ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS
COMUNICAÇÃO AO ARGUIDO
ACUSAÇÃO PÚBLICA
ACUSAÇÃO PARTICULAR
NULIDADE
Sumário


I - Perante o diferente enquadramento jurídico dos factos descritos na acusação pública, impõe-se ao tribunal dar prévio cumprimento do disposto no artigo 358.º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, concedendo à defesa do arguido a possibilidade de se pronunciar sobre a alteração da qualificação jurídica.
II - Tal comunicação não se torna desnecessária pelo facto de, na acusação particular, o assistente, aderindo no todo ou em parte aos factos acusados pelo Ministério Público, os qualificar de modo diverso.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

No âmbito do processo comum coletivo, com o número 110/20.8GAPCR, que corre termos no Tribunal Judicial de Viana do Castelo, Juízo Central Criminal de Viana do Castelo, foi proferido acórdão em 6/5/2022, que decidiu, para além do mais:

- Absolver o arguido A. G. da prática de um crime de ameaça agravada – art. 155º nº 1 al. a) de que vinha acusado (ofendida V. R.)
- Condenar o arguido A. G. como autor de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145 nº 1 al. a) e nº 2 e 132 nº 2 al. h) do CP na pena de 2 prisão.
- Condenar o arguido A. G. como autor de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153º do CP na pena de 6 meses de prisão.
- Condenar o arguido A. G. como autor de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 155º do CP na pena de 1 ano e 4 meses de prisão.
- Condenar o arguido A. G. na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, sujeita a regime de prova – art. 53º nº 3 do CP (sujeitando-se o arguido ao acompanhamento por parte dos serviços da Direcção Geral de Reinserção Social, cumprindo os programas e actividades que se venham a revelar essenciais ao seu processo de ressocialização, direccionado para a consolidação de um tratamento na área da psiquiatria, se necessário para o auxiliar na gestão emocional e na resolução de situações do quotidiano, e abrangendo a problemática do álcool).
- Julgar o pedido cível parcialmente procedente e em consequência condenar o demandado A. G. a pagar ao demandante, a quantia de €530,00 a título de danos patrimoniais, quantia essa acrescida de juros desde a notificação até integral pagamento, à taxa de 4%- portaria 291/2003 de 08.04 e a quantia de € 4.000,00 a título de danos não patrimoniais, quantia essa acrescida de juros desde a presente data até integral pagamento, à taxa de 4% - portaria 291/2003 de 08.04

2.
Não se conformando com o decidido, veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões

I – QUESTÃO PRÉVIA: da NULIDADE da decisão recorrida, por violação do artº. 379º, nº1, al. b) do Cód. Proc. Penal:

1ª – O tribunal a quo condenou o Recorrente pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada, quando, na verdade, o mesmo vinha acusado de um crime de ofensas à integridade física simples.
2ª - O crime de ofensas à integridade física qualificada (artº. 145º, nº 1, al. a) e nº 2 e artº. 132º, nº 2, al. h) do Cód. Penal) tem uma moldura penal mais grave do que o crime de ofensas à integridade física simples (artº. 143º, nº 1 do Cód. Penal), pois este é punível com pena de multa ou pena de prisão até 3 anos, enquanto aquele é punível com pena de prisão até 4 anos.
3ª - Nos termos do artº. 358º, nº 3 e nº 1 do Cód. Proc. Penal, o tribunal a quo estava obrigado a comunicar a alteração da qualificação jurídica ao arguido/Recorrente e a conceder-lhe o tempo necessário à preparação da sua defesa quanto às novas circunstâncias qualificantes.
4ª – Contudo, em nenhum momento antes ou durante a audiência de julgamento o tribunal a quo notificou o arguido/Recorrente da alteração da qualificação jurídica dos factos de um crime de ofensas à integridade física simples para um crime de ofensas à integridade física qualificada - como facilmente se comprova da leitura das actas das diversas sessões de audiência de julgamento e das gravações da mesma.
5ª - A ausência de comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido e a sua condenação por crime mais grave, constitui uma violação do disposto no artº. 358º, nº 3 e nº 1 do Cód. Proc. Penal, a qual acarreta a nulidade da sentença nos termos do disposto no artº. 379º, nº 1, al. b) do Cód. Proc. Penal.
6ª - Esse entendimento é pacífico desde o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 445/97, de 25 de Junho de 1997, sendo disse exemplo a seguinte jurisprudência:
· Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2-12-2009, CJ, 2009, T5, pág.127:
· Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4-06-2008, CJ, 2008, T3, pág.52
· Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 1-06-2011, CJ, T III, pág.65
· Acordão do Tribunal da Relação de Guimarães de 1-12-2014, in www.dgsi.pt
· Acordão do Tribunal da Relação de Évora de 7-04-2015 , in www.dgsi.pt
· Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.02.2017, in www.dgsi.pt
7ª - O próprio Supremo Tribunal de Justiça, proferiu acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 11/2013, publicado no Diário da República de 19 de Julho de 2013, onde decidiu:
«A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.os 1 e 3 do CPP»

8ª - Ao alterar a qualificação jurídica dos factos, condenando o arguido/Recorrente por crime ao qual é aplicável pena mais grave do que aquele por que vinha acusado sem previamente lhe ter comunicado tal alteração e lhe dado prazo para defesa quanto a essa alteração, o tribunal a quo violou as disposições dos artº.s 359.º, n.os 1 e 2, e 379.º, alínea b) do Cód. Proc. Penal e o artº. 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, sendo a sentença recorrida NULA.
9ª – Deve, pois, ser declarada a nulidade da decisão recorrida, ordenando-se a remessa dos autos ao tribunal a quo para repetição do julgamento, com cumprimento do disposto no artº.s 358º, nº.s 1 e 2 do Cód. Proc. Penal.

Sem prescindir,

II – DA CONTRADIÇÃO ENTRE A DECISÃO QUE CONDENOU O ARGUIDO PELO CRIME DE OFENSAS À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA E A FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE NÃO CONDENAÇÃO PELO CRIME DE OFENSAS À INTEGRIDADE FÍSICA GRAVE/AGRAVADA:

10ª - O tribunal a quo condenou o arguido/Recorrente pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada (artº. 145º, nº 1l al. a) e nº 2 e artº. 132º, nº 2, al. h) do Cód. Penal), pois considerou que “o instrumento utilizado, assim como o processo que conduziu à ofensa corporal, são ambos perfeitamente idóneos a consubstanciarem o conceito de “meio particularmente perigoso” e de revelarem “especial censurabilidade ou perversidade do agente – pág. 24 da sentença recorrida.
11ª – Contudo, esta decisão está em contradição com os fundamentos que levaram o tribunal a decidir que não se verificaram os pressupostos da punição do Recorrente pelo crime de ofensas à integridade física grave ou agravada – pág. 19 da sentença recorrida – onde o tribunal sublinhou que, não se tendo provado que o arguido, no referido circunstancialismo, provocou à vitima lesões que lhe causaram perigo para a vida, nem que ao actuar como actuou, agiu com o propósito de causar tal perigo (…)” não estarem verificados os pressupostos do crime de ofensa à integridade física agravada.
12ª - De resto, o tribunal recorrido deu como não provado que o arguido tenha agido com premeditaçãoalínea f) dos Factos não provados.
13ª – Tendo em conta que o arguido/Recorrente se dedica à agricultura de subsistência – ponto 31 dos Factos provados – a circunstância de, no momento dos factos, ter na sua posse uma sachola – o mais elementar instrumento agrícola da agricultura de subsistência – não pode ser levado em conta para inferir uma especial censurabilidade da conduta do agente, mas apenas um elemento circunstancial decorrente da sua condição de agricultor.
14ª – Acresce que um cabo de uma enxada não pode, só por si, ser considerado um meio especialmente perigoso.
15ª – Por último, da factualidade dada como provada, não resulta ter a vida do assistente/Recorrido corrido qualquer perigo.
Pelo contrário, resulta que as lesões que o tribunal deu como provadas ter ocorrido na sequência de tal agressão – ponto 9 dos Factos provados – lhe resultaram 10 dias de doença, sem afectação da capacidade do trabalho geral e profissional.
16ª – Perante a contradição entre a matéria de facto dada como provada, a respectiva fundamentação e a decisão de direito proferida, deverá a condenação do arguido pelo crime de ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelos artº.s 145º, nº 1 al. a) e nº 2 e artº. 132º, nº 2, al. h) do Cód. Penal ser revogada.

Acresce que,

III – DA ERRADA APRECIAÇÃO DA PROVA PRODUZIDA EM AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO:

17ª – Face à prova produzida, o tribunal recorrido deveria ter dado como não provada a factualidade que fez constar dos pontos 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15,16, 17, 18, 19, 47, 50, 51, 53, 54, 55, 56, 57 e 58 dos Factos provados, os quais entende que deveriam ter resultado não provados.

a) Da decisão que deu como provada factualidade constante dos pontos 3, 4, 5, 7, 8, 9 dos Factos provados:
18ª – Nenhuma testemunha presenciou os factos ocorridos no dia 26 de Julho de 2020, pelo que a prova sobre a factualidade constante dos pontos 3, 4, 5, 7 e 8 dos Factos provados se resumiu às versões opostas do assistente J. M. e do arguido A. G..
19ª – Tendo os depoimentos de arguido e assistente sido coincidentes quanto ao facto de ter havido refrega corporal entre eles, não houve coincidência sobre a forma como a contenda corporal entre ambos se iniciou e desenvolveu nem sobre quem a iniciou:

O arguido A. G. [depoimento prestado em audiência de julgamento de 10-03-2022, gravado em suporte digital com início às 10h50m482 e termo às 10h48m39s]:

· negou ter iniciado a contenda corporal com o assistente, como negou ter atingido o mesmo com o cabo da enxada, tal como vinha referido na acusação.
· Referiu, pelo contrário, que no dia 26 de Julho de 2020, por volta das 13h30, foi zelar uma água numa poça, tendo ido abrir a mesma. Quando desceu da poça após soltar a mesma, o arguido verificou que o assistente se encontrava à sua beira com uma enxada.
· Em acto contínuo, foi o assistente que deitou as mãos ao pescoço do arguido, iniciando a contenda entre ambos.
· Nessa altura ambos se agarraram, tendo, inclusivamente, o assistente rasgado a camisa ao arguido.
· No decurso da refrega corporal, o assistente e o arguido acabaram por cair ambos ao chão, tendo o assistente caído por cima do arguido, acabando por bater com a cabeça numa pedra, ficando ferido na testa e face.
O assistente J. M. [depoimento prestado em audiência de julgamento de 10-03-2022, gravado em suporte digital com início às 10h50m16s e termo às 11h23m05s]:
· referiu que no dia 26 de Julho de 2020 foi tapar uma água e, como não estava como a tinha deixado, estando uma pedra a desviar a água, agachou-se para retirar a pedra.
· Quando se levantou sentiu um estouro na testa.
· Disse que não viu de onde veio essa agressão nem viu quem foi.
· Que ficou sentado, a sangrar, tendo então ligado à sua mulher a pedir ajuda.
· Disse, então, que o arguido se deitou em cima dele, rasgou-lhe a camisa, e atirou-lhe com as costas contra o muro, tendo o assistente o tirado de cima dele.
· Disse ainda que levou duas pancadas muito fortes no peito, mas não sabe com quê.
· Depois ficou deitado em cima do carreiro, tendo ficado inconsciente.

