PROCESSO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
ACORDO
Sumário

Havendo acordo na tentativa de conciliação que tem lugar na fase conciliatória do processo quanto à questão do nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões, essa questão fica assente, não podendo vir a ser suscitada, seja pelas partes (mormente pela responsável pela reparação), seja oficiosamente, na fase contenciosa do processo, tenha esta lugar nos termos da al. a) ou da al. b) do nº 1 do art. 117º do CPT.

Texto Integral

Procº nº 2524/18.4T8AVR.P1
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1307)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

Na presente ação declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, em que é A/sinistrado, AA, com mandatária judicial constituída, e Ré X... - Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., participado acidente de trabalho, teve lugar a fase conciliatória do processo no decurso da qual:
Realizado exame médico singular, o Sr. Perito médico, conforme relatório de 22.02.2019 (junto a 13.03.2019) consignou que se solicitasse “o envio dos registos clínicos integrais na forma de Relatório Médico, (…), da Dr. BB da USF ...) sobre existência de queixas, sinais ou exame complementares de diagnóstico anteriores à data do acidente /19/04/2018) confirmando diagnóstico de insuficiência venosa crónica)”, na sequência do que, por determinação do Ministério Público, foram solicitados tais elementos, tendo o SNS, aos 09.04.2019, enviado os elementos clínicos juntos nessa data, dos quais constam diversos registos clínicos [aos quais, conforme melhor adiante se dirá, se irá reportar a sentença recorrida].

Realizado, aos 11.04.2019, novo exame médico, consignou o Sr. Perito médico, conforme relatório de 26.05.2019, junto aos autos a 04.06.2019, que “Insiste-se junto da Dr. BB da USF ... (... – ACe .../...) o esclarecimento concreto sobre a existência de queixas, sinais ou exames complementares de diagnóstico anteriores à data do acidente (19/04/2018) confirmando se o examinado já teria o diagnóstico de insuficiência venosa crónica prévia”.
Solicitados tais elementos, o SNS, aos 12.07.2019, remeteu declaração médica subscrita pela Exmª Srª Drª BB, na qual refere que “não existe registo de queixas de patologia venosa dos membros inferires em data anterior a 19/04/2019”.

Após, conforme relatório médico de 17.11.2019 (junto 09.01.2020), considerou o Sr. Perito médico singular que realizou a perícia médica singular que o sinistrado: se encontra afetado da IPP de 19,17%, sendo a consolidação médico-legal das lesões fixável em 06.12.2018 e que o sinistrado esteve em situação de ITA num período de 241 dias, relatório este posteriormente objeto do esclarecimento junto aos 18.04.2020, onde o Sr. Perito médico refere que “Considera-se Incapacidade temporária absoluta (correspondente ao período durante o qual a vítima esteve totalmente impedida de realizar a sua atividade profissional), desde 20-04-2018 até 06-12-2018, (…)”

Realizou-se, na fase conciliatória dos autos, tentativa de conciliação, na qual esteve presente o A., acompanhado da sua ilustre mandatária, tentativa essa que se frustrou, constando do respetivo auto de não conciliação, para além do mais, o seguinte:
“(…), disse o Magistrado do Ministério Público:
Tendo em conta o declarado pelas partes e o mais que resulta dos autos, afigura-se-nos ser possível dar como assente que:
(…)
6º RESULTADO DO EXAME PERICIAL
No dia 03/10/2019, o sinistrado foi submetido no Gabinete Médico Legal de Santa Maria da Feira a exame pericial de avaliação do dano corporal em direito do trabalho, cujo relatório se encontra junto aos autos a fls. 142 a 144vso e esclarecimentos de fls. 181 e se dão aqui por inteiramente reproduzidos. Em tal exame e esclarecimentos, concluiu-se que o sinistrado:
- tinha tido alta clínica em 06/12/2018.
- tinha ficado com uma I.P.P. de 19,17%.
- esteve afectado com incapacidade temporária absoluta para o trabalho entre 07/03/2018 e 06/12/2018, data em que lhe foi dada alta clínica.
(…)
relatório se encontra junto aos autos a fls. 142 a 144vso e esclarecimentos de fls. 181 e se dão aqui por inteiramente reproduzidos. Em tal exame e esclarecimentos, concluiu-se que o sinistrado:
- tinha tido alta clínica em 06/12/2018.
- tinha ficado com uma I.P.P. de 19,17%.
- esteve afectado com incapacidade temporária absoluta para o trabalho entre 07/03/2018 e 06/12/2018, data em que lhe foi dada alta clínica.
(…)
***
POSIÇÃO DOS INTERVENIENTES PROCESSUAIS
1 - O Sinistrado concorda com todos os dados atrás referidos, pelo que se concilia, reclamando da seguradora:
(…)
2 – A companhia de seguros concorda com todos os dados atrás referidos, com excepção dos períodos de incapacidade temporária e do grau final de I.P.P. atribuídos pelo G.M.L.F., uma vez que considera que os mesmos são menores. Assim, não aceita pagar ao sinistrado qualquer quantia a título de diferença de indemnização pelas incapacidades temporárias e não se concilia.

***
(…)
Face ao exposto, deu a Senhora Procuradora da República as partes por não conciliadas e determinou que aguardem os autos pelo prazo de vinte dias o pedido de Junta Médica a ser deduzido em requerimento pela seguradora (o qual deve ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos - cfr. al. b) do art.º 117º nº 1 e art.º 138º, nº 2, todos do C.P.T.).
No caso de não ser apresentado, oportunamente, remetam-se os autos para conclusão à Mmª Juiz, fixando-se a natureza e grau de desvalorização e o valor da causa, observando-se o disposto no nº 3 do art.º 73º, do C.P.T.”

Após, veio a Ré, Seguradora, nos termos do nº2 do Art.º138º do CPT, requerer exame por junta médica, tendo formulado os seguintes quesitos:
“1. Qual a IPP?
2. Quais os períodos de Incapacidade Temporária?”

Realizado, aos 21.09.2021, exame por junta médica, entenderam os Srs. peritos médicos que nela intervieram, por unanimidade, que o sinistrado se encontra afetado da IPP de 4,50%, tendo respondido aos quesitos formulados pela Ré nos seguintes termos:
“1º Apresenta IPP conforme quadro anexo. Em fls 126 verso (registos de enfermagem relativos a tratamentos de feridas/úlceras que remontam a 16-02-2018, isto é, a data prévia ao evento em apreço) que o sinistrado mencionou terem sido à perna direita. Ao exame objectivo apresenta sinais de insuficiência vascular periférica bilateral. Por esse motivo não se considera que as alterações venosas sejam decorrentes do acidente dos autos, mas sim prévias ao mesmo.
2º Deverá ser considerada, atendendo à data do acidente constando na participação do acidente de trabalho como tendo ocorrido em 06-03-2018 (fls 4 verso e fls 17 dos autos):
ITP de 10% de 07-03-2018 a 28-03-2018
ITA de 29-03-2018 a 22-06-2018;
ITP de 10% de 23-06-2018 a 03-07-2018,”
E tendo enquadrado as sequelas apresentadas pelo A. no Cap. II.1.5.b), a que corresponde o coeficiente de desvalorização de 0.02 – 0,08, atribuindo o coeficiente de desvalorização de 0,03 e, acrescido do fator de bonificação de 1,5, atribuído a mencionada IPP de 4,5%.

Notificadas as partes, veio o sinistrado, aos 07.10.2021, discordar do mencionado laudo, tendo, em tal requerimento, referido, para além do mais o seguinte:
“(…)
Nessa sequência o Sinistrado pronunciou-se e solicitou que fosse notificado a USF ... ACE .../... para informar aos autos se existia queixas, sinais ou exames sobre eventuais feridas ulcerosas anteriores a 19/04/2018, conforme se pode comprovar pela analise dos autos, de forma a esclarecer a informação que haviam constante a fls. 126.”,

Na sequência do que a Mmª Juiz proferiu o despacho de 02.11.2021 em que, para além do mais, refere o seguinte:
“(…)
Dito isto, verifica-se dos registos clínicos de enfermagem documentados a fls. 126 e ss, mais precisamente a fls. 126 verso, a menção expressa que o sinistrado aí realizou “tratamento feridas/úlceras”, em datas anteriores ao sinistro (ocorrido em 06.03.2018), designadamente em 16.02.2018, 19.02.2018, 22.02.2018, 26.02.2018, 01.03.2018, 05.03.2018. Também no registo de fls. 128 verso consta que em 16.02.20218 o sinistrado apresentava ferida traumática na região do calcanhar direito com evolução de mais de um mês). Igualmente o registo de fls. 131, refere tratamento da ferida e vigiar o penso da ferida, em 16.02.2018 e em sucessivos dias do mês de fevereiro e de março de 2018 (todos anteriores ao acidente).
(…)
Em face desses registos e da informação que deles consta, solicita-se que a Srª Drª BB, que emitiu a declaração junta a fls. 140, datada de 28.06.2019 (no sentido que não existe registo de queixas de patologia venosa dos membros inferiores em data anterior a 19.04.2018), preste os seguintes esclarecimentos:
- se teve e tem acesso/conhecimento aos registos de enfermagem do utente, designadamente os juntos a fls. 126 e ss;
- na afirmativa (ou caso não tenha, pela consulta das cópias que lhe devem ser enviadas e constam de fls. 126 a 133 dos autos), a que se deve, em sua opinião clínica, a ferida traumática na região do calcanhar direito que o sinistrado apresentava e que andou a ser tratada durante meses no Centro de Saúde (desde 16 de fevereiro e março de 2018, datas anteriores ao acidente);
- se a existência dessa ferida traumática na região do calcanhar direito com evolução de mais de um mês à data do acidente, documentada nos registos de enfermagem, a par do diagnóstico de hipertensão que apresentava desde 2013 e da medicação prescrita (como resulta dos registos de fls. 104 a 125) é ou não um sinal de que o sinistrado já teria diagnóstico de insuficiência venosa crónica prévia ao acidente”, despacho este que foi notificado à ilustre mandatária do A. através da plataforma informática citius, com data de elaboração de 03.11.2021.

