VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE VIOLAÇÃO
CONCURSO REAL
REINCIDÊNCIA
REQUISITOS
MEDIDA DA PENA
Sumário

I-A figura jurídica do concurso efectivo e heterogéneo de crimes, está prevista no art. 30º, nº 1, do CP, segundo o qual: “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos;
II-Existe concurso real quando são vários os factos e ou actuações do mesmo agente através dos quais são violados vários bens jurídicos protegidos por várias incriminações ou tipo legais;
III-No caso concreto, não há dúvidas que aquelas apuradas actuações do arguido, naquelas circunstâncias de tempo, modo e lugar, e com aquelas apuradas vontades/intenções dolosas respectivas do arguido, conforme resultaram provadas foram subsumidas e devem ser subsumidas à prática consumada, em concurso real e efectivo, daqueles dois tipos legais de crime, ou seja, o de violência doméstica e o de violação agravado, com desvalor jurídico autónomo: o primeiro, atentatório da ampla integridade física da vítima, e o segundo atentatório da liberdade sexual da vítima, e tendo subjacente plúrimas resoluções criminosas susceptíveis de plúrimo juízo de censura, sendo que este concurso de crimes será relevante para efeitos de punição do arguido, conforme a previsão do art. 77º do CP.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I -  RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 798/21.2PBAGH do Juízo Central de Angra do Heroísmo – J1, foi submetido a julgamento o arguido, AA (nascido a ……….., em ….., filho de …………….. e …………………., solteiro, residente em ………………………………, Angra do Heroísmo), pela prática, em autoria material, na forma consumada, em concurso real e como reincidente, de um crime de violência doméstica (previsto e punido pelo art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a), do Código Penal) e de um crime de violação agravado (previsto e punido pelos arts. 164º, nº 2, al. a), e 177º, nº 1, al. b), e nº 5, do Código Penal).
Realizado o julgamento, foi proferido acórdão no qual foi decidido, para além do mais (transcrição):
      «1. Acorda-se em julgar a acusação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:
1.1. Absolve-se o Arguido AA da agravação do crime de violação prevista no art. 177.º, n.º 5, do Código Penal;
1.2. Condena-se o arguido AA, pela prática, como reincidente, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão;
1.3. Condena-se o arguido AA, pela prática, como reincidente, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação agravado, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão;
1.4. Em cúmulo jurídico das penas referidas em 1.2. e 1.3., condena-se o arguido AA, na pena única de 9 (nove) anos de prisão;
1.5. Condena-se o AA, ao abrigo do disposto nos arts. 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e do 82.º-A, do Código de Processo Penal, no pagamento à Ofendida BB da quantia reparatória de € 6.000,00 (seis mil euros);
 1.6. Condena-se o AA no pagamento dos encargos e custas crime do processo, com taxa de justiça que se fixa em 2 UC´s;
2. Acorda-se em julgar procedente, por provado, o pedido cível formulado pelo Demandante Hospital do Santo Espírito da Ilha Terceira, EPER, e, em consequência condena-se o Demandado AA no pagamento ao Demandante da quantia de € 191,57 (cento e noventa e um euros e cinquenta e sete cêntimos).
Sem custas quanto ao pedido de indemnização civil (art. 4.º, n.º 1, al. n), do RCP).
Boletins à DSIC.
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Determina-se que, após trânsito, nos termos do disposto no art. 8.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, se proceda à recolha de ADN do arguido, nos moldes prescritos em tal diploma legal. …»
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Inconformado com este acórdão, o arguido interpôs o presente recurso que termina com as seguintes conclusões e o respectivo pedido (transcrição):
« I. De tudo acima exposto resulta que o Tribunal a quo julgou erradamente a matéria de facto vertida nos pontos n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 31, 35, 36, 37, 39, 42, 44,da matéria de facto considerada provada, devendo pois o Tribunal ad quem, revogando desde já tal julgamento, considerar como não provada tal matéria.
II. Salvo sempre o devido respeito, no nosso entendimento não foi produzida prova para condenar o arguido no crime de violação agravada, pp pelos artigos 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal. A denúncia deste crime pela ofendida não é feita no momento em que denuncia o crime de violência doméstica e agressões (na data da detenção do arguido) e só o faz quase dois meses depois, quando é ouvida em declarações para memória futura. O que segundo as regras de senso comum e os costumes não faz qualquer sentido que a ofendida, mulher, perante a detenção do arguido só o denuncie pelas alegadas agressões e injúrias e não faz qualquer referência ao crime de violação, que alegadamente foi vitima!
III. A única prova produzida para condenar o arguido no crime de violação, são precisamente as declarações da ofendida, que a nosso ver foram descredibilizadas. Logo, com o devido respeito não poderá tal acusação proceder e o arguido ser absolvido da prática desse crime.
IV. Também não concordamos que estejam preenchidos os requisitos do crime de violência doméstica de que veio o arguido condenado.
V. Ficou demonstrado em sede de audiência de julgamento que a ofendida acompanhou o arguido ao trabalho, no máximo três dias, que o fez voluntariamente, que estava lá de forma livre (até porque se quisesse fugir ou pedir ajuda poderia tê-lo feito, uma vez que a obra ficava à beira da estrada), que a ofendida enquanto lá estava tinha acesso ao telemóvel, ao Facebook, que colocava música para ouvirem e falavam um com o outro de forma descontraída e a rir-se. As testemunhas são claras e coerentes ao descrever que a ofendida estava lá livre e não subjugada como a ofendida quer fazer parecer, existindo assim sérias dúvidas quanto à prática do crime de violência doméstica que o arguido vem condenado.
VI. Existem assim, sérias dúvidas sobre a prática destes factos e como tal deverá o Tribunal obedecer ao princípio do In dúbio pro reo e não retirar conclusões que, em nosso entender e salvo o devido e merecido respeito por opinião contrária, são manifestamente abusivas em face da prova produzida.
VII. Porém, caso assim não se entenda, o que só por mero dever de patrocínio se equaciona, e, caso o Tribunal a quem entenda estarem preenchidos os requisitos do tipo de crime, sempre se dirá que não se concorda com a graduação da pena por entender ser excessiva e desproporcional
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pelo seu não provimento, nos seguintes termos (em suma):
O Tribunal a quo estribou a sua convicção no conjunto da prova produzida, relevando toda a prova documental constante dos autos, a qual conjugou com a análise crítica dos depoimentos de BB e das testemunhas inquiridas e, bem assim, das declarações do arguido AA, analisada de acordo com o princípio da livre convicção do julgador, beneficiando da imediação com a prova e considerando as regras da experiência comum aplicadas ao caso. Tendo tal apreciação sido feita de forma crítica, detalhada, explícita e fundamentada, nomeadamente a propósito das razões da credibilidade ou da falta de credibilidade respectiva de cada um dos depoimentos e testemunhos. Não sendo a falta de denúncia de alguns dos factos, aquando  das declarações para memória futura, por si só, motivo demonstrativo da inveracidade de tais factos e da sua falta de credibilidade.
Também o Tribunal a quo fundamentou, de facto e de direito, a determinação das penas parcelares e da pena única aplicadas. Sendo de salientar o elevado grau de culpa revelado pela personalidade e pelo modo de actuação do arguido, bem como a ponderação das circunstâncias que, não fazendo parte dos tipos de crime, depuseram a favor do arguido e contra arguido, salientando-se o facto de já ter duas condenações criminais, por 25 crimes, 24 deles de natureza sexual e não sendo a diminuta escolaridade nem a inserção profissional e familiar deste arguido suficientes para justificar penas próximas do limite mínimo. Havendo, para além da necessidade de prevenção especial de ressocialização do arguido, também as elevadíssimas necessidades de prevenção geral de estabilização das expectativas comunitárias na manutenção ou reforço da vigência das normas violadas, derivadas do facto de as incriminações em causa se apresentarem, cada vez mais frequentes por todo o país, com um claro alarme social e incidência nessa comarca, e, por vezes, com graves consequências para as vítimas.
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Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer no sentido da improcedência deste recurso, nos seguintes termos (em suma):
Aderindo à totalidade da resposta apresentada pela Exmª. Procuradora Adjunta da 1ª instância que rebateu, com clareza e correcção jurídica, todas as questões essenciais suscitadas pelo recorrente relativamente à acertada decisão da 1ª instância.  Reafirmando que o recorrente se limitou a divulgar uma diferente e pessoal interpretação e valoração dos meios probatórios existentes no processo, a qual irreleva para sindicar a forma como o tribunal recorrido valorou a prova. Também que o recorrente não indicou quais as provas que impunham decisão diversa nos termos e com os efeitos exigidos pelos nºs 2 e 3 do art. 412º do CPP. Sendo acertada quer a fixação da factualidade, quer a sua subsunção nos ilícitos pelos quais o recorrente foi condenado, quer a pena aplicada nada excessiva face ao circunstancialimo apurado, à gravidade dos ilícitos e às necessidades de prevenção geral e especial.
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Não foi oferecida resposta.
Efectuado o exame preliminar, o processo foi aos vistos e realizou-se a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do presente recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso e os poderes de cognição deste Tribunal são delimitados pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada (nas quais sintetiza as razões do pedido nos termos do art. 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal doravante com a abreviatura CPP), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (nos termos dos arts. 410º, nºs 2 e 3, do CPP) – sendo pacífica a doutrina e a jurisprudência a este propósito, salienta-se acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº 7/95, de 19/10/1995 (em dgsi.pt), o acórdão do STJ de 19/6/1996 (em BMJ nº 458, págs. 98 e segs.), o acórdão do STJ de 15/4/2010 (em dgsi.pt),  Germano Marques da Silva (em “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, pág. 335) e Simas Santos e Leal-Henriques (em “Código de Processo Penal Anotado”, 2ª edição, Vol. II, p. 801).
No caso em apreço, as questões a apreciar são:
1ª – Há erro de julgamento quanto à alegada factualidade  ?
2ª – O arguido não praticou os crimes em apreço ?
3ª – A pena devia estar próxima do limite mínimo ? 
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Apreciação do recurso
Por se mostrar relevante para a decisão da primeira questão em apreço, iremos transcrever o acórdão recorrido na parte relativa aos factos e respetiva motivação:
« Da prova produzida e discussão da causa resultaram os seguintes:
1. FACTOS PROVADOS:
1.1. FACTOS CONSTANTES DA ACUSAÇÃO E DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL:
1. AA e BB iniciaram uma relação amorosa há cerca de 15 anos, tendo vivido como marido e mulher se tratassem até o arguido ser preso em 2011, data em que perderam o contacto e terminaram a relação.
2. Encontram-se registados como filhos de ambos …………, nascido a …………., e …………….., nascido a ………………...
3. Em data não concretamente apurada entre finais de Julho e inícios de Agosto 2021, o arguido e BB voltaram a reatar a relação amorosa.
4. Passaram a viver juntos como se de marido e mulher se tratassem, após os dias 11 e 12 de Setembro de 2021, até 19/11/2021.
