JUSTO IMPEDIMENTO
MANDATÁRIO
FALTA À AUDIÊNCIA
DOENÇA
Sumário

I – Não obstante o “acerto” de datas entre o juiz e os mandatários judiciais, é o próprio art.º 151º a prevenir que a audiência possa não se verificar, por razões atendíveis, e justificadas, do juiz ou dos mandatários (cf. Nº 3 a 6), havendo sempre lugar à possibilidade de um justo impedimento, a ser ponderado, como resulta do art.º 603º nº 1 do CPC.
II - É de considerar verificado o justo impedimento (art.º 140º do CPC), na situação de uma mandatária judicial que falta à audiência de julgamento por, no dia anterior ter sido acometida de doença, que obrigou a internamento hospitalar de urgência, e cirurgia, tendo disso dado nota ao tribunal no dia do julgamento, à tarde.

Texto Integral

Apelação nº 2873/20.1T8MTS.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. X... Companhia de Seguros, SA, instaurou ação contra C..., SA, AA e Companhia de Seguros Y..., pedindo a sua condenação solidária a pagar-lhe € 17.963,35, acrescida de juros de mora.
Fundamentou o seu pedido, alegando ter celebrado um contrato de seguro de trabalho com a sociedade V..., Lda, ao abrigo do qual assumiu os custos decorrentes dum acidente de trabalho do trabalhador BB. O acidente foi causado pelo Réu AA, enquanto utilizava uma máquina da Ré C..., SA, a qual havia transferido a responsabilidade civil por essa máquina para a Companhia de Seguros Y..., SA. Pretende, pois, ser reembolsada do montante que pagou pelos responsáveis.
Em contestação, a Ré Companhia de Seguros Y... suscitou diversas exceções (o sinistro em causa não fazia parte do âmbito de cobertura da Apólice; ainda que assim não fosse, estava expressamente excluído no clausulado contratual; a Ré C... não comunicou atempadamente o sinistro), além de impugnar a matéria da petição.
Por sua vez, a Ré C... impugnou os factos e considerou que o acidente se ficou a dever ao comportamento de BB.
O Réu AA não contestou.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento.
No decurso da sessão realizada no dia 09 de junho de 2022, verificou-se estar em falta a mandatária da Autora, Dra. CC. Ficou consignado na respetiva Ata que “Por determinação do M.mo Juiz foi tentado, sem sucesso, o contacto telefónico com a ilustre mandatária da autora. Quando eram 10 horas e 00 minutos, o M.mo Juiz declarou iniciada a audiência, tendo, de imediato, proferido despacho, em que da falta da ilustre mandatária da autora, ao facto de nada ter dito relativamente a essa falta, se ter esperado mais de 45m pela sua presença, se ter tentado o contacto telefónico para o seu escritório sem sucesso, não ser conhecido contacto telemóvel (no processo, no site da OA, ou pelos outros mandatários presentes), e o julgamento ter sido agendado com cumprimento do art.º 151.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, se determinou o início do julgamento, nos termos do art.º 604.º, n.º 1, do CPC.”
Nesse mesmo dia 09 de junho de 2022, pelas 17:37 horas [1], a Dr.ª CC deu entrada de um requerimento invocando “(…) justo impedimento que a impediram de comparecer no julgamento agendado para hoje, dia 09.06.2022, por motivos de internamento urgente hospitalar com intervenção cirúrgica, cfr. documento que a diante se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, cujo atempado aviso ao Tribunal não se realizou pelos motivos supra expostos.
Em face do que antecede, nos termos do disposto no artigo 603º, n.º 1 do CPC mais requer a nulidade do julgamento - que teve conhecimento que se realizou - e de toda a produção de prova efetuada.”.
Juntou uma declaração médica, emitida pelo Centro Hospitalar ..., EPE, datada de 08 de junho de 2022, onde se atestava que a Dr.ª CC “se encontra internada nesta Instituição, desde o dia 08/06/2022, tendo entrado pelo Serviço de Urgência deste hospital no dia 07/06/2022, às 21:48.”
No dia 13 de julho de 2022, antes de proferir sentença, o M.mº Juiz julgou improcedente o incidente de justo impedimento invocado.

2. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1- A Audiência final com julgamento encontrava-se agendada para o dia 09.06.2022, às 9.15 h.
2- Nesse mesmo dia, a Mandatária da Apelante encontrava-se internada no Centro Hospitalar ..., onde foi submetida a intervenção cirúrgica de urgência. Internamento esse verificado no dia 08.06.2022.
3- Tendo a mandatária da Apelante dado entrada no serviço de Urgência daquele Hospital no dia 07.06.2022 pelas 21.48 h.
4- E intervencionada de urgência na manhã do dia 08.06.2022, para laparoscopia exploratória por dupla oclusão intestinal.
5- Conforme documento cuja admissão a título excecional, se requer, nos termos do artigo 651º, nº 1 e 425º do C.P.C., a V.s Exªs Venerandos Senhores Desembargadores.
6- Documento esse que apenas foi emitido em 12.06.2022 e disponibilizado à mandatária da Apelante depois de ter tido alta clínica, igualmente em 12.06.2022.
7- A mandatária da apelante apenas teve acesso ao documento após a sua alta clínica e já após a realização do julgamento e a apresentação do requerimento de justo impedimento e nulidade do julgamento.
8- Sendo certo que, a junção do documento, neste momento, tornou-se necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância, que indeferiu o justo impedimento.
9- Ao juntar a declaração do hospital com indicação de que a mandatária se encontrava internada, no decurso de um episódio de urgência dois dias antes, e de uma testemunha ter referido que, aquela havia sido submetida a uma intervenção cirúrgica de urgência, seria expectável que, em face do facto/evento notório da impossibilidade de presença no julgamento, a decisão fosse de deferimento do requerido.
10- A impossibilidade da junção anterior refere-se à superveniência do documento, por referência ao momento do julgamento em primeira instância.
11- Objetivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento, in casu o julgamento.
12- Na manhã dia 09.06.2022, a mandatária da Apelante encontrava-se ainda internada, em recobro pós-operatório e por isso mesmo sem qualquer acesso, como é bom de ver, a telemóveis, computadores ou outros aparelhos informáticos.
13- Pois que, nem no dia 07.06.2022, nem no dia 08.06.2022, nem no dia 09.06.2022 à hora do julgamento, foi possível à mandatária da Apelante comunicar o seu impedimento.
14- Pelo que, só no final do dia 09.06.2022, a mandatária da Apelante, durante a visita que recebeu da sua Colega de escritório a Srª Drª DD, lhe solicitou que esta, através das suas credenciais do Citius remetesse ao Douto Tribunal a quo o requerimento de justo impedimento.
15- Tendo para o efeito franqueado o acesso ao seu computador e certificado digital, para que pudesse remeter o requerimento que, até então, estava impossibilitada de remeter.
16- O que fez, no dia 09.06.2022 às 18.21 h.
17- Aqui chegados, impõe-se dizer que, assim que foi possível à mandatária da Apelante apresentar (ainda que por interposta pessoa), o requerimento de justo impedimento, assim o fez.
18- E o seu impedimento ainda não tinha cessado.
19- A testemunha EE, aquando da sua inquirição informou o Tribunal que a mandatária da Apelante havia sido submetida a intervenção cirúrgica de urgência.
20- Importa esclarecer que a dita testemunha nos autos, era igualmente testemunha noutro processo, que tinha julgamento agendado para o dia anterior ao dia em que a mandatária da Apelante, deu entrada no Serviço de Urgência (no Tribunal de Oliveira de Azeméis).
21- Assim, no dia 08.06.2022, por contacto telefónico com o telemóvel da mandatária da Apelante, (que com o mesmo não se encontrava – como supra referido), a dita testemunha recebeu a informação de que aquela estaria, nesse preciso momento, no bloco operatório a ser intervencionada.
22- A mandatária da Apelante, no leito do hospital em recobro pós-operatório, com sonda naso-gastrica em drenagem inserida e 3 frascos de soro, sem telemóvel, encontrava-se naturalmente impedida de “seja de que forma fosse” avisar o tribunal.
23- Contrariamente ao referido pelo Douto Tribunal a quo, a testemunha informou o Tribunal da situação em que se encontrava a mandatária da Apelante.
24- No próprio dia e no decurso do julgamento, o Douto Tribunal a quo foi informado pela testemunha do impedimento da mandatária da Apelante.
25- A mandatária da Apelante não “optou”, nem “decidiu” não informar o Tribunal do sucedido, simplesmente porque, internada em Hospital após cirurgia, não o podia fazer.