Na sequência do mencionado despacho, em resposta, o SNS, aos 26.11.2021, enviou relatório médico de onde consta o seguinte:
“(…)
Eu, CC, (…), sendo médico de família do utente supracitado após aposentação da Drª BB a 1-2-2021, sua anterior médico de família, (…)
Declaro que após consulta do processo clínico do utente supracitado não há referência a observação médica no período de 16/2/2018 a 30/3/2018, relativa à alegada ferida descrita na região do calcanhar direito;
Relativamente ao histórico de saúde do utente, documenta-se hipertensão sem complicações à data acima referida, sem referência a demais patologias na data citada.”

Foi, aos 10.01.2022 proferido despacho referindo que:
“A declaração enviada não dá, salvo melhor opinião, resposta cabal ao solicitado, porquanto não se alcança da mesma a resposta à questão de saber se o médico de família do sinistrado teve e tem acesso (designadamente quando procede à sua observação médica) aos registos de enfermagem, designadamente os juntos a fls. 126 e ss dos autos (cuja cópia já foi remetida) e, em qualquer caso, a que se deve, na sua opinião clínica, a ferida traumática na região do calcanhar direito que o mesmo apresentava e que andou a ser tratada em datas anteriores ao acidente (que esses registos documentam).
Deverá, pois, solicitar-se ao atual médico de família do sinistrado, que respondeu à solicitação do tribunal, que complete a sua resposta, respondendo concretamente às questões enunciadas no despacho de fls. 205 (dois últimos parágrafos) e verso, que devem constar expressamente do ofício a remeter”,
Ao que, conforme relatório médico junto aos 18.01.2022, foi respondido que:
“(…)
- tive acesso aos registos de enfermagem do utente aquando do anterior envio do ofício por vossas excelências;
- não posso afirmar categoricamente nem tão pouco desmentir (dada a distância temporal desde o início das lesões e dado que apenas comecei a acompanhar o utente em fevereiro de 2021) acerca da(s) causa(s) que possam ter provocado a referida “ferida traumática na região do calcanhar direito” tratada alegadamente 3 anos antes do meu início de funções nesta Unidade de Saúde Familiar (i.e. no período de fevereiro e março de 2018 reportado no ofício);
- uma vez mais informo, à semelhança do que foi dito na resposta de 18-11-2021, que não há nenhum registo no processo médico eletrónico do utente nesta unidade de saúde, relativo à existência de “insuficiência venosa” até ao ano de 2018”.

O A. pronunciou-se conforme requerimento de 19.01.2022 no sentido, em síntese, de que das informações prestadas decorre “total prova segura de a ferida que o sinistrado apresenta não existia à data do acidente de trabalho” e que “a mesma é consequência directa do acidente de trabalho”, concluindo que deve manter-se “a incapacidade fixada pelo perito médico singular e não pela junta médica.”

Foi, após, proferida sentença que julgou a ação nos seguintes termos:
“Por todo o exposto, inexistindo razões para discordar do parecer unânime dos Srs. Peritos, fixo a IPP de que padece o sinistrado em consequência do acidente dos autos em 4,5% e, em consequência, condeno a Seguradora, a pagar-lhe:
- o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de €363,41 (trezentos e sessenta e três euros e quarenta e um cêntimos), devida desde 07.12.2018, acrescida de juros de mora sobre o capital de remição, à taxa legal de 4%, desde aquela data até integral pagamento;
- a quantia de €2.143,93 (dois mil, cento e quarenta e três euros e noventa e três cêntimos) referente às diferenças pelos períodos de Incapacidade Temporária fixados, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde aquela data até integral pagamento;
- a quantia de € 30,00 (trinta euros) a título de transportes.
*
Custas pela ré (artigo 527º do CPC).
*
Valor da ação – €6.173,62 (artigo 120.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho e Portaria n.º 11/2000, de 13 de janeiro).”

Inconformado, o A. recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1) O presente recurso tem como objecto a Sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância no proc. n.º 2524/18.4T8AVR e que decidiu “(…) inexistindo razões para discordar do parecer unânime dos Srs. Peritos, fixo a IPP de que padece o sinistrado em consequência do acidente dos autos em 4,5% (…)” – SIC Sentença
2) O Recorrente discorda com a decisão do Tribunal a quo que considerou inexistir nexo causal entre a lesão traumática que sofreu e a doença que apresenta o Recorrente – insuficiência venosa crónica – que considera ser prévia ao acidente.
3) Desde logo, o Tribunal utiliza para fundamentar a sua decisão os registos de enfermagem do Recorrente que constam a fls. 126 e ss dos autos, e que não foram notificados ao Recorrente, que desconhecia os mesmos.
4) Desta forma, o Recorrente ficou impedido de exercer o princípio do contraditório relativamente aos mesmos, e efetuar os pedidos de esclarecimentos que entendesse junto das entidades devidas.
5) Tal documentação foi determinante na decisão do Tribunal de desconsiderar o nexo causal identificado em 2), pelo que tal documentação teria de ter sido notificada e levada ao conhecimento do Recorrente.
6) Não o fazendo o Tribunal a quo não poderia ter utilizado tais documentos enquanto meio de prova, consubstanciando uma nulidade, por violação do princípio do contraditório previsto no art. 20º, nº4 da CRP, o que desde já se invoca.
7) Por outro lado, tais registos de enfermagem identificam elementos sobre o estado e percurso de saúde do Recorrente, diretamente relacionados com a sua esfera íntima, e por isso, integram o direito constitucional de reserva da vida privada.
8) Tais registos foram entregues à Seguradora a pedido desta sem consentimento do Recorrente, sendo certo que tais registos se encontram a coberto da Lei da Proteção de Dados Pessoais (Lei n.º 67/98 de 26.10).
9) Todos estes direitos encontram consagração constitucional que prevê a sua tutela através de garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusiva de informações relativas às pessoas.
10) Assim, e conforme vem sendo jurisprudência nos Tribunais superiores sempre teria de ser obtida junto do Recorrente a respetiva autorização, pois de outro modo o objeto desses registos e a sua utilização em processo judicial não consiste num meio de prova lícito.
11) Pelo que, a Recorrida não demonstra nem junta a autorização por parte do Recorrente para a solicitação e tratamento dos dados de saúde do Recorrente, o que não o tendo feito consubstancia uma violação dos direitos constitucionalmente consagrados, sendo a sua utilização enquanto meio de prova ilícita, o que desde já se invoca.
12) Mas mesmo que assim não se considere, atendendo aos elementos disponíveis sobre o percurso e estado de saúde do Recorrente nunca o Tribunal a quo poderia ter considerado a existência de uma doença de insuficiência venosa prévia ao acidente.
13) Inexiste qualquer documento assinado pelo Recorrente em que o mesmo tenha afirmado o que quer que seja em sede junta médica, tal foi refutado pelo Recorrente sendo uma alegação da Junta Médica completamente inverosímil.
14) Dos variados relatórios médicos juntos aos autos, inexiste qualquer menção à existência de úlceras crónicas e/ou insuficiência venosa por parte do Recorrente qualquer medicação ou registo médico nesse sentido, a não ser posteriores ao acidente.
15) Apenas existem registos de enfermagem com menção de “Tratamento ferida/úlcera”, sem qualquer especificação concreta do tratamento realizado, localização do tratamento, origem da ferida/úlcera, o tipo de ferida/úlcera, etc., muito menos indicações de insuficiência venosa.
16) O Recorrente desconhece qual a associação realizada pelo Tribunal a quo, e pelos Peritos da Junta Médica, para concluir que esse tratamento de “ferida/úlcera” corresponda a uma ferida traumática na região do calcanhar direito, muito menos, com insuficiência venosa.
17) Também os relatórios médicos do centro de saúde que acompanha o Recorrente afirmam categoricamente que nos seus registos inexiste qualquer menção à existência de úlceras cronicas e/ou insuficiência venosa.
18) Daí que nos seus relatórios tal “ferida traumática na região do calcanhar direito” seja sempre mencionada como “a alegada ferida”, porque não há registo da existência da mesma antes do acidente, sendo pelo contrário o Tribunal a quo quem nos seus pedidos de esclarecimento refere a suposicionada ferida.
19) Não existe qualquer ferida no calcanhar direito anterior ao acidente nos registos médicos do Recorrente.
20) Tal consubstancia uma suposição efetuada pelos Peritos da Junta Médica e pelo Tribunal a quo que constando no registo de enfermagem o “tratamento de ferida/úlcera” cerca de 15 dias antes do acidente daí concluíram que o mesmo diria respeito a uma lesão no calcanhar direito, o que salvo melhor opinião não o poderiam ter feito.
21) Tais menções informáticas de tratamento de enfermagem de uma ferida/úlcera engloba vários tratamentos, cortes, esmagamentos, mordedoras, picadas, queimaduras, hematomas, escoriações, pensos cirúrgicos, extração de pontos e agrafos… são vários os tipos de ferida que podem receber tratamento nos serviços de enfermagem dos centros de saúde pelo que o Tribunal a quo não pode concluir sem mais pela existência de úlceras, muito menos crónicas.
22) Pelo que, não existem nos autos elementos suficientes para concluir como concluiu o Tribunal a quo, pelo contrário, resultam elementos médicos suficientes e claros para concluir que não existia qualquer insuficiência venosa e/ou úlceras crónicas antes do acidente.
23) Não é possível valorar sem mais, um registo de enfermagem que nada refere de concreto quanto ao tratamento “ferida/úlcera” efetivamente realizado, localização, origem etc. e daí concluir adjudicar doenças ao Recorrentes, como insuficiência venosa e/ou úlceras crónicas.
24) E ainda que assim não se entenda, mesmo que padeçam dúvidas sobre a sua existência ou não, tal dúvida terá de aproveitar ao Sinistrado, já que, o ónus da prova do contrário caberia à Seguradora.
25) Pelo que, o Tribunal a quo errou quando considerou não existir nexo causal entre a lesão traumática que sofreu no acidente e a doença que apresenta o Recorrente – insuficiência venosa crónica, e consequentemente, errou na fixação da IPP em 4,5%.
26) Devendo assim considerar-se que a insuficiência venosa crónica que o Recorrente apresenta não é anterior ao acidente, mas sim decorrência deste, existindo nexo causal entre a lesão traumática que sofreu no acidente e a insuficiência venosa crónica, e fixar-se a IPP nos termos do Relatório de Perícia do GML em 19,17%.
Pelo que, o Tribunal a quo ao decidir como decidiu violou os artigos 20º, nº4 da CRP, art. 3º, n.º3, 6º e 7º do CPC, art. 3º, 4º e 7º da Lei 67/98 de 26 de Outubro, art. 1º, 2º, 18º, 32º, n.º8 e 204º da CRP, art. 523º e 519 do CPC, art. 342º, 343º e 344º do CC, art.6º, n.º5 da Lei 100/97 de 13 de setembro e 7º n.º1 do Dec. Lei n.º 143/99 de 30 de Abril, art. 604º, nº 4 e 5 do CPC.
TERMOS EM QUE, DEVE O PRESENTE RECURSO SER RECEBIDO, JULGADO PROCEDENTE POR PROVADO, E CONSEQUENTEMENTE, SER DECLARADA NULA A UTILIZAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA CONSTANTES DE FLS. 126 E SS QUER POR VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO, QUER POR VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DE RESERVA DA VIDA PRIVADA, E AINDA, SER A SENTENÇA SUBSTITUÍDA POR OUTRA NOS TERMOS ACIMA PETICIONADOS, SÓ ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA.”

