LEI N.º 1-A/2020
DE 19 DE MARÇO
ARRENDAMENTO
ENTREGA DE IMÓVEL
SUSPENSÃO
SITUAÇÃO DE FRAGILIDADE
RAZÃO SOCIAL IMPERIOSA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Sumário

I- A suspensão de um processo executivo com vista à entrega do local arrendado depende de despacho judicial que declare estarem verificados os pressupostos da suspensão previstos no artigo 6-E/7/c) da Lei 1-A/2020, de 19.03, na redação da Lei 13-B/2021, de 05.04.
II- Assim, para beneficiar da suspensão, o arrendatário tem o ónus de a requerer e de alegar e provar factos reveladores de que, a ter lugar a entrega do locado, ficará numa "situação de fragilidade por falta de habitação própria" ou que há uma "outra razão social imperiosa" que também justifica que, momentaneamente, não se realize tal entrega.

Texto Integral

Processo n.º 2012/22.4T8LSB.L1
7ª Secção

Apelante/A.: ESRS.
Apelada/R.: JAC.

I. Relatório
1.1. Pretensão sob recurso: revogação do despacho recorrido, sendo substituído por outro que mande prosseguir a execução e a entrega do imóvel aos exequentes, com recurso à força pública, se tal se mostrar necessário.
1.1.1. Pedidos:
A) Se decrete a resolução do contrato de arrendamento e se condene a Ré a entregar aos AA. o locado livre e devoluto de pessoas e bens.
B) Se condene a Ré a pagar aos AA. a quantia de €21.997,08 (Vinte e um mil novecentos e noventa e sete euros e oito cêntimos), por rendas vencidas e não pagas desde Novembro de 2012.
C) Acrescida do valor das rendas que se vencerem até ao trânsito da sentença que decretar a resolução do contrato de arrendamento. 
D) Se condene a Ré no pagamento da quantia de €698,32 (€349,16 x 2) por cada mês de atraso na entrega do locado livre e devoluto, a partir da data do trânsito em julgado da sentença que declare a resolução do contrato e a R. se constitua em mora e até efectivo pagamento (art.º 1045º do Código Civil).
E) No caso de assim se não entender, se julgue o pedido subsidiário procedente e se condene a Ré a entregar o locado desocupado de pessoas e bens.
F) E bem assim se condene a Ré a pagar aos AA. a quantia de €5.586,56 (cinco mil quinhentos e oitenta e seis euros e cinquenta e seis cêntimos) correspondente a rendas não pagas.
G) E ainda no valor de €15.400,00, a título de indemnização por enriquecimento sem causa, a que acresce a quantia mensal de €350,00, enquanto a Ré mantiver a ocupação ilícita do locado e até efectiva entrega do mesmo.
H) Tudo acrescido de juros á taxa legais contados do trânsito em julgado da sentença.
Os AA. alegaram, em síntese, que: o locado foi dado de arrendamento, para habitação, à R. pelo falecido DRS por contrato de arrendamento de duração limitada celebrado em 1 de agosto de 1999, pelo prazo inicial de 5 anos, automaticamente renovável, por períodos de três anos, pela renda de 70.000$00, equivalente a €349,16.
A R. nunca pagou atempadamente as rendas, tendo pago a renda referente ao mês de Novembro de 2012 e nunca mais pagou qualquer renda.
Estão em dívida as rendas referentes aos meses de Dezembro de 2012 até Fevereiro de 2018, no valor total de €21.997,08.
Ainda em vida do senhorio DRS, este e a mulher, aqui A., notificaram a R., por notificação judicial avulsa, da resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas.
A R. assinou a certidão de notificação avulsa em 30 de Janeiro de 2014.
Porém, apesar da resolução do contrato, a R. recusou-se a entregar aos Autores o locado livre e desocupado de pessoas e bens.
Tendo em 6 de Junho de 2017 sido interpelada pelo Advogado dos Autores, em representação destes, para entregar as chaves do andar e pagar as quantias em dívida a título de rendas, a R. não deu resposta.
Os AA. por dificuldades formais não recorreram ao Balcão Nacional do Arrendamento para obter o despejo, mas mantêm-se válidos os fundamentos para este, por falta de pagamento das rendas.
Caso o Tribunal entenda que o contrato de arrendamento já cessou, por força da notificação judicial avulsa, deve declará-lo e condenar a R. nas rendas vencidas e não pagas desde Dezembro de 2012 a Junho de 2014, no montante de €5.586,56 (€349,16 x 19 meses). E ainda condenar a Ré, por enriquecimento sem causa, em indemnização de €350,00 (trezentos e cinquenta euros) mensais desde esta data e até efectivo pagamento, sendo o valor vencido no montante de €15.400,00, pela ocupação sem título do andar.
