LEVANTAMENTO DO SIGILO BANCÁRIO
Sumário

I - Nos termos do art. 429º, nº 1, do CPC, por remissão do art. 432º, a parte que requeira a junção de documentos em poder do Banco de Portugal deve identificar tanto quanto possível o documento e especificar os factos que com ele quer provar, por forma a que o juiz possa controlar a pretensa idoneidade do documento para a prova de factos de que o requerente tem o ónus da prova.
II - Não o fazendo e não tendo o juiz formulado oportuno convite para o fazer, é extemporânea a indicação dos factos a provar já em sede de incidente de levantamento do sigilo bancário invocado pelo Banco de Portugal para recusa da junção dos documentos.
II - Não é admissível a indicação genérica ou a matéria conclusiva, sem reporte a factos concretos que constem dos articulados ou dos temas de prova.
III - O levantamento do sigilo bancário tem natureza excepcional, só sendo admissível quando o interesse que se vise com o mesmo seja prevalente.

Texto Integral

Proc. N.º 586/22.9T8PNF.P1


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

AA, veio intentar contra a Banco 1..., CRL, a presente acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento.

Foi designada e realizada a audiência de partes, não se tendo logrado obter acordo destas.

A ré apresentou articulado motivador, nos termos previstos no artigo 98º-J, do CPT, pedindo que se declare o despedimento da autora regular e lícito.

A autora veio contestar e reconvir, pedindo que:

A. O despedimento por justa causa seja julgado ilícito;

B. A suspensão preventiva seja declarada abusiva;

C. Que o despedimento seja declarado abusivo;

D. seja julgada improcedente a oposição à reintegração da trabalhadora;

E. seja a R. condenada a reintegrar a A. no mesmo estabelecimento da empresa;

F. seja o presente pedido reconvencional julgado provado e procedente e, consequentemente:

i. Ser a R. condenada a pagar à A. as retribuições que se vencerem desde a data do despedimento até que nos presentes autos seja proferida decisão transitada em julgado, acrescidas de juros legais vencidos e vincendos desde a data do respectivo vencimento;

ii. Ser a R. condenada a pagar à A. as diferenças salariais no valor de 205.704,70€ (duzentos e cinco mil, setecentos e quatro euros e setenta cêntimos), acrescidas de juros vencidos e vincendos contados desde a data do respectivo vencimento de cada retribuição e até integral e efectivo pagamento;

iii. Ser a R. condenada a pagar à A. a diferença correspondente ao valor compensatório correspondente aos descontos com TSU, SAMS, quota de sindicato, quadros, calculados sobre os valores de retribuição não pagos, cuja liquidação se deve remeter para execução de sentença;

iv. Indemnização por danos morais relativos a procedimentos abusivos em valor não inferior a 50.000€;

v. Indemnização por danos morais devido ao assédio moral que foi alvo no valor de 50.000,00€.

vi. Prémio de desempenho referente ao ano de 2018, pagável em 2019; ao prémio de 2020, pagável em 2021, bem assim ao prémio de 2021, pagável em 2022, cada um, pelo menos no valor de 3.000€, ou seja, no valor total de 9.000,00€.

OU, caso a oposição à reintegração seja julgada procedente, ser a R. condenada a:

G. Pagar à A. os valores peticionados em F) e ainda o valor de 75.761,56€ a título de indemnização em virtude da ilicitude do despedimento.

Invoca as seguintes excepções: a) nulidade por ilegitimidade de quem exercer o poder disciplinar ou invalidade do procedimento disciplinar; b) nulidade do processo disciplinar; c) caducidade do direito de aplicar a sanção; d) Violação do direito de audição e defesa consignado no artigo 32º da CRP.

Impugnou os factos invocados pela empregadora, e, em sede de reconvenção, alegou que: A A. é economista de profissão e foi admitida ao serviço da R. em Maio de 2008, e desempenha com carácter de exclusividade desde Janeiro de 2009 as funções de analista de crédito; Em concreto, a A. elabora pareceres e análise de risco de crédito de elevada complexidade técnica, que fundamentam ou servem de suporte às decisões a proferir pelo conselho de administração, funções que exerce com completa autonomia técnica, reportando directamente ao Conselho de Administração; Desde 2009 até final de Fevereiro de 2020 a A. foi a única responsável pelo departamento da análise de risco de crédito, e, mais precisamente, a única trabalhadora afecta a tal serviço; A título de retribuição mensal, e à data da cessação do contrato de trabalho, a A. auferia a quantia de 1.254,27€, acrescido de 84,38€ a título de diuturnidades, de 139,20€ a título de abono de falhas, a quantia de 25,93€ a título de subsídio infantil, a quantia de 9,72€ a título de subsídio de alimentação, por cada dia de trabalho efectivamente prestado; Auferia ainda, como retribuição mensal a título de valor compensatório, a quantia igual ao do desconto para a TSU; do desconto para a Fundo de Pensões, do desconto para o SAMS, do desconto para o Sindicato, bem assim do desconto para o FSA quadros, num montante nunca inferior a 285,00€ por mês; Para além destas quantias certas, repetidas e reiteradas ao longo de cada um dos meses do ano, a A. auferia ainda um prémio de desempenho por altura do final do 1o trimestre de cada ano civil; Isto para além das demais vantagens/privilégios atribuídos pela entidade patronal a cada trabalhador, mormente a atribuição de taxa de juro de 0% relativamente a créditos habitação; a A. participou junto do conselho de administração da entidade patronal a ocorrência de factos, passíveis de enquadrar assédio moral, reclamou legitimamente das condições de trabalho e denunciou a violação de garantias dos trabalhadores, conforme email de 17 de Maio de 2021; Ao invés de apurar qualquer um dos factos denunciados pela trabalhadora, a R. apressou-se em iniciar procedimento disciplinar contra a denunciante; Por força da inacção da R., da contínua e exponenciada exposição da A. a contínuos conflitos exagerados a que esteve sujeita, para além daquilo que adiante se descreverá, a A. adoeceu; Sofreu e sofre a A. de patologia do foro das doenças mentais, que a obrigaram a sujeitar-se a tratamento médico da especialidade e a submeter-se à toma de químicos, vulgarmente designados por antidepressivos; A R. tem tentado por todas as formas possíveis e imaginárias impedir a A., associada da instituição com o nº 3224 de apresentar a sua candidatura, bem assim amordaçá-la, impedindo-a de reclamar das condições de trabalho; No ano de 2017 a R. admitiu ao seu serviço o Sr. BB, que apresentou aos funcionários como sendo Coordenador Geral; BB, passou a ordenar que assinasse os pareceres que elaborava, mas cuja autoria pretendia ficasse desconhecida e apenas atribuída à A.; Se inicialmente o fazia presencialmente e de viva voz, passou a enviar os pareceres por email, para que a A. os assinasse, deixando “post-it” com as ordens manuscritas junto aos processos físicos, e a aposição da ordem “assine”; Como também chegou a pedir à A., que elaborasse análises de crédito de financiamentos que já estavam lançados, ou seja, com valores depositados nas contas dos clients; a A. enviou email ao Sr BB dando-lhe conta que jamais voltaria a assinar análises de crédito ou pareceres seus (conforme documento junto com o processo disciplinar); Foi esta recusa por banda da A., que o Sr. BB, sempre com a anuência do Conselho de Administração, interpretou como sendo uma afronta, que despoletou uma actuação concertada, crescente, impiedosa e persecutória contra a A..