A Recorrida não contra-alegou.

O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer (após prévia promoção de 02.06.2022 e despacho de 23.06.2022) no sentido do não provimento do recurso e da condenação do A. como litigante de má-fé, ao que o Recorrente respondeu, dele discordando, concluindo no sentido da inexistência de litigância de má-fé e, no mais, como nas alegações de recurso.

Conforme informação da Segurança Social de 12.09.2022, foi ao A. concedido o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Aos 13.09.2022 foi pela ora relatora proferido o seguinte despacho:
<< Na tentativa de conciliação que teve lugar na fase conciliatória do processo, realizado exame médico singular, entendeu o Sr. Perito médico, conforme respectivo relatório junto a 09.01.2020 e esclarecimento complementar de 18.12.2020, que o sinistrado se encontrou afectado de ITA durante 275 dias, que se encontra afectado de IPP de 19,17% e que a data d acura clínica/alta definitiva é de 06.12.2018.
Do auto de tentativa de conciliação levada a cabo nessa fase (aos 02.03.2021), que se frustrou, consta o seguinte:
“2 – A companhia de seguros concorda com todos os dados atrás referidos, com excepção dos períodos de incapacidade temporária e do grau final de I.P.P. atribuídos pelo G.M.L.F., uma vez que considera que os mesmos são menores. Assim, não aceita pagar ao sinistrado qualquer quantia a título de diferença de indemnização pelas incapacidades temporárias e não se concilia.
***
Todos os termos da não conciliação acima descrita foram detalhada e inequivocamente explicados a todos os intervenientes processuais e encontram-se gravados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal (H@bilus Media Studio).
Face ao exposto, deu a Senhora Procuradora da República as partes por não conciliadas e determinou que aguardem os autos pelo prazo de vinte dias o pedido de Junta Médica a ser deduzido em requerimento pela seguradora (o qual deve ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos - cfr. al. b) do art.º 117º nº 1 e art.º 138º, nº 2, todos do C.P.T.).”,
E, nessa sequência, teve início a fase contenciosa do processo, com a apresentação pela Ré, nos termos do art. 117º, nº 1, al. b), do CPT, de requerimento para exame por junta médica. Realizado o exame por junta médica, os Srs. peritos médicos que nela intervieram consideraram o sinistrado afectado da IPP de 4,5% e que sofreu dos seguintes períodos de incapacidade temporária: ITP de 10% de 07-03-2018 a 28-03-2018; ITA de 29-03-2018 a 22-06-2018; ITP de 10% de 23-06-2018 a 03-07-2018. Mais entenderam, conforme resposta ao quesito 1º, o seguinte: “1º Apresenta IPP conforme quadro anexo.
Em fls 126 verso (registos de enfermagem relativos a tratamentos de feridas/úlceras que remontam a 16-02-2018, isto é, a data prévia ao evento em apreço) que o sinistrado mencionou terem sido à perna direita. Ao exame objectivo apresenta sinais de insuficiência vascular periférica bilateral. Por esse motivo não se considera que as alterações venosas sejam decorrentes do acidente dos autos, mas sim prévias ao mesmo.”
E, após outras diligências (designadamente pedidos de elementos clínicos e pronuncia do A.), foi, aos 04.03.2022, proferida sentença que entendeu que, em síntese: que “que o sinistrado apresenta sinais de insuficiência vascular periférica bilateral, mas que as alterações venosas que apresenta são prévias ao acidente e não decorrentes do mesmo. E também nenhum dos senhores peritos médicos considerou que tal doença (prévia ao acidente) pudesse ter sido agravada pelo acidente descrito nos autos, pelo que não há fundamento para equacionar a aplicação do artigo 11º da Lei nº98/2009, de 04.09”, assim excluindo o nexo causal entre tais lesões e o acidente e, em consequência, atribuiu ao A. a IPP de 4,5%.
Tendo em conta o auto de tentativa de conciliação e declarações da Ré, no qual não se faz referência à sua discordância quanto ao nexo de causalidade entre o acidente e as lesões consideradas em tal auto, e, bem assim, tendo em conta o (eventual) entendimento de que a tramitação “simplificada” da fase contenciosa prevista no art. 117º, nº 1, al. b), do CPT, apenas se aplica às situações em que esteja em causa o coeficiente de desvalorização da incapacidade e não já outras, designadamente a do nexo de causalidade entre o acidente e as lesões/sequelas apresentadas, cuja apreciação compete ao juiz e não à junta médica (sem prejuízo, como elemento coadjuvante da decisão, desta se puder pronunciar) e em que a fase contenciosa dever ter lugar de acordo com o processado previsto na al. a) do nº 1 do citado art. 117º e disposições correspondentes (em síntese, apresentação de petição inicial, contestação, despacho saneador, com desdobramento do processo- apenso para fixação da incapacidade- e, após, audiência de julgamento), dizíamos, tendo em conta o referido, poderá eventualmente colocar-se a questão da admissibilidade, ou não, da discussão de tal questão – nexo de causalidade- na fase contenciosa que teve lugar nos autos- e, bem assim e em eventual caso afirmativo, de erro na forma do processo e consequente necessidade de anulação.
De referir ainda que, no caso de eventual entendimento da impossibilidade de discussão do nexo de causalidade, poderá também colocar-se a questão da necessidade de anulação com vista a pronúncia, pela junta médica, da IPP tendo em conta tal entendimento (uma vez que a junta médica, na IPP atribuída, partiu do pressuposto da inexistência de tal nexo).
Assim, antes de mais e tendo em conta o princípio do contraditório, notifique-se as partes para, querendo, se pronunciarem em 10 dias.>> [fim de transcrição]
A Ré respondeu conforme requerimento de 20.09.2022, referindo que:
“1º
Salvo o devido respeito por opinião contrária, entende-se que a questão inerente ao nexo de causalidade entre a lesão traumática que o sinistrado sofreu em consequência do acidente dos autos e a insuficiência venosa crónica que apresenta foi apreciada, discutida e analisada em face dos registos clínicos e de enfermagem juntos aos autos pela USF ... (centro de Saúde ...).

Foi assim com base naquela documentação que os Srs peritos médicos intervenientes na junta médica constataram que o sinistrado já andava em tratamentos a feridas/úlceras na perna direita pelo menos desde 16/02/2018, e por conseguinte em data anterior ao acidente

O Mm.º Decisor a quo refere ainda na douta sentença sob recurso que além dos dados que constam dos referidos registos de enfermagem, foi tida em conta a nota da alta hospitalar datada de 30/03/2018 onde é referido na descrição de antecedentes “úlceras crónicas, HTA”, bem como nos registos clínicos da Seguradora onde o médico de cirurgia vascular que observou e acompanhou clinicamente o sinistrado, fez menção de que este apresenta insuficiência venosa com varizes tronculares e que deve controlar sintomas e usar meia de contenção elástica.

