CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS PSÍQUICOS
Sumário

I - São maus tratos psíquicos, entre outros, os insultos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações da liberdade, provocar estados de angústia e sentimentos de sujeição, opressão, que apesar do sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação.
II - Por isso, constituem danos suficientemente graves para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, incompatível com a dignidade da pessoa humana, representando um aviltamento e humilhação da vítima que não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria.
III - Sendo o crime de violência doméstica um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido, não é necessário, para que se verifique tal crime, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima, bastando que se pratiquem atos em abstrato suscetíveis de provocar tais danos.

Texto Integral

Proc. n.º 564/19.5PIPRT.P1


Acordam em Conferência no Tribunal da Relação do Porto


O arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a) e nº 2, alínea a) do Código Penal na pena de dois anos e quatro meses prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Ao abrigo do disposto no art.º 21.º, n.º1 da lei n.º 112/2009, foi o arguido também condenado a pagar à assistente, três mil e quinhentos euros, durante o período da suspensão da pena.

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Inconformado, veio o arguido recorrer desta decisão, colocando em causa a decisão do Tribunal sobre a matéria de facto, contestando vários factos dados como provados e entendendo que deveriam ter sido dados como provados outros factos que se consideraram não provados.
Entende que não foi valorada prova documental junta pelo Recorrente com a sua Contestação, estando perante uma clara e notória nulidade, da omissão do Acórdão de 1ª Instância quanto à prova junta, nulidade que se argui ao abrigo do artigo 410.º do CPP.
Existe, portanto, um erro notório na apreciação da prova.
Considera ainda que os factos dados como provados sob o nºs 1 a 3, 5 a 9, 11, 13, 16, 18, 20, 21, 27 a 29, 32, 33, 36, 40, 41 e 48 a 53, jamais poderiam determinar uma condenação por um crime de violência doméstica, sendo notória a contradição entre a fundamentação e a Decisão Final.
Resulta assim, que os depoimentos das testemunhas eram insuficientes para a decisão da matéria de facto dada como provada, inexistindo matéria suficiente que sustente a formação da convicção vertida no Acórdão, sendo fraca ou inexistente, a prova atribuída às declarações da Assistente e do depoimento do Pai da Assistente.
Conclui que se verifica, conforme resulta do número 2 do artigo 410.º do CPP, “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão” e “erro notório na apreciação da prova” e que foi violado o Princípio do In Dubio Pro Reo.
No fundo, entende, pois, o arguido que o Tribunal a quo julgou incorrectamente alguns aspectos da prova produzida e que o mesmo deveria ser absolvido da prática do citado crime de violência doméstica.
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Consta da decisão recorrida, na parte que aqui nos interessa, o seguinte:
« Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1- O arguido é piloto da aviação da T....
2- A assistente é professora Universitária.
3- A assistente BB e o arguido iniciaram uma relação de namoro em data não concretamente apurada do mês de outubro de 2007, tendo a assistente vivido com o arguido em Cascais antes do matrimónio.
4- Em data não concretamente apurada mas no mês de Fevereiro ou Março de 2008, estando o arguido constipado, a assistente insistiu para que fossem jantar com amigos e porque o estado de saúde daquele piorou foi-lhe diagnosticada uma gripe virica, o arguido culpou a ofendida que insistiu em sair e ir jantar, mostrando-se também desagradado pois já não poderia ir em serviço ao Brasil .
5- Por várias vezes e em datas não concretamente apuradas o arguido disse à ofendida “ eu cuido de ti, não precisas de trabalhar dessa forma por tão pouco, eu recebo bem, não há necessidade de fazeres tantos esforços”.
6- O arguido e assistente casaram em .../.../2009, tendo fixado residência em Cascais, desse casamento nasceu a .../.../2011 , o filho de ambos CC.
7- No verão de 2009, estando o arguido a maior parte do tempo fora, em trabalho, a assistente manifestou a intenção de ir passar uns dias de férias com os pais a Vila Nova de Cerveira tendo o arguido lhe dito “ não vais , o teu lugar é aqui, a cuidar desta casa”, mas não impediu a arguida de ir passar férias com os seus progenitores, o que não aconteceu por vontade da assistente.
8- No Natal de 2009, o arguido e assistente combinaram previamente que passariam tal época festiva com os pais da assistente, o arguido colocou entraves a que viessem para o Porto àquela hora porque tinha chegado do trabalho e precisava de descansar, tendo saído de Cascais apenas pelas 20h chegando apenas às 24h a casa dos pais da assistente após insistência da assistente, que nesse dia se sentiu angustiada e triste.
9- A assistente – que é professora universitária na faculdade ... – esteve durante o verão de 2010 a trabalhar na sua tese de doutoramento.
10- Em data que não pode precisar mas no ano de 2010 o casal compareceu em dois casamentos de amigos da assistente, o arguido, sentiu-se mal, com problemas gástricos, de imediato culpou a assistente por tal pois ele preferia não ter ido a nenhum dos eventos e por forma a evitar conflitos, a assistente recusou convites posteriores.
11- No dia 19 de Agosto de 2010 a assistente e o arguido vieram ao Porto pois a primeira tinha de entregar a tese de doutoramento, o arguido dormiu até depois da hora de almoço, razão pela qual aquela só entregou a tese no período da tarde.
12- Após muitas discussões relacionadas quase todas elas com a vinda da assistente a casa dos seus progenitores, no dia 3 de Setembro de 2010, o casal decidiu separar-se mas a assistente não teve coragem para tal, mantendo-se junto do.
13- No dia 8 de Setembro de 2010 – dia de aniversário dos 60 anos do pai da assistente – o arguido ficou em Lisboa e decidiu não ir ao aniversário do pai assistente e sabia que tal conduta iria ser causar tristeza à sua esposa, mas não a impediu de vir ao Porto festejar o aniversário do progenitor.
14- O arguido chegou atrasado aos eventos sociais da família nomeadamente na inauguração da exposição de pintura da progenitora da ofendida, em 15 de Outubro de 2010; no ano seguinte, na Páscoa, o casal chegou ao almoço de família em casa da tia da assistente, apenas pelas 17h.
15- O arguido, em datas que não foi possível apurar disse à assistente “ tens de cortar o cordão umbilical, não tens nada que ir para o Porto”.
16- No dia 19 de Agosto de 2011 - véspera de apresentação da tese de doutoramento da assistente – o arguido telefonou-lhe, por várias vezes, dizendo-lhe “estás já no Porto, porque tenho de ir, porque não posso ficar em casa a descansar”, o arguido acabou por se deslocar para o Porto e acabou por estar presente.
17- Em Fevereiro de 2011 o casal foi passar um fim de semana ao Alentejo, oferta dos pais da assistente, o arguido, sofreu um novo problema gástrico, voltou a culpar aquela, recusou sair do quarto e impediu também que a mesma saísse, após a primeira noite regressaram a casa, em Cascais.
18- No dia 7 de Setembro de 2011 a assistente fez a apresentação pública de um livro de sua autoria, no ... de ..., contando com a presença do então Bispo do Porto, o arguido esteve presente no exterior com o filho não tendo entrado na sala de conferências.
19- Em data não apurada mas quando a assistente estava grávida de 6 meses, durante uma discussão, na casa em Cascais, por motivos relacionados com o facto da assistente querer vir ao Porto, o arguido arremessou um livro à barriga da assistente que teve de se desviar não lhe tendo acertado na barriga em tal ocasião a assistente ficou assustada e triste.