Termina com o seguinte requerimento de prova:

“POR DECLARAÇÕES DE PARTE Requer-se que sejam prestadas declarações de parte aos factos constantes dos artigos (…) do presente articulado.

POR DEPOIMENTO DE PARTE Requer-se que seja prestado depoimento de parte por CC, a recair sobre os factos constantes dos artigos (…) do presente articulado.

TESTEMUNHAL (…)

DOCUMENTAL: - Declaração médica – Doc.1 - Documento com post-it – Doc.2 - toda a constante do processo disciplinar.

Requer-se ainda que seja a notificar a R. para que junte aos autos o seu Organigrama Actual.”

A empregadora respondeu.

Realizou-se audiência prévia, com fixação da matéria de facto assente e os temas de prova, e, quanto aos meios de prova consignou-se: “- Nos autos os róis juntos com o articulado motivador, a contestação e resposta; - Notifique A e R para indicarem, por reporte à matéria selecionada para os temas da prova, aquela a que pretende que a contraparte preste depoimento de parte; - Defiro a prestação de declarações de parte da A.”

A autora veio a apresentar requerimento com indicação dos meios de prova, com o seguinte teor:

A) “Prova por depoimento de parte: (...)

B) Prova testemunhal (…)

C) Prova documental:

a. Missiva enviada pela R. entidade patronal, datada de 16 de Maio de 2022, dando conta que a trabalhadora devera proceder à liquidação integral do seu empréstimo até dia 15/07/2022 (que se junta como documento nº 1).

b. Documento, composto de análise de crédito, contendo parecer da autoria da trabalhadora, e datado de 15/03/2012 (que se junta como documento nº 2).

c. Troca de correspondência da trabalhadora com destino aos responsáveis de agência, contendo ordens, indicações, metodologia a adaptar para as operações de crédito, com conhecimento do Conselho de Administração (que se junta como documento nº 3),

d. Exemplares de pareceres da autoria da trabalhadora, que se juntam como documentos nºs 4 a 6, e que se dão por integralmente reproduzidos.

D) Prova documental em posse de terceiro

a. Relatório na posse da R., da avaliação do cumprimento das nonnas legais e regulamentares relativo à Banco 1..., CRL para os órgãos de administração e fiscalização da Banco 1..., para o CAE da Caixa Central e pura o Banco de Portugal - Departamento de Supervisão Prudencial, conforme estabelecido no nº 2 do artigo 37º do Decreto-Lei nº 24/91, de 11 de janeiro, levado a cabo pela PwC SROC, com referencia a 31 de Março de 2018, que se julga ser datado de Outubro de 2018, que importa para a prova das funções acometidas à A.

b. Relatório na posse da R., de avaliação do cumprimento das normas legais e regulamentares com referência a 30 de Junho de 2020, levado a cabo pela PwC SROC, que importa para aferir da existência do cargo de Coordenador Geral e suas concretas funções.”

A ré respondeu nos seguintes termos:

“A A. requereu a junção dos dois referidos documentos, sem verdadeiramente justificar, em nossa opinião, as razões pelas quais o solicita, por um lado e, por outro, sem os reportar à concreta matéria de facto já levada à acta de Audiência Prévia.

Não obstante, foi-nos dada a indicação de que a A. tem a obrigação de saber que tais Relatórios referem expressamente que “(...) “Este relatório é emitido unicamente para informação e uso da Caixa Central, da Banco 1... e do Banco de Portugal, no âmbito do artigo 37º do Regime Jurídico do Banco 1... e com o objetivo de avaliar o cumprimento das normas legais e regulamentares que disciplinam a atividade das caixas agrícolas e dos restantes aspetos mencionados no nº 1 do artigo 120º do RGICSF, pelo que não deverá ser utilizado para quaisquer outras finalidades, nem ser distribuído a outras entidades.

Dito de outro modo, tais relatórios contêm, naturalmente e para além do mais, matéria confidencial, nomeadamente informações concretas sobre factos ou elementos bancários de clientes e associados, cuja revelação não está na disponibilidade do Conselho de Administração da Caixa R. e muito menos do mandatário signatário, no estrito cumprimento do disposto no art. 78º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL nº 298/92, de 31/12, que se transcreve: 1 - Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. 2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.

Por seu turno, o artigo 79º indica as excepções ao dever sigilo, nas quais, salvo melhor opinião, não se inclui a situação em apreço.