A R. contestou pugnando pela falta de interesse em agir, por desnecessidade de intervenção judicial, e a defender que o contrato de arrendamento cessou com o recebimento da notificação judicial avulsa referida na acção.
A R. veio ainda suscitar a excepção de prescrição de parte das rendas peticionadas e alegar que pagou todas as rendas relativas ao ano de 2013.
Em adição, a Ré veio ainda invocar a excepção de não cumprimento do contrato e alegar que o locado se encontra totalmente degradado e que há muito que carece de obras profundas, que impedem que o possa gozar convenientemente, e que apenas não o abandonou por não ter rendimentos que lhe permitam arrendar outro com melhores condições.
Dado o imóvel não possuir as condições necessárias conclui defendendo a redução do valor da renda para quantia não superior a 107,00€.
Foi dirigido um convite ao aperfeiçoamento à R. (cf. fls. 70 e 71).
Foi exercido o contraditório relativamente à matéria de exceção, tendo os AA. pugnado pela sua improcedência (cf. fls. 85 a 88).
Foi realizada audiência prévia e elaborado despacho saneador, com apreciação da matéria de exceção (falta de interesse em agir e prescrição), que foi julgada improcedente, com fixação do objeto do litígio e com enunciação dos temas da prova, nos termos exarados a fls. 93 a 100, que sofreu reclamação que não foi atendida.
Foi proferida decisão, do seguinte teor: 
 “Pelo exposto, atentas as considerações expendidas e as normas legais citadas, decide-se:
a) Declarar que o contrato de arrendamento dos autos se extinguiu, por via da comunicada resolução, por notificação avulsa, no dia 30.01.2014.
b) Condenar a Ré a entregar aos Autores o locado livre e devoluto de pessoas e bens.
c) Condenar a Ré a pagar aos Autores as rendas vencidas desde Novembro de 2012 e até Janeiro de 2014 (isto é, até à data da resolução), no valor total de €4.888,24 (quatro mil oitocentos e oitenta e oito euros e vinte e quatro cêntimos).
d) Condenar a Ré a pagar aos Autores as rendas peticionadas vencidas desde Fevereiro de 2014 (posteriormente à resolução) a Fevereiro de 2018, na quantia total de €17.108,84 (dezassete mil cento e oito euros e oitenta e quatro cêntimos), a título de indemnização (artigo 1045º, n.º 1 do Código Civil) e, bem assim, as rendas vencidas desde Março de 2018 em diante e vincendas até à restituição, igualmente a título de indemnização.
e) Após o trânsito em julgado da presente sentença, caso a Ré não proceda à entrega do locado livre de pessoas e bens, haverá lugar a indemnização do valor correspondente à renda em dobro, pelo atraso na restituição da coisa (cfr. artigos 1045º, n.º 2 do Código Civil).
f) Condenar a Ré no pagamento aos Autores de juros de mora, à taxa legal, contados desde o trânsito em julgado da sentença.
g) Conceder à Ré o prazo de trinta dias, após o trânsito em julgado da presente sentença, para desocupar o locado.
Custas a cargo da Ré, sem prejuízo da decisão administrativa dos autos (artigo 527º do CPC).
Notifique e registe.”.
Posteriormente, em 15.03.2022, foi proferido despacho, do seguinte teor:
“O art.º 6 - E n.º 7, al. b) Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março estabelece que ficam suspensos «os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família».
Assim, entre o mais, este preceito é aplicável «às ações executivas para entrega de coisa certa» que tenham por objeto a entrega da casa de morada de família (Marco Carvalho Gonçalves – atos processuais no âmbito da pandemia da doença COVID-19, disponível em repositorium.sdum.uminho.pt).
Assim, caso o imóvel constitua casa de morada de família (…) as diligências de entrega estão suspensas (…).
Caso o imóvel esteja devoluto, o Sr. AE não carece de autorização judicial para a intervenção de força policial e para o arrombamento, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 861/1 e 757/4 do CPC”.
1.2. Inconformada com esta decisão, veio a A. apelar, tendo formulado as seguintes conclusões: 
1a - No âmbito das acções de despejo para beneficiar da suspensão da execução do despejo, mesmo que se trate da casa de morada de família, cabe ao arrendatário o ónus de a requerer e de alegar e provar factos concretos e objectivos de onde resulte que, a concretizar-se a entrega do arrendado, ele ficará numa situação de fragilidade por falta de habitação própria ou que há uma outra razão social imperiosa que também justifica que, momentaneamente, não se realize tal entrega;
2a - A suspensão da entrega do local arrendado não se opera automaticamente.