20- A assistente teve indicação do médico para que se apresentar no Hospital 1 ... no dia 17 de Maio de 2011, pelas 09h, para se preparar para o nascimento do filho, facto que comunicou ao arguido, este porém disse que precisava de dormir e apenas levou a assistente ao hospital pelas 12h.
21- O filho do casal, CC , nasceu nesse dia pelas 21h e foi a mãe da assistente quem ficou a dormir no hospital, prestando apoio à mesma.
22- Na primeira semana de vida do filho do casal , encontrando-se o arguido e a assistente a jantar na casa de morada de família ,porque o menor, filho de ambos, não parava de chorar, a assistente dirigiu-se ao quarto tendo o arguido agarrado a assistente pelos braços e dizendo-lhe “ não entras que ele ganha manhas”, referindo-se ao filho de ambos, e mesmo contra a vontade do arguido a assistente acabou por entrar no quarto, tendo o filho de ambos chorado por tempo não concretamente apurado.
23- Após tal data e durante cerca de um mês e meio a assistente ficou a dormir no quarto do filho, sendo que o arguido não prestava qualquer apoio, apesar de o médico ter recomendado àquela que repousasse.
24- Os pais da assistente, que se encontravam em Lisboa, em casa de familiares, apenas se podiam deslocar para a residência do casal, após as 15h, para prestar apoio à assistente, pois o arguido não permitia que fossem mais cedo, alegando que precisava de dormir.
25- Em Setembro de 2011 a assistente passou a trabalhar a partir de casa, mantendo o menor aos seus cuidados, tinha empregada apenas de tarde pelo que lhe era difícil conciliar o trabalho com as lides domesticas e apoio ao menor, o arguido, quando se encontrava em casa, alegava que precisava de descansar e dizia “também tenho de tratar as minhas coisas”, por tal motivo, a assistente viu-se obrigada a contratar uma baby-sitter mesmo nos dias em que o arguido se encontrava em casa.
26- O arguido por diversas vezes dizia à assistente e em datas não concretamente apuradas “ não sei para que servem as tuas igrejas, aquilo que fazes não serve para nada, eu não ando a dar aulinhas, eu levo vidas comigo, comando um bicho que vale milhões… mulher de piloto não trabalha, mulher de piloto está em casa à espera do marido”.
27- Em data que não foi possível apurar mas no inicio do ano de 2012 o arguido teve um problema num pulso e por tal teve de fazer sessões de fisioterapia.
28- Em data que não foi possível apurar mas durante o mês de Março ou Abril de 2012 o arguido foi submetido a uma intervenção cirúrgica ao nariz,
29- Em data não concretamente apurada mas durante o mês Abril ou de Maio de 2012 a assistente foi convidada para dar aulas na faculdade..., sendo que o arguido não se opôs a que viessem viver para esta cidade, o que veio a ocorrer em Setembro desse mesmo ano.
30- O arguido impôs à assistente que arrendassem uma casa, que ele próprio escolhera, para, logo após, exigir que fosse ela a pagar a renda alegando que era ela quem queria mudar-se para o Porto, a assistente assentiu e aceitou a ajuda dos pais, para fazer face tais despesas. Aliás, de forma frequente a assistente aceitava ajuda económica dos progenitores.
31- O arguido não gostava que a assistente contactasse com os progenitores e em finais do ano de 2012, por forma a evitar discussões, a assistente passou a ir a casa dos progenitores “às escondidas”; também os progenitores só iam a sua casa quando o arguido não estava.
32- O arguido alegava até que viver no Porto fazia mal à sua saúde, agravando a sua sinusite/rinite.
33- No Natal de 2012, o casal foi passar a noite de natal a casa dos pais da assistente, chegando pelas 20h.
34- A assistente é assistida na casa de Saúde ... desde 2015 por médico de Medicina Geral e familiar tendo-lhe sido diagnosticado um quadro de ansiedade aguda compatível com síndrome depressivo reativo.
35- No dia anterior, domingo de Páscoa, na sequência de uma discussão relacionada com questões financeiras o arguido disse à assistente “ olha que te desfaço essa cara”, ao mesmo tempo que pôs o dedo em riste em frente ao rosto daquela.
36- Na 2ª Semana de Abril de 2013 a assistente informou o arguido que tencionava separar-se e que iria viver para casa dos pais, o que veio a suceder ainda em data que não foi possível apurar, mas no mês de Abril, aproveitando a assistente o facto de o arguido se encontrar fora do país.
37- Em data que não pode precisar mas depois de Abril de 2012 o arguido, em passeio de moto com amigos, sofreu um acidente e foi conduzido ao Hospital 2 ...; a assistente, acompanhada do progenitor, foram a Chaves buscar o arguido, na viagem de regresso, o mesmo, mais uma vez, culpou a assistente pelo acidente que sofrera.
38- Houve desentendimentos vários no que se reporta à regulação das responsabilidades parentais e por várias vezes o arguido disse à assistente “ vou fazer-te a vida negra”.
39- Em dia não concretamente apurado do mês de Novembro de 2013 o arguido deslocou-se para junto da residência da assistente e por motivos que não foi possível apurar , assim que a mesma estacionou e saiu da viatura com o menor ao colo, o arguido colocou-lhe as mãos no rosto, apertando-o.
40- O divórcio foi decretado em 17 de Abril de 2014.
41- A partir de Setembro de 2014 o arguido regressou a Cascais.
42- Em Outubro ou Novembro de 2014 o arguido veio ao Porto para estar com o filho, tendo ficado hospedado no C...; quando a assistente aí se dirigiu para levar o menor o arguido encetou discussão, na presença do filho, dizendo à assistente “ porta-te bem ou desfaço-te a cara” ao mesmo tempo que levantava a mão na direcção do rosto daquela; a assistente foi -se embora e o menor ficou na companhia do arguido
43- No dia 25 de Dezembro de 2016, no aeroporto de Lisboa, o arguido disse ao menor, na presença da assistente “ a tua mãe é besta, uma chata, a tua mãe é uma mentirosa, quase morri por causa dela”, referindo-se ao acidente de mota referido em 37) ,
44- O arguido envia mails e SMS à assistente, alegando que a mesma o impede de contactar o filho.
45- O arguido quis insultar,agredir fisicamente e ameaçar ofendida, sua (ex) cônjuge e mãe do seu filho, provocando-lhe medo, pretendendo que a mesma se sentisse receosa, perturbada, humilhada, fazendo-a viver em sobressalto e angústia bem sabendo que a afectava na sua saúde querendo ainda atingi-la na sua dignidade enquanto ser humano, o que logrou, servindo-se, para o efeito, por vezes, da privacidade da residência familiar e não se inibindo de praticar tais actos mesmo quando a ofendida se encontrava grávida e, por via disso, incapaz de defesa e mantendo tais condutas após o nascimento do menor, na presença do mesmo.
46- O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal.
47- O arguido não tem antecedentes criminais.
48- O arguido AA é natural de Lisboa, tendo vivido toda a sua vida na zona de Cascais. Filho de uma relação extraconjugal do pai, é o mais novo de sete irmãos consanguíneos, tendo vivido apenas com a mãe, ainda que mantendo o suporte afectivo e económico por parte do pai, até ao seu falecimento. Esta vivência é sentida pelo arguido com algum distanciamento emocional, pela dificuldade que para si resultou não estar inserido numa família assumidamente tradicional. A mãe viria a falecer de forma inesperada, na sequência de um AVC, há cerca de 20 anos.