Em face do exposto, requer a Va Exa, ponderando a invocação do dever sigilo à luz da legislação que rege a actividade bancária, se digne indeferir o requerido pela A., pelos motivos apontados.

Caso assim doutamente não for entendido, desde já se requer a intervenção do tribunal superior, para que aprecie se se justifica o pedido de quebra do sigilo, nos termos do disposto no nº 4 do art. 417º do CPC.”

Foi proferido o seguinte despacho: “Quanto ao incidente de levantamento de sigilo: concede-se à A o prazo de 2 dias para, querendo, se pronunciar – atenta a proximidade da data designada para audiência de julgamento.”

A autora apresentou requerimento concluindo:

“12. Ou seja, tendo a R. já trazido aos autos informações que estariam em abstrato protegidos pelo dever de sigilo, quando tal lhe convinha, não o fazendo quando essa informações/documentos são solicitados pela A. para prova da factualidade por si alegada.

13. Pelo exposto, deve a R. juntar aos autos os relatórios requeridos pela A., ou, caso se entenda que os mesmos estão protegidos pelo dever de sigilo, ser ordenado o seu levantamento, porque essenciais para a descoberta da verdade material e sopesando os valores e direitos em confronto sigilo bancário vs direito da trabalhadora, devem prevalecer este últimos.”

A 5 de Julho de 2022 realizou-se sessão de audiência de julgamento, constando da respectiva acta:

“Após, foi dada a palavra aos Ilustres Mandatários e pelos mesmos foi dito oporem-se a que a audiência de julgamento se inicie sem que os documentos em questão estejam juntos aos autos, pois pretendem confrontar as testemunhas com os mesmos.

De seguida, pela Mma. Juiz foi proferido o seguinte:

DESPACHO

Face à posição manifestada pelas partes, determino que se oficie ao Banco de Portugal solicitando que nos sejam remetidos os relatórios referidos no ponto "D" de folhas 482 verso, dando nota da natureza urgente dos presentes autos.

Considerando a posição assumida pelas partes e a necessidade de evitar a deslocação inútil dos intervenientes processuais a este Tribunal, dá-se sem efeito as datas já designadas para a audiência de julgamento.

Solicite os bons ofícios dos Ilustre Mandatários, no sentido de desconvocarem as testemunhas, em particular à R na desconvocação das testemunhas que sejam trabalhadores ou tenham domicílio na Banco 1..., CRL e da Caixa Central.”

Notificado o Banco de Portugal, juntou o mesmo ofício, com o seguinte teor:

“Em resposta ao “Pedido de informação que foi dirigido ao Banco de Portugal no âmbito do Processo supra identificado, vem o Banco de Portugal informar que os elementos solicitados, correspondentes a relatórios da avaliação do cumprimento das normas legais e regulamentares relativos a entidades supervisionadas, consubstanciam informação abrangida pelo dever de segredo que vincula este Banco tal como previsto no artigo 80º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.

Tal dever de segredo é apenas excecionável nos termos do nº 2 do referido artigo 80º, pressupondo, atendendo à natureza da informação em causa, a promoção do incidente jurisdicional de quebra previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal – aplicável ex vi do artigo 417º, nº 3, alínea c), e nº 4, do Código de Processo Civil – e a subsequente notificação de eventual decisão de quebra ou levantamento do segredo invocado.

Pelo Exposto, o Banco de Portugal, invocando o mencionado dever, deduz escusa legítima para todos os efeitos legais.

O Banco de Portugal solicita a V. Exa. a devida consideração por estes constrangimentos legais, estando em causa o estrito cumprimento das obrigações legais a que se encontra vinculado, podendo vir a remeter as informações que estiveram na sua posse se lhe vier a ser notificada decisão judicial de levanta,mento do dever de segredo invocado.”

A autora apresentou requerimento, no qual refere: “requer a V/Exa. que o mesmo seja remetido ao Tribunal da Relação do Porto, para que determine a quebra do segredo uma vez que se mostra justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nos termos do artigo 135º, nº 3 do CPP.”

Foi proferido o seguinte despacho: “Atenta a necessidade de fundamentação do competente incidente de quebra do sigilo bancário, notifique a trabalhadora para, em 10 dias, apresentar a devida motivação do incidente em causa, que identifique os factos controvertidos justificativos da requerida quebra, com vista à sua competente apreciação pelo Tribunal Superior.”

A autora veio apresentar o seguinte requerimento:

“(...)

9. Crê a A. que o aludido documento cuja junção se requer é essencial para a boa decisão da causa, mormente naquilo que diz respeito às reais funções acometidas à A. e que a R. insiste em negar.

10. Por outro lado, crê ainda a A., que o documento cuja junção se requer revelará aquilo que a trabalhadora sempre disse, ou seja, que a entidade patronal, através da sua direção pretendia interferir no processo de avaliação de risco de crédito, por forma a condicionar tais decisões.

11. Os relatório cuja junção se requereram avaliam, quer as práticas de gestão, organização do pessoal, funções acometidas, bem assim, levam a cabo juízo crítico quanto à concessão de crédito, avaliação de risco e processo de decisão.

(...)

19. No caso concreto, temos a R., entidade empregadora, detentora de toda a documentação imprescindível à prova dos factos alegados pela A. no que diz respeito às funções que lhe estavam atribuídas, bem como ao modo de organização interna da R..

20. Salvo o devido respeito, as informações constantes dos relatórios solicitados e necessárias à avaliação do cumprimento das normas, legais e regulamentares, que disciplinam a atividade da R. e informações sobre a sua organização administrativa, não se encontram nem abrangidas pelo sigilo bancário invocado pela A., nem pelo dever de segredo do Banco de Portugal (artigo 80º do RGICSF).

21. Pode aceitar-se, em abstracto, que exista informação constante das alíneas do artigo 120º, nº 1 do RGICSF com conteúdo sensível e, por isso, sujeitas ao dever de segredo, mas tal não será certamente a matéria referida das alíneas e) e f) daquele nº 1.