20ª – Apesar de não existirem testemunhas presenciais dos factos, existiam outros elementos de prova que demonstravam contradições e incongruências no depoimento do assistente e, pelo contrário, davam suporte à versão do arguido/Recorrente. Assim
21ª – Na ficha clínica de urgência nº 80064531 (“Diário Clínico”) de fls. 21, correspondente à entrada do assistente no serviço de urgência, é referido que o mesmo Não terá tido PDC (1), mas à chegada estava lentificado, pouco responsivo, desorientado e confuso”.
Este registo desmente o depoimento do assistente em audiência de julgamento, quando referiu que, na sequência da agressão do arguido, desmaiou e ficou inconsciente.
22ª - Na mesma ficha de urgência – fls. 22 – o assistente referiu também que foi “Agredido com uma enxada, tentou proteger-se com o antebraço, mas foi atingido na fronte.
Esta versão nada tem que ver com aquilo que foi relatado pelo assistente/Recorrido em julgamento, onde referiu que sentiu um estouro na cabeça, não tendo visto de onde vinha nem quem o agrediu, não tendo referido em momento nenhum que se tentou proteger com o antebraço.
23ª - Mas as contradições do depoimento do assistente/Recorrido não ficam por aqui.
24ª - De acordo com a versão do assistente, ele teria sido agredido com um “estouro na testa” e, posteriormente, com duas fortes pancadas no peito, que o terão feito perder os sentidos.
25ª – Ora, submetido a exame médico no Instituto de Medicina Legal apenas dois (2) dias após a ocorrência dos factos – cfr. RELATÓRIO DO IML de fls. 40 a 42 -, não só o assistente não referiu ter sido agredido com pancadas no peito (cfr. item “História do Evento” – fls. 41), como nenhuma evidência lesão ou sequela lhe foi detetada no Torax (cfr. item “Exame Objectivo” – fls. 41. verso).
Este exame desmente as declarações prestadas pelo assistente em audiência de julgamento.
26ª – O depoimento do assistente foi, por isso, eivado de contradições e inconsistências, pelo que não deveria ter sido levado em consideração pelo tribunal a quo, quando confrontado com os demais elementos de prova, fossem as declarações do arguido, a prova documental de fls. 20 e 21 ou a prova pericial de fls. 40 a 42
27ª – Acresce que dos autos constavam outros elementos que confirmavam a versão dos factos que foi dada pelo arguido.
28ª - Com efeito, das FOTOGRAFIAS de fls. 11, 12 e 13 do inquérito nº 255/20.4 GAPTL – apenso aos presentes – que foram tiradas ao arguido, era possível ver as várias escoriações que o mesmo tinha ao nível do ombro esquerdo, da região dorsal e da mão direita, consequência das agressões de que o mesmo foi vítima por parte do assistente/Recorrido, nos moldes por si relatados.
29ª - Essas mesmas lesões constavam também da ficha de urgência nº 80064741 (fls. 16 do inquérito 255/20.4GAPTL, apenso aos presentes).
30ª - E constavam também do EXAME MÉDICO-PERICIAL DO IML (fls 277 a 279 dos autos principais), onde no item “Exame Objectivo” – fls. 278 verso – é referida a existência de várias equimoses e escoriações a nível do torax e dos membros superiores, as quais se coadunam com as agressões perpetradas pelo assistente/Recorrido nos termos da versão que foi dada pelo arguido – como foi reconhecido pela perita médica.
31ª – Por outro lado, a fls. 19 constava o REGISTO FOTOGRÁFICO EFECTUADO PELA GUARDA NACIONAL REPUBLICANA com a pedra ensanguentada onde o arguido referia que o assistente deu com a cabeça.
32ª - Contudo, todos os elementos citados nas precedentes conclusões 28ª a 30ª foram inexplicavelmente ignorados pelo tribunal a quo, o qual nem a eles se referiu na fundamentação da decisão.
33ª - Perante as contradições do depoimento do assistente com os demais elementos de prova, o tribunal não poderia deixar de se questionar sobre a veracidade do mesmo, absolvendo o arguido.
E, mesmo em caso de dúvida, não poderia deixar de lançar mão do princípio in dúbio pro reo, absolvendo o arguido do crime de ofensas à integridade física porque vinha acusado.
34ª - Ao decidir de forma diversa, o tribunal fez errada apreciação da prova por declarações, documental e pericial produzida, a qual impunha que se desse como não provada a factualidade constante dos pontos 3, 4, 5, 7, 8 e 9 dos Factos provados.
35ª - Pelo que deverá ser revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que dê como não provada a factualidade constante dos pontos 3, 4, 5, 7, 8 e 9 dos Factos provados.

b) Da factualidade dos pontos 10, 11, 12, 13 e 14 dos Factos provados:

36ª - Apenas o assistente J. M. [depoimento prestado em audiência de julgamento de 10-03-2022, gravado em suporte digital com início às 10h50m16s e termo às 11h23m05s] disse que o arguido o ameaçou dizendo-lhe “vê lá se queres que foda a tua [testa] outra vez”.
37ª - O arguido A. G. [depoimento prestado em audiência de julgamento de 10-03-2022, gravado em suporte digital com início às 10h50m482 e termo às 10h48m39s] negou ter proferido tais expressões contra o assistente.
38ª - A mulher do próprio assistente/Recorrido, V. R. [depoimento prestado em audiência de julgamento de 10-03-2022, gravado em suporte digital com início às 11h24m55s e termo às 12h04m13s], disse apenas que no dia 3 de Agosto de 2020 o arguido estava a pastorear ovelhas e, dirigindo-se às mesmas ovelhas, disse-lhes “Vê-de lá se quereis que vos foda a testa a vós”.
Mas não referiu em nenhum momento que o arguido tenha ameaçado o marido dizendo-lhe “vê lá se queres que foda a tua [testa] outra vez.
39ª – Assim, na ponderação das declarações prestadas pelo assistente J. M., contraditadas pelas declarações do arguido A. G. e sem qualquer suporte testemunhal, inclusivamente da esposa do assistente, V. R., não deveria o tribunal a quo ter dado como provado que o arguido ameaçou o assistente dizendo-lhe vê lá se queres que foda a tua [testa] outra vez.
40ª - Pelo que deveria ter dado como não provados os factos constantes dos pontos 11, 12, 13 e 14 dos Factos provados.
41ª - E, relativamente ao ponto 10 dos Factos provados, deveria ter dado apenas como provado o seguinte:
10. No dia 3 de Agosto de 2020, por volta das 10:30/11:00 horas encontrando-se J. M. num terreno rústico sito na Rua …, Ponte de Lima, o arguido estando posicionado noutro terreno ali existente distante apenas escassos metros, dirigindo-se às suas próprias ovelhas “Vede lá se quereis que vos foda a testa a vós”.

42ª – Deve, assim, a decisão recorrida ser revogada, substituindo-se por outra que dê como não provada a factualidade constante dos pontos 11, 12, 13 e 14 dos Factos provados.
E, relativamente, ao ponto 10 dos Factos provados deve dar como provado apenas o que consta da precedente conclusão 41ª.
c) Da factualidade dos pontos 15, 16, 17,18 e 19 dos Factos provados:
43ª – Também aqui não houve coincidência entre a versão do assistente e a do arguido:

O arguido A. G. [depoimento prestado em audiência de julgamento de 10-03-2022, gravado em suporte digital com início às 10h50m482 e termo às 10h48m39s]:
· negou ter sequer dirigido a palavra ao assistente e à esposa deste, negando de igual forma tê-los ameaçado.
O assistente J. M. [depoimento prestado em audiência de julgamento de 10-03-2022, gravado em suporte digital com início às 10h50m16s e termo às 11h23m05s]:
· disse que o arguido, no dia 9 de Julho de 2019, estava no barracão dos animais e ouviu uma voz a falar mal com a sua mulher.
· Saiu e viu o arguido no campo dele e que, de imediato, começou a chama-lo “filho da puta”, “que ia arrancar os olhos” “que o ia matar”, “que lhe ia amassar os ossos”.
· O arguido estava com uma vara e batia na rede.

44ª – Por outro lado, dos depoimentos das testemunhas inquiridas resultam contradições com o depoimento do assistente:
45ª - A testemunha V. R. [depoimento prestado em audiência de julgamento de 10-03-2022, gravado em suporte digital com início às 11h24m55s e termo às 12h04m13s] referiu:

· que no dia 09 de Julho de 2019 estava com o marido nas cortes
· que saiu da corte, e ouviu o arguido a discutir com o seu marido, mas nem percebia o que ele dizia.
· que foi então andando na direcção da discussão e ouviu o arguido dirigir-se ao assistente e dizer-lhe “filho da puta”, “hei-de-te amassar os ossos, tirar-te os olhos, tirar os dentes, hei-de-te matar”.
· Negou que estas expressões tenham sido dirigidas à sua pessoa.