49- O arguido iniciou a actividade profissional na área da engenharia mecânica, tendo, após conclusão da formação académica, trabalhado numa empresa de manutenção de ar condicionado. Posteriormente e, porque desde muito novo era apaixonado por aviões, iniciou formação como piloto de aviação, área onde tem vindo a realizar a sua carreira profissional, a qual tem sido pautada pela consistência e continuidade, atualmente como Comandante na T.... O arguido trabalha nesta empresa há cerca de 18 anos, sentindo-se reconhecido profissionalmente, dispondo de uma boa situação financeira, ainda que desde o início da pandemia de Covid 19 e consequente restrição de voos, os pilotos tenham registado uma redução significativa nos ordenados. A própria reestruturação da T..., tem tido, implicações na carreira dos pilotos, em razão dos acordos que estabeleceram, pelo que os pilotos no activo ficaram, menos beneficiados, tendo em conta a exigência e a responsabilidade da profissão, situação que considera injusta. O arguido AA é pessoa trabalhadora, séria, comprometida com os valores e educação que recebeu dos pais e da frequência em colégios privados, tendo estudado nos ... e nos Salesianos do .... Associa a sua fase mais rebelde ao último ano do secundário, em que muda para uma escola pública, onde conclui o 12.º ano, altura em que adquiriu maior liberdade, saía mais, participava em festas aos fins de semana sem referência a problemáticas relacionadas com consumos de estupefacientes ou álcool. Tem o gosto pelo desporto desde a adolescência, sendo praticante de várias modalidades, o que lhe permite ter rotinas saudáveis que o ajudam a restaurar o equilíbrio físico e psicológico. Não é uma pessoa muito social, ou assíduo em convívios dessa natureza, mantém alguns amigos da infância e juventude, com quem se encontra regularmente. No plano afectivo o arguido teve dois relacionamentos de namoro na adolescência/juventude, descritos como longos e marcadamente positivos. Aos 38 anos casa com a ofendida no presente processo, tendo um filho, actualmente com 10 anos de idade. O relacionamento termina após 4 anos, na sequência de desentendimentos do casal,
50- Actualmente o seu contacto com a assistente reduz-se à troca de emails onde articulam as questões relacionadas com o filho, não assinalando, contra si, qualquer mensagem de cariz ofensivo desde fevereiro do corrente ano.
51- Actualmente o arguido AA vive sozinho, desde o divórcio, tendo mantido um relacionamento afectivo, com uma amiga de infância, durante cerca de seis anos e que terminou recentemente. A relação terminou, ao que referiu a ex-namorada, por terem projectos de vida diferente.
52- A assistente formalizou a denuncia a 8 de Abril de 2019.
53- No Verão de 2009, Ofendida não se encontrava aborrecida ou zangada com o Arguido, seu marido, conforme aliás resulta do teor do email que a mesma lhe remete a 22 de Agosto de 2009, em que lhe envia, para sua apreciação, as introduções e as conclusões de um trabalho seu, despedindo-se “Bjinhos meu popoto lindo bicharoco dorminhoco zangãozinho.”

Factos Não provados
54- Os factos referidos em 5) eram com o intuito de menosprezar a ofendida, enquanto namoravam.
55- O arguido durante o período de tempo em que a assistente esteve a trabalhar na sua teses e em datas que não foi possível apurar sempre com o intuito de a perturbar e humilhar, o arguido disse-lhe, por várias vezes: só fazes erros, fazes tudo mal, não estejas sempre a pedir desculpas, tenho de te ensinar a fazer tudo…”
56- O arguido recusava- se a comparecer a eventos da família da assistente de forma propositada e igualmente chegavam atrasados de forma deliberada.
57- O arguido no dia 19 de Janeiro de 2011 jantou com a família da assistente afirmando porém “só fico para não parecer mal”.
58- O arguido demonstrando total desprezo pela apresentação do livro da assistente, referido em 18) recusou a entrar na sala de conferências, facto que foi notório para todos os presentes.
59- Em data não apurada, quando o menor tinha 5 meses, a assistente foi ao supermercado e deixou aquele aos cuidados do arguido, quando regressou, o menor chorava e o arguido estava nervoso foi então que se dirigiu às compras que a mesma trouxera e pegou numa garrafa de coca-cola que lançou na direcção do espreguiçadeira do menor sem que o tenha atingido, a assistente ficou muito assustada; apercebeu-se, entretanto, que o menor não parava de chorar pois precisava de mudar a fralda, algo de que o arguido nem sequer se dera conta .
60- Por várias vezes o arguido disse à esposa “ quem manda nesta casa sou eu, eu é que sou o homem, a ultima palavra é sempre minha, tu não sabes tomar decisões, só fazes erros”; o arguido pretendia afastar a assistente dos familiares e amigos e mostrava-se muito desagradado sempre que a mesma vinha ao Porto.
61- No Natal de 2011, em deslocação para o Porto, durante uma discussão, estando a assistente a conduzir, o arguido abriu a porta do carro e ameaçou atirar-se; em tal ocasião a assistente ficou em pânico pois o arguido aparentava estar num estado de absoluto descontrole.
62- Em consequência dos factos referidos em 28) o ambiente em casa tornou-se mais hostil; o arguido acusava-se de só se importar com o trabalho e sobrecarregava a assistente com mais lides domésticas, por ex, ter que lhe preparar o almoço a horas tardias; a empregada, mercê do mau ambiente em casa, acabou por se despedir.
63- Em consequência dos factos referidos em 27) a mãe da assistente deslocou-se do Porto para Cascais para cuidar do neto pois aquele exigiu que a esposa o acompanhasse no hospital; quando teve alta e regressou a casa e passou, mais uma vez, a culpabilizar a assistente por tudo o que de mau sucedia; tornou-se desagradável com a sogra, que sempre se dispôs a cuidar do neto, por tal a mesma regressou ao Porto; mais uma vez, a assistente ficou sozinha, com o menor aos seus cuidados e à mercê dos caprichos do arguido.
64- O arguido, para a humilhar, exigia que a assistente pagasse as despesas da economia doméstica que iam muito além dos seus rendimentos.
65- Por várias vezes o arguido disse à esposa “ quem manda nesta casa sou eu, eu é que sou o homem, a ultima palavra é sempre minha, tu não sabes tomar decisões, só fazes erros”; o arguido pretendia afastar a assistente dos familiares e amigos e mostrava-se muito desagradado sempre que a mesma vinha ao Porto.
66- Em Agosto de 2013 o arguido disse à assistente “ vou desaparecer da vida do meu filho”, deixando-se apreensiva pois, apesar de tudo, nunca a mesma pretendeu que o menor deixasse de contactar e conviver com o arguido.
67- Aliás, sempre que o menor ficava em casa dos avós o arguido dizia à assistente, na presença do menor, “ eu não entrego o meu filho a outras pessoas”.
68- O arguido disse à assistente que como era generoso lhe daria mais €150 por mês; decorrido algum tempo retirou tal quantia alegando que a assistente não era merecedora da mesma.
69- Desde então que o arguido passou a telefonar ao menor e quando o mesmo não atendia, p. ex, por estar em casa de amigos, o arguido de imediato ameaçava a assistente dizendo que iria reportar o seu incumprimento do Tribunal de Família e que o menor havia de ir residir consigo para Cascais. Nas conversas com o menor o arguido questiona quase sempre onde está a assistente e com quem.
70- No dia 17 de Maio de 2015 o arguido fez uma festa de aniversário para o filho, em Cascais, sem que tenha convidado a assistente, que apenas posteriormente teve conhecimento de tal festa.
71- No verão de 2015, por várias vezes, o arguido acusou a assistente de o impedir de conviver e contactar com o filho.