5. Viveram ambos na avenida ………………………………………………………………, Angra do Heroísmo.
6. BB toma medicação para um aneurisma cerebral, três hérnias na coluna e problemas de funcionamento da tiróide.
7. Em data não concretamente apurada, logo após terem começado a viver juntos, o arguido, sabendo da necessidade da toma de tal medicação, encetou uma discussão com BB, na habitação referida em 5., ordenando-lhe que deixasse de tomar a medicação que lhe foi prescrita e que esta tomava diariamente para os problemas de saúde em causa, referindo-lhe que aquela não precisava daquela medicação.
8. No âmbito de tal discussão deitou ao lixo essa medicação, proibindo-a de a administrar, o que se manteve até 19/11/2021.
9. Desde então, quando BB comprava novamente a medicação, o arguido deitava-a ao lixo.
10. E, quando BB solicitava ao arguido que a comprasse, este encetava uma discussão com a mesma e recusava-lhe a aquisição de mais medicação.
11. O arguido impediu BB de se deslocar às urgências, referindo-lhe que, com a medicação em causa, esta o estava a drogar, para o colocar a dormir e consequentemente sair com outros homens.
12. Passados dois a três dias depois de terem começado a viver juntos, no interior da habitação referida em 5., o arguido pegou no telemóvel de BB, retirou o seu cartão SIM, deitou-o fora e colocou outro cartão SIM, que comprou, para a ofendida perder o acesso aos seus contactos e passar a contactar por aquele número apenas para o arguido.
13. Naquela altura, o arguido proibiu BB de falar com qualquer outra pessoa que não fosse o arguido.
14. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido também disse a BB, num tom de voz alto e exaltado: - “não te quero a falar com ninguém ponto final parágrafo”, “nem ao telefone, nem na rua” e acrescentou que a partir desse momento, a família da ofendida passava a ser o arguido e apenas este e mais ninguém.
15. Desde essa altura e até 19/11/2021, o arguido passou a controlar o telemóvel de BB todos os dias, proibindo-a de ter contactos de outras pessoas, mesmo com a sua família e filhos, e de receber visitas.
16. Desde a altura em que começaram a viver juntos, o arguido ordenou a BB que deixasse de trabalhar, pois não queria que esta trabalhasse.
17. Desde pelo menos meados de Outubro de 2021 até 19/11/2021, em datas não concretamente apuradas, na habitação referida em 5., o arguido, insinuando que BB tinha uma relação amorosa com um vizinho, discutiu com esta pelo facto de o cumprimentar, com um bom dia ou boa tarde, ou pelo facto de o ouvir a abrir a porta do prédio.
18. Nesses momentos, pelo menos por duas vezes, dirigiu-se à mesma e disse: “já estás tu a cumprimentar o velho” e “já está lá o caralho do velho a abrir a porta para tu lá ires ter com ele”.
19. Desde pelo menos meados de Outubro de 2021 até ao dia 19/11/2021, à noite, em casa, o arguido discutiu com BB, por ciúmes, insinuando que esta o traía com outros homens e tinha amantes, como o mencionado vizinho ou um agente da PSP de nome ……………….
20. Em tais momentos, pelo menos três vezes por semana, disse-lhe “és uma puta”, “és uma vaca”, “uma vadia”, “prostituta”, “cabra”, “velhaca”, “não mereces o ar que respiras”, “não mereces o chão que pisas”, “não fazes nada neste mundo”, “devias morrer”, “devias estar morta”.
21. Em datas não concretamente apuradas, mas entre meados de Outubro de 2021 e até 19/11/2021, o arguido, por mais do que uma vez, no decurso de discussões, na habitação referida em 5., disse a BB que a matava.
22. Em meados de Outubro de 2021, o arguido disse a BB que nunca mais iria sair sozinha e que as suas saídas seriam sempre acompanhadas por aquele.
23. Desde essa altura, passou a permanecer mais tempo em casa, por forma a controlar BB.
24. Desde essa altura, sempre que o arguido precisava de se deslocar a algum lado, ordenava a BB que o acompanhasse, por forma a evitar que a mesma ficasse sozinha em casa e fugisse.
25. Desde essa altura até 19/11/2021, todas as noites, o arguido, insinuando que BB o drogava com medicação o pôr a dormir e poder sair para ir ter com outros homens, trancou a porta de casa com a chave, não deixando BB sair.
26. Entre finais de Outubro e inícios de Novembro de 2021, durante alguns dias, por forma a controlá-la, o arguido obrigou BB a acompanhá-lo para o seu local de trabalho, em obras de construção.
27. Nessas alturas, a mesma ali permaneceu, sem fazer nada e sem se poder afastar, entre as 07:30 horas e a 17 horas.
28. Depois da altura mencionada em 26. e 27. e até ao dia 19/11/2021, o arguido deixou de trabalhar e ficou por casa, impedindo por forma a controlar a ofendida de permanecer sozinha em casa ou de sair sozinha.
29. Cerca de duas semanas antes do dia 18/11/2021, no período da noite, na cozinha da habitação referida em 5., o arguido discutiu com a ofendida, dizendo-lhe que aquela o andava a trair com um amante e que esse amante era o mencionado agente da PSP, ……………………...
30. Porque a ofendida negava tal relacionamento, o arguido, ao mesmo tempo, proferiu para esta, repetidas vezes, as expressões mencionadas em 20.
31. Nessa altura, dirigiu-se à ofendida e desferiu-lhe duas bofetadas, no lado esquerdo da face, um número não concretamente apurado de socos nas costas e um soco no olho direito.
32. No decurso dessa discussão, o arguido, insinuando que BB o drogava para sair de casa à noite para ir ter com o polícia em causa, disse-lhe que a matava e que era por isso que fechava a porta todos os dias à noite.
33. Depois, o arguido agarrou BB pelos braços, e arrastou-a até ao quarto do casal.
34. Nessa altura, atirou-a para cima da cama, despiu-a e colocou-se por cima desta.
35. O que fez, não obstante BB lhe ter solicitado para parar e ter tentado tirá-lo e afastá-lo de cima de si, sem sucesso face à força que o arguido exerceu sobre esta, impedindo-a de sair do local.
36. Após, o arguido, segurando BB e contra a vontade desta, introduziu o seu pénis na vagina de BB e movimentou-o para a frente e para trás até ejacular.
37. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB sofreu dores e hematomas na zona lombar, e dores nas costas e na cabeça.
38. Não obstante, BB não recebeu tratamento médico porque o arguido não deixou, referindo-lhe que estava em liberdade condicional e que, se as suas nódoas negras se vissem, o médico iria perceber que tinha sido agressão, sendo logo preso.
39. Em momento não apurado posterior à actuação descrita em 29. a 36. e anterior ao dia 18/11/2021, na habitação referida em 5., o arguido discutiu com BB, por motivos relacionados com ciúmes, dizendo-lhe que esta andava com outros homens e verbalizando para esta as expressões mencionadas em 20.
40. No decurso dessa discussão, o arguido atirou um copo em vidro na direcção de BB, atingindo-a no joelho e partindo o copo em causa.
41. Como consequência desta actuação, BB sofreu dores.
42. No dia 18/11/2021, à noite, na cozinha da habitação referida em 5., o arguido discutiu com BB utilizando as expressões referidas em 20. e afirmando que aquela o tinha dopado para este dormir e aquela poder sair com outros homens, nomeadamente …………….
43. Nessa altura, ordenou a BB que o fizesse aparecer.
44. Como esta negou aquele relacionamento, o arguido exaltou-se e dirigiu-se a BB e deu-lhe um número não concretamente apurado de bofetadas na face e no pescoço e um número não concretamente apurado de socos na face, nas costas, no pescoço, no peito, nos braços e no olho direito, bem como a agarrou pelos braços, apertando-os.
45. Depois disso, disse-lhe, num tom de voz alto: - “aquilo que tu levaste era para ser ele e se ele não aparecer levas tu no lugar dele e morres”, “Se ele não aparecer tu é que vais morrer porca do caralho” e “De hoje não passas sou eu que te vou matar”.
46. BB ficou com muito medo que o arguido a matasse.
47. Como consequência directa e necessária dessa actuação, BB sofreu muitas dores nas zonas afectadas, bem como as seguintes lesões: - na face, equimose bilateral das regiões orbitárias; - no pescoço, escoriações múltiplas em ambos os lados do pescoço; - no membro superior direito, equimoses circulares dispersas por ambos os braços; e - no membro superior esquerdo, equimoses circulares dispersas por ambos os braços, que lhe determinaram 10 dias para cura com afectação da capacidade de trabalho geral (3 dias).
48. No dia 19/11/2021, de manhã, o arguido disse a BB para ir consigo à Segurança Social, para esta não ficar sozinha em casa e para não fugir e contar a alguém o que se estava a passar.
49. Acto seguido, o arguido deslocou-se às instalações da Segurança Social e levou-a consigo, para que não ficasse sozinha na habitação.
50. Ali chegados, o arguido tirou a senha e, quando se dirigiu ao balcão para ser atendido, BB aproveitou que ficou sozinha e foi à casa de banho, momento em que solicitou ajuda ao segurança do edifício.
51. De seguida, a ofendida foi encaminhada às urgências do Hospital da Ilha Terceira, onde recebeu tratamento médico-hospitalar, que importou o custo de € 191,57.
52. Como consequência directa e necessária da actuação do arguido, BB sentiu-se atingida na sua honra e dignidade de pessoa e mulher, triste, frágil e assustada, com vergonha, receando, face às palavras que o arguido lhe dirigiu, que o mesmo pudesse colocar em perigo a sua segurança física ou mesmo a sua vida, sentindo-se diminuída e coarctada no seu bem-estar físico e psicológico bem como na sua liberdade e dignidade.
53. O arguido agiu com pleno conhecimento de que as expressões que proferiu eram adequadas e susceptíveis de atingir, como atingiram, BB, na sua honra e consideração, humilhando e vexando-a repetidas vezes, na intimidade.
54. Ao ofender o corpo de BB, como ofendeu, o arguido agiu ainda com o propósito concretizado de a molestar fisicamente, o que representou e mesmo assim não se coibiu de praticar.
55. Com as expressões supra mencionadas o arguido quis causar medo a BB, como efectivamente causou, fazendo-a temer pela sua própria vida, bem sabendo que tais expressões eram adequadas a alcançar tal desígnio.
56. Em todas aquelas condutas, o arguido agiu sempre com o propósito conseguido de molestar o corpo e a saúde da ofendida, bem como, assustá-la, intimidá-la, atemorizá-la, humilhá-la, coisificá-la e subjugá-la, privá-la da sua liberdade e de cuidados de saúde contra a vontade desta, bem sabendo que a sua conduta era idónea a causar, como efectivamente causou, dores, temor, receio, inquietação e ansiedade, vergonha, perturbação psicológica e que afectava a sua dignidade e liberdade, enquanto pessoa.
57. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, conhecendo a relação que tinha com a ofendida, os problemas de saúde desta, as consequências da sua atuação para com a saúde desta e os deveres de respeito e de cuidado que perante a mesma lhe cabiam por força da relação amorosa que mantinham e de terem filhos em comum.