Partindo assim do exame direto efetuado ao sinistrado e da consulta dos registos clínicos do processo, consideraram os Senhores Peritos por unanimidade que as alterações venosas que o examinado apresenta são prévias ao acidente e não decorrentes do mesmo.

Foi ainda parecer dos Snrs peritos médicos que tal doença (prévia ao acidente) não foi agravada pelo presente sinistro, não havendo lugar à aplicação, in casu, do disposto no art.º 11º da Lei 98/2009 de 04/09, conforme decidiu o Mmº Juiz a quo.

É pois entendimento da aqui Exponente que o exame pericial se cingiu a considerações técnicas assentes nos conhecimentos da ciência médica, necessários a elucidar o Tribunal e que permitissem aferir da existência de um nexo de causalidade entre as lesões observadas e o acidente.

Porém, isto não significa que a valoração judicativa não tenha cabido ao Julgador que com base nesta prova pericial decidiu de conformidade com o parecer unânime dos Senhores peritos médicos tendo fundamentado a sua convicção.

Assim, ainda que V.Ex.ªs decidam pela existência de erro na forma do processo, que deveria ter prosseguido para a fase contenciosa havendo lugar ao processado previsto na alínea a) do nº1 do art.º 117º do CPC, isto é, através de petição inicial, requer-se a V.Ex.ª que em obediência ao princípios de economia processual, seja mantido o exame por junta médica já realizado, independentemente da oportunidade de apresentação de outros elementos de prova.”

O Recorrente apresentou também resposta referindo o seguinte:
“(…)
É de concluir que a discordância das partes se limita à questão da incapacidade, quando em causa apenas está o apuramento da incapacidade, e os períodos relativos às incapacidades temporárias, tudo aspectos que não demandam a realização de outras diligências de prova que não sejam uma perícia.
Em momento algum foi colocado em causa o nexo causal e/ou lesões do Sinistrado revelados no exame pericial.
Não resulta dos quesitos apresentados aquando do requerimento de junta médica apresentado pela Seguradora, qualquer discordância relativa ao nexo de causalidade entre o acidente e as lesões, nem ao enquadramento das lesões/sequelas tidas em conta em tal exame.
Na referida tentativa de conciliação, a Ré Seguradora apenas não aceita o grau de incapacidade atribuída, não coloca em questão as sequelas/lesões descritas no auto de exame médico, muito menos a sua ligação com o acidente descrito, ou seja, o nexo de causalidade.
Ou seja, tendo em conta o auto de não conciliação e os quesitos formulados no requerimento de junta médica por parte da Seguradora, é patente que esta não coloca em causa o nexo de causalidade existente entre as lesões e o acidente.
Por outro lado, também não assiste razão à Recorrida, quando na sua resposta a este despacho (ref.ª 43316147 de 20/09/2022) refere que “(…) a questão inerente ao nexo de causalidade entre a lesão traumática que o sinistrado sofreu em consequência do acidente dos autos e a insuficiência venosa crónica que apresenta foi apreciada, discutida e analisada em face dos registos clínicos e de enfermagem juntos aos autos pela USF ... (…)” – SIC Resposta.
Pelo contrário, e surge até contrariado pela própria Recorrida nessa mesma resposta quando refere de seguida: “(…) nos registo clínicos da Seguradora onde o médico de cirurgia vascular que observou e acompanhou clinicamente o sinistrado, fez menção de que este apresenta insuficiência venosa com varizes tronculares e que deve controlar sintomas e usar meia de contenção elástica” – SIC Resposta.
Ora, daqui resulta que a Seguradora no decurso dos exames feitos por si ao Sinistrado já havia mencionado a referida e alegada insuficiência venosa. Do mesmo modo da alta hospitalar se já constava a referência “úlceras crónicas, HTA”, então era já do conhecimento da Seguradora em momento anterior à tentativa de conciliação.
Pelo que, à data da tentativa de conciliação, tendo já, conforme a mesma admite, tido tal feedback por parte dos seus médicos e documentação, então, mais uma razão, para reunir as condições necessárias para nessa tentativa de conciliação ter-se já oposto ao nexo de causalidade. Contudo, não o fez. Aceitou-o. Não o colocou em questão.
Pelo que, não o tendo feito em sede de tentativa de conciliação, onde reunia já registos e informações que o permitiam tê-lo efetuado, tendo aceite o nexo de causalidade, precludido está o seu direito de o colocar em questão em fase posterior, tendo a sua aceitação do nexo de causalidade formado caso julgado.
Pelo que, cremos, salvo melhor respeito por opinião contrária, estar atentos os fundamentos supra invocados estar impossibilitada a discussão do nexo de causalidade, pelo que, de igual modo, a junta médica ter de se ter pronunciado tendo em conta a existência de nexo de causalidade, e nunca o contrário.”

Colheram-se os vistos legais.
***
II. Matéria de facto provada:

A. Tem-se como assente o que consta do relatório precedente.

B. Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
“Por acordo das partes efetuado na tentativa de conciliação e dos elementos probatórios juntos resulta provado que:
- O sinistrado AA, no dia 06.03.2018, pelas 05h30, em Castelo de Paiva, sofreu um acidente de trabalho, que consistiu no seguinte: quando se deslocava no local de trabalho, embateu num carro de mão, tendo resultado traumatismo na perna direita.
- O acidente verificou-se quando trabalhava como padeiro, sob as ordens e direção da entidade patronal “P..., Ldª”, com sede em ..., ....
- À data do acidente, o sinistrado auferia a retribuição anual de €11.536,91 (€680x14+€56,81x11+€116x12).
- A entidade patronal tinha a sua responsabilidade emergente de acidente de trabalho transferida para a Companhia de Seguros X..., pela apólice nº ....
- Em consequência do acidente descrito, o A. esteve afetado com Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 07.03.2018 a 06.12.2018.
- Por conta desse período de incapacidade, a seguradora já pagou ao sinistrado a quantia de €3.940,57, como documentam fls. 43 a 48 e 75.
- O sinistrado nasceu em .../.../1957 e teve alta em 06.12.2018.
- O sinistrado despendeu a quantia de €30,00 para pagamento de despesas de transporte.”