72- No dia 29 de Dezembro de 2016, em conversa telefónica, o menor disse ao arguido que iria dormir a casa dos avós pois a mãe ia sair com amigas; de imediato o arguido disse “ andas na má vida, um dia o nosso filho vai perceber que a vitima sou eu”.
73- Nas férias de Carnaval de 2017 o arguido e o menor foram para a Serra da Estrela; por várias vezes o arguido impediu o contacto telefónico entre o menor e a progenitora e quando falavam entre si o arguido era rude e apelidava a assistente de mentirosa.
74- Por várias vezes o arguido disse ao menor “ a única família que tu tens são os teus pais, os teus avós são uma gentalha, gente mal formada, uns fracos”; relativamente à assistente, continuava a apelidá-la de mentirosa, na presença do menor.

Motivação:
Tendo presente que a prova judiciária não visa alcançar uma certeza ontológica, mas apenas uma certeza judiciária – que, no plano dos princípios, deveria coincidir com a verdade material – e em obediência ao disposto no artigo 374º, n.º 2 do Código de Processo Penal, bem como ao
consagrado no artigo 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, proceder-se-á à indicação e ao exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, explicitando o processo de formação dessa convicção.
- Declarações do arguido:
O arguido não prestou declarações, nem em sede de inquérito, nem em sede de julgamento.
- Declarações da assistente BB:
- Pela mesma foi dito qual era a profissão de ambos, a da data em que o arguido e ela iniciaram o namoro, à data em que se casaram e onde estabeleceram a casa de morada de família, a data da separação e do divórcio, tais declarações conjugadas com as certidões juntas aos autos permitiu ao tribunal dar como provados os factos descritos sob os pontos 1), 2), 6) , 39) e 40)
Desta união nasceu um filho , CC.
- Os conflitos surgiram no primeiro ano de casados e estavam todos relacionados com o facto da assistente querer ir visitar os pais ao Porto e com questões das lides domésticas, descrevendo o que se passou no carnaval antes do casamento, nas férias a seguir ao casamento , no ano de 2009 e no Natal desse mesmo ano, bem como nos demais anos em que esteve casada.
- Acrescentou que a situação se agravou no ano de 2010 , tendo sido um ano muito difícil porque tudo era motivo de discussão , não tinha apoio do arguido, nomeadamente para que a assistente estivesse concentrada na sua tese de doutoramento que foi entregue no dia 19 de Agosto . E devido a essas discussões decidiram separar-se mas a assistente não teve coragem e manteve –se com o arguido.
Nesse mesmo ano, enquanto casal, o arguido faltou a diversos eventos sociais, nomeadamente ao aniversário do pai da assistente e àqueles que foi chegava atrasado como aconteceu com uma exposição de pintura da mãe da assistente no almoço de Páscoa , estava contrariado. E se ficasse doente após alguns desses inventos, tal como aconteceu mais do que uma vez , a culpa era da arguida ( como aconteceu no fim de semana no Alentejo, nos casamentos de uns amigo ocorridos no ano de 2010) o arguido sempre dizia à assistente que ela tinha de cortar o cordão umbilical com a familia
- em dia e mês não concretamente apurado a arguido, após uma discussão com a assistente , que se encontrava grávida de 6 meses, pegou num livro e arremessou-o e quase atingiu a barriga da assistente , só não acontecendo porque a mesma se desviou.
No dia que estava preparada a entrada da assistente no Hospital 1 ..., para se realizar o parto, o arguido só levou a assistente ao hospital pelas 12h e que pernoitou no hospital foi a mãe da assistente.
Logo na primeira semana de vida os pais da assistente estavam a jantar lá em casa e o filho do arguido e da assistente chorou e quando a assistente se ia a dirigir ao quarto para acalmar o bébé, o arguido agarrou-a pelos braços dizendo-lhe para não ir para que o bébé não ganhasse manhas , mas a assistente conseguiu escapulir-se e foi atender ao filho de ambos, e desde essa ficou a dormir no quarto do filho não tendo apoio do arguido, tendo inclusive de contratar pessoas para a ajudar .
O arguido esteve presente na apresentação da tese de doutoramento da assistente, bem como na exposição de um livro de autoria da assistente no ..., muito embora estivesse no exterior com o seu filho , que na data tinha meses
- No ano de 2012 a assistente veio dar aulas para o Porto e o casal mudou-se para o Porto, foi quando a situação se agravou porque o arguido não queria estar com os pais da assistente , afirmando várias vezes que esta última tinha de cortar o cordão umbilical.
Em data que não pode precisar , mas próximo da páscoa do ano de 2013, no ambito de uma discussão o arguido colocou a mão à frente da cara da assistente e disse cala-te que te desfaço a cara .
- No Porto, era a arguida com o seu o apoio financeiro dos seus progenitores que suportava as despesas da casa até que a .../.../2014 a assistente decidiu separar-se tendo sido decretado o divórcio em Abril de 2014.
Antes da separação o arguido após uma discussão com a assistente colocou o dedo em riste em frente da cara e disse-lhe que lhe desfazia a cara, idêntica situação ocorreu no C... do Porto, esta já o arguido e a assistente divorciados, bem como em Novembro de 2013 , já estavam separados o arguido e assistente, tendo o arguido se deslocado a casa da assistente e agarrou-a pela cara, em frente ao menor filho de ambos.
Igualmente a assistente afirmou que o arguido lhe chamava de mentirosa e besta
Prova testemunhal:
- DD, à data da prática dos factos, sogro do arguido.
A testemunha e sua esposa sempre que iam a Lisboa ficavam num hotel, porque não eram bem recebidos em casa. Corrobora a versão da assistente que logo após o casamento o arguido e a sua filha não foram passar férias a Vila Nova de Cervereira, sabendo que a sua filha ficou triste , confirma igualmente que no Natal desse ano o casal apenas chegou à meia noite para a ceia do Natal. Notava que havia uma certa resistência por parte do arguido em estar com a família
No dia do nascimento do neto da testemunha este estava, juntamente com a sua esposa desde as 9h à espera da sua filha e genro, os quais só chegaram cerca das 12h, reparou que a filha vinha nervosa.
Quando a assistente teve alta foram jantar lá a casa , o neto começou a chorar e sabe que o arguido e a assistente foram para o andar de cima e assistiu o arguido a agarrar a filha pelos braços para a impedir de ir ver o bébé
A testemunha prestava auxilio económico à sua filha, porque sabia que era ela quem pagava a renda de casa desde que estavam a residir no Porto.
E de uma forma geral confirma as ausência e os atrasos do arguido aos eventos familiares , quando acontecia algo de mal , como quando teve um acidente de mota, disse à assistente que quase ia morrendo por causa dela, estava agressivo.
Igualmente sabe que a filha se socorria do apoio de empregadas , porque o arguido não lhe dava apoio, não assistiu a nenhum dos outros factos.
- EE, amiga da assistente após a separação.
A testemunha relativamente aos factos que se passaram no período do casamento não tem conhecimento de nada. Apenas assistiu a conversas do arguido com o seu filho , mas nunca ouviu o arguido a injuriar a assistente, leu mensagens em que este lhe chamava de burra,, mas não pode precisar as datas e em que circunstâncias
- FF, advogada, amiga da BB, não tendo convivido com o arguido e assistente, enquanto casal. A testemunha presenciou factos referentes no Verão, em 2014, o arguido foi o menor à praia, não houve discussão e o arguido não foi injurioso.