22. Deve por isso, caso se entenda que que os relatórios contêm matéria sensível e abrangida pelo segredo do BP e do sigilo bancário, pelo menos ser levantado o mesmo relativamente às partes que digam respeito às informações necessárias à avaliação do cumprimento das normas, legais e regulamentares, que disciplinam a atividade da R. e às informações sobre a sua organização administrativa, expurgando-se a demais matéria.

23. É que, como se disse, temos por um lado os interesses da trabalhadora, aqui A., que está impossibilitada de aceder aos documentos capazes de provar os factos por si alegados – e tutelados constitucionalmente, nomeadamente pelos artigos 53º e 59º, nº 1, alíneas a) e c) da CRP – e, por outro, informações que dizem respeito à mera organização da atividade empresarial da R., que deve sucumbir perante os interesses da A..

(...)

25. Parecem existir poucas dúvidas que os interesses da A. se sobrepõem, no caso concreto, e em larga medida ao interesse tutelado pelo dever de sigilo, pelo que deve ser ordenada à R. e/ou ao Banco de Portugal que juntem aos autos os documentos solicitados.

(...)”

Foi de seguida proferido o seguinte despacho:

“(...)

Os relatórios que a A pretende que sejam juntos aos autos conterão matéria abrangida pelo segredo bancário, no nosso entendimento.

Como é sabido com a instituição do segredo bancário pretende-se salvaguardar simultaneamente interesses públicos e privados (cfr. parecer da Procuradoria-Geral da República nº 138/83, de 5/4/1984, in BMJ nº 342, p. 61).

A verdade é que, não obstante estarmos cientes da importância vital que o segredo bancário assume, consideramos que o mesmo não é um direito absoluto, “antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” – ver, Acórdão do TC nº 278/95, processo nº 510/91, publicado no DR-IIS, de 28/07/1995.

Ora, no caso em apreço, está em causa apurar se a conduta da R enquanto instituição bancária foi julgada regular pela autoridade supervisora – BP –, sendo que a A entende que tal não sucedia e até terá comunicado factos que demonstravam essa sua opinião ao BP, tendo sido por isso punida disciplinarmente pela R..

A informação sobre a regularidade da conduta da R enquanto instituição bancária é importantíssima para a decisão a proferir, sendo certo que essa informação terá, obviamente, que ser conjugada com os restantes meios de prova produzidos e a produzir.

Atendendo, pois, à diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados, segundo um critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos e considerando o que está em causa nestes autos, julgamos que deve ser quebrado o sigilo bancário, sob pena de se coarctar à requerente a possibilidade de prova de factos pessoais da requerida que, não sendo confessados por esta, se tornam de prova quase impossível.

Pelos fundamentos expostos, nos termos do nº 4 do art. 417º do Código de Processo Civil e 135º, nº 3, do Código de Processo Penal, suscita-se o incidente de quebra de sigilo bancário previsto nesses artigos junto do Venerando Tribunal da Relação do Porto.

Extraia certidão integral do processado e do presente despacho e remeta ao Venerando Tribunal da Relação do Porto para apreciação do presente incidente.”

Recebido o incidente, foi pelo relator mandado notificar o Banco de Portugal para se pronunciar, tendo o mesmo apresentado o seguinte parecer:

“Banco de Portugal, notificado por despacho datado de 24.10.2022, para que se pronuncie quanto ao incidente de quebra de segredo profissional, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 135º, nº 3 do Código de Processo Penal, vem expor o seguinte:

I. Da invocação do Dever de Segredo pelo Banco de Portugal

1. Por ofício datado de 07 de julho de 2022, recebido pelo Banco de Portugal, no âmbito do Processo nº 586/22.9T8PNF – Ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, que corre termos no Juiz 4 do Juízo de Trabalho de Penafiel - Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, foi solicitado a este Banco “para no prazo de 10 dias, enviar aos presentes autos os seguintes elementos:

- Relatório da avaliação do cumprimento das normas legais e regulamentares relativo à Banco 1..., CRL para os órgãos de administração e fiscalização da Banco 1..., para o CAE da Caixa Central e para o Banco de Portugal – Departamento de Supervisão Prudencial, conforme estabelecido no nº 2 do artigo 37º do Decreto-Lei nº 24/91, de 11 de janeiro, levado a cabo pela PwC SROC, com referência a 31 de Março de 2018, que se julga ser datado de Outubro de 2018.

- Relatório de avaliação do cumprimento das normas legais e regulamentares com referência a 30 de Junho de 2020, levado a cabo pela PwC SROC, que importa para aferir da existência do cargo de Coordenador Geral e suas concretas funções, conforme o ordenado no douto despacho de que se anexa cópia.”

2. A documentação cuja junção aos autos foi solicitada pelo Tribunal, in casu, os relatórios da avaliação do cumprimento das normas legais e regulamentares relativos a instituições supervisionadas, conexionam-se com a ação de supervisão prudencial do Banco de Portugal, encontrando-se o Banco de Portugal, por isso, no que respeita à aludida documentação, vinculado pelo dever de segredo previsto no artigo 80º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), sendo também de convocar a este propósito o regime dos artigos 60º da respetiva Lei Orgânica e 38º dos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais (“SEBC”) e do Banco Central Europeu (“BCE”).

3. O segredo em questão constitui um segredo profissional específico desta autoridade de supervisão, distinto do segredo bancário, nomeadamente ao nível dos sujeitos passivos do dever em apreço, do respetivo objeto, do bem jurídico tutelado e das exceções legalmente previstas, que impõe ao Banco de Portugal a responsabilidade por preservar a necessária reserva acerca da informação confidencial de que dispõe, essencial para a preservação da estabilidade financeira, evitando o surgimento no espaço público de informação descontextualizada, desadequada ou intempestiva.