58. Ainda assim o arguido quis violar a ofendida no seu bem-estar físico e psicológico, bem como a sua liberdade e a sua dignidade, bem sabendo todo o mal que lhe causava e que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.
59. Não se coibindo de o fazer, na habitação de ambos.
60. O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de, através da sua força física, exercer violência sobre a ofendida, e constrangê-la a manter consigo relações sexuais de cópula completa, contra a vontade desta, pondo em causa a liberdade sexual daquela, resultado esse que representou e ainda assim não se coibiu de o praticar.
61. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
1.2. FACTOS RELATIVOS ÀS CONDIÇÕES ECONÓMICAS, PESSOAIS, SOCIAIS E PROFISSIONAIS DO ARGUIDO
62. O arguido é o 3.º de uma fratria de 7 elementos.
63. Cresceu num contexto socioeconómico e cultural bastante desfavorecido, sendo a progenitora doméstica, ocupando-se sobretudo com as lides domésticas e o acompanhamento dos filhos, e desempenhando o pai funções de carpinteiro, sendo o seu trabalho a principal fonte de rendimento do agregado.
64. Teve um bom ambiente familiar.
65. Aparenta possuir uma reduzida ligação afectiva com a família de origem, havendo uma gestão autónoma dos percursos de vida de cada elemento.
66. A organização familiar foi negativamente afectada pelo falecimento da progenitora, vitima de doença oncológica, quando o arguido tinha aproximadamente 14 ano.
67. O progenitor revelou-se incapaz de assumir a gestão e prestação de cuidados aos filhos, o que implicou a adopção de dois dos irmãos e o acompanhamento dos restantes por parte da avó paterna.
68. O arguido concluiu apenas o 3.º ano de escolaridade, tendo abandonado o percurso escolar com cerca de 12/13 anos, com o objectivo de trabalhar e ajudar economicamente a família.
69. Em contexto prisional, realizou formação profissionalizante como costureiro industrial e obteve o 9.º ano de escolaridade.
70. Iniciou percurso laboral com cerca de 14 anos, trabalhando sobretudo na área da construção civil, primeiro como servente de pedreiro e, mais tarde, como pedreiro.
71. Teve alguma estabilidade neste contexto de vida, sendo as mudanças laborais devidas a melhoria em termos de ofertas de trabalho, tendo trabalhado por conta de outrem e por conta própria nesta área.
72. Trabalhou em contextos precários, por períodos mais ou menos curtos de tempo, situação que progressivamente se foi agravando.
73. Durante algum tempo, nomeadamente no período que antecedeu a anterior reclusão, trabalhou, também, na recolha e venda de sucata.
74. Em termos afectivos, BB teve vários relacionamentos e com tendência a manter relações afectivas em simultâneo.
75. Contraiu matrimónio com cerca de 20 anos, motivado pela situação de gravidez da namorada, relação que durou cerca de um ano e meio, sem vivência marital, tendo, neste contexto, uma filha, que ficou entregue aos cuidados da progenitora, não tendo o arguido contribuído ou acompanhado o seu crescimento.
76. Posteriormente, manteve relação do tipo marital durante cerca de 9 anos, estando a companheira grávida quando se juntaram, e tendo o casal mais três filhos.
77. Foi uma relação muito instável e desestruturante.
78. O arguido atribui a ruptura ao envolvimento num relacionamento extra-conjugal por parte da ex-companheira.
79. Na ausência de condições por parte de ambos os progenitores, os filhos do casal foram acolhidos em instituição.
80. O arguido manteve contactos regulares com eles, uma vez que estavam autorizados a passar fins de semana com o pai, até ter sido acusado de ter abusado sexualmente da filha mais velha.
81. Nessa sequência ficou impossibilitado destes contactos, por decisão judicial, até ter sido absolvido em julgamento (em finais de 2007).
82. Durante cerca de 14 anos manteve um outro relacionamento marital, que veio a terminar aquando da reclusão do arguido, em 2011.
83. Deste contexto tem cinco filhos.
84. Esta família possuía algumas dificuldades de funcionamento, quer em termos de organização interna, quer de dinâmica relacional entre o casal.
85. O arguido era tido como muito rígido e autoritário, com reduzida participação nos momentos significativos de convívio familiar, não disponibilizando apoio significativo à família.
86. Com BB, manteve, durante alguns anos, relacionamento afectivo, sem vivência marital.
87. Presentemente, é residual o contacto do arguido com os descendentes, o que o arguido encara como adequado.
88. Em 26/10/2011 AA iniciou cumprimento duma pena de 12 anos e 6 meses de prisão.
89. Foi libertado condicionalmente em 7/07/2021.
90. Em contexto prisional beneficiou de acompanhamento psicológico.
91. E obteve o 9º ano de escolaridade durante a frequência do curso profissional de costura industrial, desempenhando esta actividade durante a reclusão.
92. Em liberdade, integrou, inicialmente, o agregado familiar do progenitor, composto, ainda, por um irmão e respectiva companheira.
93. Para garantir alguma autonomia arrendou um apartamento.
94. Referencia projectos na área da costura industrial.
95. Trabalhou como padeiro e, posteriormente, na construção civil.
96. Teve dificuldades de reorganização da sua situação e alguma estigmatização social pela situação de reclusão.
97. À ordem deste processo esteve preso preventivamente desde 20/11/2021, e, posteriormente, desde 18/02/2022, em obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica.
98. Manteve um quotidiano centrado nas actividades domésticas, no apoio ao progenitor e em alguma manutenção dos espaços exteriores da habitação.
99. Manifesta preocupação com o cumprimento das obrigações decorrentes da liberdade condicional e a adopção dum comportamento normativo.
100. Atribui à vítima e familiares desta intenção em o prejudicarem.
101. O arguido apresenta um discurso marcado pela desejabilidade social.
102. Evidencia uma auto-imagem positiva e enfatizando a sua preocupação em manter um percurso integrado.
103. Assume, apenas parcialmente, o seu percurso criminal. 1.3. FACTOS RELATIVOS AO PASSADO CRIMINAL DO ARGUIDO
104. Por decisão de 26/12/2012, transitada em 23/01/2013, proferida no âmbito do processo n.º 87/11.0PCAGH, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Angra do Heroísmo, o arguido foi condenado pela prática, em 9/2010, de um crime de violência doméstica, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.
105. Por decisão de 4/07/2013, transitada em 30/01/2014, proferida no âmbito do processo n.º 65/11.0JAPDL, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Angra do Heroísmo, o arguido foi condenado pela prática, em 2011, de um crime de actos sexuais com adolescente agravado e de vinte e três crimes de actos sexuais com adolescente, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão pelo primeiro, e de 20 meses de prisão por cada um dos demais, tendo, em cúmulo jurídico, sido condenado na pena única de 10 anos e 6 meses de prisão.
106. As condenações sofridas pelo arguido e mencionadas em 104. e 105., bem como o facto de ter cumprido pena de prisão, não constituiu suficiente prevenção contra a prática de outros crimes, já que, apesar das mesmas, o arguido não se absteve de praticar os factos supra descritos.
107. Não obstante a pena de prisão que lhe foi aplicada pela prática de crimes da mesma natureza que os em apreciação nestes autos e apesar de poder e dever actuar de forma a respeitar a Lei, o arguido optou por continuar a praticar factos ilícitos da mesma natureza, deixando claro que as condenações anteriores não lhe serviram de advertência suficiente contra o crime, não tendo sido suficientes para afastar o arguido da prática de novos factos integradores do mesmo tipo de ilícitos, que repetiu logo numa das primeiras oportunidades após ser posto em liberdade.
108. Agiu, assim, o arguido, deliberada e conscientemente, ignorando as condenações e advertências anteriores, em processo-crime pela prática de idênticos crimes, demonstrando, em todos os ilícitos supra descritos, um total alheamento pelo respeito da Ordem jurídica.
*
2.FACTOS NÃO PROVADOS:
a) Do acto referido em 36. resultou a gravidez de BB, tendo esta, entretanto, interrompido voluntariamente a gravidez.
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3.MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal adveio da ponderação crítica do conjunto da prova produzida e analisada em audiência de discussão e julgamento.
Assim:
Quanto aos factos dados como provados nos n.ºs 1 a 51, e ao facto dado como não provados constante da alínea a), a convicção do tribunal fundou-se no teor expressivo, coerente (coerência demonstrada pela sua análise de conjunto e não por qualquer passado criminal que lhe possa ser assacado), e não suficientemente infirmado, do depoimento de BB, ofendida nos presentes autos, devidamente conjugado, quanto à existência de dois filhos em comum, com o teor dos assentos de nascimento de fls. 22 e 195­196, quanto às lesões por si sofridas, com o teor da reportagem fotográfica de fls. 56-62, informação clínica de fls. 96-97, e exame de clínica forense de fls. 143-144, quanto às doenças e medicação tomada, com o teor da receita de fls. 228 e do exame de fls. 270, quanto à gravidez que teve e interrupção voluntária da gravidez, com o teor de fls. 231 e 232-234 (não resultando, contudo, de tais elementos, ou das declarações da arguida, que a concepção em causa resultou do relacionamento sexual não consentido comprovado nos autos, atendendo a que, como reportou o arguido e é normal numa vivência conjugal, manteram, entre si, várias vezes relações sexuais no período em causa), quanto à assistência hospitalar que teve e seu custo, com o teor da factura de fls. 328, bem como, quanto ao pedido de ajuda por estar a ser vítima da actuação do arguido, com o teor do depoimento de …………….. (segurança que lhe prestou auxílio chamando a PSP), e, quanto ao facto de o arguido a obrigar a acompanhá-lo para o trabalho, com o teor dos depoimentos de …………. (seu patrão) e ………………… (seu colega), os quais, embora procurando aligeirar a responsabilidade do arguido, tentando dar um ar, até, de normalidade à situação, lá foram referindo a presença da arguida em obra em que o arguido trabalhava e a sua permanência aí, embora não tivesse que lá estar.
Assim, nesta parte, em termos que se tiveram por credíveis e bastante congruentes, a Ofendida descreveu o reinício da sua relação e da vivência em comum com o arguido após o mesmo ter saído da prisão, bem como genérica e concretamente os episódios em causa (quer a atingindo física, quer psicologicamente, quer na sua própria liberdade) ocorridos durante a curta vivência em comum (de cerca de dois meses), com a possível minúcia e espontaneidade, aumentando os mesmos de escala e culminando com agressão de que foi alvo e que a fez, em dia subsequente, pedir ajuda aproveitando ida à segurança social (como confirmou o supra mencionado elemento da segurança), mais relatando a ofendida a prévia manutenção, ainda, por uma vez, de relação sexual de cópula concreta com o arguido, contra a sua vontade expressa e com recurso à superioridade física por parte deste para o fazer.