46ª - Ora estas declarações estão em completa contradição com o depoimento do assistente, pois, de acordo com este, o arguido ter-se-ia primeiro dirigido à esposa do assistente discutindo com a mesma e só depois, quando o viu, se teria dirigido a ele e proferido as alegadas expressões ameaçadoras.
47ª - O filho do assistente C. R. [depoimento prestado em audiência de julgamento de 10-03-2022, gravado em suporte digital com início às 15h05m19s e termo às 15h17m23s] referiu que no dia 9 de Julho de 2019, pelas 21 horas, estava a chegar a casa e ouviu o arguido no caminho público a dirigir-se ao pai e a dizer “vou-te matar, vou-te partir os ossos todos”.
Ao contrário do referido pelo assistente, esta testemunha não disse ter ouvido ao arguido expressões “filho da puta”, “vou tira-te os olhos” ou “vou tirar-te os dentes”.
E, ainda em contradição com o depoimento do assistente, esta testemunha também não disse ter ouvido o arguido discutir com a sua mãe – a testemunha V. R..
48ª – Foi ainda ouvido o cunhado do assistente, A. C. [depoimento prestado em audiência de julgamento de 10-03-2022, gravado em suporte digital com início às 15h18m34s e termo às 15h26m49s] o qual, no entanto, disse estar zangado com o arguido, pelo que o tribunal a quo não deveria ter valorado, como fez, o seu depoimento.
49ª - Nessa medida, perante as diversas contradições entre os depoimentos do ASSISTENTE e das testemunhas V. R., A. R. e A. C. não deveria o tribunal ter valorado os mesmos e dar como provada a factualidade constante dos pontos 15, 16, 17, 18 e 19 dos Factos provados.

50ª - Pelo que deverá essa decisão ser revogada, substituindo-se por outra que julgue não provada a factualidade constantes pontos 15, 16, 17, 18 e 19 dos Factos provados.
d) Dos pontos 47, 50, 51, 53, 54, 55, 56, 57 e 58 dos Factos provados:
51ª – Perante a diversa resposta que se impunha sobre a factualidade constante dos pontos 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15,16, 17, 18, 19 dos Factos provados da sentença recorrida, e, nessa medida, não se tendo provado que o arguido praticou contra o assistente os crimes porque vinha acusado, não poderia o tribunal a quo estabelecer o nexo de causalidade que o levou a dar como provados os factos constantes dos pontos 47, 50, 51, 53, 54, 55, 56, 57 e 58 dos Factos provados.
52ª - Pelo que deverá a decisão recorrida ser revogada, substituindo-se por outra que outra que julgue não provados os factos constantes nos pontos 47, 50, 51, 53, 54, 55, 56, 57 e 58 dos Factos provados, na parte em que imputam ao arguido os factos causais dos danos aí referidos.

IV – DA DIVERSA DECISÃO DE DIREITO QUE SE IMPUNHA:

53ª - Tal como acima se referiu nas precedentes conclusões 17ª a 52ª, a matéria dos pontos 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15,16, 17, 18, 19, 47, 50, 51, 53, 54, 55, 56, 57 e 58 dos Factos provados deveria ter sido dada como não provada.
54ª - Nessa medida, o tribunal recorrido deveria ter absolvido o arguido/Recorrente dos crimes de ofensas à integridade física e de ameaças porque vinha acusado, pois face à decisão da matéria de facto que se impunha, não se encontram preenchidos os elementos dos tipos legais dos crimes de ofensas à integridade física qualificada (artº. 145º, nº 1l al. a) e nº 2 e artº. 132º, nº 2, al. h) do Cód. Penal), um crime de ameaça agravada (artº. 155º, nº 1, al. a) do Cód. Penal) e um crime de ameaça (artº. 153 do Cód. Penal).
55ª - Ao decidir de forma diversa, o tribunal recorrido fez errada aplicação do direito à prova produzida, violando, entre outras, as disposições dos artº.s 145º, nº 1l al. a) e nº 2 e artº. 132º, nº 2, al. h), artº. 155º, nº 1, al. a) e artº. 153 do Cód. Penal.
Como fez também errada interpretação e aplicação do disposto artº. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, por violação do princípio in dúbio pro reo.
56ª - Pelo que deve a sentença recorrida ser revogada e, em sua substituição, ser proferido douto acórdão que absolva o Recorrido dos crimes de ofensas à integridade física qualificada (artº. 145º, nº 1l al. a) e nº 2 e artº. 132º, nº 2, al. h) do Cód. Penal), um crime de ameaça agravada (artº. 155º, nº 1, al. a) do Cód. Penal) e um crime de ameaça (artº. 153 do Cód. Penal) porque foi condenado.

No entanto, e sem prescindir, sempre se dirá que:

IV – DO GRAU EXCESSIVO DAS PENAS APLICADAS AO ARGUIDO/RECORRENTE:

57ª - O arguido/Recorrente apenas tinha averbado no seu registo criminal a prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, de natureza totalmente diversa daqueles que estavam em discussão nos autos.
58ª - Ao contrário do que era alegado pelo Recorrido, resultou não provado que o arguido/Recorrente tenha um histórico de ameaças dirigidas àquele e aos seus familiares, inclusivamente ameaças de mortealínea f) dos Factos não provados.
59ª - Por outro lado, não decorre da factualidade dada como provada nenhum facto de onde se possa extrair uma especial perigosidade do arguido/Recorrente nem uma especial necessidade de prevenção especial relativa ao mesmo,
60ª - Pelo que nenhumas exigências de prevenção geral ou especial justificavam que o tribunal a quo tenha optado por penas de prisão nos crimes onde era possível a aplicação de pena de multa.
61ª - Ora, como se referiu supra, o arguido/Recorrente não deveria ter sido julgado pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada, mas tão só e apenas pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo artº. 143º, nº 1 do Cód. Penal.
Esse crime é punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
62ª - Por outro lado, o crime de ameaças, p. e p. pelo artº. 153º do Cód. Penal, por que foi julgado, era punível com pena de multa até 120 dias ou com pena de prisão até um ano.
63ª - E o crime de ameaças agravado, p. e p. pelo artº. 155º, nº 1 do Cód. Penal, era punível com pena de 1 a 5 anos de prisão.
64ª - Nessa medida, e relativamente aos crimes que previam a punição com pena de multa ou pena de prisão, o tribunal a quo deveria ter optado por uma pena de multa e não pela pena de prisão.
65ª - E, em cúmulo jurídico, e mesmo a considerar praticados todos os crimes, não deveria ter fixado uma pena superior a 13 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de 1 ano.
66ª - Ao decidir de forma diversa, o tribunal a quo violou as disposições legais dos artº.s 153º, nº 1 e artº. 155º, nº 1, al a), artº. 145º, nº 1, al a), artº.47º, nº 1 e artº.s 50º, nº 1 e nº 5 do Cód. Penal.
67ª - Pelo que, se ao contrário do que se espera, a final se vier a entender que o Recorrente deve ser condenado pelos crimes porque vinha acusado, sempre a decisão recorrida deve ser revogada, substituindo-se a mesma por douto acórdão que proceda à redução das penas parcelares e pena única fixadas pelo tribunal a quo, substituindo-as por penas não detentivas de liberdade nos crimes onde a pena de multa seja aplicável e fixando, em cúmulo jurídico, uma pena de prisão não superior a 13 meses de prisão, suspensa no máximo por um ano.

V – DA INDEMNIZAÇÃO ARBITRADA PARA RESSARCIMENTO DOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS SOFRIDOS PELO DEMANDADO:

68ª – Para além de indevida, a indemnização de € 4.000,00 (quatro mil euros) arbitrada para ressarcimento dos danos não patrimoniais do demandante é excessiva face aos factos provados da sentença recorrida.
69ª - A indemnização por danos não patrimoniais “(…) deve ser proporcional à gravidade do dano, a avaliar objectivamente, e ser fixada de acordo com critérios de boa prudência e ponderação das realidades da vidaAcórdão do Tribunal da Relação de Coimbra), de 17 de Maio de 2017 (Proc. 310/13.7 GBPMS.C1), in www.dgsi.pt.
70ª - Nessa medida, mesmo a considerar-se que o Recorrente/demandado praticou os crimes porque foi condenado, sempre a indemnização por danos não patrimoniais não deveria ter sido fixada em valor superior a € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
71ª - Ao decidir de forma diversa, o tribunal recorrido fez errada aplicação do direito aos factos provados, violando, entre outras, as disposições dos artigos 496º, nº 1 e 3 do Cód. Civil.
72ª - Pelo que deve ser revogada, substituindo-se por outra que absolva o demandado do pedido de indemnização civil. Ou, caso assim se não entenda, reduza a indemnização por danos não patrimoniais a ressarcir pelo Recorrente ao Recorrido, arbitrando-se, para o efeito, uma quantia não superior a € 2.500,00.
(…)”.