Assistiu a telefonemas entre o arguido e a assistente em que o arguido a insultava (não pode precisar a data ). A testemunha apenas refere conclusões e tudo o que sabe é o que a assistente lhe conta, confirmando a versão da assistente .
Em 2016 assistiu a factos referentes às relações no âmbito das responsabilidades parentais, além de que os factos que podem constituir crime relativamente ao menor não pode ser valorado. Nunca viu qualquer agressão à assistente.
- GG, amigo da assistente, não conhece o arguido. Apenas conheceu a assistente em 2014 e teve conhecimento que a mesma recebia muitos emails e mensagens, porque a mesma lhe contava , desconhecendo o teor dos mesmos. Em certo dia, a testemunha ouviu , em data que nada precisar, uma chamada do filho para a assistente ( porque o telemóvel estava em alta voz) e a dada altura ouviu o arguido a a insultar a assistente e de seguida o menor desligou o telemóvel.
- HH, trabalha para a assistente, tomou conta do CC, filho da assistente e do arguido , quando ele tinha 6 meses de idade.
A certa altura ouviu o arguido a insultar a assistente, já no Porto.
Presenciou as chamadas do arguido com o filho, mas relativamente a estes factos o tribunal não pode pronunciar-se pelos motivos supra referidos, já que o arguido se opôs à continuação do julgamento pelos factos relativos ao menor.
- II, psicóloga, era vizinha do lado da arguida e foi baby sitter do CC mas não assistiu a nada. Apenas sabe que a assistente ficava nervosa com as chamadas do arguido, nunca ouviu insultos mas relativamente a estes factos o tribunal não pode pronunciar-se pelos motivos supra referidos, já que o arguido se opôs à continuação do julgamento pelos factos relativos ao menor.
- JJ, trabalhou em Agosto de 2013 para a assistente e nunca viu nada, nem se apercebeu de algo de mal se passasse.
- KK, vizinha da assistente e em data não concretamente apurada , era final da tarde de inverno a BB estava a tirar o filho do carro e viu o arguido a agarrar a assistente . A testemunhas presenciou tais factos porque ouviu gritar por socorro e de imediato veio à janela deparando-se com tal imagem.
. LL, não presenciou factos na constância do matrimónio, apena assistiu a alguns telefonemas , os quais eram interrompidos e nunca ouviu qualquer expressão injuriosa
- MM, viveu em união de facto com o arguido desde 2015 a 2020, não presenciou factos referentes à violência doméstica. Assistia as chamadas telefónicas , as quais por vezes eram interrompidas e nunca ouviu qualquer injúria enquanto esteve presente
- NN, amigo do casal, nunca presenciou nada , sempre os viu como um casal perfeito, nas mais sabendo sob os factos,
Prova documental:
- auto de denúncia de fls. 3 a 7;
- Certidões de nascimento de fls. 57,66 e 67;
- sms de fls. 36 a 45;
- declaração médica de fls. 94,95
Em sede de julgamento o arguido não prestou declarações.
Foram tomadas declarações à assistente a qual se nos afigurou credível no confronto com a demais prova produzida
O depoimento da ofendida revela-se coerente, aliás corroborados pelos depoimentos das testemunhas DD, HH e KK , os quais assistiram aos factos. As restantes testemunhas tem apenas conhecimento indirecto dos factos , quanto à violência doméstica, e directo quanto à situação de incumprimento das responsabilidades parentais , que aqui não estão a ser julgadas.
Os demais factos não foram presenciados por qualquer outra testemunha mas o Tribunal não teve dúvidas de que os mesmos ocorreram e da forma como a assistente os descreveu.
Com efeito, não se vislumbra em todo o depoimento da ofendida qualquer motivo para que a mesma tenha inventado tais factos. De acordo com o princípio contemplado no art. 127º do Código de Processo Penal, o qual faz apelo às «regras da experiência» e da «livre convicção» da entidade competente. As «regras da experiência» consistem em definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub-judice, assentes na experiência comum e, por isso, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam mas para além dos quais têm validade; são regras que se vão sedimentando ao longo dos tempos e colhidas da sucessiva repetição de circunstâncias, factos e acontecimentos. A «livre convicção», por seu turno, constitui um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade; trata-se de uma conclusão livre, subordinada à razão e à lógica, não limitada por prescrições formais exteriores, a qual deverá ser devidamente fundamentada, em termos de razões de facto e de direito, a ponto de ser objetivamente controlável perante um terceiro que leia a sentença.
A apreciação haverá de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e suscetíveis de motivação e controlo, não podendo tratar-se de uma convicção puramente subjetiva ou emocional.
Ditam as regras da experiência que é habitual nas situações de violência doméstica, que terão na sua maioria das vezes ocorrido na intimidade entre o casal e por vezes na presença dos filhos, fora dos olhares de terceiros, frequentemente projetando para o exterior uma imagem de estabilidade, sendo que apenas os ofendidos e o arguido terão conhecimento direto dos factos em discussão .
O Tribunal entende que deverá conferir particular relevância às declarações da ofendida, porquanto o seu depoiment foi isento, emotivos , na verdade das declarações da ofendida, importa ainda salientar que, não deixou perante o Tribunal a impressão de que tivesse prestado depoimento com animosidade em relação ao arguido ou que procurasse de forma alguma empolar os factos; bem pelo contrário, pese embora as imprecisões quanto às datas, a ofendida tinha com conhecimento direto dos factos em discussão e considerável objetividade .
Atento o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.127.º do Código de Processo Penal, que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.
As normas da experiência, a que se deve atender na apreciação da prova, são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.» Cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300. .
Quanto à livre convicção do juiz, nessa apreciação da prova, ela não pode esta deixar de ser “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela (deve ser) uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.” Cfr. Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205. .
Na livre apreciação da prova o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Observa, a este respeito, o Prof. Germano Marques da Silva, que «Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem essencialmente da imediação, mas hão de basear-se na correção do raciocínio, que há de fundar-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.». Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição, pág.186
O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355.º do Código de Processo Penal. É ai, na audiência de julgamento, que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova e se assegura o princípio do contraditório, garantido constitucionalmente no art. 32.º, n.º 5. Reportando-se aos princípios da oralidade e imediação diz o Prof. Figueiredo Dias, que «Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.”. Obra citada, páginas 233 a 234.
Por todo o exposto, conjugadas as declarações da ofendida, a razoabilidade das mesmas, a liberdade de apreciação da prova e as regras da experiência acima referidos levam o tribunal a acreditar que o relato dos factos efectuado por aquela correspondem à verdade.
Os elementos considerados provados e relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente às condutas do arguido foram considerados assentes a partir do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas supra, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.
Foi igualmente relevante o relatório social junto aos autos e o certificado do Registo criminal bem como a prova pericial a que acima já se fez referência.
O Tribunal deu como não provados os factos referentes ao menor CC em virtude da oposição do arguido face à comunicação da alteração substancial dos factos.
Igualmente deu como não provados os factos relacionados com a regulação das responsabilidades parentais e seus incumprimentos, na parte em que não traduzem qualquer crime, porque ultrapassam o objecto do processo.
Todos os demais factos dados como não provados deve-se à total ausência de prova quanto aos mesmos, porquanto só eram só descritas conclusões e não factos…».
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Foi proferida decisão sumária, e dela veio agora reclamar para a Conferência.