Isto é, do discurso da ofendida foi notório o clima que o arguido, em pouco tempo, criou em casa, sobretudo motivado por ciúmes, actuando este, várias vezes, sobre a ofendida, quer fisicamente, quer psicologicamente, quer verbalmente, quer sexualmente, até ao pedido de ajuda da ofendida e consequente separação do casal, com a prisão preventiva do arguido, o que fez, muitas das vezes, no domicílio do casal.
Irrelevaram, aqui, as declarações do arguido, claramente eximentes, procurando furtar-se a uma responsabilidade que bem sabe ter, escudando-se num discurso virado para a desacreditação da ofendida pelo seu passado criminal (o que não pode colher, não tendo qualquer relevância o passado criminal de um ou de outro) e verbalizando que a vivência com esta foi boa e sem problemas, mas sem conseguir explicar, se assim era, porque é que a ofendida lhe imputa os factos objecto dos autos, o que é, manifestamente, contraditório e contra as mais elementares regras da normalidade ou experiência comum numa vivência curta, normal, sem incidentes até. (…)»
*                                                                           
1ª questão – Há erro de julgamento quanto à alegada factualidade ?
O arguido/recorrente questiona o acórdão proferido quanto à matéria de facto constante dos sobreditos pontos 7 até 18, 20 e 21, 24 até 27, 31, 33 até 37, 39, 42 e 44, considerando que deviam ter sido dados como não provados. Para o efeito alega, em suma, que são conclusivos e que apenas germinaram da convicção íntima, arbitrária, não fundamentada e abusiva do julgador em face da prova produzida e que foram violados os princípios da apreciação da prova segundo as regras de experiência e do “in dúbio pro reo”.
Por seu lado, o Ministério Público quer junto da primeira instância quer junto desta Relação refutaram tal erro, em suma, considerando que o acórdão recorrido justificou como acolheu e valorou, ou não, através da análise crítica e conjugada, as componentes do acervo probatório disponível, esclarecendo de que forma tais elementos probatórios foram decisivos para a decisão tomada. Acrescentando que a interpretação e a valoração da prova feita pelo arguido/recorrente é meramente pessoal e irrelevante para sindicar a valoração do tribunal que não violou tais princípios. E também acrescentou que o arguido/recorrente nem sequer cumpriu o ónus que se lhe impunha nos termos e com os efeitos previstos pelo art. 412º, nº 3 e 4, do CPP.
Cumpre apreciar e decidir.  
Para o efeito importa tecer algumas considerações teóricas a propósito da impugnação de decisão proferida sobre matéria de facto, nos termos previstos pelo art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do CPP, seguindo os ensinamentos doutrinais e jurisprudências de Paulo Pinto de Albuquerque (em “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição, pág. 1144), de Paulo Saragoça da Mata (em “A Livre Apreciação da prova e o Dever de Fundamentação da Sentença” nas Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, edição Almedina Coimbra 2004, pág. 253), os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 59/2006 e 312/2012 (em dgsi.pt), o acórdão de uniformização de jurisprudência nº 10/2005 de 20/10/2005 (em Diário da República I-A de 7-12-2005) e o acórdão do STJ de 3/2012, de fixação de jurisprudência, de 8/3/2012 (em Diário da República 1ª série, nº 77 de 18/4/2012): 
- Este mecanismo de impugnação visa a fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção a partir delas =»visando a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal da 1ª instância, da prova dela resultante e da respectiva decisão que esse Tribunal tomou quanto à matéria de facto respectiva;
- Havendo erro de julgamento quanto à matéria de facto sempre que, por exemplo, o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e que, por isso, devia ter sido dado como não provado ou, então, a sua situação inversa;
- Mas, esta impugnação da matéria de facto (conhecida como impugnação ampla da matéria de facto) tem alguns limites, na medida em que não importa a feitura de um novo julgamento pelo Tribunal de recurso, estando condicionada ao cumprimento por parte do recorrente dos seguintes deveres aquando da motivação e das conclusões de recurso:
. a especificação dos concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados e como concretamente deveriam ser modificados, apresentando a respectiva versão factual;
. a especificação das concretas provas que imponham decisão diversa relativamente a cada um dos respectivos pontos impugnados da decisão recorrida e com indicação concreta e individualizada das particulares passagens/excertos da gravação da audiência nas quais ficaram as frases (dos depoimentos e/ou das declarações) que se referem ao respectivo facto impugnado e em que alicerça a divergência -  não bastando a mera referência às rotações correspondentes ao início e ao fim da respectiva gravação consignada em acta -. Apresentando não só a sua versão probatória factual, como também o conteúdo específico de cada meio de prova transcrito na parte que imponha decisão diversa da recorrida, correlacionando comparativamente com o facto individualizado que considere erradamente julgado;
. a especificação de provas que devam ser renovadas e com indicação concreta das passagens da gravação da audiência por referência ao consignado na acta;
- Perante tal impugnação, o Tribunal de recurso deve proceder à audição ou visualização das respectivas passagens indicadas pelo recorrente e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa =» tendo o Juiz do recurso acesso imediato a toda a prova, tal e qual como foi produzida em 1ª instância;
- Em face disso, deve o Tribunal de recurso aferir da observância dos juízos de racionalidade, de lógica, de experiência, de conhecimentos científicos e, também, deve aferir da observância das regras específicas sobre a validade e a eficácia dos meios probatórios e sobre princípios vigentes em matéria probatória, para saber se, à luz de tudo isto, se confirma, ou não, o raciocínio e a avaliação feitas em 1ª instância sobre o material probatório constante dos autos. Então:
Caso seja demonstrado que o juízo constante da decisão recorrida é compatível com aqueles critérios, isto é, que a convicção desse tribunal ainda é objectivável de acordo com aquelas regras e a versão do recorrente se apresentar meramente alternativa e igualmente possível face àquelas regras =» deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova (da qual não beneficia o Tribunal de recurso), não merecerá censura o julgamento da matéria de facto fixada e impugnada, não haverá erro de julgamento nem possibilidade da alteração factual;
Caso seja demonstrado o contrário, isto é, que dessa comparação resultar que o tribunal recorrido não podia ter concluído como concluiu na consideração daqueles factos como provados ou como não provados =» haverá erro de julgamento e a decisão recorrida merecerá alteração em conformidade com o desacerto verificado.
Posto isto, vejamos o caso concreto.
Perante a impugnação efectuada pelo arguido/recorrente (nos termos constantes da motivação e respectivas conclusões de recurso), importa dizer que, não obstante, à primeira vista, pareça ter cumprido o aludido ónus de impugnação (constante da previsão do art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP), quando apreciada em detalhe não é bem assim.
Vejamos.
- a propósito dos pontos provados nºs 7 a 9 e 11= apenas refere que a ofendida disse tal, mas não transcreve os respectivos dizeres desta, nem sequer indica quais as respectivas rotações constantes da gravação; e, por outro lado, nega tal factualidade, referindo certas rotações da gravação das suas declarações como arguido e transcrevendo certas sua afirmações vagas a negar que soubesse que ela tomava medicação e a negar que a tivesse proibido de tomar;
- a propósito do ponto provado nº 10 = apenas refere que a ofendida disse tal, mas não transcreve os respectivos dizeres desta, nem sequer indica quais as respectivas rotações constantes da gravação; e, por outro lado, nega tal factualidade, referindo certa rotação da gravação das suas declarações como arguido e transcrevendo certa sua afirmação vaga a negar que tivesse recusado comprar e a negar que a medicação pedida pela ofendida fosse aquela; e fazendo alusão a testemunhas cujo depoimento considerou isento e imparcial, no sentido de fazer duvidar da idoneidade das declarações da ofendida, mas sem indicar as respectivas rotações da gravação e sem transcrever tais depoimentos testemunhais;
- a propósito do ponto provado nº 12 = apenas refere que a ofendida disse tal, mas não transcreve os respectivos dizeres desta, nem sequer indica quais as respectivas rotações constantes da gravação; e, por outro lado, refere certa rotação das suas declarações como arguido e transcreve a respectiva versão contada por este;
- a propósito dos pontos provados nºs 13, 14 = apenas refere certas rotações das suas declarações como arguido a negar os respectivos factos e nem sequer as transcreve;
- a propósito do ponto provado nº 15 = apenas refere certa rotação das suas declarações como arguido a negar o respectivo facto e nem sequer a transcreve; por outro lado, transcreve uma parte da declaração da ofendida a confirmar tal facto provado e indica a respectiva rotação da gravação; e transcreve uma parte do depoimento vago de uma testemunha para considerar como conciso, claro, isento e indica a respectiva rotação e acrescentando supostas conclusões por parte do arguido, já que não constam dessa transcrição;
- a propósito do ponto provado nº 16 = apenas refere que a ofendida disse tal, mas não transcreve os respectivos dizeres desta, nem sequer indica quais as respectivas rotações constantes da gravação; e, por outro lado, refere certas rotações das suas declarações como arguido a negar tal facto, mas não transcreve, só fazendo uma citação; e também acrescenta suposições suas;
- a propósito dos pontos provados nºs 17º a 21 = apenas refere que a ofendida em certa rotação das suas declarações fizera uma enumeração sem nexo e sem contexto, mas não transcrevendo os dizeres desta; e por outro lado,  refere certas rotações das suas declarações como arguido a negar tal facto, mas só transcrevendo uma parte delas; e também acrescenta a rotação da gravação e os respectivos dizeres vagos do depoimento de uma testemunha a negar ter ouvido discussões ou conhecer situações anómalas, para com isso corroborar a inveracidade de tais factos;
- a propósito dos pontos provados nºs 24, 26 e 27 = apenas refere que a ofendida entrou em contradição a propósito da respectiva duração temporal, transcrevendo partes das declarações e indicando a respectiva rotação; e por outro lado, refere as rotações quer das suas declarações como arguido, quer do depoimento de certas testemunhas e transcrevendo-os, aquele negando tal e estas  de forma vaga, para com isso corroborar a inveracidade de tais factos;
- a propósito do ponto provado nº 25 = apenas refere uma rotação das declarações da ofendida, mas nem sequer a transcreve; e, por outro lado, refere certas rotações das suas declarações como arguido a negar tal facto e transcrevendo apenas uma delas e acrescentando suposições;
- a propósito do ponto provado nº 31 = apenas refere uma rotação das suas declarações como arguido a negar e a sua transcrição; e, por outro lado, refere alegadas incongruências entre as declarações da ofendida que nem sequer transcreve nem tão pouco indica a respectiva rotação e as menções constantes da informação hospitalar e informação clínica;
- a propósito dos pontos provados nºs 33 até 36 = apenas refere uma rotação das suas declarações como arguido e a respectiva transcrição; e, por outro lado, refere que as declarações da ofendida, sem qualquer indicação da rotação e sem qualquer transcrição, desmerecem credibilidade por só ter denunciado tais factos  mais tarde e acrescentando o arguido suposições.
Para além disso, o arguido/recorrente abstrai-se de toda a restante prova produzida nos autos a este propósito (nomeadamente, o teor integral quer das suas próprias declarações, quer das declarações da ofendida, quer do depoimento das testemunhas, bem como de todos os documentos constantes dos autos).