3a - Numa execução de entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, decorrente da resolução de um contrato de arrendamento destinado a habitação, mesmo que constitua casa de morada de família, aplica-se a alínea c) do nº 7 do artigo 6º — E da Lei nº 1 - A /2020, com a redacção dada pela Lei nº 13 - B/2021 05/04, que constitui uma excepção à regra estabelecida na alínea b) do mesmo número e artigo 9.
4a - A Mm.ª  Juiz “a quo” ao fundar a sua decisão na alínea b) do nº 7, sem explicar por que motivo não ponderou sequer a aplicabilidade da alínea c), limitando-se a invocar um artigo de opinião datado de 22/06/2020, sem atender às várias alterações que esta lei sofreu e à alteração das circunstâncias, violou, por errada aplicação e interpretação, o disposto no art.º 6º - E do nº 7, alínea C da Lei nº 1 -A/ 2020 de 19/03 , aditado pela Lei nº 13-B / 2021 de 05/04.
5a - A executada não apresentou qualquer justificação concreta para não entregar o andar, quando é certo que assinou a certidão de notificação judicial avulsa em 30 de Janeiro de 2014 a resolver o contrato de arrendamento, tendo sido novamente interpelada em 2017, para entregar o imóvel que lhe fora dado de arrendamento e não o fez.
6a - A legislação aprovada para fazer face aos danos causados pelo COVID 19, não pode ter aplicação nestes autos pois à data do início da pandemia, Março de 2020, a executada ocupava ilegal e ilegitimamente o andar que lhe fora dado de arrendamento e cujo contrato estava resolvido.
7a - A executada ao ocupar e residir num andar, sem título que legitime a ocupação, não pagando qualquer renda ou compensação desde Dezembro de 2013 e não o entregar aos legítimos proprietários apesar das interpelações, excede manifestamente os limites da boa-fé e dos bons costumes cometendo abuso de direito e o Tribunal deve declarar que a executada ao assim proceder comete abuso de direito (art.º 334º do C. Civil).
8a- Deve ser declarada a inconstitucionalidade das alíneas b) e c) do nº 7 do art.º 6º - E introduzido pela Lei 13-B/2021 de 05/04, se entendidas no sentido destas disposições serem aplicadas às acções executivas cujo título executivo seja anterior à legislação publicada na sequência e por causa do COVID 19.
9º - Pelo exposto, deve o douto despacho ser revogado e substituído por outro que mande prosseguir a execução e a entrega do imóvel aos exequentes, com recurso à força pública, se tal se mostrar necessário pois como diz o Tribunal que decretou o despejo, “a Ré apenas pretende, infundadamente (continuar a) protelar, de forma abusiva e censurável, a entrega do locado”.
Não houve contra-alegações.
1.3. Como é sabido, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes, importando, assim, decidir as questões nelas colocadas e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, excetuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, nos termos dos artigos 608.º, 635.º/4 e 639.º/1, do CPC. Assim, considerando as conclusões da apelante, a questão que cumpre decidir no âmbito do presente recurso, consiste em saber se é de suspender a execução, com base no artigo 6-E, n. 7 b) da lei 1-A/2020, de 19.03.

II. Fundamentação
II.1. Dos factos
Em primeira instância foram considerados provados os seguintes factos:
1. Os Autores são proprietários do segundo andar direito, destinado a habitação, do prédio sito em Vivenda …, Bairro Novo das Galinheiras (Quinta do G, Rua …) freguesia da Ameixoeira, …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o Número … e atualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia de … sob o artigo …, que proveio dos artigos … da extinta freguesia da …, concelho de ….
2. O imóvel que integra o referido andar veio à posse dos Autores por sucessão de DRS, falecido em 25/07/2015, e de que são os únicos herdeiros.
3. O locado foi dado de arrendamento à R. pelo falecido DRS e mulher ESRS por contrato de arrendamento de duração limitada celebrado em 1 de Agosto de 1999.
4. O locado destinava-se a habitação da Ré, não podendo sublocar ou ceder, no todo ou em parte os direitos do arrendamento (cláusula quinta).
5. O contrato tinha a duração de 5 anos, com início em 1 de Agosto de 1999 e termo aprazado para 1 de Agosto de 2004 (cláusula primeira).