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O MP em 1.ª Instância e o Sr. PGA junto desta Relação, são de parecer que o recurso deve improceder.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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O recurso da matéria de facto não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento, com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento efectuado na primeira instância não tivesse existido. Trata-se, tão-somente, de um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente discriminados pelas partes [Cfr. Acs. do TC n.º 59/206, de 18 de Janeiro de 2006, no processo 199/2005, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, e do STJ, de 27 de Janeiro de 2009 e de 20 de Novembro de 2008, tirados respectivamente nos processos n.ºs 08P3978 e 08P3269, disponíveis em www.dgsi.pt, bem como de 17 de Maio de 2007, in CJ (Acs STJ), 2007, II, 197].
Por força do princípio da livre valoração da prova, p. pelo art.º 127.º, do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e livre convicção do julgador.
Assim, a reapreciação da prova na segunda instância, deverá limitar-se a controlar o processo da convicção decisória da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão. Na apreciação do recurso da matéria de facto, o Tribunal de segundo grau não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos de manifesto erro na apreciação da prova. O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter a livre apreciação da prova do julgador, construída na base da imediação e da oralidade.
Ora, a observância do princípio da livre apreciação da prova, começa na fundamentação da decisão de facto feita em primeira instância, nomeadamente os motivos de facto entendidos como «os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os meios de prova apresentados em audiência» [Cfr. Marques Ferreira, em «Jornadas de Direito Processual Penal / O novo Código de Processo Penal», 228 e ss.].
Por isso, a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão, já que a Relação, como se referiu, não fará um segundo julgamento de facto, mas apenas o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham sido referidos no recurso e às provas que imponham e não apenas sugiram ou permitam, outra decisão.
Por outro lado, os vícios constantes do art.º 410 n° 2 do CPP, para relevarem, têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo que o referido vício deve verificar-se do texto da decisão recorrida, dando-se por provado ou não provado um facto que contrarie com toda a evidência, a lógica e as regras da experiência comum, e terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito.
Efectivamente, os vícios relativos à matéria de facto, referidos nesta disposição, pressupõem que os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum, e que conste em «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada», em «contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão», ou se verifique «erro notório na apreciação da prova».
Porém, repetimos, se a decisão for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela foi proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção, pelo que só nos casos de evidente desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, se deve alterar a convicção alcançada pelo tribunal da lª instância.
Estes vícios do artigo 410°, n° 2, do CPP não podem, ainda, ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127° do CPP.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410°, n° 2, do CPP, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos.
Assim, enquanto no artigo 410.º n.° 2, do Cód. Proc. Penal, temos uma impugnação em que o recorrente tem de cingir-se ao texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, já no erro de julgamento (impugnação ampla), a apreciação abrange a análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência.
Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.
Relevantes neste ponto, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do artigo 349° do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.
A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios, ou a falta de um ponto de ancoragem, no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.
A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410°, n° 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c). – cfr. os acórdãos do STJ, de 7 de Janeiro de 2004, proc.3213/03, e de 24 de Março de 2004, proc. 4043/03, conclui aquele acórdão do STJ.
Por sua vez, a insuficiência da matéria de facto para a decisão (art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP), implica a falta de factos provados que autorizam a ilação jurídica tirada; é uma lacuna de factos que se revela internamente e decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão, ocorrendo este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
Assim, voltamos a afirmar, que o recurso que impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, a reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos "concretos pontos de facto" que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (cfr. Acs. do S.T.J., de 14-3-2007 e 3-7-2008, in www.dgsi.pt).
Por último, na violação do princípio “in dubio pro reo”, o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, devendo então beneficiar o arguido.
Este princípio há-de traduzir-se numa «dúvida razoável» do tribunal, apesar de todas as provas reunidas, não podendo a insuficiência destas, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido – um non liquet na questão da prova – não permitindo ao juiz a omissão da decisão, tem de ser sempre valorado a favor do arguido (a este respeito, cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, reimpressão, 1984, pg. 213).
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
Porém, a eventual violação do princípio em causa deve resultar, claramente, do texto da decisão recorrida.
Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe, pois, um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido – Ac. STJ de 24-3-99, CJ-STJ 1,247- citado no Ac. do STJ de 5-7-07, in www.dgsi.pt.
Como se diz neste último acórdão do STJ, o princípio in dúbio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos.

Olhando para o caso concreto, vimos que o arguido vem questionar no recurso a avaliação da prova feita pelo Tribunal, pretendendo contrapor à convicção alcançada por este a sua própria e interessada análise da prova.
Na verdade, analisando o recurso interposto pelo arguido, do mesmo extrai-se que o recorrente pretende colocar em crise a valoração que o Tribunal a quo fez das declarações da assistente e do depoimento do seu progenitor em sede de audiência de discussão e julgamento.
Porém, salvo o devido respeito, a decisão recorrida encontra-se devidamente motivada com indicação e análise crítica das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal a quo (essencialmente o Tribunal a quo valorou as declarações da assistente e o depoimento das testemunhas DD, HH e KK).
Ora, os factos dados como provados em que assentou, essencialmente, a sua condenação, são os seguintes:
«..19- Em data não apurada mas quando a assistente estava grávida de 6 meses, durante uma discussão, na casa em Cascais, por motivos relacionados com o facto da assistente querer vir ao Porto, o arguido arremessou um livro à barriga da assistente que teve de se desviar não lhe tendo acertado na barriga, em tal ocasião a assistente ficou assustada e triste.
22- Na primeira semana de vida do filho do casal, encontrando-se o arguido e a assistente a jantar na casa de morada de família, porque o menor, filho de ambos, não parava de chorar, a assistente dirigiu-se ao quarto tendo o arguido agarrado a assistente pelos braços e dizendo-lhe “não entras que ele ganha manhas”, referindo-se ao filho de ambos, e mesmo contra a vontade do arguido a assistente acabou por entrar no quarto, tendo o filho de ambos chorado por tempo não concretamente apurado.
26- O arguido por diversas vezes dizia à assistente e em datas não concretamente apuradas “não sei para que servem as tuas igrejas, aquilo que fazes não serve para nada, eu não ando a dar aulinhas, eu levo vidas comigo, comando um bicho que vale milhões… mulher de piloto não trabalha, mulher de piloto está em casa à espera do marido”.
35- No dia anterior, domingo de Páscoa, na sequência de uma discussão relacionada com questões financeiras o arguido disse à assistente “olha que te desfaço essa cara”, ao mesmo tempo que pôs o dedo em riste em frente ao rosto daquela.
38- Houve desentendimentos vários no que se reporta à regulação das responsabilidades parentais e por várias vezes o arguido disse à assistente “vou fazer-te a vida negra”.
39- Em dia não concretamente apurado do mês de Novembro de 2013 o arguido deslocou-se para junto da residência da assistente e por motivos que não foi possível apurar, assim que a mesma estacionou e saiu da viatura com o menor ao colo, o arguido colocou-lhe as mãos no rosto, apertando-o.
42- Em Outubro ou Novembro de 2014 o arguido veio ao Porto para estar com o filho, tendo ficado hospedado no C...; quando a assistente aí se dirigiu para levar o menor o arguido encetou discussão, na presença do filho, dizendo à assistente “porta-te bem ou desfaço-te a cara” ao mesmo tempo que levantava a mão na direcção do rosto daquela; a assistente foi -se embora e o menor ficou na companhia do arguido».
Ora, começamos por referir desde já, que nada obsta a que o tribunal alicerce a sua convicção no depoimento de uma única pessoa, desde que tais declarações se lhe afigurem pertinentes e credíveis, atento o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127° do Código de Processo Penal).