E, também, o arguido/recorrente se abstrai da apreciação crítica e conjugada que o Tribunal coletivo recorrido fez a este propósito, à luz das regras de experiência comum, de verosimilhança dos factos, de lógica, de validade e de credibilidade dos respectivos  meios probatórios, tanto mais beneficiando esse Tribunal dos princípios da oralidade e da imediação da prova, e que levou o Tribunal coletivo de 1ª instância a formular a convicção sobre a veracidade daquela factualidade.
Sendo certo que o Tribunal coletivo de 1ª instância explicitou, de forma clara e detalhada,  quais os concretos meios probatórios e os motivos pelos quais valorou as provas naquele sentido e lhes atribuiu aquele significado global e não outro. 
Vejamos.
Conforme resulta do teor da motivação supra-transcrita (aqui dada por reproduzida na parte com interesse para a matéria impugnada) o Tribunal coletivo de 1ª instância atentou ao teor expressivo, coerente e congruente das declarações da ofendida que foram explicitadas, em conjugação com o teor dos documentos e dos exames clínicos aí discriminados e os depoimentos das referenciadas testemunhas. Sem deixar de salientar as ressalvas no tocante ao teor aligeirado do depoimento do patrão e do colega de trabalho do arguido. Também, salientando a falta de credibilidade das declarações do arguido e expressando as razões para tal, à luz de uma apreciação crítica, conjugada e segundo as mais elementares regras de experiência comum ou da normalidade.
Por último e não menos importante - apesar da sobredita impugnação deficiente do arguido/recorrente, no tocante a certos pontos da factualidade por si impugnada, não obstante lhe caber o respectivo ónus legal -, para que não ficassem dúvidas, este Tribunal de recurso levou a cabo a audição da gravação de todas as declarações e de todos os depoimentos e não se constatou que as provas produzidas nos presentes autos impusessem outra decisão em termos de factualidade provada.
Tendo-se confirmado (sem beneficiar da imediação e da oralidade inerentes ao julgamento pelo Tribunal colectivo da 1ª instância): o teor racional, negacionista, injustificado e incongruente das declarações do arguido que, para além disso, tentou desacreditar a ofendida com factos alheios ao processo; o teor seguro, convincente e coerente das declarações da ofendida, explicitando tudo do sucedido; o teor seguro e coerente do depoimento da testemunha …………… (vigilante que prestou auxílio à ofendida, chamando a PSP) descrevendo o sucedido naquela manhã; o teor telegráfico e sem espontaneidade do depoimento das testemunhas ……………. (patrão do arguido) e ………….. (colega do arguido) a propósito da permanência da ofendida na obra onde o arguido estava a trabalhar, tentando desvalorizar a anormalidade da situação e encurtar o respectivo período temporal; o teor telegráfico do depoimento da testemunha ……………… (senhorio do arguido) a propósito do desconhecimento de discussões ou situação anómala no prédio onde nem sequer vivia; e o teor parcial do depoimento da testemunha ……………… (irmã do arguido) procurando descredibilizar a ofendida com factos alheios ao processo.
Posto isto, também importa referir que – contrariamente ao entendimento do arguido/recorrente – tal apreciação feita pelo Tribunal coletivo de 1ª instância não atentou contra o princípio da livre apreciação da prova (previsto no art. 127º do CPP) nem contra o princípio da não presunção de culpa (previsto no art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa – doravante abreviada como CRP).
O princípio da livre apreciação da prova significa que prova é apreciada, pelo julgador singular ou coletivo, em busca da verdade material, segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador singular ou coletivo, mas sem que isso signifique ou equivalha a uma apreciação infundamentada, arbitrária ou abusiva.
Apenas e tão só o legislador quis realçar que (em regra) inexistem regras legais que atribuam valor específico, valor pré-determinado às provas ou que estabeleçam uma hierarquia entre as provas [com excepção: da confissão integral e sem reservas (nos termos do art. 344º, nº 2, do CPP), da prova pericial (nos termos do art. 163º, nº 1, do CPP) e da prova documental autêntica e autenticada (nos termos do art. 169º do CPP)]  e  que todos os meios de prova não proibidos (nos termos do art. 126º do CPP e do art. 32º, nº 8, da CRP) são admissíveis (nos termos do art. 125º do CPP) – a este propósito confira as unânimes doutrina e jurisprudência constantes do “Código de Processo Penal Comentado” (págs. 418 a 434 da 3ª Edição Revista da Almedina).
Quer isto dizer que se trata de uma liberdade (do julgador singular ou coletivo) com um dever : o dever de perseguir a verdade material de cada caso concreto. Verdade esta obtida pelo conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos e que não tem de ser absoluta, pois, tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano. E, assim, a lei o faz reflectir quando menciona expressamente (no art. 127º do CPP) que a prova é apreciada segundo as regras da experiência humana.
E no cumprimento deste dever ou princípio da persecução da verdade material, a apreciação e convicção (singular ou coletiva) do julgador, perante os meios probatórios de cada caso concreto (e as sobreditas regras legais quanto aos mesmos), é sempre uma convicção objectivada e motivada.
E na formação dessa convicção, perante a produção da prova em audiência de julgamento, a apreciação do julgador (singular ou coletivo) - condicionada pelo princípio da persecução da verdade material -, assenta na verdade prático-jurídica humana: em que se inclui não só uma actividade puramente cognitiva; mas também se incluem elementos racionalmente não explicáveis, tais como a experiência, a emoção e a intuição que permitem ao julgador (singular ou colectivo) aperceber-se da personalidade de certo declarante e/ou depoente e/ou de traços denunciadores da isenção (ou falta dela), de imparcialidade (ou falta dela) e de certeza (ou falta dela), então revelados e com a inerente credibilidade concedida (ou não) ao respectivo declarante e/ou depoente – como, por exemplo, pela voz, por gestos, por comoções/emoções, por expressões faciais, por hesitações, por pausas - tudo melhor captado com a imediação e a oralidade da audiência.
Assim se obtendo a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) – cfr. a este propósito os ensinamentos doutrinais de Figueiredo Dias (em “Lições de Direito Processual Penal”, págs. 135 e segs. ou em “Direito Processual Penal” (1º. Vol., págs. 203-205).
Em suma, a prova tem como função a demonstração da realidade dos factos (nos termos do art. 341º, nº 1, do Código Civil), sem que ela pressuponha uma certeza absoluta ou lógico-matemática, bastando que ela permita alcançar um grau de certeza tal que é capaz de afastar toda a dúvida razoável - não qualquer dúvida, mas só a dúvida fundada em razões adequadas.
Só sendo, por isso, aplicável o princípio “in dubio pro reo”  quando haja uma dúvida razoável geradora de um estado de incerteza quanto aos factos integradores de um crime imputado a um arguido.
Este princípio é limite normativo daquele outro  princípio (da livre apreciação da prova) na medida em que impõe ao tribunal (singular ou colectivo) que decida em favor do arguido se [em face daquela livre apreciação e prossecução da verdade material,  nessa sua missão de julgar], ficar com uma dúvida razoável.
Ora, voltando ao caso em apreço e face à apreciação já efectuada dos autos por este Tribunal de recurso, a propósito da factualidade impugnada pelo arguido/recorrente, não se nos afigura que a apreciação do Tribunal colectivo recorrido tivesse sido infundamentada, arbitrária ou abusiva e que esse Tribunal, no seu percurso lógico-dedutivo, motivado e objectivado tivesse tido uma dúvida razoável sobre a veracidade dos factos imputados ao arguido, tivesse persistido um “non liquet”/estado de incerteza e que, em vez de presumir a inocência do arguido, tenha presumido a sua culpa.
Em suma - e apesar de não agradar ao arguido/recorrente o resultado da avaliação/julgamento de certa matéria de facto pelo Tribunal colectivo recorrido -, este Tribunal colectivo de recurso não detectou no processo de formação da convicção daquele Tribunal colectivo de 1ª instância qualquer violação das sobreditas regras e dos sobreditos princípios de direito probatório que conduzissem a erro de julgamento.
Por último, importa chamar à colação um aspecto que o arguido/ recorrente refere, apenas, implicitamente e que – contrariamente ao entendimento deste – se impõe afirmar que é: a inexistência de falta de fundamentação da sentença recorrida.
Conforme sabemos, o art. 374º, nº 2, do CPP exige, como um dos requisitos de validade de uma sentença: para além da enumeração dos factos provados e não provados, a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. 
Corporizando esta norma a exigência constitucional contida no art. 205º, nº1, da CRP que consagra o dever de fundamentação das decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente.
Sendo cominada com a nulidade insanável da sentença a falta de tais menções, nos termos previstos pelo art. 379º, nº 1, al. a), do CPP.
E sendo de conhecimento oficioso esse tipo de nulidade, nos termos previstos pelo art. 410º, nº 3, do CPP.
Desta forma o legislador quis salientar a importância da fundamentação das decisões judiciais e conforme referem os ensinamentos doutrinais de Germano Marques da Silva (em “Curso de Processo Penal”, III Vol., pág. 289) e jurisprudenciais contidos no acórdão do STJ de 17-09-2014 (processo nº 1015/07.3PULSB.L4.S1), respectivamente: «As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz» ; «A fundamentação das sentenças judiciais é a forma que o legislador se serve para a sua explicação aos sujeitos processuais e aos cidadãos: através dela o julgador presta conta a ambos, proclama as razões de facto e de direito, por que optou por certa solução, ao fixar os factos e ao assentar neles o direito».
Esse dever de fundamentação inclui o exame crítico das provas, o qual consiste no seguinte: Enunciar de forma simples, clara e suficiente, as razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas; a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova; os motivos da credibilidade dos depoimentos; o valor de documentos e exames = aquilo que o Tribunal privilegiou na formação da sua convicção e que levou àquele rumo decisório, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, dotada da experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo Tribunal e das razões da sua convicção – cfr. o teor expressivo do acórdão do STJ de 17/9/2014 (no processo nº 1015/07.3PULSB.L4.S1).
Por  isso, na fundamentação da matéria de facto hão de indicar-se as razões porque se atribui credibilidade a certos meios de prova (incluindo naturalmente declarações e/ou depoimentos prestados) e a explicação das razões porque não se confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário = O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor e que seja expressada tal apreciação (crítica e conjugada) feita pelo Julgador, no processo lógico e racional de formação da sua convicção – cfr. a este propósito Rosa Vieira Neves (em “Livre Apreciação da Prova e Obrigação de Fundamentação”, Coimbra Ed. 2011, págs.151 e segs.).
Assim se garantindo que a decisão sobre a matéria de facto não seja arbitrária ou dominada pelas meras impressões ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência. Assim se garantindo que a decisão sobre a matéria de facto implique ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu o Tribunal são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos – cfr. o teor expressivo do acórdão do STJ de 3/10/2007 (no processo nº 07P1779).