C. Após o referido em B., referiu-se na sentença recorrida o seguinte:
“Estabelecidos os factos cumpre aos mesmos aplicar o direito.
As questões a decidir nos presentes autos prendem-se com o grau de incapacidade de que o sinistrado ficou afetado e, consequentemente, o montante da pensão a que tem direito e o valor que tem direito a receber pelos períodos de incapacidade temporária sofridos.
Atentas as sequelas de que o sinistrado é atualmente portador consequência do acidente dos autos, - cicatriz dolorosa ou facilmente ulcerável na perna direita, mostra-se correto o seu enquadramento no Capítulo II, ponto 1.5.2.b) da Tabela Nacional de Incapacidades.
Com efeito, acompanhamos a posição unânime dos senhores peritos médicos em sede de junta médica, que se mostra devidamente justificada, pois que não vislumbramos fundamento para estabelecer nexo causal entre a lesão traumática que sofreu em consequência do acidente descrito, em que “bateu com o pé num carrinho” e a doença que apresenta o sinistrado (insuficiência venosa crónica), prévia ao acidente. E é esta a razão da divergência do grau de incapacidade fixado no relatório de perícia singular do GML e o fixado em sede de junta médica, pois que, os peritos médicos que intervieram na junta médica, ao contrário do senhor perito que efetuou a perícia singular, não consideraram que os sinais de insuficiência vascular periférica bilateral que o sinistrado efetivamente apresenta sejam decorrentes do acidente dos autos, mas sim prévios ao mesmo, como fundamentaram no auto de exame por junta médica de fls. 201.
Veja-se que, para justificar a atribuição de um grau de incapacidade pelo ponto 2.2. do capítulo VI da Tabela Nacional de Incapacidade (angiocardiologia – lesões vasculares), o senhor perito do GML fez constar que “Recebemos cópias dos registos clínicos da USF ... (... – ACES .../...), onde não são descritos tratamentos ou medicação para insuficiência venosa”.
Acontece que, como resulta da análise desses registos clínicos, o sinistrado já andava em tratamentos a feridas/úlceras nessa perna direita pelo menos desde 16.02.2018, data prévia ao acidente. Desde logo, é o sinistrado que o confirma em sede de junta médica, esclarecendo que tais tratamentos foram na perna direita. Acresce que é precisamente isso que documentam os registos de enfermagem juntos a fls. 126 e ss, dos quais decorre que o sinistrado aí realizou “tratamento feridas/úlceras”, em datas anteriores ao sinistro (06.03.2018), designadamente em 16.02.2018, 19.02.2018, 22.02.2018, 26.02.2018, 01.03.2018 e 05.03.2018 (fls. 126 verso). Também no registo de fls. 128 verso, consta que o sinistrado em 16.02.2018, apresentava ferida traumática na região do calcanhar direito, com evolução de mais de um mês. Igualmente o registo de fls. 131 refere tratamento de ferida e vigiar penso da ferida em 16.02.2018 e em sucessivos dias do mês de fevereiro e março de 2018, todos anteriores ao acidente.
Além do que consta nesses registos de enfermagem, na nota da alta hospitalar datada de 30.03.2018 (fls. 7) consta expressamente na descrição dos antecedentes “úlceras crónicas, HTA”; e nessa mesma nota da alta, o médico do Centro Hospitalar ..., Dr. DD, refere como diagnóstico principal “Lesões traumáticas Úlcera crónica no tornozelo direito”. E nos registos clínicos da seguradora, designadamente os de fls. 88 a 93, pode ver-se que o médico da especialidade de cirurgia vascular, Dr. EE, que observou e acompanhou clinicamente o sinistrado entre 14.09.2018 e 06.12.2018, também referiu (e disso deu conta ao próprio sinistrado) que o sinistrado tem de base “insuficiência venosa com varizes tronculares e que deve controlar sintomas e usar meia de contenção elástica”.
E sublinha-se que, quando solicitado esclarecimento ao médico do Centro de Saúde, face ao declarado a fls. 140 (que não existia registo de queixas de patologia venosa dos membros inferiores em data anterior a 19.04.2018), no sentido de informar a que se deve, em sua opinião clínica, a ferida traumática na região do calcanhar direito que o sinistrado apresentava e que andou a ser tratada durante meses no Centro de Saúde, designadamente se a existência dessa ferida traumática com evolução de mais de um mês, era ou não um sinal de insuficiência venosa prévia ao acidente, a insistências do Tribunal, acabou por referir que teve acesso aos registos de enfermagem do utente, não podendo “ afirmar ou desmentir acerca da causa que possa ter provocado a referida ferida traumática na região do calcanhar direito” (cfr relatório médico datado de 11.01.2022, junto a fls. 210).
Daí que, a declaração médica constante de fls. 140, datada de 28.06.2019, onde a médica do Centro de Saúde refere que não existe registo de queixas de patologia venosa dos membros inferiores em data anterior a 19.04.2018, deixa por esclarecer, do ponto de vista clínico, a que se deve então a ferida traumática na região do calcanhar direito que o sinistrado apresentava em data anterior ao acidente dos autos e que andou a ser tratada durante meses no Centro de Saúde, e nessa medida (porque completamente omissa quanto a essa causa e a um diagnóstico) não é suficiente, nem bastante, para contrariar o diagnóstico que efetuaram os senhores peritos médicos em sede de junta médica, qual seja, que ao exame objetivo, o sinistrado apresenta sinais de insuficiência vascular periférica bilateral e que as alterações venosas que apresenta são prévias ao acidente e não decorrentes do mesmo. Tal diagnóstico é também reforçado pelo facto de na nota da alta hospitalar datada de 30.03.2018 constarem como antecedentes “úlceras crónicas” e como diagnóstico “Lesões traumáticas Úlcera crónica no tornozelo direito” e coincide com o diagnóstico do médico da especialidade de cirurgia vascular que observou o sinistrado aquando da assistência prestada pela seguradora após a recaída, que afirmou que o sinistrado tem de base “insuficiência venosa com varizes tronculares e que deve controlar sintomas e usar meia de contenção elástica” (cfr. fls.93).
Por fim refira-se que, é a própria Tabela Nacional de Incapacidades que, na descrição das lesões vasculares, enquadráveis no ponto VI do capítulo I, refere que um dos tipos de lesões mais frequentes na insuficiência vascular venosa são as feridas/ feridas venosas.
No enquadramento exposto, entendemos ser de acompanhar a posição dos senhores peritos médicos que intervieram na junta médica e que, por unanimidade, após observação do sinistrado e consulta dos elementos do processo, designadamente os aludidos registos de enfermagem, consideraram que o sinistrado apresenta sinais de insuficiência vascular periférica bilateral, mas que as alterações venosas que apresenta são prévias ao acidente e não decorrentes do mesmo. E também nenhum dos senhores peritos médicos considerou que tal doença (prévia ao acidente) pudesse ter sido agravada pelo acidente descrito nos autos, pelo que não há fundamento para equacionar a aplicação do artigo 11º da Lei nº98/2009, de 04.09.
Assim sendo, e considerando a natureza e extensão das sequelas que apresenta o sinistrado, com nexo causal com o acidente descrito, cicatriz dolorosa ou facilmente ulcerável na perna direita, julga-se adequado o coeficiente de 4,5%, já considerando a correta aplicação do fator de bonificação de 1,5, em razão da idade do sinistrado ser superior a 50 anos à data da alta clínica, atribuído por unanimidade na perícia por junta médica, inexistindo quaisquer fundadas razões para divergir desse parecer médico.”

D. Do relatório médico singular de 17.11.2019 (junto 09.01.2020) consta, para além do mais, o seguinte:
B. DADOS DOCUMENTAIS
Da documentação clínica que nos foi facultada consta cópia de registos do Companhia de Seguros X... e da USF ... do ACES .../... da qual se extraiu o seguinte:..........................................................
O examinado sofreu acidente de trabalho em 19/04/2018, do qual resultou ferimento extenso e necrótico da face posterior do terço distai da perna direita (doente com sinais de insuficiência venosa). Foi acompanhado em consultas de Cirurgia Vascular e Cirurgia Plástica. Efetuou as seguintes cirurgias: ………………………...……………………………
- em 27/04/2018 escarectomia e pias tia da ferida; ...........................
- em 14/05/2018 - enxerto dermoepidérmico; ...................................
Teve alta em 22/06/2018 curado da ferida da face posterior da perna (terço distai); em 07/09/2018, voltou à seguradora com extensa área de necrose maleolar externa, relacionada com insuficiência vascular, pelo que se solicitou observação por Cirurgia Vascular. Iniciou cuidados de penso e seguimento em Cirurgia Vascular; em 14/11/2018 mantinha ferida, cujo exame bacteriológico revelou vários microrganismos
Resistentes..........................................................................................
Em 03/12/2018 encontrava-se curado, sem feridas e teve alta definitiva em
06/12/2018, sem sequelas - sem IPP...............................................
Nas informações clínicas fornecidas pela USF ... do ACES .../... existe menção de ferida a ser tratada antes do acidente de 19/04/2019, mas não obtivemos resposta ao solicitado, ou seja, se existiriam queixas, sinais ou exames complementares de diagnóstico anteriores à data do acidente (19/04/2018) confirmando diagnóstico de insuficiência venosa crónica.................
C. ANTECEDENTES
1. Pessoais
Como antecedentes patológicos e/ou traumáticos relevantes para a situação em apreço, refere: varizes dos membros inferiores; hipertenso..............................................
A. QUEIXAS
Nesta data, o examinando refere as queixas que a seguir se descrevem:.............................................................................
- Postura/ deslocamentos e transferências: dificuldades na marcha, especialmente, carregado com objetos pesados, devido a dores e fadiga da perna;.............................................................................
(...)
Fenómenos dolorosos: dores na perna direita ao permanecer muito tempo de pé, que aliviam com o repouso e pioram após esforços físicos e com as mudanças climáticas; não toma analgésicos, habitualmente;................................................................
(...)
- Vida profissional: dificuldades em deambular no seu local de trabalho, especialmente ao permanecer muito tempo de pé, devido a dor e edema da perna e pé direitos .......................................
2. Lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento
O examinando apresenta as seguintes sequelas:..............................
Membro inferior direito: duas cicatrizes no terço médio da face anterior da perna esquerda, da cada lado da linha média medindo cento e vinte por oitenta e cinco e noventa por quarenta milímetros, respetivamente a lateral e a medial, sugestivas da colheita de enxerto cutâneo; extensa cicatriz distrófica e friável rodeando a região maleolar externa, na sua face posterior e inferior, medindo cento e vinte por setenta milímetros. Edema da perna de trinta e cinco milímetros, em relação ao membro contralateral.....................
3.Lesões e/ou sequelas sem relação com o evento
Oexaminando não apresenta lesões ou sequelas.............................
C EXAMES COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO
Efetuaram-se os seguintes exames complementares de diagnóstico: Recebemos cópias dos registos clínicos da USF ... (... - ACES .../...), onde não são descritos tratamentos ou medicação para insuficiência venosa crónica....................................
DISCUSSÃO
l. Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões, se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo e se exclui a pré-existência do dano corporal...............................................................................................
2. A data da consolidação médico legal das lesões é fixável em 06/12/2018, tendo em conta os seguintes aspetos: a data da alta clinica, o tipo de lesões resultantes e o tipo de tratamentos efetuados…………………………………………………......................................................
3. No âmbito do período de danos temporários são valorizáveis, entre os diversos parâmetros do dano, os seguintes: ...........................................................................................................
- Incapacidade temporária absoluta (correspondente ao período durante o qual a vítima esteve totalmente impedida de realizar a sua atividade profissional), desde 10-04-2018 até 06-12-2018, fixável num período total de 241 dias.................................................
4. A incapacidade permanente parcial resultante do acidente atual, tendo em conta as sequelas atrás descritas e a consulta da Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (Anexo I, Dec. Lei n° 352/07 de 23 de Outubro), é de 19,1700%. A taxa atribuída tem em conta o(s) artigo(s) da Tabela referido(s) no quadro abaixo indicado. ..............................................
5.Fator de Bonificação de 1,5 atribuído, atendendo à idade da vítima à data da consolidação (maior ou igual a cinquenta anos)………………………………………......................................................................