4. A tutela deste segredo de supervisão relaciona-se com o interesse público da eficácia da supervisão, essencial à salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro, bem jurídico consagrado no artigo 101º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), que estabelece que “O sistema financeiro é estruturado por lei, de modo a garantir a formação, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social.”

5. Os relatórios solicitados, cobertos pelo segredo de supervisão, relevam do exercício de funções de supervisão cometidas ao Banco de Portugal, sendo que a informação que seja conhecida e produzida exclusivamente no exercício dessa função não pode ser revelada nem utilizada (cfr. artigo 80º, nº 1 do RGICSF) exceto nos casos previstos no nº 2 do artigo 80º do RGICSF, in casu, na sequência de uma decisão de quebra de segredo.

6. Uma vez deduzido o incidente de quebra de segredo, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 4 do artigo 417º do Código de Processo Civil e no nº 3 do artigo 135º do Código de Processo Penal, incumbe ao tribunal superior – no caso, a esse Venerando Tribunal – fazer a ponderação dos interesses em conflito, decidindo de acordo com o “princípio da prevalência do interesse preponderante”. Tal ponderação toma como critério a imprescindibilidade do meio de prova para a descoberta da verdade, sendo de adaptar as demais circunstâncias enumeradas na lei (gravidade do crime e necessidade de proteção de bens jurídicos), concretamente aos interesses feitos valer, no processo civil, em contraponto aos valores tutelados pelo sigilo.

7. Chamado o Banco de Portugal a pronunciar-se nos presentes autos, na qualidade de interveniente acidental, importa assim prestar um contributo para a ponderação de interesses que se impõe seja efetuada.

II. Do Levantamento do Dever de Segredo

8. A propósito da oportunidade da junção dos documentos ora requeridos, que determinou a abertura do presente incidente de quebra de segredo, refere o Tribunal de 1ª instância: (…)

9. Decorre do exposto que o Tribunal de 1ª instância baseou a necessidade de acesso à documentação objeto do presente incidente de quebra de segredo na premissa de que a documentação sub judice seria apta a demonstrar se a conduta da Ré, enquanto instituição bancária, fora julgada regular pelo Banco de Portugal.

10. Sucede que, sem prejuízo da expressão “regularidade da conduta da Ré enquanto instituição bancária” se reconduzir a um conceito muito lato e pouco preciso, sempre importa referir que a aludida documentação não é apta a expressar o entendimento do Banco de Portugal quanto à regularidade da conduta da Ré, desde logo porque se reconduz a documentação que não é da responsabilidade ou da autoria do Banco de Portugal, sendo documentação produzida por um serviço de auditoria, a pedido da Banco 1..., CRL (“Banco 1...”).

11. Isto mesmo decorre do disposto no nº 1 do artigo 37º do Regime Jurídico do Banco 1... (RJCAM), aprovado pelo Decreto- Lei nº 24/91, de 11 de janeiro, na redação atualmente em vigor, que estabelece que (destaques nossos): (…)

12. De acordo com o nº 1 do artigo 37º do RJCAM, supra transcrito, decorre que a documentação requerida no âmbito do presente incidente de quebra de segredo se consubstancia em relatórios, preparados por auditores externos, que visam avaliar a verificação dos seguintes aspetos, mencionados no nº 1 do artigo 120º do RGICSF, relativos à Banco 1...: (…)

13. Conforme decorre do nº 1 do artigo 37º do RJCAM e do nº 1 do artigo 120º do RGICSF, acima citados, a informação abrangida pelos relatórios em questão, objeto de segredo, não só (i) não expressa qualquer posição do Banco de Portugal quanto à regularidade da conduta da Ré, como (ii) é da autoria de uma entidade externa que prestou um serviço de auditoria a pedido da Banco 1..., como (iii) é dotada de centenas de páginas que abarcam informação que extravasa a utilidade para o litígio em questão, do foro laboral.

14. Saliente-se ainda que a informação abrangida pelos relatórios (i) contém dados pessoais de clientes (nome completo, número de identificação fiscal), (ii) descreve detalhadamente operações financeiras (montantes investidos, montantes resgatados, identificação de negócios no âmbito de operações de crédito), para além de (iii) revelar métodos de auditoria e informações detalhadas do funcionamento da instituição bancária, entre outros.

III. Da Ponderação no âmbito da Decisão de Quebra de Segredo

(…)

21. Ora, voltando ao caso sub judice, tudo parece apontar para que os relatórios em causa no presente incidente de quebra de segredo não sejam imprescindíveis para a descoberta da verdade, desde logo porque estar contrariada a premissa do Tribunal de 1ª instância em que se baseou a decisão de promover a quebra de segredo. Com efeito, os relatórios solicitados não expressam qualquer posição do Banco de Portugal quanto à regularidade da conduta da Ré, sendo da autoria de uma entidade externa que prestou um serviço de auditoria a pedido da Banco 1..., no âmbito do procedimento descrito no artigo 37º da RJCAM , sendo informação que extravasa a utilidade para o litígio em questão.

22. Por outro lado, a revelação da aludida documentação implicaria a divulgação de (i) dados pessoais de clientes (nome completo, número de identificação fiscal), (ii) operações financeiras (montantes investidos, montantes resgatados, identificação de negócios no âmbito de operações de crédito), para além de (iii) revelar métodos de auditoria e informações detalhadas do funcionamento da instituição bancária, entre outros.

23. Na verdade, o levantamento do sigilo nos termos peticionados encerraria uma potencialidade muito séria de devassa de informação de todo não relacionada ou útil para os termos da causa, o que também não pode deixar de ser ponderado.

24. Tratando-se a revelação da aludida informação objeto de segredo de supervisão, no âmbito de um processo laboral que opõe uma trabalhadora à Banco 1..., suscetível de lesar não só o direito à reserva da intimidade da vida privada de todos os clientes visados nos relatórios, mas também o interesse público na efetividade ou eficácia da supervisão, essencial à estabilidade do sistema financeiro, bem jurídico constitucionalmente previsto no artigo 101º da CRP.