Ora, voltando ao caso em apreço, conforme consta quer da transcrição já feita do acórdão recorrido, quer da apreciação já feita a propósito da inexistência de erro de julgamento por parte do Tribunal coletivo de 1ª instância, não se descortina tal omissão no acórdão recorrido.
Pois este acórdão, de forma clara, concisa e suficiente, indicou os concretos meios probatórios, fez um exame crítico dos mesmos e expressou/explicitou os motivos que fundamentaram a decisão relativamente àquela factualidade. Nomeadamente, em que medida certos meios de prova ofereceram informação, esclarecedora e convincente, que permitiu considerar provados certos factos e que justificou a credibilidade dada a certos meios de prova em detrimento de outros.
Assim, perante todos os meios probatórios existentes no caso concreto e à luz das regras de experiência, de lógica, de verosimilhança dos factos e dos princípios da oralidade e da imediação da prova em audiência, o Tribunal coletivo recorrido formou a sua convicção e explicitou-a, expondo aquilo que o Tribunal privilegiou na formação da sua convicção e que levou àquele rumo decisório, após lhe ter sido inculcada a certeza relativa (dentro do que é lógico e normal) no sentido de considerar como provada certa factualidade (sem margem de dúvida razoável).
Nada impedindo que, nessa apreciação crítica e conjugada, à luz dessas regras e das imediação e oralidade, o Tribunal coletivo de 1ª instância atribua crédito a parte de determinado depoimento, mas já não estribe a sua convicção noutra parte do mesmo e, aliás, também, nada obsta a que a convicção do Tribunal se funde até num único depoimento, desde que o mesmo ofereça credibilidade bastante. Nas sábias palavras de Bacon (na obra “Psicologia do testemunho” em Scientia Iuridica, pág. 337): «os testemunhos não se contam, pesam-se».
Condição necessária, mas também suficiente, é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa, dentro do que é lógico e normal, de que os factos se passaram da forma ali narrada.
Em suma, no caso em apreço não resultando do acórdão recorrido que o Tribunal colectivo de 1ª instância tivesse dúvida razoável sobre a realidade de tais factos impugnados pelo arguido/recorrente e não merecendo censura esse julgamento motivado dessa matéria factual fixada, mantém-se a mesma inalterada.
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2ª questão – O arguido não praticou os crimes em apreço ?
O arguido/recorrente pede a sua absolvição, negando ter praticado os crimes pelos quais foi condenado pelo Tribunal recorrido.
O Ministério Público quer na 1ª instância, quer junto desta Relação considerou acertada a subsunção feita pelo Tribunal de 1ª instância relativamente à factualidade apurada.
Por se mostrar relevante para a decisão desta segunda questão, iremos transcrever o acórdão recorrido na parte relativa ao enquadramento jurídico-penal e à subsunção jurídica da factualidade apurada:
«B. DE DIREITO:
1. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Vistos os factos, verifiquemos, agora, o direito que se rotula aplicável.
O arguido vem acusado da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, al. a), do Código Penal, e de um crime de violação agravado, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, al. b), e n.º 5, do Código Penal
É o seguinte, no que ora interessa, o conteúdo das disposições incriminadoras citadas:
– “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais (...): (...) b) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” (art. 152.º, n.º 1, al. b), do Código Penal);
– “No caso previsto no número anterior, se o agente: a) praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos” (artigo 152.º, n.º 2, al. a), do Código Penal);
– “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; é punido com pena de prisão de três a dez anos.” (art. 164.º, n.º 2, al. a), do Código Penal );
– “As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação” (art. 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal);
– “As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 174.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se dos comportamentos aí descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima” (art. 177.º, n.º 5, do Código Penal).
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São, ainda, relevantes à decisão a proferir, as seguintes disposições legais:
– “1. É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.
2. O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
3. As condenações proferidas por tribunais estrangeiros contam para a reincidência nos termos dos números anteriores, desde que o facto constitua crime segundo a lei portuguesa.
4. A prescrição da pena, a amnistia, o perdão genérico e o indulto, não obstam à verificação da reincidência.” (artigo 75.º, do Código Penal);
– “1. Em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado. A agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.
2 - As disposições respeitantes à pena relativamente indeterminada, quando aplicáveis, prevalecem sobre as regras da punição da reincidência.” (artigo 76.º, do Código Penal).
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1.1. DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Isto posto, passemos à análise, em primeiro lugar, do crime de violência doméstica 1/2, pelo qual o arguido vem acusado.
1 Conceito criado pela última reforma penal, no sentido de adaptar a expressão legal ao conceito sociológico.
2 Note-se que nos “crimes cuja execução se prolonga no tempo, se durante o seu decurso surgir uma lei nova, ainda que mais gravosa, é esta a aplicável a todo o comportamento uma vez que não é possível distinguir partes do facto” – neste sentido, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/03/2009, relatado pelo Ex.mo Senhor Desembargador RIBEIRO MARTINS, in www.dgsi.pt.
Tal crime, previsto e punido pelo art. 152.º, neste caso, al. b), do n.º 1, e n.º 2, al. a), do Código Penal (tipo legal em que o bem jurídico protegido é, em síntese, a pessoa individual e a sua dignidade da pessoa humana 3), para que se mostre consumado, demanda a demonstração dos seguintes elementos 4:
(1) a prática de maus-tratos físicos ou psíquicos (incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais) (elemento objectivo).
Assim, em primeiro lugar, é necessário que tenha havido uma ofensa no corpo e/ou na saúde de outrem, ou, cumulativamente ou em alternativa, maus-tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças), sendo que se incluem ainda no tipo legal os castigos corporais, as privações da liberdade e as ofensas sexuais.
E, note-se, se o facto for praticado contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, o Arguido é punido com pena de prisão de dois a cinco anos (art. 152.º, n.º 2, al. a), do Código Penal), dando-se, assim, uma agravação do limite mínimo da pena.
(2) a existência de uma relação específica entre o agente e o sujeito passivo (elemento objectivo).
Depois, é necessário que entre o agente do crime e o ofendido exista uma qualquer relação específica, relação específica essa que, no que ora interessa, existe, na medida em que Arguido e Ofendida viveram juntos como se fossem marido e mulher.
3 Cfr., neste sentido e em pormenor, ainda que a propósito do anterior crime global de Maus Tratos, AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I – Artigos 131.º a 201.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 332.
Sobre este ponto, afirma PLÁCIDO CONDE FERNANDES, Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305, que não se vê «razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos».
4 Note-se que circunscreveremos a nossa apreciação dos elementos típicos àqueles que são pertinentes ao caso dos autos. 
(3) a existência de uma conduta reiterada ou excepcionalmente violenta e grave (elemento objectivo).
Em terceiro lugar, e com vista à delimitação da incriminação em causa de outras que apresentam elementos típicos comuns à que estamos a analisar, é necessário que a conduta em causa seja reiterada (daí que uma certa dilação temporal entre dois actos afaste a reiteração) ou, sendo isolada, seja excepcionalmente violenta e grave (neste sentido, sustentou-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30/01/2008, relatado pela Ex.ma Senhora Desembargadora MARIA LEONOR ESTEVES, in www.dgsi.pt, que “[m]uito embora, em princípio, o preenchimento do tipo do crime de maus-tratos previsto no art. 152º do C. Penal não se baste com uma acção isolada (nem tampouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), vem entendendo a generalidade da jurisprudência que existem casos em que uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal.”), sendo pois, neste sentido, que deverá ser interpretada a expressão “de modo reiterado ou não”, constante do actual tipo legal e inserida em consonância com a evolução jurisprudencial pré-existente.
Em face do novo preceito legal, decidiu-se já no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/2009, relatado pelo Ex.mo Senhor Conselheiro FERNANDO FRÓIS, in www.dgsi.pt, que “Face à nova redacção dada pela citada Lei o referido crime pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas («Quem, de modo reiterado ou não...» – art. 152.º, n.º 1, do CP), embora só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencha o tipo de ilícito (cf. Maria Elisabete Ferreira, Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Almedina, 2005, págs. 106-107; e Ac. do STJ de 24-04-2006, Proc. 06P975, in www.dgsi.pt).” Neste sentido, cfr., ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/03/2009, relatado pelo Ex.mo Senhor Desembargador RIBEIRO MARTINS, in www.dgsi.pt.
(4) a existência de dolo (elemento subjectivo).
O crime de violência doméstica previsto no art. 152.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do Código Penal, é doloso (cfr. o art. 13.º do Código Penal).
Basta-se, contudo, o preenchimento do mencionado tipo legal do art. 152.º, n.º 1, al.b), e n.º 2, al. a), do Código Penal, com a mera existência de dolo eventual, o qual deve cobrir todos os elementos objectivos do tipo, e sendo, suficiente para a realização do tipo de ilícito que o autor represente que está a infligir, reiteradamente ou de forma violenta e grave, maus-tratos físicos ou psíquicos (nos quais se incluem os castigos corporais, as privações da liberdade e as ofensas sexuais) a um terceiro com o qual mantém uma especial relação de protecção/subordinação (in casu, a quem com ele viveu como se fosse sua mulher), no domicílio comum ou no domicílio da vítima ou na presença de menor, e, não obstante, actue, conformando-se com isso.
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1.2. DO CRIME DE VIOLAÇÃO AGRAVADO
Avancemos, em segundo lugar, para a análise do crime de violação.
O crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, al. a), do Código Penal (tipo lega em que o bem jurídico protegido é a liberdade de determinação sexual - cfr., neste sentido, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I – Artigos 131.º a 201.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 466), para que se mostre consumado, demanda a demonstração dos seguintes elementos:
(1) a utilização de violência, ameaça grave ou a colocação de outra pessoa inconsciente ou na impossibilidade de resistir (elemento objectivo);
Assim, o crime em causa, sendo contra a liberdade de determinação sexual, demanda que o agente actue sobre a vítima sobre uma de 4 formas:
– com utilização de violência, sendo esta o uso de força física, com a finalidade de vencer a resistência da vítima;
– através de ameaça grave, isto é, manifestando o propósito de causar um mal ou um perigo importante à vítima, caso a mesma não consinta na sua actuação;
– pré-colocando a vítima inconsciente ou na impossibilidade de resistir, com o fim de ter com a mesma relação sexual.
(2) a existência de cópula, coito anal ou coito oral ou a determinação à prática de tais actos com outrem (elemento objectivo previsto no art. 164.º, n.º 2, al. a), do Código Penal);
Depois, o tipo legal em análise demanda, ainda, que o agente tenha com a vítima cópula, coito anal ou coito oral.
E, ao contrário do que outrora sucedia, prevê-se, ainda, o preenchimento do tipo legal, quando o agente leva a vítima a ter alguma das actuações supra mencionadas com terceiro.
Para efeitos da incriminação legal, entende-se por cópula a penetração da vagina pelo pénis, haja, ou não, emissio seminis (cfr. o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 5/2003), não preenchendo o conceito de cópula as designadas “cópula vestibular” ou “vulvar”, as quais constituirão acto sexual de relevo para efeitos do n.º 1, do art. 171.º, do Código Penal.