Mais tendo enquadrado as lesões nos seguintes capítulos da TNI:
-II.1.5.b) -0,02 – 0,02 – 0,02 de coeficiente arbitrado, capacidade restante de 1. e desvalorização arbitrada de 0,02.
-VI – 2.2. -0,11-0,20, 0,11 de coeficiente arbitrado, Capacidade restante de 0,98, desvalorização arbitrada de 0,10780,
- E o coeficiente global de IPP DE 19,170%
***
III. Objeto do recurso

Salvas as matérias de conhecimento oficioso, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável ex vi do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10).
Assim, são as seguintes as questões a apreciar:

1. Suscitadas pelo Recorrente:
1.a. Violação do princípio do contraditório por falta de notificação do A. dos registos de fls. 126 e segs;
1.b. Se os mencionados registos de fls. 126 e segs consubstanciam prova ilícita por violação do direito à privacidade;
1.c. Do nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e a doença de insuficiência venosa que o A. apresenta;
1.d. Da IPP.
2. Como questões prévias, as suscitadas no despacho da relatora de 13.09.2022:
2.1. Da admissibilidade, ou não, da discussão da questão do nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões em relação às quais a sentença recorrida excluiu tal nexo.
2.2. Em eventual caso afirmativo, da questão de eventual erro na forma do processo e consequente necessidade de anulação.
2.3. No caso do entendimento no sentido da impossibilidade de discussão do nexo de causalidade, da necessidade de anulação com vista a pronúncia, pela junta médica, da IPP tendo em conta tal entendimento (uma vez que a junta médica, na IPP atribuída, partiu do pressuposto da inexistência de tal nexo).
3. Suscitada pelo Ministério Público no seu parecer: da litigância de má-fé por parte do Recorrente.

Importa esclarecer que, na sentença recorrida, se considerou que “em consequência do acidente descrito, o A. esteve afetado com Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 07.03.2018 a 06.12.2018.”, em consequência do que condenou a Ré a pagar-lhe a quantia de €2.143,93 a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária que ainda se lhe encontrava em dívida [cfr. decisão da matéria e facto provada e respetiva fundamentação constantes da sentença], segmento decisório este de que não foi interposto recurso, mormente pela Ré [nem é objeto do recurso dos presentes autos] e que, assim, transitou em julgado

Começaremos, por uma questão de precedência lógica, pelas questões prévias referidas no ponto 2 suscitadas no despacho da ora relatora de 13.09.2022.
***
IV. Das questões prévias suscitadas no despacho da ora relatora de 13.09.2022

1. No mencionado despacho suscitamos como questões prévias: a da admissibilidade, ou não, da discussão do nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões em relação às quais a sentença recorrida excluiu tal nexo; em caso de eventual resposta positiva, a da tramitação processual a seguir; em caso de eventual resposta negativa, da necessidade de pronúncia, pela junta médica, da IPP tendo como pressuposto a verificação do nexo de causalidade.

1.1. Do ponto de vista do direito substantivo, um dos requisitos indispensáveis à caracterização de um acidente como acidente de trabalho é que dele resultem lesões que sejam determinantes de incapacidade para o trabalho (seja esta temporária ou permanente) – art. 8º, nº 1, da Lei 98/2009, de 04.09.
Ou seja, é necessário que o sinistrado apresente uma lesão e que esta seja consequência do acidente, este o nexo de causalidade, o qual pode, todavia, decompor-se ou apresentar vários subnexos. Assim é que do acidente pode decorrer uma lesão e esta, por sua vez, pode determinar uma outra lesão ou sequela, caso em que, tudo, está abrangido pelo referido nexo causal entre o acidente e as lesões dele decorrentes; ou, dito de outro modo, necessário é que a lesão e as eventuais sequelas que o sinistrado apresente estejam, em relação ao acidente, numa relação de causa-efeito, de tal modo que a eventual sequela seja determinada pela lesão sofrida no acidente. Mas, isto, sem prejuízo do disposto no art. 11º, designadamente nº 2, da Lei 98/2009, de 04.09 [nos termos do qual se a lesão ou doença consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior ou quando esta for agravada pelo acidente, a incapacidade deverá ser avaliada como se tudo resultasse do acidente (a menos que pela lesão ou doença anterior o sinistrado já esteja a receber pensão ou haja recebido capital de remição)].
A existência de lesão(ões) e/ou sequelas determinadas pelo acidente e/ou do agravamento a que se reporta o citado art. 11º, nº 2, é pois essencial ao conceito de acidente de trabalho.

1.2. Do ponto de vista processual e para melhor enquadramento, ainda que sinteticamente, dir-se-á o seguinte, tendo presente o CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10:
À efetivação judicial da reparação devida por acidente de trabalho corresponde uma ação própria, com uma forma de processo especial, prevista no CPT, qual seja a constante dos seus arts. 99º e segs.
Tal processo é composto por duas fases: uma, primeira, designada por fase conciliatória, na qual avultam a realização de exame médico singular, a realizar por perito médico do Tribunal (ou do Instituto de Medicina Legal), com vista à determinação das lesões e sequelas e à avaliação da correspondente incapacidade, seguida de tentativa de conciliação, na qual as partes se pronunciam sobre todas as questões relevantes à determinação da reparação devida (art. 109º):
i) Obtido acordo nessa tentativa de conciliação, será o mesmo homologado (arts. 109º, 111º e 114º);
ii) Frustrado o acordo, dispõe o art. 112º, nº 1, que: “1. Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respetivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordoo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída.”
Na hipótese referida em ii) – de frustração do acordo - das duas, uma: (a) ou as partes, na tentativa de conciliação, acordaram sobre todos os aspetos relevantes, incluindo o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões, apenas discordando quanto à incapacidade; (b) ou a razão da discórdia tem por objeto qualquer outra questão que não, apenas, a da incapacidade.
Em ambas as situações, inicia-se então uma fase contenciosa, com diferente tramitação consoante se esteja perante a situação referida em a) ou b).
Na hipótese referida em a), tem lugar uma tramitação simplificada, que tem início com requerimento solicitando exame por junta médica (arts. 117, nº 1, al. b) e 138º, nº 2), a ele se procedendo (no processo principal), nos termos do art. 139º, após o que será proferida decisão, de harmonia com o art. 140º, nº 1.
Na hipótese referida em b), tal fase tem início com uma petição inicial [art. 117º, nº 1, al. a)], seguindo-se os demais articulados previstos. Se, para além das demais questões, estiver em causa também a discordância da incapacidade, deverão as partes, nos articulados, requerer o exame por junta médica. Proferido despacho saneador e selecionada a matéria de facto, se estiver também em causa a fixação da incapacidade, deverá o juiz determinar a abertura de apenso para o efeito, no qual se decidirá da questão da fixação da incapacidade, fixando-se a natureza e grau de desvalorização, mas podendo a decisão ser impugnada no recurso a interpor da decisão final (arts. 126º, nº 1, 132º, nº 1 e 140º, nº 2). Todas as demais questões são decididas no processo principal, após a legal tramitação, que inclui audiência de discussão e julgamento.
No que, concretamente, se refere ao nexo de causalidade entre o acidente e as lesões, consubstancia ele questão que extravasa a da mera discordância relativamente à incapacidade a atribuir, pelo que: havendo, na tentativa de conciliação, acordo das partes quanto ao nexo de causalidade entre o acidente e as lesões, tal questão fica assente, não podendo vir a ser posteriormente decidida e se, outras questões não existirem a demandarem o início da fase contenciosa pela forma prevista no art. 117º, nº 1, al. a), estando apenas em causa a determinação da natureza da incapacidade [se temporária, se definitiva e com esta questão se relacionando intimamente a da data da alta definitiva da qual depende a natureza da incapacidade] e o respetivo grau, deverá o processo prosseguir nos termos da forma simplificada prevista no art. 117º, nº 1, al. b), do CPT.
Ou seja, se a discordância das partes, na tentativa de conciliação, radicar apenas na determinação da incapacidade, esta abrangendo a sua natureza (temporária ou permanente e consequente data da cura clínica/alta definitiva) e seu grau, a fase contenciosa deverá ter lugar pela forma simplificada prevista no art. 117º, nº 1, al. b), do CPT, isto é, através de requerimento para exame por junta médica, subsequente realização de tal junta médica.
Já se tiver havido desacordo das partes quanto ao nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões, deverá a fase contenciosa prosseguir, porém com a tramitação a que se reporta o art. 117º, nº 1, al. a), e preceitos correspondentemente aplicáveis, incluindo realização da audiência de julgamento, sendo que não compete à junta médica a apreciação do referido nexo causal. Poderá o Tribunal, naturalmente mas como elemento adjuvante e sem prejuízo das demais provas a produzir em sede de audiência de discussão e julgamento, solicitar à junta médica que, face aos conhecimentos médicos de que dispõem os srs. peritos médicos, se pronunciem sobre tal matéria, mas nunca poderá, a simples realização da junta médica, suprir a necessidade da fase contenciosa a que se reporta o art. 117º, nº 1, al. a), e respetiva tramitação.
E tais considerações tanto valem para o estabelecimento do nexo causal entre o acidente e a lesão e/ou agravamento a que se reporta o art. 9º, nº 2, da Lei 100/97, como para a verificação dos eventuais vários subnexos causais entre a lesão decorrente do acidente e outras eventuais lesões/sequelas dela decorrentes.
Porém, havendo acordo na tentativa de conciliação quanto à questão do nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões, essa questão fica, como se disse, assente, não podendo vir a ser suscitada, seja pelas partes (mormente pela responsável pela reparação, no caso, a Seguradora), seja oficiosamente, na fase contenciosa tenha esta lugar nos termos da al. a) ou da al. b) do nº 1 do art. 117º do CPT.
Diga-se que, tomada pela parte determinada posição na tentativa de conciliação, a declaração em que essa posição se consubstancia apenas poderá ser afetada por qualquer vício da vontade que a inquine, o qual, e suas consequências, apenas poderão fazer-se valer, não no âmbito da ação emergente do acidente de trabalho, mas sim em ação própria visando a anulação dessa declaração.