26- Não se trata de “opção” ou “decisão”, mas de concreta e real impossibilidade de o fazer.
27- Contrariamente, o Douto Tribunal a quo, perante a informação que lhe foi transmitida pela testemunha “optou” e “decidiu” pela continuação do julgamento.
28- Uma intervenção cirúrgica de urgência configura um evento não imputável à parte, nem à sua mandatária, uma vez que obsta à prática atempada do ato.
29- Mais do que uma evidência é um facto notório.
30- A intervenção cirúrgica e posterior internamento hospitalar, notoriamente impede quem a ela se submeteu, de, no sequente dia, se encontrar pronta para realizar um julgamento.
31- O douto Tribunal a quo ao ter conhecimento do evento – ainda que pela testemunha – deveria, como lhe competia, ter conhecido oficiosamente da verificação do impedimento, nos termos do artigo 140º, nº 3 do C.P.C.
32- Ocorre justo impedimento quando alguém que devia praticar o ato foi colocado na impossibilidade absoluta de o fazer, em virtude da ocorrência de um facto independente da sua vontade e que um cuidado e diligência normais não faziam prever.
33- O que releva para a verificação do justo impedimento, para além da demonstração da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática do ato, é a inexistência de culpa da mandatária (in casu).
34- In casu, a sua imprevisibilidade e não imputabilidade à mandatária é de tal forma gritante que, mesmo após uma noite inteira a realizar uma bateria de exames e elementos auxiliares de diagnóstico, foi necessário submeter a mandatária a intervenção cirúrgica para confirmar o diagnóstico e, em função do mesmo, tentar debelá-lo no decurso da intervenção cirúrgica.
35- O requerimento de justo impedimento que foi apresentado nesse mesmo dia e após a realização do mesmo, requer igualmente, nos termos do disposto no artigo 603º, nº 1 do C.P.C. a nulidade do julgamento e de toda a prova efetuada.
36- Foi invocada a nulidade processual da realização do julgamento, que efetiva e objetivamente ocorreu.
37- Tendo-se verificado, como se verificou situação de justo impedimento da mandatária, e ainda assim se realizou o julgamento, foi praticado um ato que a lei não permite.
38- Sendo que, a realização do julgamento constitui uma irregularidade que, naturalmente influi no exame e na decisão da causa, nos termos do artigo 195º, nº 1 do C.P.C.
39- E ao ter sido realizado um ato processual que a lei não permite, a sua realização põe em causa princípios estruturantes e fundamentais do processo, como o princípio da igualdade e do contraditório.
40- Ao realizar-se a audiência de julgamento sem a presença da mandatária da A./Apelante, por justo impedimento, constata-se a influência que a sua prática pode ter no exame e/ou na decisão da causa.
41- E constatada essa influência, os efeitos da invalidade do ato repercutem-se nos atos subsequentes na sequência processual que dele foram absolutamente dependentes, nos termos do disposto no artigo 195º, nº 2 do C.P.C.
42- Constituindo, por conseguinte, o ato processual da realização do julgamento uma efetiva nulidade.
43- Pelo que, tendo sido afetada a cadeia teleológica que liga todos os atos, devem ser anulados todos os atos subsequentes que dele dependem absolutamente.
44- Ao ter-se realizado julgamento com a verificação de justo impedimento da mandatária da Apelante, que, para além de ter sido requerido no próprio dia do julgamento, era do conhecimento do Douto Tribunal a quo, pelo menos desde o depoimento da testemunha EE, praticou-se um ato que a lei não permite.
45- E ao enfermar de nulidade a realização do julgamento, todos os atos processuais realizados subsequentemente se encontram afetados, devendo, de acordo com a lei, ser anulados em conformidade.
46- Devendo, consequentemente, julgar-se praticado um ato processual nulo, por parte do Douto Tribunal a quo, consistente na realização do julgamento com justo impedimento da mandatária.
47- Julgar-se nulo o julgamento realizado e consequentemente todos os atos praticados subsequentemente.
48- Devendo igualmente, ordenar-se a repetição do julgamento com produção de prova e respetiva discussão, desta feita com o cumprimento escrupuloso de todos os normativos legais.
E, assim decidindo, senhores juízes desembargadores, farão vossas excelências, uma vez mais, justiça.»

3. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as QUESTÕES A DECIDIR:
● Se é de admitir o documento junto com o recurso;
● Em caso afirmativo, quais as consequências;
● Se estão verificados os pressupostos do justo impedimento;
● Em caso afirmativo, quais as consequências.

4.1. Sobre o documento junto com o recurso
A Autora juntou com as suas alegações de recurso um documento que não havia antes sido junto ao processo.
Trata-se dum relatório emitido pelo Centro Hospitalar ..., EPE, denominado “Nota de Alta”, datado de 12 de junho de 2022, no qual se dá nota do histórico clínico da Dr.ª CC entre os dias 08 e 12 de junho.
Como decorrência do princípio do contraditório, o direito à prova constitui um dos mais basilares direitos das partes.
Porém, esse direito à prova terá de sofrer limitações, como decorrência da necessidade de acautelar também o contraditório da parte contrária, a igualdade de tratamento e o seu direito de defesa, o direito a apresentar e produzir todos os meios probatórios que se entenda.
Uma dessas limitações é a de que, em caso de recurso, só são admitidos os documentos “cuja apresentação não tenha sido possível” até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento (art.º 425º do CPC).
No mesmo sentido vai o art.º 651º nº 1 do CPC, acrescentando uma nova possibilidade de junção, “no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.
Daqui decorre que a parte que pretenda juntar documentos com as alegações de recurso terá de, concomitantemente, apresentar justificação do caráter superveniente [2] dessa junção.
No caso, é de considerar que a justificação apresentada pela Recorrente se insere no âmbito de ambas as hipóteses contempladas na lei.
Na verdade, o documento só foi emitido no dia 12 de junho, tendo o requerimento aqui em crise sido apresentado no Tribunal no dia 09 desse mês; por outro lado, a decisão de indeferimento do justo impedimento foi proferida em 13 de junho; ao suscitar o justo impedimento, a Recorrente havia junto declaração médica mais sucinta, quando ainda não havia diagnóstico firme da sua condição clínica.
Como o documento foi junto com as alegações de recurso, as Rés puderam exercer o contraditório nas contra-alegações.
Consequentemente, mostrando-se reunidos os condicionalismos legais, admite-se a junção do documento apresentado com as alegações de recurso.

4.2. Consequências da admissão do documento
Com relevância para a decisão, ficou fixada no ponto I.1 desta peça, a seguinte factualidade:
No decurso da sessão realizada no dia 09 de junho de 2022, verificou-se estar em falta a mandatária da Autora, Dra. CC. Ficou consignado na respetiva Ata que “Por determinação do M.mo Juiz foi tentado, sem sucesso, o contacto telefónico com a ilustre mandatária da autora. Quando eram 10 horas e 00 minutos, o M.mo Juiz declarou iniciada a audiência, tendo, de imediato, proferido despacho, em que da falta da ilustre mandatária da autora, ao facto de nada ter dito relativamente a essa falta, se ter esperado mais de 45m pela sua presença, se ter tentado o contacto telefónico para o seu escritório sem sucesso, não ser conhecido contacto telemóvel (no processo, no site da OA, ou pelos outros mandatários presentes), e o julgamento ter sido agendado com cumprimento do art.º 151.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, se determinou o início do julgamento, nos termos do art.º 604.º, n.º 1, do CPC.”
Nesse mesmo dia 09 de junho de 2022, pelas 17:37 horas [3], a Dr.ª CC deu entrada de um requerimento invocando “(…) justo impedimento que a impediram de comparecer no julgamento agendado para hoje, dia 09.06.2022, por motivos de internamento urgente hospitalar com intervenção cirúrgica, cfr. documento que a diante se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, cujo atempado aviso ao Tribunal não se realizou pelos motivos supra expostos.
Em face do que antecede, nos termos do disposto no artigo 603º, n.º 1 do CPC mais requer a nulidade do julgamento - que teve conhecimento que se realizou - e de toda a produção de prova efetuada.”.
Juntou uma declaração médica, emitida pelo Centro Hospitalar ..., EPE, datada de 08 de junho de 2022, onde se atestava que a Dr.ª CC “se encontra internada nesta Instituição, desde o dia 08/06/2022, tendo entrado pelo Serviço de Urgência deste hospital no dia 07/06/2022, às 21:48.”
No dia 13 de julho de 2022, antes de proferir sentença, o M.mº Juiz julgou improcedente o incidente de justo impedimento invocado.
Agora, com base no documento, há que aditar o seguinte:
A Dr.ª CC foi intervencionada de urgência na manhã do dia 08/06/2022, para laparoscopia exploratória por dupla oclusão intestinal.
Na manhã do dia 09.06.2022, a Dr.ª CC encontrava-se ainda internada, em recobro pós-operatório, tendo-lhe sido dada alta apenas no dia 12/06/2022.