Por seu turno, será coito anal a penetração, total ou parcial, do ânus pelo pénis, com ou sem emissio seminis.
Por fim, poder-se-á definir coito oral como a penetração da boca pelo pénis (haja ou não erecção, haja ou não emissio seminis), designada por fellatio, e a estimulação da vagina pela boca ou língua, designada por cunnilingus.
(3) a existência de dolo (elemento subjectivo).
O crime de violação em causa é, à semelhança da maioria dos crimes (cfr. o art. 13.º do Código Penal), doloso, sendo admissíveis as várias modalidades de dolo (art. 14.º, do Código Penal).
Isto é, basta-se, o preenchimento do mencionado tipo legal, com a mera existência de dolo eventual, o qual deve cobrir todos os elementos objectivos do tipo (in casu, a prática de cópula, coito anal ou coito oral ou a determinação à prática de cópula, coito anal ou coito oral com outrem, por meio de violência ou ameaça grave ou tornando a vítima inconsciente ou na impossibilidade de resistir para o fim em causa), e sendo, suficiente para a realização do tipo de ilícito que o autor represente que está praticar de cópula, coito anal ou coito oral ou a determinar à prática de cópula, coito anal ou coito oral com outrem, por meio de violência ou ameaça grave ou tornando a vítima inconsciente ou na impossibilidade de resistir para o fim em causa, e, não obstante, actue, conformando-se com isso.
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Acresce que, para que o crime seja o de violação agravado, do art. 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, é ainda necessário que se demonstre que entre o agente e a vítima há uma relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e que o crime foi praticado com aproveitamento dessa relação.
Assim, é uma determinada relação especial entre o agente e a vítima ou uma maior debilidade desta a justificar um maior desvalor do tipo de ilícito e, consequentemente, a motivar a agravação consagrada.
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Por outro lado, para que o crime seja o de violação agravado, do art. 177.º, n.º 5, do Código Penal, é ainda necessário que, no que ora interessa, se demonstre que dos comportamentos levados a cabo resultou gravidez.
Assim, é uma consequência prevista ou previsível dos comportamentos (gravidez) a justificar um maior desvalor do tipo de ilícito e, consequentemente, a motivar a agravação consagrada.
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Note-se, ainda, que, em situações como a do caso dos autos, em que poderão estar em causa mais do que uma circunstância agravante, apenas será considerada para efeitos de determinação da pena aplicável a circunstância com o efeito agravante mais forte, sendo a/as demais consideradas em sede de medida da pena (art. 177.º, n.º 8, do Código Penal).
Isto é, o concurso de circunstâncias agravantes rege-se pelo princípio da exasperação 5, valendo, para efeitos de elevação da moldura penal, a circunstância mais forte e sendo a/as remanescentes consideradas em sede de medida concreta da pena nos termos do art. 71.º, do Código Penal.
5 Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, p. 556.
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1.3. DA REINCIDÊNCIA (SEUS PRESSUPOSTOS)
O arguido, vem, ainda, acusado como reincidente.
Atentemos, por isso, no instituto da reincidência.
Nos termos do disposto no artigo 75.º, do Código Penal, a reincidência, circunstância agravante modificativa de carácter geral, tem como pressupostos:
a) a prática de um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses;
b) anterior condenação (nos últimos 5 anos, descontado o tempo em que o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade), por sentença já transitada em julgado, pela prática de um crime doloso em pena de prisão efectiva superior a 6 meses;
c) atentas as circunstâncias do caso for de censurar o agente, por a condenação, ou condenações, anteriores não terem servido de suficiente advertência contra o crime.
E, para que alguém seja condenado como reincidente, é necessário a prova de factos concretos de onde se possa concluir que o arguido foi indiferente à condenação anterior, revelando, dessa forma, no facto posterior, um particular modo de ser da sua personalidade justificante do acréscimo de censura.
Por sua vez, como efeito da reincidência, o artigo 76.º, do Código Penal, prescreve que esta terá efeito na moldura penal aplicável ao crime pelo qual o agente deva ser condenado, efeito que só existe quanto ao limite mínimo dessa pena que, em caso de reincidência, será elevado de 1/3 (não podendo, contudo, a agravação em causa ser superior à pena mais grave das anteriores condenações).
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1.4. SUBSUNÇÃO JURÍDICA DA FACTUALIDADE APURADA
Feita a apreciação abstracta dos crimes em causa, passemos, agora, à análise em concreto da situação dos autos, isto é, à subsunção jurídica da factualidade apurada para concluirmos se estão, ou não, preenchidos os elementos típicos dos crimes que vêm imputados ao arguido.
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Comecemos pelo crime de violência doméstica.
Ora, da factualidade dada como provada, mormente dos factos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59 e 61, dados como provados, resulta que as condutas do Arguido (injúrias, porquanto o arguido proferiu as expressões mencionadas em 20, 30, 39 e 42, ofensas à integridade física, porquanto o arguido empreendeu as atitudes/agressões mencionadas em 7, 8, 9, 10, 11, 31, 40 41 e 44, ameaças, porquanto o arguido proferiu as expressões mencionadas em 21, 32 e 45, privações da liberdade, porquanto o arguido empreendeu as condutas mencionadas em 24, 25, 26, 27 e 49, e violência psicológica, porquanto levou a cabos os comportamentos descritos em 12, 13, 14, 15, 16, 18, 19, 22, 23, 28, 29 e 48) são reiteradas (pois são vários os episódios, todos ocorridos no espaço de cerca de dois meses), pelo que integram o tipo legal da violência doméstica, preenchendo os seus elementos objectivos e subjectivos, pois o arguido bem sabia o que estava a fazer e queria fazê-lo.
Mais.
O crime em causa é, ainda, agravado nos termos da alínea a), do n.º 2, do art. 152.º, do Código Penal, na medida em que vários dos episódios ocorreram na casa que ambos habitavam.
Em conformidade com o que antecede, tem o Arguido de ser condenado pelo crime em causa do qual vem acusado.
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Avancemos para o crime de violação agravado.
Ora, da factualidade dada como provada, mormente dos n.ºs 33, 34, 35, 36, 60 e 61, resulta, inequivocamente, que a conduta do arguido integra os elementos objectivos [pois, que, por uma vez, usou da sua força física para, contra a vontade expressa da ofendida que lhe pedia para parar e o tentava tirar de cima, se sobrepor à mesma e penetrar com o seu pénis na vagina desta, aí ejaculando] e subjectivos (pois este bem sabia o que estava a fazer e quis fazê-lo) do tipo de ilícito da violação que lhe vinha imputado.
Note-se que o art. 152.º, n.º 1, do Código Penal, que inclui as ofensas sexuais no tipo objectivo e prescreve que a punição é a da violência doméstica se pena mais grave não couber por força de outra disposição legal, leva a que os factos caracterizadores do crime de violação que tenha ocorrido no contexto espácio-temporal em que decorreu a violência doméstica se separem e originem a verificação autónoma do crime de violação.
Se após esta separação, como é o caso dos autos e supra referimos, restarem outros factos relativos à violência doméstica, eles continuarão a integrar o crime de violência doméstica, sendo a sua respectiva punição em concurso real com a da violação.
Neste sentido, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 1/10/2013, proferido pelo Ex.mo Senhor Desembargador MARTINHO CARDOSO, processo 258/11.0GAOLH.E1, in www.dgsi.pt.
Ao contrário de alguma da jurisprudência existente, entendemos, assim, que a subsidiariedade expressa consagrada no mencionado art. 152.º, n.º 1, do Código Penal (quer levando à punição por violência doméstica com a pena da violação, segundo uns, quer levando à punição exclusiva por violação, segundo outros), só opera nos casos de exclusiva coincidência entre a violência doméstica e a violação, estando, nos demais casos, bens jurídicos diversos afectados e a justificar autónoma punição.
Entendimento semelhante perpassa pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/10/2016, proferido pelo Ex.mo Senhor Desembargador JORGE GONÇALVES, processo 1136/12.9PFLRS.L2-5, in www.dgsi.pt, segundo o qual “(...) II.-No que concerne à relação existente entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensa à integridade física grave, contra a liberdade pessoal e contra a liberdade e autodeterminação sexual que sejam puníveis com pena mais grave do que prisão de cinco anos, tem prevalecido o entendimento de que existe uma relação de subsidiariedade expressa (concurso aparente). III.-Destacando-se os actos que materializam a tentativa de homicídio daqueles que, de diferentes naturezas, conjugadamente e por si só (ou seja, sem consideração dos que materializam a referida tentativa), integram a prática do crime de violência doméstica, descortinando-se diferentes sentidos de ilicitude, com pluralidade de bens jurídicos afectados e pluralidade de resoluções criminosas, há concurso efectivo entre os crimes de homicídio na forma tentada e de violência doméstica”.
Mais.
Verifica-se, in casu, a circunstância agravante prevista no art. 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, pois o arguido e a ofendida eram coabitantes, como marido e mulher, e o arguido praticou o crime em causa com aproveitamento dessa relação, isto é, em casa, com a vítima isolada e sem possibilidade de se lhe opor eficazmente, tendo, por via disso, o crime de violação de ser agravado nos termos do mencionado preceito legal.
Não obstante, não se verifica aqui a circunstância agravante prevista no art. 177.º, n.º 5, do Código Penal, pois apesar de existir gravidez da ofendida, não resulta provado que a mesma tenha sido consequência da relação sexual não consentida em causa, tendo, por via disso, o arguido de ser absolvido de tal agravação.
Note-se, por fim, que, na medida em que há apenas a existência de uma circunstância agravante do crime em causa, não há, na medida da pena, que equacionar a aplicação do n.º 8, do art. 177.º, do Código Penal.
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1.5. DA REINCIDÊNCIA
Como vimos, nos termos do disposto no artigo 75.º, do Código Penal, a reincidência, tem como pressupostos:
a) a prática de um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses;
b) anterior condenação, por sentença já transitada em julgado, pela prática de um crime doloso em pena de prisão efectiva superior a 6 meses;
c) atentas as circunstâncias do caso for de censurar o agente, por a condenação, ou condenações, anteriores não terem servido de suficiente advertência contra o crime.
Vejamos se se verificam os pressupostos da reincidência quanto ao arguido e aos crimes por que terá de ser condenado.
O Arguido praticou dos factos que se discutem nos presentes autos no dia entre 11/12 de Setembro de 2021 e 19/11/2021.
Foi, ainda, no que ora interessa:
- condenado pela prática de crime de violência doméstica, praticado em 9/2010, em pena de 3 anos e 6 meses de prisão, por decisão de 26/12/2012, transitada em 23/01/2013;
- condenado pela prática de um crime de actos sexuais com adolescentes agravado, praticado em 2011, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, e pela prática de vinte e três crimes de actos sexuais com adolescente, praticados em 2011, na pena de 20 meses de prisão por cada um destes, por decisão de 4/07/2013, transitada em 30/01/2014.
Esteve, no que ora interessa, em cumprimento ininterrupto de prisão entre 26/10/2011 e 7/07/2021.