3.
O assistente J. M. veio responder ao recurso, concluindo do seguinte modo:

“I - O douto acórdão recorrido não padece de nulidade por alegada violação do art. 379.º, n.º 1, al. b) e do n.º 3 do art. 358.º, ambos do Cód. Processo Penal já que, por articulado apresentado em Abril de 2021, com a referência 3119251, por discordar da qualificação jurídica que o Ministério Público retirara dos factos constantes da douta acusação pública ao ter concluído pela verificação do crime de ofensa à integridade física simples, o recorrido veio defender, ao abrigo do art. 284.º do Cód. Proc. Penal que, em face da especial censurabilidade ou perversidade do agente, que resultam reveladas das circunstâncias em que as ofensas à integridade física foram produzidas – desde logo, o recurso a um instrumento particularmente perigoso e os circunstancialismos em que os factos ocorreram -, sempre estaria em causa a prática de um crime de ofensa à integridade física agravada. – cfr. alínea a) do n.º 1 do artigo 145.º e alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º, ambos do Código Penal.
II - O recorrente foi notificado desse articulado e apresentou contestação, em 12 de Outubro de 2021, com a Ref.ª 3320911, “à D. Acusação Pública e Particular, oferecendo o MERECIMENTO DOS AUTOS;” tendo, ainda, indicado a prova que bem entendeu, pelo que a alteração da qualificação jurídica foi-lhe, assim, oportunamente notificada!
III - Como entendido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, in douto Acórdão de 29 de Maio de 2008, num caso em tudo idêntico, “(…) a assistente tem a possibilidade de, por discordar da integração jurídica feita dos factos vertidos na acusação pública, lançar mão da faculdade concedida no referido art.º 284º n.º 1 CPP delimitando, por essa via, o objeto do processo para a fase de julgamento para lá do já definido na acusação pública, evitando por essa via a necessidade de ulterior aplicação dos art.ºs 303º n.º 5 e 358º n.º 3 ambos do CPP.”.
IV - Assim se explica o teor do douto despacho, datado de 06 de Outubro de 2021, de onde consta o seguinte: “A adesão do assistente no todo ou em parte aos factos acusados pelo Ministério Público – como aqui ocorreu – não impede que o assistente os qualifique de modo diverso. Esta qualificação diversa dos factos tem o efeito de evitar a necessidade de aplicação ulterior dos arts. 303º, nº5 e 358º, nº3, ambos do C.P.Penal (assim, vide PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal à luz daa Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Edição actualizada, Universidade Católica, Lisboa, 2008, pág. 746). Evitará a necessidade de comunicar a eventual alteração da qualificação jurídica ao arguido, nos termos dos referidos normativos, em sede de audiência de julgamento e não neste momento processual, por não se afigurar legalmente admissível.” – nosso negrito.
V - A posição oportunamente assumida pelo Recorrido e as consequências que daí advêm não foi ignorada pelo Tribunal a quo, como decorre das referências que ali constam nas páginas 1 e 32, o que explica, certamente, não ter o Tribunal a quo procedido à comunicação a que alude o artigo 358.º, n.º 3 do C. P. Penal, pois a situação já se encontrava devidamente sanada, inexistindo qualquer lapso.
VI - Pese embora a alínea f) do artigo 1.º do Código de Processo Penal defina “«Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”, certo é que, in casu, não existe uma alteração substancial dos factos, uma vez que, ainda que se conclua pela necessidade de se proceder a uma alteração da sua qualificação jurídica, os factos constantes da douta Acusação Pública permaneceram imutáveis, sendo os precisos factos já ali constantes que, por si só já conduzem a uma qualificação jurídica distinta da que resulta da Acusação Pública, não tendo resultado da prova produzida no decurso da audiência, da introdução de um qualquer novo facto no elenco dos factos pelos quais vinha acusado. – cfr. douto acórdão Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-03-2007, CJ, 2007, T2, pág.124: “I. As figuras da alteração não substancial dos factos e da alteração da qualificação jurídica, referidas no artº 358º do CPP têm de dimanar da prova produzida em audiência de julgamento e não de qualquer reapreciação dos indícios recolhidos nas fases preliminares do processo.” e o Assento do STJ n.º 2/93 , DR, I Série A de 10-03-93:“Para os fins dos artigos 1.º, alínea f), 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.os 1 e 2, e 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.”
VII – Ainda que assim se não concluísse, definiu a jurisprudência que dúvidas não subsistem de que a suposta omissão da notificação da alteração da qualificação jurídica ao arguido constitui uma irregularidade processual, considerando o disposto nos artigos 118.º, n.ºs 1 e 2 e 123.º do Cód. Proc. Penal, já que aquela não é fulminada por lei com a sanção de nulidade (atente-se que a al. b) do art. 379.º do Cód. Proc. Penal fala em nulidade da sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação – o que, como já defendido, não se verifica in casu), nem a mesma se encontra contemplada nos artigos 119.º e 120.º do mesmo Código. Sendo assim, deveria essa irregularidade ser arguida nos termos do citado artigo 123.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal, faculdade que o recorrente não exerceu e que, por essa via, se encontra, já precludida.
VIII - O recorrente incumpre com o ónus de impugnação da matéria de facto a que alude o artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, já que não indica concretamente as passagens das gravações dos depoimentos do recorrente, do recorrido e das testemunhas em que se funda tal impugnação, sendo que “(…) o estrito cumprimento da mencionada imposição legal não se basta com a mera indicação do início e do fim da gravação do depoimento das diversas testemunhas (…) A lei adjetiva exige bem mais do que uma indicação nesses moldes, reclamando que seja feita uma indicação precisa (exata, na terminologia legal) das concretas passagens dos depoimentos (fonograficamente registados) - cfr. douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/08/2016, in www.dgsi.pt, impondo-se ainda que “(…) essa indicação figure nas conclusões formuladas pelo recorrente, uma vez que estas delimitam o objeto do recurso (…) – veja-se neste sentido o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20/03/2012, in www.dgsi.pt.
IX – Perscrutadas as doutas conclusões, constata-se que o recorrente se limitou a identificar o início e o fim da gravação dos depoimentos, mas nunca quais as concretas passagens - que não transcreveu, limitando-se a resumir partes, por próprios palavras, de forma descontextualizada – pelo que, em obediência ao disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, o douto recurso apresentado deve ser imediatamente rejeitado, por inobservância dos requisitos legalmente exigidos, sendo inadmissível, nesta sede, o respetivo convite ao aperfeiçoamento – cfr., a título exemplificativo, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/08/2016, in www.dgsi.pt.
X - Como se vislumbra do preceituado, por um lado, no artigo 144.º, e, por outro lado, no artigo 145.º e na al. h) do n.º 2 do artigo 132.º, todos do Código Penal, os circunstancialismos que permitem optar pelo preenchimento de um ou outro crime são distintos e a fundamentação que encontramos no douto acórdão recorrido espelha, de forma evidente, essa destrinça, pelo que os argumentos que levam ao afastamento do crime de ofensa à integridade física grave não contrariam a condenação pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.
XI - O facto de não ter resultado provado que as lesões causaram perigo para a vida do assistente ou que o recorrente tenha agido com premeditação, desviando propositadamente o curso da água, levando o recorrido a se deslocar para a levada, em nada belisca os argumentos apresentados pelo coletivo de juízes para condenar o recorrente pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, pois a censurabilidade ou perversidade que qualificam a conduta do recorrente não dependem, única e exclusivamente, do eventual perigo para a vida, mas por outras circunstâncias, tais como, a natureza do meio/instrumento usado na agressão - cujas características colocaram - como resultou dos factos provados - o recorrido numa situação de dificuldade exponencial de defesa -, a zona do corpo onde as lesões foram provocadas – cabeça -, a conduta adotada pelo agressor, de entre outras, resultando a especial censurabilidade do recorrente, de entre outros, dos factos ínsitos nos itens 3, 5, 7, 8, 9, 15, 32, 41, 42, 43, 45, 47, 48 do elenco dos factos provados, passíveis de sustentar um juízo de especial censurabilidade, por fundarem um juízo de maior desvalor ético, quando confrontada com os procedimentos de agressão comummente adotados em situações de agressões físicas (pontapés, estalos, murros…).
XII - Não houve errada apreciação da prova produzida, bastando ler o douto acórdão recorrido para confirmar que o tribunal a quo fez uma apreciação conjugada da diversa prova produzida, quer documental, quer testemunhal, levando, ainda, em conta, as declarações quer do recorrente, quer do recorrido, constando expressamente ali referido que o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida relativamente ao que aconteceu nos três episódios referidos nas acusações, não conseguindo descortinar a incoerência das declarações do recorrido salientadas pela defesa, avançando, ao invés, que a versão do recorrente não tem qualquer consistência.
XIII – Os factos elencados nos itens 3, 4, 5, 7, 8, 9 da factualidade dada como provada encontram sustento probatório bastante nos documentos juntos aos autos, mormente nas fichas clínicas dos episódios de urgência do dia 26 de Julho e do dia 27 de Julho de 2020 e ainda no relatório de perícia médico legal reportado ao recorrido J. M., conjugados com as declarações do mesmo, ouvido na sessão do dia 10 de Março de 2022, com início às 10h50m15s e terminus às 11h23m05s, cujo depoimento está gravado no ficheiro digital com o n.º 20220310105014_1613000_2871827, que relatou, com pormenor e clareza o suceder dos factos reportados ao episódio do dia 26 de Julho de 2020 e que foram dados como provados (vide com especial relevância estas declarações, dos 6m18s aos 8m07s; dos 8m55s aos 9m20s – neste excerto o recorrido explicou que, quando recebeu a pancada na cabeça, não viu de onde vinha porque o local é desnivelado… mas esclareceu que se apercebeu que tinha sido o recorrente quando este saltou para cima dele, a empurrar-lhe a cabeça para a água e lhe rasgou a camisa, sendo que o próprio recorrente admite que apenas estavam os dois no local - cfr. declarações do recorrente, obtidas na sessão do dia 10 de Março de 2022, com início às 10h05m47s e terminus às 10h48m39s, gravadas no ficheiro áudio 20220310100546_1613000_2871827, dos 41m54s aos 41m58s -; dos 9m25s aos 11m17s; dos 11m17s aos 11m40s - após a Meritíssima Juiz Presidente ter dito: “e depois diz aqui que o senhor caiu e bateu com a cabeça numa pedra…”, o recorrido negou espontânea e veemente tal factualidade: “Não, não bati nada, se bati com a cabeça numa pedra foi ele, quando me deu com a cachola no peito que bati com a cabeça, que eu quando cai bati com as costas contra o muro!”; dos 11m42s aos 12m25s; dos 20m30s aos 21m00s: negou que tenha provocado ou agredido o recorrente, avançando que “este homem à falsa fé é muito perigoso” e dos 25m00s aos 25m18s, esclareceu que a pancada que levou na cabeça “ou foi com a sachola ou com o cabo da sachola, mas com uma parte da sachola sei que foi!”
XIV – Ora, as declarações do Assistente são um meio de prova perfeitamente válido ─ art.º 145.º e 346.º do Cód. Proc. Penal ─ e, muitas vezes, são o único meio de comprovar os factos, por não haver outros, o que, por sinal, não sucedeu no caso dos autos, em que as testemunhas reforçaram o declarado pelo recorrido (como infra teremos oportunidade de asseverar), não se podendo esquecer que, como prevê o n.º 2 do primeiro dos artigos referidos, o assistente também está sujeito ao dever de verdade. Asseverou, sobre a aptidão desse meio de prova, de entre tantos outros, o Tribunal da Relação de Coimbra, no douto Acórdão de 17- 05-2017: «O Tribunal pode formar a sua convicção apenas num único depoimento, mesmo que se trate do assistente, o importante é que este o preste de forma séria e credível (…).»