6. O contrato renovar-se-ia automaticamente no fim do prazo, por períodos de três anos (cláusula primeira).
7. A renda estipulada foi de 70.000$00, que feita a conversão equivale a €349,16 (trezentos e quarenta e nove euros e dezasseis cêntimos) mensais e devia ser paga por depósito ou transferência bancária para a conta de que o senhorio era titular ou em casa do seu representante na Rua …, no primeiro dia do mês anterior a que respeitar (cláusula segunda).
8. A Ré pagou a renda referente ao mês de Novembro de 2012 e nunca mais pagou qualquer renda.
9. Ainda em vida do senhorio DRS, este e a mulher, aqui Autora, notificaram a Ré, por notificação judicial avulsa cuja cópia se mostra inserta a fls. 17 a 26, da resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas vencidas de Dezembro de 2012 a Dezembro de 2013.
10. A Ré assinou a certidão de notificação avulsa em 30 de Janeiro de 2014.
11. Apesar da comunicada resolução do contrato a Ré recusou-se a entregar aos Autores o locado livre e desocupado de pessoas e bens.
12. Em 6 de Junho de 2017 a Ré foi interpelada pelo Advogado dos Autores, em representação destes, para entregar as chaves do andar e pagar as quantias peticionadas a título de rendas.
13. A Ré não deu resposta à referida interpelação.
14. A Ré encontra-se desempregada e não lhe são conhecidos rendimentos.
15. A Ré apresentou na Câmara Municipal de … pedidos de atribuição de uma habitação municipal que não foram deferidos.
Em primeira instância foram considerados não provados os seguintes factos:
A) O valor atual da renda cifra-se em €320,00.
B) A Ré pagou todas as rendas relativas ao ano de 2013.
Este tribunal considera ainda provado que:
Dos autos (consulta da plataforma Citius) não se deteta ter sido suscitado incidente com vista à suspensão da entrega do locado.
II.2. Apreciação
Estamos no âmbito de entrega do local arrendado, num contexto executivo.
Os exequentes insurgem-se contra a decretada suspensão da diligência de entrega do imóvel, por entenderem, em suma, que não existe cobertura legal para o efeito.
Adianta-se desde já, que assiste razão aos recorrentes.
Com efeito,
Importa notar que a legislação pertinente não foi expressamente revogada. Neste âmbito, mesmo que se possa defender que estamos em presença de direito temporário, o legislador tem dado sinais da necessidade de prudência interpretativa, uma vez que, de forma enfática, circunscreve expressamente os diplomas cuja revogação visa, como acontece com o DL 66-A/22, de 30.09. Nesse sentido, entendemos que só o decurso de mais algum tempo poderá vir a tornar clara a caducidade da lei[1].
Assim, neste domínio, existe lei expressa, não revogada, a qual não pode ter-se inequivocamente por caducada, e que, no despacho recorrido, não se demonstra ter sido ponderada.
Na verdade, o DL 13-B/2021, de 13.03, além do mais, aditou à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, o artigo 6.º - E (Regime processual excecional e transitório), do qual consta nomeadamente que:
“1 - No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.
[…].
7 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março;
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
[…]”.
Como vem sendo assinalado, o regime que resulta da al. c) está em alinhamento com o que constava da Lei nº 4/2020, de 6.04, diploma que, republicou em anexo a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.
No artigo 7º/11, dispunha-se que: “Durante a situação excepcional referida no n.º 1, são suspensas as acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa[2]”.
Este regime está, aliás, em convergência com a norma do artigo 15º/2, do NRAU, referente ao Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação .
A questão que se poderia suscitar seria a da sobreposição normativa: als. b) e c) do transcrito artigo 6-E.
Porém, isso não acontece porque está em causa o elemento diferenciador que determina a aplicação da al. c): trata-se, como se disse, da “entrega de um local arrendado”.
O legislador coloca sobre a pessoa que habita o locado um maior ónus de alegação e prova, em ordem ao diversificado tipo de interesses que se discutem e a que o legislador pretende dar proteção inequívoca.
Não admira, assim, que, no caso da al. b), a suspensão decorra ope legis e, nas situações previstas na al. c) a suspensão decorra ope judicis: o tribunal tem de fundamentar o juízo positivo na verificação da existência dos requisitos previstos no preceito legal transcrito.
Neste mesmo sentido tem-se pronunciado a Doutrina e a Jurisprudência publicada.