1.3. Revertendo ao caso em apreço, verifica-se que a Ré Seguradora, na tentativa de conciliação que teve lugar na fase conciliatória do processo declarou que “2 – A companhia de seguros concorda com todos os dados atrás referidos, com excepção dos períodos de incapacidade temporária e do grau final de I.P.P. atribuídos pelo G.M.L.F., uma vez que considera que os mesmos são menores. Assim, não aceita pagar ao sinistrado qualquer quantia a título de diferença de indemnização pelas incapacidades temporárias e não se concilia”, sendo que dos “dados atrás referidos” consta o relativo ao nexo de causalidade entre o acidente e as lesões. E, nessa sequência, o Ministério Público deu “as partes por não conciliadas e determinou que aguardem os autos pelo prazo de vinte dias o pedido de Junta Médica a ser deduzido em requerimento pela seguradora (o qual deve ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos - cfr. al. b) do art.º 117º nº 1 e art.º 138º, nº 2, todos do C.P.T.).”, fase contenciosa essa que teve inicio por requerimento da Ré seguradora para realização de exame por junta médica, tendo, para o efeito, formulados dois quesitos, a saber: “1. Qual a IPP? 2. Quais os períodos de Incapacidade Temporária?”
Ou seja, a Ré Seguradora concordou com o nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões, apenas discordando do grau de IPP e dos períodos, e respetivos coeficientes de desvalorização, da incapacidade temporária [e, por consequência, também da data da alta definitiva].
Assim, e bem, a fase contenciosa prosseguiu de acordo com o processado simplificado do art. 117º, nº 1, al. b), sendo certo que a questão do nexo de causalidade entre o acidente e as lesões, concretamente, o nexo de causalidade entre aquele e as lesões ou alterações venosas que o A. apresenta já se encontrava assente na tentativa de conciliação por via da aceitação das partes, mormente da Ré Seguradora, questão essa que não podia vir a ser suscitada, na fase contenciosa, seja por iniciativa da Ré, seja por iniciativa oficiosa do Tribunal, muito menos por iniciativa “oficiosa” da junta médica, a qual sobre ela não se poderia, nem se deveria ter pronunciado. Aliás, e diga-se, a Ré Seguradora nem sequer suscitou tal questão na fase contenciosa, como se vê, até, dos quesitos que formulou para serem submetidos à junta médica, nenhum deles contendo matéria relativa ao mencionado nexo de causalidade.
Diga-se, até, que os elementos clínicos indiciadores dessas lesões/doença, e em que aliás a Mmª Juiz se baseou para excluir o nexo de causalidade, já se encontravam juntos aos autos na fase conciliatória, concretamente, antes da realização do último relatório médico singular e da tentativa de conciliação: os elementos clínicos foram juntos aos 09.04.2019; o relatório médico singular foi junto aos 17.11.2019; e a tentativa de conciliação teve lugar aos 02.03.2021. Ora, a esta data, já a Ré poderia ter tomado uma posição de eventual não aceitação do nexo de causalidade, o que não fez, antes a tendo aceite. Acresce, como até se diz na sentença recorrida e na resposta da Ré ao nosso despacho de 13.09.2022, já dos registos clínicos da Seguradora se retira que “o médico de cirurgia vascular que observou e acompanhou clinicamente o sinistrado, fazia menção de que este apresenta insuficiência venosa com varizes tronculares e que deve controlar sintomas e usar meia de contenção elástica”.
Ou seja se, porventura, entendesse a Ré seguradora no sentido da inexistência do nexo causal entre o acidente e as mencionadas lesões venosas, poderia e deveria, na tentativa de conciliação, ter discordado de tal nexo. Balizados, que foram, os temas em discussão pela aceitação da Ré na tentativa de conciliação do nexo de causalidade entre o acidente e as lesões, não se pode agora vir a discutir, em sede de fase contenciosa, tal questão, muito menos oficiosamente como, no caso, sucedeu, pois que a Ré Seguradora nem tão pouco a suscitou [nem o poderia fazer], havendo sido a junta médica que, sem que tal questão lhe tivesse sido suscitada nos quesitos médicos, se pronunciou no sentido da sua inexistência, no que foi acompanhada pela sentença recorrida.
Impõe-se pois concluir que se encontra assente na tentativa de conciliação o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões venosas que o sinistrado apresenta. E, não havendo, como não havia, outras questões controvertidas a demandarem a tramitação do processado de acordo com o art. 117º, nº 1, al. a), do CPT, impõe-se igualmente concluir que a tramitação processual simplificada a que se reporta o art. 117º, nº 1, al. b), do CPT e preceitos correspondentes é a adequada [neste se inserindo a a apreciação das demais questões controvertidas, estas relativas à determinação dos períodos de incapacidade temporária e graus de incapacidade, temporária e permanente]. E, assim sendo, não ocorre erro na forma do processo, não sendo de anular o processado.
Impõe-se pois revogar a sentença recorrida na parte em que considerou não verificado o nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões venosas que o Recorrente apresenta, nexo esse que já se encontrava assente por acordo das partes na tentativa de conciliação, sendo que o grau de IPP que vier a ser fixado deverá ter em conta as lesões venosas excluídas pela junta médica e pela sentença recorrida e que deverão ser atendidas.
E assim sendo procede a questão suscitada pela Recorrente mencionada no ponto IV.1.c. do presente acórdão, relativa ao nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões/alterações venosas que o Recorrente apresenta, embora com diferente fundamentação da aduzida no recurso.

1.5. Não se mostra, porém, possível a esta Relação proceder à fixação da incapacidade permanente de que o sinistrado se encontra afetado pois que os Srs. peritos médicos que intervieram na junta médica, tendo partido do pressuposto da inexistência do nexo de causalidade entre o acidente e as lesões/alterações venosas , não se pronunciaram sobre tais questões no pressuposto da existência do referido nexo causal.
Impõe-se pois que a junta médica, partindo do pressuposto da existência de nexo de causalidade entre o acidente e as lesões e/ou alterações venosas que o sinistrado apresenta (e sem prejuízo das demais já verificadas pela junta médica, já enquadradas no Cap. II.1.5.b) da TNI) se pronuncie sobre o coeficiente de desvalorização de incapacidade permanente que o sinistrado apresenta em face dessas lesões e da consequente incapacidade total (ié, tendo em conta também a já considerada no auto de exame por junta médica).

2. Em face do referido fica prejudicado o conhecimento da questão referida no ponto IV.1.d. do presente acórdão (IPP que o Recorrente apresenta), assim como ficam prejudicadas as questões referidas no mencionado ponto IV.1.a. e IV.1.b. – da violação do princípio do contraditório por falta de notificação do A. dos registos de fls. 126 e segs e se os mencionados registos de fls. 126 e segs consubstanciam prova ilícita por violação do direito à privacidade -, sem prejuízo, porém, quanto a estas, da sua abordagem, nos termos que a seguir se farão, no âmbito da apreciação da questão da litigância de má-fé suscitada pelo Ministério Público no seu parecer.

3. Da litigância de má-fé suscitada pelo Ministério Público

No seu parecer o Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto suscitou a questão da litigância de má-fé do Recorrente na invocação das questões da violação do princípio do contraditório por alegada falta de notificação do A. dos registos de fls. 126 e segs e da relativa à ilicitude da prova consubstanciada na junção dos mencionados registos por violação do direito à privacidade, para o que, após a enunciação da tramitação processual que teve lugar nos autos, refere o seguinte:
“(…)
Isto posto, demonstra-se à evidência a sem razão do recorrente nas suas 3ª. a 11ª. conclusões, pois que na fase instrutória conformou-se com a legalidade, legitimidade e bondade intelectual de tais meios probatórios, designadamente dos “registos clínicos integrais” que foram sugeridos pelo Exmo. Perito Médico e cuja junção aos autos foi deferida pela Mma. Juíza para a finalidade em causa (cfr. supra nº.s 1e 2) e sem que se vislumbre qualquer fundamento para notificação ao recorrente. Então, jamais os questionou e dos quais fez o melhor aproveitamento processual, que bem entendeu.
Consequentemente, que a douta sentença recorrida teve de atender, como atendeu, além do mais, aos sobreditos meios probatórios para fixar a ITA em 4,5%.
Agora, nas conclusões do recurso, no modo intolerável como as formula, por não ter obtido decisão que se lhe mostrasse satisfatória, age em infracção do dever de lealdade e de cooperação com a justiça, ao invocar os inexistentes vícios de violação do princípio do contraditório e de reserva da vida privada. Tal conduta, por pôr em causa deliberadamente a verdade material dos factos processuais é passível de ser sancionada como litigância de má fé – cfr. Artigo 542.º nº.s 1 e 2 al. d) do CPC e Ac. TRCoimbra, de 07/02/2020 (www.dgsi.pt).”
A tal parecer opôs-se o Recorrente nos termos em que deixámos consignados no relatório do presente acórdão.