XV - O estado de inconsciência em que o recorrido foi encontrado e que se manteve até chegar à ambulância, o local e a forma como o recorrido se encontrava deitado, os ferimentos e o estado em que a camisa do recorrido ficou, assim como a presença do recorrente no local, a existência de apenas uma enxada que era a que estava com o recorrente, bem como a ausência de ferimentos e o facto de ter recusado assistência médica, tudo foi, ainda, confirmado pelas seguintes testemunhas, cujos depoimentos se mostraram uníssonos:
a) V. R. (cujo depoimento foi prestado no dia 10 de Março de 2022, com início às 11h24m54s e terminus às 12h04m13s, gravado no ficheiro áudio 20220310112453_1613000_2871827) dos 5m08s aos 10m37s, dos 10m40s aos 11m34s; dos 23m10s aos 23m22s; dos 23m58s aos 25m16s;
b) M. S. (cujas declarações foram prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 12h21m33s e terminus às 12h35m08s, gravadas no ficheiro áudio 20220310122132_1613000_2871827), dos 1m58s aos 5m30s; dos 5m40s aos 6m17s; dos 6m57s aos 7m25s,
c) C. M. (cujas declarações foram prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 14h58m33s e terminus às 15h04m17s, gravadas no ficheiro áudio 20220310145833_1613000_2871827), dos 1m05s aos 2m28s e dos 3m10 aos 3m26s;
d) B. R., (cujas declarações foram prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 14h31m20s e terminus às 14h57m38s, gravadas no ficheiro áudio 20220310143118_1613000_2871827), dos 2m38s aos 4m35s, dos 6m30s aos 6m38s);
e) C. R., (cujas declarações foram prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 15h05m18s e terminus às 15h17m23s, gravadas no ficheiro áudio 20220310150517_1613000_2871827), dos 4m10s aos 4m50s; dos 10m20s aos 10m28s
f) I. B. (cujas declarações foram prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 15h28m00s e terminus às 15h49m48s, gravadas no ficheiro áudio 20220310152759_1613000_2871827), dos 1m25s aos 2m48s; dos 3m44s aos 4m22s) e
g) o Sr. Agente da GNR, V. L. (cujas declarações foram prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 12h05m18s e terminus às 12h19m46s, gravadas no ficheiro áudio 20220310120517_1613000_2871827) dos 1m23s aos 2m05s; dos 8m50s aos 9m00s; dos 2m49s aos 3m10s; dos 3m43s aos 3m52s; dos 6m53s aos 7m00s e dos 8m35s aos 8m43s.
XVI - O recorrente alicerça a sua tese apenas nas suas próprias declarações, não corroboradas por nenhuma testemunha ou outro meio de prova, feitas com um discurso incoerente, sendo possível ler no próprio acórdão recorrido que: “A versão do arguido não tem qualquer consistência”, avançando-se, a título de exemplo, as seguintes incongruências da tese que ensaiou: caso o recorrido tivesse caído por cima do recorrente, como é que este teria conseguido sair de baixo daquele e como explicar o cenário com que todas as testemunhas se depararam quando chegaram ao local?! Se o que tivesse provocado as lesões na zona frontal da cabeça do recorrido, fosse, ao cair por cima do recorrente, ter batido com a cabeça numa pedra, considerando a forma como foi encontrado (de cubito dorsal), as lesões teriam, ao invés, que existir na parte de trás da cabeça; o sangue que foi encontrado numa pedra que existia no local facilmente se pode dever ao facto de ter escorrido da cabeça do recorrido enquanto ali ficou caído e inanimado; a existirem as lesões reveladas no episódio de urgência e no relatório pericial médico-legal referentes ao recorrente, as mesmas poderão ser explicadas – tal como decorre do despacho de arquivamento – quando o recorrido tentou defender-se das agressões, sendo certo que nenhuma das testemunhas o viu ferido no local, resultando do auto de notícia que o mesmo não apresentava lesões, não foi assistido pelo INEM (ele próprio disse não precisar), não foi levado para o hospital (estavam lá duas ambulâncias) e foi visto pelas testemunhas V. R. e M. S. naquela mesma tarde, em tronco nu na varanda da casa sem qualquer ferimento, tendo retomado naturalmente as lides agrícolas mas se nada se tivesse passado.
XVII - A tese ensaiada pelo recorrente de que a pancada que o recorrido levou na cabeça se ficou a dever a uma pedra e não à sachola é ainda, e de forma inequívoca, desmentida pela própria perita, DRA. R. B., que prestou declarações no dia 21 de Abril de 2022, com início às 14h14m46s e terminus às 14h27m39s, e que estão gravadas no ficheiro áudio 20220421141445_1613000_2871827, a qual veio esclarecer que “As caraterísticas das lesões neste caso coadunam-se mais com o tipo que o sinistrado, o ofendido referiu, do que com uma pedra.” (dos 5m10s aos 5m23s) e depois de examinar a fotografia da pedra, concluiu não ser provável ter sido a pedra a provocar a lesão na cabeça do recorrido, porque a laceração é linear, foi suturada com seis pontos, e não é uma laceração estrelada, atestando que a laceração que o recorrido apresenta é mais a favor que tenha sido um objeto com as características do pau ou de um cabo de enxada do que com as caraterísticas da superfície da pedra ajuizada (dos 9m25 aos 10m10s e dos 11m22s aos 12m02s).
XVIII - Quanto à factualidade ínsita nos itens 10, 11, 12, 13 e 14 dos factos provados, encontramos sustento nas declarações do Recorrido, ouvido na sessão do dia 10 de Março de 2022, com início às 10h50m15s e terminus às 11h23m05s, cujas declarações estão gravadas no ficheiro áudio 20220310105014_1613000_2871827, dos 13m13s aos 13m40s e da Testemunha V. R., dos 12m50s aos 13m50s das declarações da referida testemunha, prestadas na sessão de audiência de discussão e julgamento do dia 10 de Março de 2022, com início às 11h24m54s e terminus às 12h04m13s, gravadas no ficheiro áudio 20220310112453_1613000_2871827, tendo ambos esclarecido o tribunal que andavam a arrancar feijão no meio do milho e as ovelhas do recorrente passaram do campo dele para aquele campo e então ele foi lá tirar as ovelhas e ouviram-no dizer “andai para cá suas filhas da puta, ou querendes que vos parta também a testa a vós?” (admitindo a testemunha V. R. só ter ouvido isso, o que denota honestidade, já que poderia ter acrescentado ter ouvido mais do aquilo que ouviu, por forma a fazer coincidir as suas declarações in totum com o depoimento do recorrido), sendo que o recorrido referiu ainda ter ouviu o recorrente dizer “E tu vê lá se queres que foda a tua outra vez!”.
XIX - Lido o douto acórdão recorrido, conclui-se que não restaram dúvidas ao tribunal a quo para optar pela decisão nos precisos termos em que o fez, constando ali expressamente que: “Em face da prova produzida o tribunal não ficou com qualquer dúvida relativamente ao que aconteceu nos três episódios referidos nas acusações.” e, referindo-se concretamente quanto aos factos em discussão: “Por último, no que respeita ao episódio de 03 de Agosto, o tribunal considerou as declarações do assistente. A mulher deste, que também se encontrava no lugar, reproduz uma expressão proferida pelo arguido apenas dirigida às ovelhas. Porém, o assistente diz que aquele afirmou “Vede lá se quereis que vos foda a testa a vós e que foda a tua outra vez “. Não tem o tribunal qualquer motivo para considerar como não credível esta versão do assistente, certamente mais “sensível” ao tema da testa depois do que lhe aconteceu.”, remetendo-se aqui para o que já supra se deixou alegado quanto à força probatória das declarações prestadas por Assistente, sendo certo que em face disso, não será apenas o facto de o recorrente vir negar a prática dos factos que pode sustentar decisão diversa da proferida.
XX - Finalmente, a factualidade vertida sob os itens 15, 16, 17, 18 e 19 do elenco dos factos provados encontra sustento bastante no discurso sério e coerente do Recorrido dos 2m33s aos 3m08s; dos 4m31s aos 4m45s e dos 5m45s aos 5m50s das suas declarações, prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 10h50m15s e terminus às 11h23m05s, gravadas no ficheiro áudio 20220310105014_1613000_2871827, conjugado com as declarações da testemunha V. R., prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 11h24m54s e terminus às 12h04m13s e gravadas no ficheiro áudio 20220310112453_1613000_2871827, dos 1m52 aos 3m27s e dos 20m50s aos 22m10s, aqui referindo que o recorrente falava com uma tal convicção que todos acreditaram que era capaz de fazer o que ameaçava, dizendo, em tom de desabafo, que: “até uma criança pode matar um homem bem forte, não é por causa de ser pequeno que não pode matar um homem forte, porque se apanha uma pessoa desprevenida… ele com uma enxada, como aconteceu depois dali a um ano… não matou o meu marido por sorte, podia-o ter matado, ou a mim ou aos meus filhos, até porque ele tem em cima de uma placa… um terraço, mesmo por cima da rua tem umas pedras grandes e já ameaçou o meu marido de cima desse terraço com as pedras desde esse caso…”; da testemunha C. R., ouvido no mesmo dia, cujas declarações tiveram o seu início às 15h05m18s e terminus às 15h17m23s, gravadas no ficheiro áudio 20220310150517_1613000_2871827, dos 1m48s aos 3m40s e da testemunha A. C., inquirido também no dia 10 de Março de 2022, das 15h18m33s às 15h26m49s (e cujas declarações se encontram gravadas no ficheiro áudio 20220310151832_1613000_2871827), dos 2m25s aos 3m04s e dos 7m25s aos 7m50s, sendo que as apontadas contradições de que o recorrente lança mão, se revelam inócuas, já que é pertinente relembrar que estas duas últimas testemunhas não assistiram a estes factos desde o início, tendo chegado ao local em momento posterior, o que explica não terem mencionado ouvir todas as expressões que o recorrido e a testemunha V. R. referem ter ouvido (a testemunha V. R., quando questionada se depois de chamarem as autoridades, o recorrente ficou ali à espera ou se se ausentou do local, afirmou que ele se manteve ali a proferir as expressões em causa e, entretanto, é que chegaram o filho (testemunha C. R.) e o irmão (testemunha A. C.), que assim conseguiram ouvir o recorrente a proferir, pelo menos, parte daquelas expressões – cfr. dos 4m18s aos 4m55s das declarações da testemunha V. R., prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 11h24m54s e terminus às 12h04m13s e gravadas no ficheiro áudio 20220310112453_1613000_2871827.
XXI - De notar que, como entendimento jurisprudencial unânime, ainda que o tribunal de recurso se convença que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, se não a tornam necessária ou racionalmente obrigatória, então deve manter a decisão da primeira instância tal como está, só podendo e devendo determinar uma modificação da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. – cfr., a título exemplificativo, acórdão da Relação de Coimbra, de 03/10700 in C.J. ano 2000, Vol. IV, pág. 28; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24-03-2004, publicado no D.R. II Série, de 02-06-2004; Acórdão da Relação de Guimarães de 23-03-2015, tirado no Proc. n.º 159/11.5PAPTL.G1, de que foi relator o Exmo. Desembargador João Lee Ferreira; Acórdão da Relação de Guimarães, de 11 de setembro do 2017, tirado no Proc. n.º 345/16.8GBBCL. G1, de que foi relator o Exmo. Desembargador Jorge Bispo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2010, tirado no Proc. n.º 427/08.8TBSTB.E1.S1, de que foi relator o Exmo. Conselheiro Raul Borges e Acórdão da Relação de Guimarães, de 08-01- 2018, tirado no Proc. n.º 12/16.2GAGMR.G1, em que foi relatora a Exma. Desembargadora Ausenda Gonçalves.
XXII - O recorrente intenciona o preenchimento do hipotético vício de erro notório na apreciação da prova, através da invocação de uma pretensa violação do princípio «in dubio pro reo» subsidiário, residual e salvífico, só que igualmente nos parece não ter sido, ainda que minimamente, beliscado o aludido princípio, pois, como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de abril de 2011 - Cfr. o Proc. n.º 117/08.3PEFUN.L1. S1, acessível in www. dgsi.pt -: «Só que a situação de dúvida tem que se revelar de algum modo, e designadamente através da sentença. A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido.» (sublinhado nosso) e, in casu, o Tribunal a quo não denotou qualquer dúvida ou passo decisório hesitante que lhe impusesse a convocatória da dita regra, já que este esclareceu cabalmente e «ex ante» as objeções do recorrente.