Por outro lado, constata-se ainda que o Tribunal esteve atento à contestação apresentada pelo arguido, onde este, além de negar os factos e tecer considerações sobre as circunstâncias em que foi apresentada a queixa, alega que sempre foi cuidadoso e zeloso com a assistente que também o tratava com carinho.
Porém, o recorrente não adiantou factos que devessem ser descriminados na apreciação feita pelo Tribunal, bem como quanto aos documentos que apresentou.
Aliás, o Tribunal condenou o recorrente apenas pelos factos em que foi vítima a assistente.
Inexiste, pois, qualquer motivo para modificar a matéria de facto que o Tribunal recorrido considerou provada.
Na verdade, das conclusões formuladas, e são estas que delimitam o objecto do recurso, não se apercebe quais os factos que o recorrente quer ver revertidos ou reapreciados por forma a que a sua resposta seja diversa daquela que resulta do julgamento.
Competia ao recorrente, em cumprimento do disposto no n.º 3 e n.º 4 do artigo 412º CPP, indicar e balizar os factos cujo reexame pretende e visando a modificação da matéria de facto, o que não faz.
Ao não colocar em crise, nas suas conclusões, a decisão de facto que resulta do acórdão, assim como não indicar nas suas conclusões qual a prova gravada que pretende ver reapreciada, delimitou o recurso apenas às questões de conhecimento oficioso e aplicação do direito aos factos.
Por outro lado, as anomalias e os vícios da decisão elencados no n.º 2 do artigo 410 do CPP têm que resultar do próprio texto por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma.
Esses vícios têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade mas sem recurso a quaisquer elementos estranho à peça decisória, elementos externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo.
Assim, não se alcança qualquer contradição na decisão proferida, nos seus elementos lógicos.
O que o recorrente coloca em crise é a divergência entre a convicção do Tribunal, no âmbito da sua livre apreciação da prova, cujo princípio se encontra inscrito no artigo 127º do CPP, e a sua própria convicção pessoal sobre a mesma, que, naturalmente, será diversa.
Ora, o Tribunal da Relação apenas procederá à alteração da decisão de primeira instância em matéria de facto se, da análise das provas constantes do processo e da fundamentação da decisão recorrida resultar um erro manifesto na apreciação da prova pela primeira instância, o que não é o caso.
Assim, o Acórdão recorrido não padece de qualquer erro de julgamento ou de vícios decisórios; encontra-se devidamente fundamentado, e o Tribunal a quo explicitou a sua fundamentação, não se vislumbrando qualquer falha na indicação e exame crítico das provas que fundamentam a convicção do julgador que o impossibilitasse de compreender as razões da opção firmada relativamente à factualidade descrita como provada, nem qualquer contradição insanável na fundamentação.
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Entende ainda o recorrente que a matéria de facto dada como provada não é suficiente para consubstanciar o crime de violência doméstica, pois não revela uma conduta maltratante, embora aquele não mencione o porquê dessa afirmação.
Contudo, atentos os factos que ficaram provados, cuja matéria de facto ficou inalterada, inequivocamente preenchem o tipo legal de crime de violência doméstica.
Ora, o Crime de violência doméstica, está p. e p. no art. 152.º, n.º 1, al. a) e 2, do Cód. Penal, que dispõe: “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: ao cônjuge ou ex- cônjuge,… é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se “pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
E, estabelece o n.º 2 desta norma legal que “no caso previsto no n.º anterior, se o agente praticar o facto… na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
Como refere Paulo P. Albuquerque, Comentário do Cód. Penal, 2008, p. 406, o legislador quis censurar mais gravemente “os casos de violência doméstica velada, em que a acção do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas”.
Neste ilícito, o bem jurídico protegido, para a posição dominante, é a saúde (cfr. Américo Taipa de Carvalho, em anotação ao artigo 152º, do Código Penal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2012, p. 511 e 512): “O art. 152º está, sistematicamente, integrado no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas”, e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”. A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”. (…) Portanto, deve entender-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental; e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge (ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges), ou prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem”.
Porém, Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2008, p. 404) entende que “os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra”.
Por sua vez, André Lamas Leite [A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito e a criminologia, Julgar, nº 12 (especial), 2010, p. 25-66, onde o bem jurídico protegido por esta incriminação é, por natureza, multímodo, reconduzindo-se à integridade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade: “o fundamento último das acções e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo. (…) O bem jurídico que identificámos é uma concretização do direito fundamental da integridade pessoal (art. 25º, da Constituição), mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26º, nº 1, da Constituição), nas dimensões não recobertas pelo art. 25º, da lei fundamental, ambos emanações directas do princípio da dignidade da pessoa humana.
Assim, os maus tratos, podem ser físicos ou psíquicos, sendo estes difíceis de caracterizar, porque se podem traduzir numa multiplicidade de comportamentos, que atingem e prejudicam o bem-estar psicológico da vitima, nomeadamente ao ameaçar, insultar, humilhar, vexar, desvalorizar, culpabilizar, atemorizar, intimidar, e exercer chantagem emocional sobre a vítima.
Por vezes, o objectivo do agressor é alcançar um total controlo e poder sobre a vítima, delineado a médio/longo prazo e, começando muitas vezes de forma insidiosa, com comportamento aparentemente movidos por romantismo, dependência afectiva e/ou ciúme, até a colocar na sua dependência.
Dos maus tratos podem ou não resultar consequências, como as lesões, marcas ou vestígios da agressão sofrida.
São considerados como maus tratos físicos, os murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objectos; empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços, etc. objectos (mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada); e são maus tratos psíquicos, entre outros, os insultos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações da liberdade; as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, provocar estados de nervos constantes, angústia, e irritabilidade permanentes e sentimentos de sujeição, opressão, exercida e assegurada normalmente através de repetidos actos de violência psíquica que apesar do sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação.
São danos suficientemente graves para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, representando um aviltamento e humilhação da vítima que, claramente, não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime, em regra, de injúria, ofensas corporais, pelo que integram o conceito de maus tratos e, portanto, preenchem os elementos do tipo da violência doméstica.
Como se diz no Ac. TRP de 11-03-2015 (processo 91/14.7PCMTS.P1): “I - O crime de Violência doméstica é um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato sucetíveis de provocar tais danos”.
Essencial é, pois, que tais comportamentos assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas, possam integrar.
Os maus tratos psíquicos podem assumir diversas formas, mas devem ser sempre calculados à luz da teoria da infracção, cujo problema fundamental é “… estabelecer um critério de imputação que seja geral e susceptível de concretização quanto ao seu conteúdo.”(ROXIM, Claus, 1998 - Problemas Fundamentais de Direito Penal, Vega, 3.ª Edição, pag. 146).
Por sua vez, o crime de violência doméstica admite a repetição ou reiteração dos comportamentos, os quais, se apreciados isoladamente, podem não assumir relevância criminal, ou podem ser susceptíveis de configurar outros tipos de crime menos graves do que a violência doméstica, como referimos, nomeadamente crimes de ofensa à integridade física simples (artigo 143º), ameaça, simples e agravada (artigos 153º e 155º/1), coação (artigo 154º), difamação (artigo 180º), injúria (artigo 181º), violação de domicílio ou perturbação da vida privada (artigo 190º), etc.
Assim, a conduta típica da violência doméstica tanto se pode revestir de maus-tratos físicos, como dissemos, onde se incluem as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, designadamente humilhações, provocações, molestações, insultos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, ameaças, privações de liberdade, perseguições, etc.
Havendo reiteração, os comportamentos isolados integram-se numa mesma unidade contextual, que assenta na especial relação existente entre agressor e vítima, se prolonga no tempo e constitui o padrão de comportamento do agressor no seu relacionamento com a vítima.