3.1. Para que ocorra a litigância de má-fé não basta que a pretensão ou defesa não tenha acolhimento, devendo, antes, o caso subsumir-se a alguma das situações previstas no nº 2 do artº 542º do atual CPC/2013 [no mesmo sentido dispunha também o art. 456º do CPC revogado], de harmonia com o qual:
1 – Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 – Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3 – (…).
A litigância de má-fé constitui corolário dos deveres processuais de verdade, lealdade e cooperação com vista a uma breve, eficaz e justa composição do litígio – cfr. arts. 7º, nº 1, e 8º, do atual CPC [que correspondem aos arts. 266º e 266º- A do CPC revogado].
Assim, se a parte deduz pretensão ou defesa cuja falta de fundamento não ignora ou não devia ignorar, com o propósito ilegítimo de obter decisão que não merece a tutela do direito ou que, com má-fé, altera ou omite a verdade de factos relevantes por si conhecidos (no que se consubstancia a má-fé material), viole gravemente o dever de cooperação ou faça um uso reprovável do processo nos termos previstos no al. d) do nº 2 do citado artº 542º (no que se consubstancia a má-fé instrumental), deverá ser condenada como litigante de má-fé.
A litigância de má-fé não pode, porém, traduzir-se numa limitação do legítimo direito de as partes discutirem e interpretarem a factualidade e o regime jurídico aplicável, ainda que jurisprudencialmente minoritária ou pouco consistentes se apresentem as respetivas teses. E, porque assim é, é que, nos termos do citado preceito, igualmente se exige uma conduta dolosa ou gravemente negligente da parte na sua atividade processual, sendo certo, e tendo-se presente, que a incerteza da lei, a dificuldade da prova, do apuramento e da interpretação dos factos e da sua qualificação jurídica poderão, por vezes, conduzir a um desfecho da ação em sentido contrário àquele que a parte, convicta e seriamente, defendia e desejava.
Impõe-se pois que a conduta da parte seja passível de um juízo de grave censura, o que ocorrerá, não quando se esteja perante uma mera leviandade ou imprudência, mas sim perante uma conduta intencionalmente maliciosa (dolosa) ou que traduza uma grave ou grosseira “falta de precaução pela mais elementar prudência que deve ser observada nos usos correntes da vida. Mas só quando o processo fornece elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente diligente deverá a parte ser censurada como litigante de má-fé, o que pede prudência ao julgador, (…)” - Cfr. Acórdãos da RP de 12.05.05 (e Ac. do STJ de 11.12.2003, naquele citado) e de 22.01.2007 (Processo 0645005), ambos em www.dgsi.pt.
Para a litigância de má-fé não basta, pois, que a parte não veja acolhida a sua pretensão, mas a ela também não obstando que a pretensão da parte seja acolhida. Para que tal litigância ocorra é, assim, necessário que se esteja perante situação que não deixe margem para dúvidas quanto à conduta dolosa ou gravemente negligente da parte violadora dos supra mencionados deveres, tendo tal figura subjacente um juízo de censura do comportamento da parte merecedor dessa condenação.

3.2. Revertendo ao caso em apreço, o Recorrente veio, no recurso, invocar a violação do princípio do contraditório por, tendo a sentença assentado a sua decisão nos registos clínicos de fls. 126 e segs, os mesmos nunca lhe terem sido notificados e sobre eles não se tendo podido pronunciar e, bem assim, na ilicitude dessa prova por violação do direito à privacidade dizendo que: “7) Por outro lado, tais registos de enfermagem identificam elementos sobre o estado e percurso de saúde do Recorrente, diretamente relacionados com a sua esfera íntima, e por isso, integram o direito constitucional de reserva da vida privada. 8) Tais registos foram entregues à Seguradora a pedido desta sem consentimento do Recorrente, sendo certo que tais registos se encontram a coberto da Lei da Proteção de Dados Pessoais (Lei n.º 67/98 de 26.10).” [sublinhado nosso]
Os registos a que o Recorrente alude foram juntos na fase conciliatória do processo, por solicitação do perito médico singular (cfr. relatório médico junto a 13.03.2019) e subsequente determinação do Ministério Público (cfr. despacho do mesmo de 21.03.2019) destinando-se a habilitar o referido perito na realização da perícia médica. Se e na medida em que, porventura, tal notificação devesse ter ocorrido, tal constituiria nulidade processual, que há muito estaria sanada, sendo que o sinistrado interveio na tentativa de conciliação sem que a tivesse arguido e sendo, até, de salientar que o sinistrado nela esteve acompanhado da sua ilustre mandatária. De todo o modo, também no laudo da junta médica foram referidos os mencionados exames, laudo que foi notificado ao Recorrente e ao qual aliás este respondeu aos 07.10.2021, sem que tivesse arguido qualquer nulidade por falta de notificação dos mencionados exames, a eles até fazendo referência dizendo que “Nessa sequência o Sinistrado pronunciou-se e solicitou que fosse notificado a USF ... ACE .../... para informar aos autos se existia queixas, sinais ou exames sobre eventuais feridas ulcerosas anteriores a 19/04/2018, conforme se pode comprovar pela analise dos autos, de forma a esclarecer a informação que haviam constante a fls. 126.”
Ou seja, serve o referido para dizer que é extemporânea a invocação, apenas em sede de recurso, da falta de notificação dos registos em causa, não sendo o facto de neles se basear a sentença recorrida e de esta ter sido desfavorável ao Recorrente que lhe permite a invocação da violação do princípio do contraditório. Aliás, que a sentença pudesse vir a interpretar os mencionados registos da forma em que o fez nem consubstancia qualquer surpresa tendo em conta o laudo da junta médica e o despacho de 07.10.2021. Dando até “de barato” que a eventual nulidade por não notificação desses registos estaria sanada, no mínimo poderia o Recorrente, perante o laudo da junta médica, ter solicitado ao Tribunal que lhe enviasse os registos em causa se não tivesse conhecimento do seu teor ou a eles não pudesse ter tido acesso, pese embora já constassem dos autos desde momento muito anterior ao de várias intervenções do Recorrente no processo. A arguição, no recurso, da falta de notificação desses registos é pois manifestamente extemporânea.
E o mesmo se diga quanto à alegada ilicitude da prova, sendo que no decurso de todo o processo o Recorrente não a invocou, dela tendo, desde há muito, conhecimento. Mas, quanto a esta linha de defesa do Recorrente, importa ainda referir que defende o mesmo a ilicitude da prova dizendo que “Tais registos foram entregues à Seguradora a pedido desta” o que, manifestamente, não corresponde à verdade. Como decorre do que se disse no relatório do presente acórdão, e está bem patente nos autos, os registos clínicos não foram entregues à Seguradora a pedido desta. Foram entregues ao Tribunal a pedido do Tribunal na sequência de solicitação do perito médico singular, pelo que tal alegação consubstancia, senão mesmo uma consciente falta à verdade, pelo menos uma grosseira desatenção ao processo.
Poderia, pois, indiciarem os autos a existência de litigância de má-fé por parte do Recorrente que, pelo menos com negligência grave, teria deduzido pretensão (recursiva, no que a essas questões toca) cuja falta de fundamento não deveria ignorar e ter alterado a verdade dos factos, mormente quanto à alegação de que os registos clínicos foram juntos a requerimento da Ré Seguradora e a esta entregues.
Não obstante, tais questões ficaram prejudicadas face ao decidido no ponto IV.1.3. do presente acórdão e sendo que é também certo que, pelo que se deixou dito, a questão da existência do nexo causal entre o acidente e as lesões já estava assente em sede de tentativa de conciliação, não podendo ser questionada no âmbito da fase contenciosa e, por consequência, ainda que por diferente fundamento, não devendo a 1ª instância ter atendido a tais registos para fundamentar a inexistência de nexo causal em relação às lesões venosas entre o acidente e tais lesões. As mencionadas questões (violação do principio do contraditório e ilicitude da prova) não tiveram, nem tinham, pois, a possibilidade de influir na sorte da ação. E, assim sendo, e tendo ainda em conta os princípios da adequabilidade e proporcionalidade que devem estar subjacentes à aplicação de uma medida sancionatória, como o é a litigância de má-fé e consequente aplicação de multa, entendemos não ser de condenar o Recorrente como litigante de má-fé.
***
IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso, ainda que por fundamentação diversa da alegada pelo Recorrente, e em consequência:
A. Revogar a sentença recorrida na parte em que considerou não verificada a existência de nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões/alterações venosas apresentadas pelo Autor e lhe fixou a IPP de 4,5%, que é substituída pelo presente acórdão em que, pelos fundamentos expostos, se decide:
a.1. Julgar verificado o nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões/alterações venosas apresentadas pelo Recorrente;
a.2. Determinar à 1ª instância que proceda à reabertura do exame por junta médica para que, partindo do pressuposto da existência do mencionado nexo de causalidade entre o acidente e as lesões/alterações venosas que o sinistrado apresenta (sem prejuízo das demais já verificadas pela junta médica), se pronuncie sobre o coeficiente de desvalorização de incapacidade permanente que o sinistrado apresenta em face dessas lesões e da consequente incapacidade total (ie, tendo em conta também a já considerada no auto de exame por junta médica).
a.3. E devendo a 1ª instância, oportunamente, proferir sentença.
B. No mais não impugnado no recurso, mantém-se a sentença proferida pela 1ª instância.
C. Julgar improcedente a questão da litigância de má-fé do Recorrente suscitada pelo Ministério Público no seu parecer.

Custas pela Recorrida, não sendo, todavia, devida taxa de justiça uma vez que, não tendo contra-alegado, não deu impulso processual ao recurso – art. 6º, nº 1, do RCP.

Porto, 23.01.2023
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Jerónimo Freitas