XXIII - Por inerência, ao ter sido produzida prova cabal que não deixou o tribunal a quo com qualquer dúvida da ocorrência dos três episódios nos termos narrados no elenco da factualidade dada como provada, mormente nos itens 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 19, a factualidade vertida nos itens 47, 50, 51, 53, 54, 55, 56, 57 e 58 dos factos provados – sobre os quais, de igual forma, recaiu prova cabal, como infra se deixará demonstrado – foi corretamente apreciada, estando assim preenchidos os elementos objetivos e subjetivos de todos os tipos legais pelos quais o recorrente foi condenado, inexistindo qualquer errada aplicação do direito à prova produzida.
XXIV - Insurge-se o recorrente com a medida da pena de prisão que lhe foi fixada, mas a factualidade que resulta provada denota, sem mais, a conduta reiterada de conflituosidade, de agressividade e de especial censurabilidade e perversidade do recorrente para com o recorrido: já com um processo pendente pelos factos perpetrados em 9 de Julho de 2019 (processo que acabou apensado aos presentes autos), tal não se revelou suficiente para afastar o recorrente de condutas ainda mais gravosas face ao recorrido (episódios de 2020, sendo que também aqui, o primeiro deles em Julho não demoveu o recorrente de provocar e ameaçar o recorrido em Agosto), denotando que é efetivamente intenso o dolo e urgente a necessidade de prevenção especial, pois parece que nada vem demovendo o recorrente, antes se assistindo a um aumento da espiral de violência para com o recorrido, assumindo comportamentos cada vez mais agressivos para com este.
XXV – Enquanto que no episódio de 2019, a prolação das expressões ajuizadas, aliada ao facto de, em simultâneo, o recorrente empunhar um pau/vara e bater com tal instrumento, potencia o grau de violência deste acontecimento, que invariavelmente causou medo e inquietação para quem a ele assistiu, a natureza das ofensas físicas perpetradas pelo recorrente, já no episódio de 26 de Julho de 2020 - por exemplo, e desde logo, o empurrar a cabeça do recorrido para dentro de água de um rego e a pancada violenta numa parte vital do corpo do recorrido (na cabeça) - e a forma como foram executadas - o grau de violência e o recurso a um instrumento particularmente perigoso -, denotam a especial gravidade das ofensas impelidas pelo recorrente face ao recorrido já que, além de dificultarem, de modo exponencial, a capacidade de defesa, possuíam uma aptidão reforçada, muito superior ao normal em relação a outros meios e procedimentos, para causar lesões graves na integridade física do recorrido.
XXVI - Dúvidas não restam que o recorrente agiu de forma voluntária, livre e consciente – o que resulta de forma inequívoca do Relatório da Perícia Médico-Legal na sequência da avaliação psiquiátrica feita ao recorrente que o considerou imputável e do Relatório da DGRSP que refere que o recorrente, em abstrato, face à natureza dos factos descritos na acusação, apresenta consciência crítica, verbalizando o reconhecimento da sua ilicitude, bem como a existência de vítimas e danos (mais grave porque não mostrou qualquer arrependimento, tendo antes optado por se tentar desresponsabilizar) -, com o propósito concretizado de, por um lado, molestar o corpo e saúde do recorrido, de lhe produzir as dores, sofrimento e as lesões verificadas e, por outro lado, com as palavras que lhe dirigiu, aliado ao comportamento anterior do recorrente e à sua personalidade agressiva e violenta, gerar no recorrido um sério e justificado receio de que o recorrente mais tarde viesse a concretizar tais intentos e atentar contra a sua integridade física e a própria vida (note-se que o recorrente é reputado como uma pessoa quezilenta e violenta, até para com pessoas da própria família - vejam-se os processos que teve a correr por maus tratos à esposa e por ofensas à integridade física a terceiros - que resultam da certidão judicial junta como Doc. 1 com o requerimento apresentado nos autos em 19 de Abril de 2022, com a ref.ª 3559002 -, aliados ao Relatório Social junto aos autos e aos relatos de várias pessoas inquiridas em tribunal, designadamente, do recorrido: referiu ter medo porque “este homem à falsa fé é muito perigoso…” dos 14m52s aos 16m00s e dos 21m15s aos 23m00s das suas declarações, prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 10h50m15s e terminus às 11h23m05s, gravadas no ficheiro áudio 20220310105014_1613000_2871827; da testemunha V. R., dos 14m20s aos 15m40s e dos 16m30s aos 17m05s das suas declarações, prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 11h24m54s e terminus às 12h04m13s, gravadas no ficheiro áudio 20220310112453_1613000_2871827; da testemunha A. C. - que inclusivamente chegou a assistir numa ocasião que o recorrente ia bater com um pau no filho, e o filho pediu-lhe ajuda e foi a testemunha que impediu - dos 4m12s aos 6m10s das declarações prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 15h18m33s e terminus às 15h26m49s, gravadas no ficheiro áudio 20220310151832_1613000_2871827; da testemunha C. M., que chegou a ver a agredir os filhos: “puxou de um machado para um filho que eu vi!”- dos 2m38s aos 2m55s e dos 4m12s aos 4m40s das declarações prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 14h58m33s e terminus às 15h04m17s, gravadas no ficheiro áudio 20220310145833_1613000_2871827; da testemunha I. B., dos 12h36s aos 13m00s das declarações prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 15h28m00s e terminus às 15h49m48s, gravadas no ficheiro áudio 20220310152759_1613000_2871827; da testemunha C. R., dos 8m30s aos 9m18s das declarações prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 15h05m18s e terminus às 15h17m23s, gravadas no ficheiro áudio 20220310150517_1613000_2871827 e da testemunha M. S., dos 7m45s aos 7m54s das suas declarações prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 12h21m33s e terminus às 12h35m08s, gravadas no ficheiro áudio 20220310122132_1613000_2871827.
XXVII - O tribunal a quo, sopesou tudo quanto supra evidenciado, sem esquecer o que de favorável ao recorrente também teria que ser valorado – como efetivamente fez e decorre do teor do próprio acórdão recorrido -, condenando o recorrente, nos termos em que o fez, de forma exemplar, mas justa face aos circunstancialismos do caso, pois apenas assim se lograria obter repercussão efetiva junto do mesmo – o que a aplicação de uma pena de multa não acautelaria -, e evitar que este se viesse a tornar mais um dos trágicos episódios entre vizinhos que depois acaba noticiado nos meios de comunicação social, pelo que inexistem razões, seja para substituir a pena de prisão por pena não privativa da liberdade (relembrando-se que a pena de prisão fixada foi suspensa na sua execução!), nem sequer para reduzir as penas parcelares e, na sequência, reduzir a pena única que foi fixada em cúmulo jurídico.
XXVIII - Em face da factualidade assente sob os itens 9, 11, 12, 13, 16, 17 e 47 a 61 inclusive do elenco dos factos provados, o valor atribuído pelo tribunal a quo a título de indemnização pelos danos não patrimoniais nunca poderia ter sido fixado em quantum inferior ao montante de €4.000,00 já que avultada prova foi produzida no que concerne às graves consequências que as condutas perpetradas pelo recorrente tiveram no recorrido e que, de resto, ainda, persistem no seu dia a dia.
XXIX - O recorrido relatou as dificuldades por si sentidas em dormir, tendo que recorrer à toma de comprimidos e a acompanhamento em psicóloga - o que, per si, denota a gravidade dos atos perpetrados pelo recorrente e o impacto que tiveram na vida do recorrido -, reiterando o permanente medo que sente “da falsa fé do homem”, medo esse que é agudizado pelo facto de as casas de ambos serem quase contíguas (distam a cerca de 20/30 metros) pelo que nem em casa se sente em segurança, o que o levou a alterar as suas rotinas, lamentando não poder ir sozinho para lado nenhum, estando sempre acompanhado pela mulher ou controlado pela mesma ou pelos filhos, o que mexeu com ele! – cfr. dos 23m20s aos 23m55s, dos 24m00s aos 24m30s e dos 26m06s aos 26m34s das suas declarações prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 10h50m15s e terminus às 11h23m05s, gravadas no ficheiro áudio 20220310105014_1613000_2871827 -, discurso confirmado pela esposa, a testemunha V. R., dos 29m50s aos 31m13s e dos 31m44s aos 32m05s das suas declarações prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 11h24m54s e terminus às 12h04m13s, gravadas no ficheiro áudio 20220310112453_1613000_2871827; pelo seu filho, a testemunha B. R., também ouvido no dia 10 de Março de 2022, com início às 14h31m20s e terminus às 14h57m38s, dos 10m35s aos 16m55s e dos 19m15s aos 21m23s das suas declarações, gravadas no ficheiro 20220310143118_1613000_2871827, que evidenciou as sequelas que estes episódios provocaram no recorrido, não apenas físicas, como psíquicas esclarecendo também os constrangimentos que provocaram na liberdade de circulação do seu pai; sequelas essas que foram corroboradas também pelo outro filho, a testemunha C. R., inquirido no dia 10 de Março de 2022, com início às 15h05m18s e terminus às 15h17m23s, cujas declarações estão gravadas no ficheiro áudio 20220310150517_1613000_2871827, dos 5m48s aos 9m53s, ainda pela testemunha, a Dr.ª A. M. - ouvida na sessão do dia 10 de Março de 2022, com início às 15h51m03s e terminus às 15h59m18s, cujas declarações estão gravadas no ficheiro áudio 20220310155102_1613000_2871827 -, que dos 3m41s aos 6m36s, esclareceu que o recorrido chegou às consultas com “Sintomas de ansiedade relacionados com o evento traumático pelo qual tinha passado que estavam a tornar-se intoleráveis no dia a dia dele e com os quais não estava a saber gerir e lidar” e que na sequência de uma avaliação mais aprofundada “surgiu o diagnóstico de perturbação de stress pós traumático”, e finalmente, pela testemunha I. B., dos 4m33s aos 8m22s e dos 9m08s aos 11m34s das suas declarações, prestadas no dia 10 de Março de 2022, com início às 15h28m00s e terminus às 15h49m48s, gravadas no ficheiro áudio 20220310152759_1613000_2871827, finalizando, o seu depoimento, dos 20m44 aos 21m44s, marcado pela emoção, que denota o desespero em que o recorrido – e por inerência a família - tem vivido por causa dos atos do recorrente.
XXX - Revestindo a indemnização, uma função essencialmente reparatória, mas não deixando de ter, acessoriamente, uma função repressiva ou sancionatória, a mesma assume, in casu, ainda maior importância, considerando o histórico do comportamento do recorrente, revelador da escalada de violência e os circunstancialismos da factualidade narrada nas acusações, não se podendo olvidar os frequentes desfechos trágicos que vêm ocorrendo em meios rurais, em contextos em tudo idênticos aos destes autos, pelo que o quantum arbitrado pelo Tribunal a quo foi ajustado face aos danos causados ao recorrido e às sequelas sentidas pelo mesmo e mostra-se fiel à equidade que deverá presidir a fixação do valor em obediência aos critérios legais e propugnados, a título de exemplo, no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/07/2009, que passamos a transcrever: “A indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação”, não se compadecendo com a atribuição de valores meramente simbólicos, nem com miserabilismos indemnizatórios.” .
XXXI - O douto acórdão recorrido considerou de forma sábia como provados os factos que lhe foram trazidos, convencendo-se o Tribunal a quo com o teor dos documentos juntos e com o que eles revelam, no seio da prova produzida, pelas declarações do recorrido e pela prova testemunhal, nunca tendo decidido em contradição com os mesmos, justificando, de formal cabal e concludente, a douta convicção que formou a respeito da prova produzida ou examinada em audiência, preenchendo, não só tais exigências, assim como as demais previstas na lei, tendo efetuado uma correta valoração da prova produzida e uma correta interpretação e aplicação das leis e encontrando-se suficientemente fundamentado, não havendo, assim, qualquer motivo para alterar o julgado.