25. Face ao exposto, afigurar-se-ia violador do princípio da proporcionalidade a revelação da informação contida nos relatórios cobertos pelo segredo de supervisão, pelo que sopesando os diferentes interesses em presença, deverá a informação manter-se reservada, não se mostrando justificado o levantamento do sigilo profissional de supervisão invocado pelo Banco de Portugal.

NESTES TERMOS E COM O DOUTRO SUPRIMENTO DE V. EXAS. DEVE A DECISÃO DO PRESENTE INCIDENTE DE QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL SER A DE INDEFERIMENTO DESSA QUEBRA.”

A autora/requerente respondeu alegando:

“1. Ao contrário do referido pelo Banco de Portugal (BdP), a informação solicitada não é susceptível de colocar em causa a estabilidade financeira, nem fará surgir para o espaço público qualquer informação descontextualizada, desadequada ou intempestiva.

2. Conforme já se teve oportunidade de referir, a A. apenas pretende a junção da informação para prova das funções que lhe eram acometidas, bem como para se aferir da existência do cargo de Coordenador-Geral e as suas concretas funções, uma vez que os relatórios em causa avaliam, quer as práticas de gestão, organização do pessoal, funções acometidas, bem assim, levam a cabo juízo crítico quanto à concessão de crédito, avaliação de risco e processo de decisão.

3. Informações como nomes, nifs, operações financeiras e/ou métodos de auditoria podem perfeitamente ser expurgadas, pretendendo-se tão-só a que diga respeito à matéria referida no ponto 2 deste requerimento.

4. Muita informação, até mais sensível do que a requerida pela A., foi mesmo junta pela própria R. entidade bancária, que procede à junção de documentos quando a mesma lhe convém e invocando o dever de sigilo quando a informação se prevê que lhe seja desfavorável.

5. No caso concreto, o BdP aparece mais como uma entidade corporativista do que propriamente como uma autoridade independente e de supervisão.

Dito isto,

6. A A. entende que tanto a R. como o BdP se escudam no dever de sigilo relativamente a matérias que não se encontram abrangidas pelo mesmo, com o único objectivo de impedir a prova da A. relativamente à factualidade por si invocada nos autos.

7. Não tendo a A. outra forma de provar os factos por si alegados relativamente a essas matérias a não ser pela junção do relatório do BdP.

8. Deve ainda referir-se que o BdP na sua pronúncia imiscui-se em matérias que não são da sua competência mas sim do Tribunal, única entidade capaz de decidir se a documentação solicitada é um não apta a demonstrar a conduta da R.

9. Salvo o devido respeito, essa avaliação não cabe ao BdP nem a mesma lhe foi encomendada.

10. Ainda assim, o BdP acaba por referir que a documentação solicitada é produzida por um serviço de auditoria a pedido da R., pelo que se não é apta a demonstrar o entendimento do BdP quanto à conduta da R. pelo menos é-o relativamente ao entendimento da auditoria, revelando assim de igual modo.

11. Pelo que se disse, resulta evidente que a informação em causa é essencial para que a A. prove muita da factualidade por si alegada, de modo que a sua não junção torna praticamente impossível aquela prova.

12. Dos interesses em conflito sobressai o direito da A./trabalhadora em face do comportamento abusivo da R., ela própria que já forneceu informações de clientes e operações financeiras quando, como se disse, a informação lhe é favorável.

13. No fundo, está-se a proteger a R. invocando o dever de sigilo quando ela própria aparentemente o viola sempre que lhe dá jeito a nível processual.

14. Como se disse, o meio de prova em causa é imprescindível e indispensável à descoberta da verdade, não extravasando a utilidade para o litígio em questão.

15. Pelo exposto, e reiterando-se tudo o que a este respeito se deixou dito nos autos, deve a quebra do sigilo ser deferida, sob pena de impedir a A. de fazer para da matéria por si alegada, beneficiando a R. que faz um uso abusivo do “dever de sigilo”.

TERMOS EM QUE, deve o incidente da quebra de sigilo ser deferido e consequentemente ser ordenada a junção aos autos dos documentos solicitados.”

Cumpre decidir.

A questão a conhecer consiste em determinar e deverá ser levantado o sigilo bancário por forma a que o Banco de Portugal venha juntar aos autos “(a) Relatório na posse da R., da avaliação do cumprimento das normas legais e regulamentares relativo à Banco 1..., CRL para os órgãos de administração e fiscalização da Banco 1..., para o CAE da Caixa Central e pura o Banco de Portugal – Departamento de Supervisão Prudencial, conforme estabelecido no nº 2 do artigo 37º do Decreto-Lei nº 24/91, de 11 de janeiro, levado a cabo pela PwC SROC, com referência a 31 de Março de 2018, que se julga ser datado de Outubro de 2018, que importa para a prova das funções acometidas à A. (b) Relatório na posse da R., de avaliação do cumprimento das nonnas legais e regulamentares com referência a 30 de Junho de 2020, levado a cabo pela PwC SROC, que importa para aferir da existência do cargo de Coordenador Geral e suas concretas funções.”

II. Fundamentação de facto

Os factos a considerar são os que constam do relatório.

III. O Direito

Nos termos do disposto no art. 120º, nº 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo art. 1º do Dec. Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, “As instituições de crédito apresentam ao Banco de Portugal as informações necessárias à avaliação do cumprimento do disposto no presente Regime Geral e no Regulamento (UE) n.º 575/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, nomeadamente para a verificação:

a) Do seu grau de liquidez e solvabilidade;

b) Dos riscos em que incorrem, incluindo o nível de exposição a diferentes tipos de instrumentos financeiros;

c) Das práticas de gestão e controlo dos riscos a que estão ou possam vir a estar sujeitas;

d) Das metodologias adotadas na avaliação dos seus ativos, em particular daqueles que não sejam transacionados em mercados de elevada liquidez e transparência;

e) Do cumprimento das normas, legais e regulamentares, que disciplinam a sua atividade;

f) Da sua organização administrativa;

g) Da eficácia dos seus controlos internos;

h) Dos seus processos de segurança e controlo no domínio informático;

i) Do cumprimento permanente das condições previstas nos artigos 14º, 15º e alíneas f) e g) do nº 1 do artigo 20º.”

