lei), o seu exercício nunca poderia ser restringido ao acompanhado, como até decorre expressamente do disposto no art. 147º do Código Civil, cuja enumeração do nº 2 é meramente exemplificativa.
Refira-se, a propósito, que na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), da qual são partes Portugal e a União Europeia, consta no seu art. 12º, nº 2, que os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiências têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida, prevendo-se no art. 19º, al. a) que deve ser assegurado que as pessoas com deficiência têm a oportunidade de escolher o seu local de residência e onde e com quem vivem em condições de igualdade com as demais e não são obrigadas a viver num determinado ambiente de vida, e no art. 23º, nº 1, que os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas e efectivas para eliminar a discriminação contra pessoas com deficiência em todas as questões relacionadas com o casamento, família, paternidade e relações pessoais, em condições de igualdade com as demais.
Portanto, é de concluir que a decisão que vier a ser proferida na acção de maior acompanhado não tem “virtualidade de uma efectiva e real influência” na presente acção, não podendo “concluir-se que a decisão desta depende incontornavelmente daquela”.
E que, sendo a “causa prejudicial” “aquela cuja decisão pode prejudicar a decisão de outra causa, do seu julgamento dependendo a decisão desta outra”, existindo “verdadeira prejudicialidade” “quando numa causa se discuta uma questão que é essencial para a decisão de outra” (cfr. Ac. da R.G. de 27/02/2020, publicada em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 8352/11.0TBBRG-A.G1), não se verifica que a acção de maior acompanhado instaurada pelo recorrente constitua causa prejudicial relativamente à acção de divórcio.
Sempre se dirá que ainda que assim não fosse, estavam no caso verificadas as duas excepções previstas no nº 2 do art. 272º do Código de Processo Civil para a não suspensão da instância nos presentes autos:
- a acção de divórcio encontrava-se já na fase de julgamento, a sete dias da data marcada para o início da audiência, quando foi requerida a suspensão, tendo a acção de maior acompanhado sido instaurada apenas na véspera do dia do requerimento, portanto tão adiantada aquela que os prejuízos da suspensão superariam as vantagens;
- alegando o recorrente que peticionou o acompanhamento “por motivos de ordem psiquiátrica reportados, comprovadamente, ao ano de 2020”, resultando da contestação, apresentada em 23/05/2022, que imputa a esse mesmo período temporal as alterações no comportamento da A. e tendo a audiência de julgamento sido marcada em 05/07/2022, resulta existirem fundadas razões para crer que a acção de maior acompanhado foi instaurada no dia 19/09/2022 apenas para se obter a suspensão da instância dos presentes autos, obviando à realização da audiência de julgamento, posto que o recorrente não quer divorciar-se da A. e manifesta não aceitar esta pretensão da mesma.
Assim, verifica-se que não existe fundamento para decretar a suspensão da instância por existência de causa prejudicial, não merecendo provimento o recurso.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelo recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente
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Porto, 12/01/2023
Isabel Ferreira
Deolinda Varão
Isoleta de Almeida Costa