Porém, o crime de violência doméstica previsto no art.152º do CP é muito mais que a soma dos diversos ilícitos que o podem preencher, não sendo as condutas que integram o tipo consideradas autonomamente, mas antes valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador daquele crime.
Na verdade, por vezes, o cometimento prescinde da reiteração e basta-se com um único acto ou omissão, desde que o mesmo configure um verdadeiro maltrato físico ou psíquico, devendo esta apreciação ter em conta a imagem global do facto, nomeadamente o modo de execução da conduta e a natureza das lesões e sequelas sofridas pela vítima.
Assim, no crime de violência doméstica, a conduta típica tanto pode consistir num único acto, como numa pluralidade de actos ligados por uma unidade contextual, embora em ambas as situações se verifique uma unidade de acção.

O elemento subjetivo é o dolo, enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo legal de crime, em qualquer das suas formas (dolo direto, necessário ou eventual), pois não está expressamente prevista a punição a título de negligência (artigos 13º e 152º, do Código Penal), sendo irrelevante a motivação do agente.
O dolo é o conhecimento (elemento intelectual do dolo) e a vontade (elemento volitivo do dolo) de realização do facto ilícito-típico, reveladores de uma atitude contrária ou indiferente à violação do bem jurídico protegido (elemento emocional do dolo, relevante ao nível do tipo de culpa) – cfr. artigo 14º, do Código Penal.
Por sua vez, como se diz no Processo nº 1396/12.7 GBCL.G1, do Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão proferido em 03-03-2014 “I - A agravação do crime de violência doméstica, resultante do facto ser praticado na presença de menor (art. 152º, nº 2, do Cód. Penal), espelha a intenção do legislador de estender a tutela penal a pessoas de maior vulnerabilidade, que possam tornar-se vítimas “indiretas” dos maus tratos inicialmente dirigidos a outras pessoas.
Ana Isabel Sani, in “Vitimação indirecta de crianças em contexto familiar”, artigo publicado na Revista Análise Social, nº 180, 3º trimestre de 2006, refere que os estudos realizados neste campo, apontam para a seguinte conclusão: “As crianças expostas à violência parental têm mais problemas comportamentais, exibem afecto significativamente mais negativo, respondem menos apropriadamente”.
Também no estudo elaborado pela Direção-Geral de Saúde, de dezembro de 2014, sobre Violência Interpessoal – Abordagem, Diagnóstico e Intervenção nos Serviços de Saúde: “…A investigação tem evidenciado que as crianças expostas a violência doméstica, designada por violência indireta ou vicariante, encontram-se em maior risco de serem maltratadas ou negligenciadas e a maior parte dos estudos revela que existem adultos e crianças vítimas em 30% a 60% das famílias que vivenciam violência doméstica” (pág. 33).
“…A tendência natural de uma criança é responder às situações vividas de acordo com os seus modelos. A exposição à violência, de forma direta ou indireta/ vicariante, perpetrada pelas suas figuras de identificação será internalizada e justificada na sua escala de valores enquanto indivíduo, elemento de um sexo e de uma família, configurando assim as suas expectativas sociais” (pág. 42).
Ainda de acordo com as conclusões do Comentário Geral nº 13 (2011), do Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, a exposição da criança à violência doméstica constitui uma das formas de violência psicológica de que a mesma pode ser vítima – cfr. Conclusão 21, al. e), do aludido Comentário.
Assim, os maus tratos em causa correspondem a uma forma indirecta de vitimação caracterizada pelo testemunho por parte da criança/jovem da violência ou conflito interparental. Esta forma de vitimação indireta causa mal-estar físico, psicológico, emocional, comportamental e relacional equiparável ao impacto provocado pela experiência directa do mau trato.
A criança projecta-se no futuro e aquilo que vê na sua infância, o que sente e o que sofre, física e psicologicamente, marca-a indelevelmente para todo o sempre.
Muitas vezes, indivíduos mal-amados, abandonados, excluídos violentados, acabam por passar a sua vida a violentarem-se a si próprios e aos outros. Em contraste temos o afecto que aumenta o nosso discernimento e a nossa capacidade de agir, potenciando a autonomia e as potencialidades individuais de cada um (cfr. Sandra V. Silva 4 www.psicologia.com.pt).
Ora, olhando para o caso concreto, e lendo os factos dados como provados, em particular os que acima citamos, concluímos que os mesmos preenchem claramente o tipo legal do crime de violência doméstica, subsumível à previsão da alínea a) do n.º 1, e n.º 2, alínea a), do artigo 152.º do Código Penal.
Na verdade, apreciados os factos à luz da intimidade do lar e da repercussão na vida em comum, colocam a ofendida numa situação de vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade.
De tal factualidade resulta provado que o arguido e a ofendida BB, durante o período que estiveram juntos, o arguido agrediu, ameaçou e insultou a assistente, nomeadamente:
Quando a assistente estava grávida de 6 meses, durante uma discussão, o arguido arremessou um livro à barriga da assistente que teve de se desviar não lhe tendo acertado na barriga, deixando-a assustada e triste.
Na primeira semana de vida do filho do casal, porque este não parava de chorar, porque a assistente se dirigiu ao quarto, o arguido agarrou a assistente pelos braços e disse-lhe não entras que ele ganha manhas.
O arguido por diversas vezes disse à assistente que não sabia para que serviam as suas igrejas, pois aquilo que fazia não servia para nada, e que mulher de piloto não trabalha, está em casa à espera do marido.
Na sequência de uma discussão, o arguido disse à assistente “olha que te desfaço essa cara”, ao mesmo tempo que pôs o dedo em riste em frente ao rosto daquela.
Nos desentendimentos quanto à regulação das responsabilidades parentais, por várias vezes o arguido disse à assistente “vou fazer-te a vida negra”.
O arguido deslocou-se para a residência da assistente e assim que a mesma estacionou e saiu da viatura com o menor ao colo, o arguido colocou-lhe as mãos no rosto, apertando-o.
Numa altura em que o arguido veio ao Porto para estar com o filho, e a assistente se dirigiu para levar o menor, o arguido encetou discussão, na presença do filho, dizendo à assistente “porta-te bem ou desfaço-te a cara” ao mesmo tempo que levantava a mão na direcção do rosto daquela.
Ora, como dissemos, são maus tratos psíquicos, entre outros, os insultos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações da liberdade, provocar estados de angústia e sentimentos de sujeição, opressão, que apesar do sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação.
Por isso, constituem danos suficientemente graves para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, incompatível com a dignidade da pessoa humana, representando um aviltamento e humilhação da vítima que não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime, normalmente de injúria.
Ora, sendo o crime de Violência doméstica um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido, não é necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima, bastando que se pratiquem atos em abstracto, sucetíveis de provocar tais danos.
Por outro lado, a ratio da norma incriminatória, não é a protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional mas sim da dignidade da pessoa individual, pelo que o carácter punitivo desta norma só engloba os referidos comportamentos que lesam esta dignidade, tal como os maus tratos físicos e psíquicos descritos nos pontos 19), 22), 26), 35), 38),39) e 42 da factualidade provada.
Assim sendo, estão preenchidos todos os pressupostos objectivos e subjectivos do crime pelo qual o recorrente foi condenado, tal como foi referido na decisão recorrida.

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.
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Custas a cargo do recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 Ucs.

Porto, 25/01/2023
Donas Botto
Paula Guerreiro
Pedro Vaz Pato