Por outro lado, estabelece o art. 80º, nº 1 e 2, do mesmo Regime que:

1. As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas.

2. Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.

Não existem, portanto, dúvidas de que a informação pretendida está abrangida pelo dever de sigilo do Banco de Portugal, independentemente de alguma poder ser menos “sensível”, na terminologia da autora/requerente.

Assim, as informações pretendidas só podem ser reveladas nos termos previstos na lei, no caso mediante o incidente de levantamento do sigilo previsto no art. 417º, nº 3, al. c), do CPC, cabendo ao tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, no caso a este Tribunal da Relação do Porto, o seu conhecimento, nos termos do art. 135º, nº 3, do CPP, artigo aqui aplicável, por força do nº 4 do art. 417º do CPC.

A montante, importa considerar ainda o disposto nos arts. 432º e 429º, nº 1, do CPC.

Dispõe o segundo (art. 429º, nº 1), por remissão do primeiro, que “Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar.”

Como se vê do relatório supra a autora, ora requerente não cumpriu com a última parte da segunda metade do preceito em causa (“especifica os factos que com ele quer provar”), conforme aliás salientou a ré, ora requerida, no seu requerimento resposta, que, apesar dessa chamada de atenção, também não despoletou despacho a convidar a requerente a suprir tal deficiência, tendo-se dado cumprimento do disposto no nº 2 do aludido art. 429º, sem que se soubesse, quer o Tribunal, quer a requerida, quer o Banco de Portugal, qual a matéria a provar com os documentos em questão.

Esta indicação da matéria de facto a provar, como acentuam José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, no Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 2001, pág. 431, visa habilitar o juiz a “controlar a pretensa idoneidade do documento para prova de factos de que o requerente tem o ónus de prova”.

Sobre a questão considerou-se no acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 5 de Outubro de 2015, processo 12128/14.5T8PRT-A.P1, acessível em www.dgsi.pt:

“O artigo 429º constitui manifestação do denominado “princípio da cooperação intersubjectiva” [Vide Lopes Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, volume I, Coimbra, 2004, p. 455, em anotação ao artigo 519.º do Código de Processo Civil revogado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho (VCPC)], agora plasmado no art. 7º do Código de Processo Civil no campo da instrução do processo e pressupõe que o requerente não pode, por ele, obter o documento, tendo em vista a prova de factos desfavoráveis ao detentor do documento.

Ao juiz cabe controlar a pretensa idoneidade do documento para a prova de factos de que o requerente tem o ónus da prova, ou que possam infirmar a prova de factos de que o detentor do documento tem o ónus, razão por que, para viabilizar o efectivo controlo judicial, exige o normativo que o requerente identifique tanto quanto possível o documento e especifique os factos que com ele quer provar [Vide Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, Coimbra, 2001, p. 431].

Como ensina o Professor Alberto dos Reis, a propósito do artigo 552º do Código de Processo Civil de 1939, que, no essencial, contém um regime idêntico ao prescrito no actual artigo 429º “A parte tem de especificar no seu requerimento: a) Em que consiste o documento; b) Quais os factos que por meio dele intenta provar.

A 1ª exigência tem por fim dar a conhecer ao notificado qual o documento que dele se requisita. Portanto a frase “em que consiste o documento” deve entender-se neste sentido: Cumpre ao requerente identificar, quanto possível o documento. (…) A 2ª exigência destina-se, em primeiro lugar, a habilitar o juiz a deferir ou indeferir o requerimento e, em segundo lugar, a fazer funcionar a sanção” [José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume IV, Coimbra, 1987, pp. 38-39].

A pertinência da apresentação de um documento em poder da parte contrária, está dependente da circunstância de os factos que se visam provar com esse documento interessarem à decisão da causa [A redacção do nº 2 do preceito corresponde à redacção que havia sido introduzida pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro no n.º 2 do artigo 528º do Código de Processo Civil agora revogado, a qual suprimiu a referência a questionário, substituindo-a pela de “interesse para a decisão da causa”].

No que diz respeito ao objecto da instrução, o artigo 410º do Código de Processo Civil dispõe que a “instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova”.

Este preceito corresponde ao artigo 513º do VCPC, substituindo-se a referência a “factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos e necessitados de prova”, pela referência aos “temas de prova enunciados ou quando não haja lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova”, em consonância com a alteração a que foi submetida a fase da condensação processual (artigos 591º e ss. do NCPC).

Os factos a provar são os factos essenciais da causa, que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as excepções invocadas, que deverão ser alegados pelas partes [artigo 5º, nº 1, do CPC], e os factos instrumentais, que se situam na cadeia dos factos probatórios e permitem chegar aos factos principais que as partes tenham alegado, relativamente aos quais inexiste qualquer vinculação temática [artigo 5º, nº 2, alínea a), do CPC], sem prejuízo dos casos excepcionais em que o juiz pode oficiosamente introduzir factos principais na causa [Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa à luz do Código de Processo Civil de 2013 3ª edição, p. 205. Quanto aos factos complementares e concretizadores de outros que as partes tenham alegado (artigo 5º, nº 2, alínea a), do CPC) não são eles, em si, objecto da instrução a efectuar, pois que resultam da instrução efectuada].

Assim, em termos substanciais, o dever de cooperação encontra como limite o princípio dispositivo, incidindo sobre os factos essenciais alegados e podendo ainda reportar-se a factos instrumentais não alegados.”