A este respeito, na doutrina, Higina Castelo, defende que “a suspensão do processo não é automática“: “o Tribunal terá de aferir os pressupostos de facto integradores daquele requisito complexo e composto por conceitos indeterminados: a decisão judicial final a proferir tem de ser suscetível de colocar o arrendatário em situação de fragilidade, por qualquer razão social imperiosa, nomeadamente por falta de habitação própria. O tribunal carecerá, assim, de saber qual situação financeira e patrimonial do arrendatário”.
E acrescenta que: “o tribunal só deverá apreciar a questão da suspensão se a mesma for suscitada pela parte que nela tem interesse, com indicação dos factos que a fundamentam, e dando oportunidade à parte contrária de exercer o contraditório. Trata-se de um incidente enxertado na marcha do processo a que se aplicarão os artigos 292º a 295º do CPC[3].
Neste caso, também a jurisprudência publicada tem decidido de modo contante no sentido de que: “cabe ao arrendatário o ónus de requerer e de alegar e provar factos concretos e objetivos de onde resulte que, a concretizar-se a entrega do arrendado, ele ficará numa "situação de fragilidade por falta de habitação própria" ou que há uma "outra razão social imperiosa" que também justifica que a entrega não tenha lugar.
Neste sentido vd. Ac. TRG de 10/3/2022, Proc.º n.º 2822/19.0T8VCT-A.G1 (Des. Beça Pereira); Ac. TRL de 17/6/2021, Proc.º nº 1055/20.7YLPRT.L1-6 e de 13.10.2022 (Des.: António Santos); de 13/4/2021, Proc.º nº 3011/19.9YLPRT.L1-7 (Des.: Cristina Coelho); de 11/2/2021, Proc.º nº 955/20.9YLPRT.L1-2 (Des.: Nelson Borges Carneiro), de 25/2/2021, Proc.º nº 3463/19.7T8VFX.L1-2 (Des. Pedro Martins) e ainda os Acs TRP, de 9/2/2021,
Tem, pois, de proceder a apelação, devendo prosseguir os autos os seus termos normais.

III. Decisão.
Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, concedendo provimento à apelação, revoga-se o despacho recorrido e determina-se o prosseguimento normal dos autos.
Custas da apelação pela apelada (art.º 527º/2, do CPC).

Lisboa, 22/11/2022
Amélia Alves Ribeiro
Isabel Salgado
Conceição Saavedra
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[1] Delgado de Carvalho pronunciou-se também em sentido convergente. Veja-se também na jurisprudência a posição do Ac. TRL de 13.10.2022, relatado pelo  Des. António Santos, no qual se lê, nomeadamente que: “Destarte, porque é nosso entendimento de que nada permite concluir que a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, deixou já de existir [antes tudo obriga a considerar que continuamos ainda hoje a viver em estado de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica, ainda que, é verdade, já não em período de estado de emergência - a qual se iniciou em Portugal ao abrigo do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, tendo sido objecto de diversas renovações, v.g. operadas pelo Decreto n.º 17-A/2020, de 2 de abril, pelo Decreto n.º 20-A/2020, de 17 de abril e pelo Decreto do Presidente da República n.º 41-A/2021, de 14 de abril, mas já cessado - , de calamidade - estado que foi decretado pelo Governo através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de abril, aprovada ao abrigo do artigo 19.º da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, prorrogada por diversas vezes também, mas já cessado -, ou sequer de alerta - estado v.g. decretado e regulamentado através de Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 30 de Agosto e para vigorar até às 23:59 h do dia 30 de Setembro de 2022], continua portanto a justificar-se o atrás decidido no tocante ao prosseguimento dos autos e dos seus termos, sem prejuízo todavia de, em face do requerido pela apelada, decidir o tribunal a quo que se mostra alegada e provada factualidade que preenche a previsão da parte final da alínea c), do nº 7, do art.º 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril .
Em suma, nada permite concluir que a alínea c), do nº 7, do artº 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril , não se encontra já em vigor, por ter a sua vigência cessado por aplicação do art.º 7º, nºs 1 e/ou 2, do CC..
[2] Sublinhado acrescentado.
[3] CASTELO, Higina, Revista do Ministério Público, “O arrendamento urbano nas leis temporárias de 2020”, Número Especial COVID-19, 2020, pp.. 336/337. Em idêntico sentido, Oliveira Martins, “De novo a Lei n.º 1-A/2020 – uma terceira leitura (talvez final?)” JULGAR Online, maio de 2020, página 20 e acessível no sitio file:///C:/Data/mj01343/Documents/Downloads/20200529-JULGAR-De-novo-a-Lei-1-A2020-uma-terceira-leitura-talvez-final-Jos%C3%A9-Joaquim-Martins-v2.pdf