4.3. Se estão verificados os pressupostos do justo impedimento
Nos termos do art.º 146º nº 1 do CPC, considera-se justo impedimento “o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato”.
Como é sabido, a atual formulação do preceito em apreço resultou da reforma do processo civil operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12.12, em cujo relatório se pode ler «Flexibiliza-se a definição conceitual de «justo impedimento», em termos de permitir a uma jurisprudência criativa uma elaboração, densificação e concretização, centradas essencialmente na ideia de culpa, que se afastem da excessiva rigidificação que muitas decisões, proferidas com base na definição constante da lei em vigor, inquestionavelmente revelam».
A tónica deixou, pois, de residir na imprevisibilidade do evento ─ «evento normalmente imprevisível» ─ para passar a centrar-se na culpa ─ «evento não imputável à parte».
De acordo com Lopes do Rego, «I – O nº 1 pretende operar alguma flexibilização no conceito de “justo impedimento” colocando no cerne da figura a inexistência de um nexo de imputação subjectiva à parte ou ao seu representante do facto que causa a ultrapassagem do prazo peremptório.
O que deverá relevar decisivamente para a verificação do “justo impedimento” ─ mais do que a cabal demonstração da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática atempada do acto ─ é a inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário no excedimento ou ultrapassagem do prazo peremptório, a qual deverá naturalmente ser valorada em consonância com o critério geral estabelecido no nº 2 do art.º 487º do C. Civil, e sem prejuízo do especial dever de diligência e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das causas.» [4]
Quanto à imprevisibilidade do evento, cremos que o caso em apreço não suscita quaisquer dúvidas. Tratou-se de uma situação de emergência, a exigir internamento hospitalar de urgência, o que, dizem as regras da experiência, escapa ao controlo das pessoas.
Quanto à imputabilidade, o Sr. Juiz considerou na sua decisão de indeferimento: «Mais, compulsado o documento apresentado pela autora, do mesmo não resulta que no dia 09-06-2022, durante a manhã, estivesse impedida de avisar o tribunal do seu impedimento, seja de que forma fosse, ou um dos outros ilustres mandatários para transmitir essa informação ao tribunal, ou mesmo pedindo à tal testemunha com a qual entrou em contacto, mesmo que por interposta pessoa, no dia 08-06-2022 e que informasse do seu impedimento.».
Salvo o devido respeito, cremos que se confundiu a imputabilidade com o aviso, o prazo necessário para se suscitar o incidente.
A culpa e a imputabilidade têm subjacente o livre-arbítrio, a capacidade e possibilidade de adotar uma conduta em conformidade com o direito, o “poder agir de outra maneira” perante determinada situação.
A culpa afere-se em abstrato, pela diligência exigível a um homem normal, em face do condicionalismo do caso concreto: art.º 487º nº 2 do Código Civil (CC).
A avaliação da culpa comporta dois momentos: o momento da antijuridicidade, em que se avalia o comportamento humano face a bens ou valores jurídicos (elemento objetivo), e o momento da culpa propriamente dita, mediante o qual se extrai o juízo de censura dum certo facto típico à pessoa que o praticou, ou o omitiu (elemento subjetivo).
Enquanto que o dolo se traduz no conhecimento e vontade da realização de um ato tido legalmente por ilícito, a negligência integra antes a violação de um dever de cuidado, expressando uma atitude descuidada perante o cumprimento de determinadas obrigações.
Por norma, a ocorrência de um problema de saúde não acontece por vontade das pessoas e muitas vezes escapa à sua capacidade de controlo. Donde, não se possa dizer que o internamento da mandatária constitua um evento que lhe é imputável a título de culpa.
Quanto à “inexistência de culpa da mandatária no excedimento ou ultrapassagem do prazo perentório”:
O nº 2 do art.º 140º do CPC não impõe um prazo específico, limitando-se a referir que o justo impedimento deve ser suscitado “logo que ele cessou”.
Neste âmbito, o Sr. Juiz considerou que da declaração médica não constava que na manhã do dia 09, a Sr.ª mandatária estivesse impedida de avisar o tribunal do seu impedimento. Pois não, a declaração médica nada diz sobre “impedimentos”; porém, já refere expressamente que a mesma “se encontra internada” desde o dia 08, tendo dado entrada na urgência durante a noite do dia 07.
Temos para nós que isso seria bastante. Adaptando a situação, no caso concreto estamos perante uma falta a julgamento, impondo-se que fosse ponderada com todas as cautelas pois ir-se-ia pôr em causa o direito à prova e a defesa efetiva da parte que a Sr.ª mandatária representava.
E, como resulta da audição da gravação do julgamento, o Sr. Juiz foi avisado por uma testemunha (desconhecendo-se onde ela obteve tal informação) e os demais mandatários aceitaram como boa tal informação e prestaram-se a adiar o julgamento.
Com o art.º 151º do CPC procurou-se obviar à “praga dos adiamentos das audiências”. Contudo, não se pode radicalizar nem passar ao exagero contrário, promovendo o princípio da celeridade a qualquer preço. Transformado em dogma, o princípio da celeridade processual tem o efeito perverso de neutralizar o princípio da cooperação.
Não obstante o “acerto” de datas entre o juiz e os mandatários judiciais, é o próprio art.º 151º a prevenir que a audiência possa não se verificar, por razões atendíveis, e justificadas, do juiz ou dos mandatários (cf. nº 3 a 6), havendo sempre lugar a um justo impedimento, a ser ponderado, como resulta do art.º 603º nº 1 do CPC.
No caso, apesar de o impedimento só cessado no dia 12 (data da alta hospitalar), a Sr.ª mandatária suscitou-o logo na tarde do dia 09, enviando a declaração médica.
Para quem foi objeto de uma cirurgia no dia 08, com os inerentes transtornos/incómodos e os efeitos duma anestesia, cremos ser de concluir que não houve falta de diligência da sua parte.
Consequentemente, consideramos verificados os pressupostos do justo impedimento.