Sucede que este escrutínio não foi feito, apenas se tendo proferido despacho a convidar a requerente que “identifique os factos controvertidos justificativos da requerida quebra”, no despacho que incidiu sobre o requerimento solicitando a quebra do sigilo invocado pelo Banco de Portugal.

Ou seja, em nosso entender, a indicação feita nesta altura é já extemporânea, uma vez que não permitiu um contraditório atempado e eficaz pela parte contrária, ou pelo terceiro interveniente, detentor dos documentos pretendidos.

Ainda assim, a requerente limita-se a alegar que:

“9. Crê a A. que o aludido documento cuja junção se requer é essencial para a boa decisão da causa, mormente naquilo que diz respeito às reais funções acometidas à A. e que a R. insiste em negar.

10. Por outro lado, crê ainda a A., que o documento cuja junção se requer revelará aquilo que a trabalhadora sempre disse, ou seja, que a entidade patronal, através da sua direção pretendia interferir no processo de avaliação de risco de crédito, por forma a condicionar tais decisões.

11. Os relatórios cuja junção se requereram avaliam, quer as práticas de gestão, organização do pessoal, funções acometidas, bem assim, levam a cabo juízo crítico quanto à concessão de crédito, avaliação de risco e processo de decisão.

(...)

19. No caso concreto, temos a R., entidade empregadora, detentora de toda a documentação imprescindível à prova dos factos alegados pela A. no que diz respeito às funções que lhe estavam atribuídas, bem como ao modo de organização interna da R..”

Como se pode verificar, mesmo nesta altura a requerente não indica os factos concretos que pretende provar com a junção dos documentos em causa.

Efectivamente, ainda que se entenda que o faz de forma indirecta, através das referencias a “funções que lhe estavam atribuídas”, “ao modo de organização interna da R.”, “que a entidade patronal, através da sua direção pretendia interferir no processo de avaliação de risco de crédito”, ou “juízo crítico quanto à concessão de crédito, avaliação de risco e processo de decisão”, não cabe, nem consegue efectivamente o Tribunal, discernir qual a matéria alegada que se pretende ver provada com junção dos referidos relatórios.

Até porque, com excepção da parte relativa às funções desempenhadas de facto pela requerente, tudo o mais são alegações genéricas e conclusivas que, ainda que fossem alegadas, não poderiam ser consideradas como factos a provar nos termos pretendidos.

Voltando ao citado acórdão deste Tribunal de 5 de Outubro de 2015, dir-se-á: “Deve desde logo dizer-se que esta referência não constitui uma especificação de factos concretos que se pretendam provar, entendidos estes como ocorrências da vida real. Ora apenas os factos são objecto de prova – cfr. os artigos 341º do Código Civil e 410º do Código de Processo Civil – e a verdade é que o A., no requerimento em causa, procedeu a uma mera indicação, em alternativa, de circunstâncias de natureza conclusiva cuja afirmação apenas poderia resultar da análise de factos concretos. (...) Ou seja, o A. não indicou quais os factos sobre que deve incidir a prova mas, tão só, o que constituiriam juízos acerca de certa realidade factual que não foi invocada.”

Tanto falta a indicação factual em causa que no despacho que antecedeu a remessa do incidente a este Tribunal da Relação do Porto, a Mma. Juíza “a quo” refere que, “no caso em apreço, está em causa apurar se a conduta da R enquanto instituição bancária foi julgada regular pela autoridade supervisora – BP –, sendo que a A entende que tal não sucedia e até terá comunicado factos que demonstravam essa sua opinião ao BP, tendo sido por isso punida disciplinarmente pela R.”, quando, o que efectivamente está em causa é saber se o despedimento da requerente foi lícito e regular.

Assim, analisando a contestação/reconvenção, o único facto concreto que se poderia descortinar como referido no requerimento em causa, independentemente da já referida extemporaneidade de tal alegação, seria a referencia às funções da requerente invocadas no art. 8º de tal articulado. Toda a demais matéria, se revela genérica e conclusiva.

Porém, mesmo que se aceitasse que os relatórios em causa pudessem demonstrar quais a funções que efectivamente a requerente desempenhava, o que a mesma não comprova, e se admitisse a validade da indicação de tal prova nesta fase processual, ainda assim, soçobraria a pretensão da requerente.

Conforme se salienta no acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Fevereiro de 2021, processo 122/08.0TTVLG-C.P2, acessível em www.dgsi.pt: “Relevando a natureza excepcional do levantamento do sigilo bancário e a prevalência do interesse preponderante, pronunciou-se o acórdão do TRP, de 24.04.2016, proferido no proc. nº 295/14.2TTMT-A.P1, cujo sumário transcrevemos: “A tutela do segredo bancário, não sendo absoluta, apenas poderá, todavia, ser restringido em situações de natureza excecional, assim devendo ser compatibilizado com outros direitos ou interesses de igual ou superior dignidade, havendo que apelar à prevalência do interesse preponderante e ponderar, perante as circunstâncias de cada caso, se a informação é adequada e necessária ou imprescindível ao fim visado, no sentido de não poder este ser alcançado ou o interesse ser acautelado por outro meio que não implique a quebra do sigilo.”.

Ora, no caso nada justifica a quebra do sigilo, quer porque falhou a requerente no ónus de demonstrar que os relatórios em causa poderiam provar a matéria em questão, ou seja, as funções por si desempenhadas, como, sobretudo, não se afiguram os mesmos essenciais para tal prova, uma vez que esse facto pode ser provado por variados outros meios.

Assim sendo, dado que não é exigível a derrogação do dever de segredo do Banco de Portugal, improcede o presente incidente.

IV. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o incidente, indeferindo-se o pedido de levantamento do dever de sigilo invocado pelo Banco de Portugal.

Custas do incidente pela requerente.

Notifique e comunique-se ao Banco de Portugal.

Porto, 23 de Janeiro de 2023
Rui Penha
Jerónimo Freitas
Nélson Fernandes