NESTES TERMOS e nos melhores de direito aplicáveis, requer-se a V. Exas. que se dignem:
a) julgar improcedente a invocada nulidade do douto acórdão recorrido, por não se vislumbrar qualquer violação da lei quanto à alteração da qualificação jurídica apontada, nos termos e com os fundamentos melhor propugnados nesta resposta;

Sem conceder,
b) rejeitar liminarmente o presente recurso quanto à pretendida reapreciação da matéria de facto, por incumprimento do ónus que incumbia ao recorrente de especificar as concretas passagens dos depoimentos que o mesmo entende sustentaram decisão diversa da proferida.

Caso assim se não entenda,
Requer-se a V. Ex.ªs que se dignem julgar improcedente, por não provado, o recurso ao qual ora se responde, negando-se-lhe provimento, mantendo-se, por conseguinte e na íntegra, o douto acórdão recorrido e respetivos efeitos”.
4.
Na primeira instância o Ministério Público respondeu ao recurso, dando razão ao recorrente quanto à invocação da nulidade do acórdão recorrido, por violação do artigo 379º, n.º 1, al. c) do CPP, concluindo pela revogação do acórdão recorrido e, consequentemente, pela reabertura da audiência para cumprimento do art. 358º, n.º 1 e 3 do CPP,

5.
Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no mesmo sentido.

6.
Cumprido o artigo 417º, nº2, do C.P.Penal, o assistente respondeu a esse parecer, reiterando o já vertido na motivação da sua resposta ao recurso.

7.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º, nº3, al. c), do diploma citado.

II. Fundamentação

Como é consensual, quer na doutrina quer na jurisprudência, são as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, sintetizando as razões do pedido, que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando para o tribunal superior as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais.

Atenta a conformação das conclusões formuladas, são as seguintes as questões a decidir:

- nulidade do acórdão por violação do artigo 379º, nº1,al.b), do CPP;
- contradição entre a decisão que condenou o arguido pelo crime de ofensas à integridade física qualificada e a fundamentação da decisão de não condenação pelo crime de ofensas à integridade física grave/agravada.
- impugnação da matéria de facto;
- excessividade das penas parcelares e única;
- montante da indemnização arbitrada a título de danos não patrimoniais.