4.4. Consequências
«No que concerne aos efeitos da procedência do justo impedimento, haverá que aplicar, por analogia, o disposto no nº 2 do art.º 195º no que respeita à sorte dos atos que, entretanto, foram praticados, bem como à estruturação do procedimento que tomou determinada forma em função da omissão.» [5]
A audiência de discussão e julgamento decorreu sem a presença da Sr.ª mandatária da Autora, significando isso que lhe foi coartada a possibilidade de produzir/acompanhar/controlar os seus meios de prova, bem como de se pronunciar sobre os meios de prova apresentados pela contraparte, com a inerente violação do princípio da audiência contraditória (art.º 415º do CPC).
Nesta conformidade, impõe-se a anulação da audiência de discussão e julgamento realizada no dia 09 de junho de 2022, com a consequente anulação da sentença proferida, por absolutamente dependente desse julgamento, em conformidade com o nº 2 do art.º 195º do CPC.

5. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
6. Pelo que fica exposto, no provimento do recurso, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em anular a audiência de discussão e julgamento realizada no dia 09 de junho de 2022, com a consequente anulação da sentença proferida.
Sem custas, face ao provimento e à ausência de contra-alegações.

Porto, 12 de janeiro de 2022
Isabel Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
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[1] Deram entrada dois requerimentos idênticos, um às 17:37 horas (assinado pela Dr.ª DD), e um outro às 18:21 horas (assinado pela Dr.ª CC).
[2] Superveniência essa que pode ser de ordem objetiva (se o documento só foi produzido depois da audiência de julgamento ou se só depois dela se tornou necessária a junção) ou subjetiva (como é o caso de só depois dessa altura se ter conhecimento da existência do documento ou de só então lhe ter sido possível obtê-lo).
[3] Deram entrada dois requerimentos idênticos, um às 17:37 horas (assinado pela Dr.ª DD), e um outro às 18:21 horas (assinado pela Dr.ª CC).
[4] in “Comentários ao Código de Processo Civil”, 2ª edição, Almedina, vol. I, pág. 154.
[5] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. F. Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 3ª edição, Almedina, pág. 185, nota 6.