Comecemos então pela invocada nulidade do acórdão

A propósito da nulidade do acórdão, alega o arguido, ora recorrente, que “o tribunal a quo condenou o Recorrente pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada, quando, na verdade, o mesmo vinha acusado de um crime de ofensas à integridade física simples.
“(…) O crime de ofensas à integridade física qualificada (artº. 145º, nº 1, al. a) e nº 2 e artº. 132º, nº 2, al. h) do Cód. Penal) tem uma moldura penal mais grave do que o crime de ofensas à integridade física simples (artº. 143º, nº 1 do Cód. Penal), pois este é punível com pena de multa ou pena de prisão até 3 anos, enquanto aquele é punível com pena de prisão até 4 anos.
Nos termos do artº. 358º, nº 3 e nº 1 do Cód. Proc. Penal, o tribunal a quo estava obrigado a comunicar a alteração da qualificação jurídica ao arguido/Recorrente e a conceder-lhe o tempo necessário à preparação da sua defesa quanto às novas circunstâncias qualificantes.
Contudo, em nenhum momento antes ou durante a audiência de julgamento o tribunal a quo notificou o arguido/Recorrente da alteração da qualificação jurídica dos factos de um crime de ofensas à integridade física simples para um crime de ofensas à integridade física qualificada - como facilmente se comprova da leitura das actas das diversas sessões de audiência de julgamento e das gravações da mesma.
A ausência de comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido e a sua condenação por crime mais grave, constitui uma violação do disposto no artº. 358º, nº 3 e nº 1 do Cód. Proc. Penal, a qual acarreta a nulidade da sentença nos termos do disposto no artº. 379º, nº 1, al. b) do Cód. Proc. Penal.
(…)”.
O Código de Processo Penal estabelece, no seu art. 379º, um regime específico das nulidades da sentença.
Assim, e nos termos das três alíneas do seu nº 1, é nula a sentença penal quando, não contenha as menções previstas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374º, quando condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos arts. 358º e 359º, e quando o tribunal omita pronúncia ou exceda pronúncia.
Acrescenta o número 2, deste mesmo preceito legal, que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º4 do artigo 414.º
A nulidade trazida à liça pelo recorrente é a prevista na alínea b), a qual ocorrerá quando o tribunal “condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º”.
Atento o disposto no artigo 32º, nº5, da CRP, o princípio da acusação constitui um princípio fundamental do processo penal e beneficia da tutela constitucional, significando, no essencial, que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite de julgamento (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, pág.205, em anotação ao art.32».
E já de acordo com os arts.283º,nº3 e 285,nº3, ambos do CPP, a acusação deve conter, para além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos imputados ao arguido e as disposições legais aplicáveis aos mesmos factos.
Como ensina Figueiredo Dias Direito Processual Penal – Coimbra Editora, 1974, pág. 145., "objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (…) e a extensão do caso julgado (…). E a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal (…).
Os valores e interesses subjacentes a esta vinculação temática do tribunal, implicada no princípio da acusação, facilmente se aprendem quando se pense que ela constitui a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido (…) que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência; e quando se pense também que só assim o Estado pode ter a esperança de realizar os seus interesses de punir só os verdadeiros culpados".
Assim, o conhecimento do juiz fica limitado pelo objeto da acusação e o arguido sabe que é destes factos e apenas deles que se tem que defender.
Mas, o nosso processo penal, porque integrado também por um princípio da investigação, admite a possibilidade de perante a sintética narração em que se traduz a descrição dos factos objetivados na acusação, possam ocorrer, ao longo da discussão da causa, mais concretamente da produção dos meios probatórios, alguns factos novos que se traduzem numa alteração dos anteriormente descritos na acusação ou na pronúncia, alteração essa que pode ser uma “alteração não substancial” ou “alteração substancial” desses factos, matéria que está tratada, respetivamente, nos artigos 358º e 359º.
Nos termos do art.358.º, n.º 1 « Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.».
Acrescenta-se no n.º 2 que « Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa».
E já no nº3 que «o nº1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia».
De acordo com o art.1.º, alínea f), considera-se alteração substancial dos factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
E constatada esta – modificação dos factos com imputação de um crime diverso ou agravação os limites máximos das sanções aplicáveis - haverá que dar cumprimento ao disposto no art.359º.
A alteração não substancial dos factos, por exclusão, é aquela que, traduzindo-se também numa modificação dos factos que constam da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Mas, ainda que se esteja perante uma alteração não substancial dos factos, tal comunicação a que alude o citado art.358º, nº1, apenas se impõe na hipótese de tal alteração revestir “relevo” para a decisão da causa.
Subjacente aos mencionados preceitos (arts.358º e 359º) encontra-se o princípio do contraditório, o qual, na perspetiva do arguido, pretende assegurar os seus direitos de defesa, no sentido de que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão deve ser proferida, sem que previamente tenha sido precedida de ampla e efetiva possibilidade de ser contestada ou valorada contra o sujeito processual contra o qual aquelas são dirigidas.
E, nessa medida, o arguido tem de ter a oportunidade efetiva de discutir e tomar posição sobre essa alteração tomada contra ele.
Trata-se, claro está, do “direito de ser ouvido”, enquanto direito de se dispor de uma efetiva oportunidade processual para se tomar uma posição sobre aquilo que o afeta (Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 330/97, de 17/4/97, e 387/05, de 13/7/05, in www.tribunalconstitucional.pt/tc).
Revertendo ao caso em apreço, está em causa uma alteração da qualificação jurídica de parte dos factos imputados ao arguido na acusação pública deduzida no processo principal.
Ora, retira-se dos autos que o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.143º e por um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º, do mesmo diploma legal.
Notificado o assistente da acusação pública, veio o mesmo deduzir acusação ao abrigo do disposto no artigo 284º, do CPP, pelos factos já acusados pelo Ministério Público, defendendo que os relativos à agressão de foi vítima integram um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo artigo 144º, al. d), do C. Penal, e não um crime de ofensa à integridade física simples, como se defende na acusação pública.
Em conformidade, concluiu dever o arguido ser julgado pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo artigo 144º, al. d) do C. Penal e de um crime de ameaça, p. e p. pelo art.153º,do mesmo diploma legal.
Proferido o despacho a que aludem os artigos 311º a 313, do CPP (fls.579/580), a Mma Juiz decidiu receber ambas as acusações, mas pelos factos e qualificação jurídica constante da acusação pública.

Como se fez constar nesse mesmo despacho:
“(…)
Para julgamento do arguido A. G., melhor identificado na acusação pública e particular (fls.390 e ss) que se decide receber, pelos factos e segundo a qualificação jurídica constante da primeira, designa-se o próximo dia 07 de janeiro de 2022, pelas 14:00 horas, neste Juízo Local Criminal.
(…).”
Com tal recebimento, cremos que inexistem quaisquer dúvidas que os factos pelos quais o arguido foi sujeito a julgamento e constituíam o objeto do processo eram apenas os vertidos na acusação pública, com a qualificação jurídica aí referida, ou seja, no que respeita ao processo principal, um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º do Código Penal e um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º, do mesmo diploma legal.
Porém, uma vez realizada a audiência de julgamento, veio o tribunal coletivo a condenar o arguido, não pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, mas pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145 nº 1 al. a) e nº 2 e 132 nº 2 al. h) do CP, punido com uma pena de prisão até 4 anos.
Deste modo, perante o diferente enquadramento jurídico dos factos vertidos na acusação pública, impunha-se ao tribunal coletivo ter dado prévio cumprimento ao disposto no artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP, concedendo à defesa do arguido a possibilidade de se pronunciar sobre tal alteração da qualificação jurídica, traduzida, aliás, na imputação ao arguido de um crime mais grave, dando-se cumprimento ao princípio do acusatório e do contraditório.
Todavia, tal não ocorreu, como resulta das atas das respetivas sessões da audiência de julgamento.
Aliás, sustentou-se no acórdão recorrido, na senda da posição seguida no despacho prévio àquele que recebeu a acusação e designou datas para julgamento, que tal comunicação torna-se desnecessária quando o assistente na sua acusação adere no todo ou em parte aos factos acusados pelo Ministério Público, mas os qualifica de modo diverso.

Como aí se fez constar:
“Note-se que o arguido vinha acusado do cometimento de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143º nº 1 do CP e o tribunal considerou que os factos provados integravam o cometimento de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º nº 1 al. a) do CP.
Tal como já tinha sido escrito no despacho de recebimento da acusação “De acordo com o estatuído no art. 284º do C.P.Penal, havendo indícios suficientes da prática de um crime público ou semi-público e tendo o Ministério Público deduzido acusação, o assistente pode tomar uma de três posições:
- aderir à totalidade dos factos acusados pelo Ministério Público;
- aderir a parte dos factos acusados pelo Ministério Público;
- acusar por factos novos desde que não importem alteração substancial dos factos da acusação pública.
A adesão do assistente no todo ou em parte aos factos acusados pelo Ministério Público – como aqui ocorreu – não impede que o assistente os qualifique de modo diverso. Esta qualificação diversa dos factos tem o efeito de evitar a necessidade de aplicação ulterior dos arts. 303º, nº5 e 358º, nº3, ambos do C.P.Penal (assim, vide PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal à luz daa Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Edição actualizada, Universidade Católica, Lisboa, 2008, pág. 746). Evitará a necessidade de comunicar a eventual alteração da qualificação jurídica ao arguido, nos termos dos referidos normativos, em sede de audiência de julgamento e não neste momento processual, por não se afigurar legalmente admissível.”
Não nos revemos em tal entendimento.
Desde logo, quando na sequência do despacho proferido ao abrigo do artigo 311º foi expressamente decidido que o arguido iria ser julgado pelos factos e respetivo enquadramento jurídico feito na acusação pública.
De facto, não podemos concordar que uma diferente qualificação jurídica dos factos defendida pelo assistente na acusação que deduziu ao abrigo do disposto no citado artigo 284º, possa dispensar o Tribunal do cumprimento de tal dispositivo legal no decurso da audiência de julgamento, impondo-se ao arguido que, antecipadamente, prepare a sua defesa para uma eventual condenação num crime que não é objeto do seu julgamento e que pode nem sequer vir a resultar de qualquer comunicação.
Ademais, tendo querido o legislador que a qualificação jurídica dos factos feita pela acusação (pública ou particular) ou, havendo instrução, pela pronúncia, fosse discutida na audiência de julgamento, como se depreende da redação do citado artigo 358º, do CPP, facilmente se perceberá que somente neste momento e quando o Tribunal, na sequência da discussão da causa, perspetiva uma eventual alteração do objeto da acusação, o arguido tenha de ser notificado nos termos e para os efeitos do artigo 358º,nº1 e 3.
Sem necessidade de mais considerações, tendo-se omitido o cumprimento do citado artigo 358º,nº1e 3, do C.P.P, o acórdão recorrido padece da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), a qual afeta o ato decisório em si mesmo, bem como os atos que dele dependem e que podem ser afetados pela nulidade, como seja o recurso que sobre ele recaiu (artigo 122.º, n.º 1), ficando prejudicado o conhecimento das demais questões supra enunciadas (artigo 660.º, n.º 2, 1ª parte do CPC ex-vi artigo 4.º do CPP).
Em conformidade, declarando-se nulo o acórdão recorrido, impõe-se que o mesmo seja reformulado pelo tribunal a quo através da prolação de nova decisão expurgada já da apontada nulidade.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em anular o acórdão recorrido, com a consequente reabertura da audiência com vista ao cumprimento do disposto no artigo 358º, nº1 e 3 do C.P.P. - concedendo-se ao arguido prazo para a preparação da defesa, caso o requeira - e prolação posterior de novo acórdão.

Sem custas, por não devidas.

(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – art.94º, nº2, do C.P.P.)
Guimarães, 21 de novembro de 2022

Desembargadora Relatora
Cândida Martinho
Desembargador Adjunto
António Teixeira
Desembargadora Adjunta
Florbela Sebastião e Silva


1 - PDC – Perda de Consciência