Estão, então, verificados os pressupostos para a reincidência, porquanto, tais condenações, em pena de prisão, foram superiores a 6 meses e está em causa crime cometido no espaço temporal de 5 anos, sendo ainda que, como vimos, esteve preso entre 26/10/2011 e 7/07/2021, período que, nos termos do art. 75.º, n.º 2, parte final, do Código Penal, deve ser descontado.
Tal circunstancialismo, e olhando à similitude de condenações aqui em causa e nos processos 87/11.0PCAGH e 65/11.0JAPDL, basta para se ter como preenchida esta agravante, pois está em causa a prática do mesmo crime ou de crime semelhante, com a ofensa do mesmo bem jurídico ou de bem jurídico em tudo idêntico.
Assim, a circunstância de o Arguido ter cometido novo crime, da mesma natureza ou de natureza semelhante, menos de cinco anos após os factos em causa, revela que a censura contida na decisão proferida nesses processos e as penas de prisão decretadas (e que determinaram quase dez anos de cumprimento efectivo de prisão) não foram suficientes para o afastar da criminalidade, sendo este indiferente à condenação e até ao facto de apenas cerca de 2 meses antes ter sido posto em liberdade condicional.
Estamos, pois, perante uma situação de facto correlacionada com situações anteriores paritárias, de modo tal que as anteriores condenações se mostraram como não constitutivas de acção suficientemente preventiva para a prática de novas acções ilícitas pelo Arguido.
Na verdade, o Arguido mesmo depois de ter sido condenado em severa pena de prisão, como vimos, voltou a praticar o mesmo crime ou semelhante, e voltou a fazê-lo, quando, nos 5 anos anteriores (descontando a prisão sofrida), tinha sido condenado.
Se assim é, e sendo o limite mínimo da moldura penal dos crimes de violência doméstica e de violação agravado por que será condenado superior a 6 meses, as molduras abstractas dos crimes em causa sofrerão, indelevelmente, no seu limite mínimo a agravação de um terço. »
Cumpre apreciar e decidir.
Tendo em conta, por um lado, que se manteve inalterada a factualidade constante do acórdão recorrido e, por outro lado, o teor acertado e bem fundamentado da sua subsunção ao direito aplicável feita pelo acórdão recorrido, só nos resta corroborá-lo.
Pois, aquelas apuradas condutas do arguido, relativamente à ofendida, com quem vivia em coabitação e união de facto, durante esse período, indiscutivelmente, configuram a prática por aquele [em autoria material, na forma consumada, em concurso real e como reincidente] de um crime de violência doméstica e de um crime de violação agravado, tudo nos termos previstos pelos arts. 14º, 26º, 30º, nºs 1 e 3, 75º, 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), 164º, nº 2, al. a), e 177º, nº 1, al. b), do Código Penal (doravante com a abreviatura CP).
Seria fastidioso voltar a reproduzir o teor literal de todos e cada um destes preceitos legais, pelo que se remete para a sua leitura nos exactos termos já constantes da transcrição acabada de fazer (dessa parte do acórdão recorrido).
Fazendo uma breve súmula (na parte com interesse para o caso concreto e recorrendo aos ensinamentos constantes do “Comentário do Código Penal” de Paulo Pinto de Albuquerque, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, págs. 640-649 e 710-715):
- O crime de violência doméstica é uma forma especial do crime de maus-tratos, tendo como bens jurídicos protegidos a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a autodeterminação sexual e até honra de uma pessoa/vítima, que está sujeita a uma situação de domínio e de uma tal conduta reiterada por parte do agente/arguido. É um crime específico impróprio cuja ilicitude é agravada pela aludida relação entre o agente e a vítima. É um crime de dano e (com excepção das ofensas sexuais em relação às quais basta a mera actividade), também, é um crime de resultado quanto ao objecto da acção. E pressupõe sempre (como elemento subjectivo) a existência de culpa sob a forma dolosa (nos termos do art. 14º do CP).
- O crime de violação tem como bem jurídico protegido a liberdade sexual de uma pessoa, nomeadamente direito a realizar ou não realizar cópula com outrem. Quanto à sua forma de consumação é um crime de mera actividade (não sendo necessário ocorrer dano), bastando que o agente se oponha à vontade cognoscível da vítima e podendo ser cometido por meio de qualquer forma de constrangimento. É um crime específico impróprio cuja ilicitude é agravada caso a vítima esteja numa situação especial, nomeadamente, relação análoga à dos cônjuges. E pressupõe sempre (como elemento subjectivo) a existência de culpa dolosa em qualquer das suas modalidades (nos termos do art. 14º do CP).
Tendo presentes todos estes normativos legais (aqui dados por reproduzidos) e toda aquela factualidade apurada (aqui dada por reproduzida e já transcrita aquando da 1ª questão), essa condutas dolosas (porque intencionais nos termos descritos nos seus itens 53 a 61), do arguido relativamente à ofendida, com quem coabitava em união de facto durante esse período e aproveitando-se disso mesmo, traduziram-se:
» na prática (relativamente à mesma/vítima) de injúrias (através das expressões descritas nos itens 20, 30, 39 e 42), de ofensas à integridade física (através das atitudes/agressões descritas nos itens 7 a 11, 31, 40, 41 e 44), de ameaças (através das expressões descritas nos itens 21, 32 e 45), de privações da liberdade (através das condutas descritas nos itens 24 a 27 e 49) e de violência psicológica (através dos comportamentos descritos nos itens 12 a 16, 18 a 19, 22 a 23, 28 a 29 e 48). Alguns desses actos foram praticados de forma reiterada, sendo que todos ocorreram num espaço temporal de cerca de dois meses e integram o sobredito tipo legal (de crime) de violência doméstica;
» na prática (relativamente à mesma/vítima) também de um crime de violação (através das condutas descritas nos itens 33 a 37) e agravado (precisamente pelo facto de aquele se aproveitar da situação de coabitação em que se encontrava a vítima/ofendida, em casa, isolada e sem possibilidade, sequer física, de se opôr eficazmente ao seu companheiro/agressor).
Tendo o arguido agido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que todas essas condutas eram proibidas e punidas por lei, porque atentatórias da liberdade, da dignidade, da saúde, da integridade física, sexual e psicológica da pessoa da ofendida e nem por isso agiu de outro modo.
E tendo o arguido processos volitivos merecedores de distintos juízos de censura, no sentido social da ilicitude material, subjacente a tais condutas.
E, em consequência das mesmas condutas deste arguido, tendo sido atingida (efectivamente) a honra, a dignidade, a integridade quer física, quer psicológica, quer sexual e a saúde daquela sua companheira com quem coabitava, a qual, também, ficou com receio quanto à segurança física, à saúde e à vida e a qual se sentiu subjugada, coarctada na sua dignidade, bem estar físico e psicológico, liberdade, incluindo a sexual, e dignidade enquanto pessoa humana.
Estando preenchidos todos os requisitos (os objectivos e o subjectivo) de cada um desses tipos legais de crime (o crime de violência doméstica e o crime de violação agravado), o Tribunal colectivo de 1ª instância considerou (e muito bem) que, embora o tipo objectivo daquele crime (de violência doméstica) inclua ofensas sexuais, os factos deste cariz, praticados pelo arguido no contexto espaço-temporal em que decorreu a prática daquele crime (de violência doméstica por parte do mesmo), devem ser separados/autonomizados, por forma a originarem uma imputação e condenação autónomas (mais concretamente, por um crime de violação agravado = relativamente à actuação do arguido que, usando da sua força física e violência, constrangeu a sua companheira com quem coabitava e contra a vontade desta, a ter relação sexual de cópula completa).
E, após essa separação, como ainda restam outros factos ilícitos relativos à violência doméstica (tais como ofensas à integridade física, ameaças, injúrias, violência psicológica e privação da liberdade) estes continuam a integrar a prática de um crime de violência doméstica e os seus diversos bens jurídicos atingidos justificam esta sua punição como tal (configurando maus tratos físicos e psíquicos infligidos pelo arguido relativamente à companheira com quem coabitava e como manifestação de desprezo, humilhação e/ou especial desconsideração pela vítima) – cfr. neste sentido e a título exemplificativo o acórdão do STJ de 21/11/2018 no processo nº 574/16.4PBAGH.S1
Assim, no caso concreto, há a prática consumada e em concurso efectivo desses dois crimes, o de violação agravado e o de violência doméstica – tal só não sucederia se, após aquela separação, houvesse uma exclusiva coincidência entre a violação e a violência doméstica e, nesse caso, a violência doméstica seria punida com a pena correspondente à violação porque mais gravosa (nos termos consignados na ressalva final do nº 1 do art. 152º em conjugação com os arts. 164º, nº 2, e 177º, nº 1, todos do CP).
Como sabemos, a figura jurídica do concurso efectivo e heterogéneo de crimes, está prevista no art. 30º, nº 1, do CP, segundo o qual: “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos…”.
E a doutrina fala na figura do concurso real quando são vários os factos/actuações do mesmo agente através dos quais são violados vários bens jurídicos protegidos por várias incriminações/tipo legais – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, em “ Comentário do Código Penal”, 4ª edição actualizada, págs. 233 a 241.
Em suma e voltando ao caso concreto, não há dúvidas de que aquelas apuradas actuações do arguido, naquelas circunstâncias de tempo, modo e lugar, e com aquelas apuradas vontades/intenções dolosas respectivas do arguido, foram subsumidas e devem ser subsumidas à prática consumada, em concurso real e efectivo, daqueles dois tipos legais de crime (o de violência doméstica e o de violação agravado) com desvalor jurídico autónomo (um atentatório da ampla integridade física da vítima e outro atentatório da liberdade sexual da vítima) e tendo subjacente plúrimas resoluções criminosas susceptíveis de plúrimo juízo de censura. 
E este concurso de crimes será relevante para efeitos de punição do arguido, conforme a previsão do art. 77º do CP.
Sendo certo, também, que (conforme resulta dos itens 104 a 108) tal configura uma situação de reincidência, nos termos previstos pelo art. 75º do CP, já que este mesmo arguido havia sido condenado, nos últimos 5 anos (descontado o tempo em que cumprira medida processual ou pena privativa de liberdade, nomeadamente, desde 26/10/2011 a 7/7/2021), em penas de prisão efectiva superiores a 6 meses, por sentenças já transitadas em julgado, pela prática de crimes dolosos e sem que essas anteriores condenações tivessem servido de suficiente advertência contra o crime.
Aliás, tais condenações disseram respeito à prática de um crime de violência doméstica e à prática de um crime de actos sexuais com adolescente agravado e vinte e três crimes de actos sexuais com adolescente. E, para além disso, os factos em apreço nos autos foram praticados quando o arguido estava em liberdade condicional relativamente à pena única (de 10 anos e 6 meses de prisão) que lhe havia aplicada por aqueles.
E esta reincidência (enquanto circunstância agravante da culpa do arguido – usando as palavras de Eduardo Correia (em “Direito Criminal I, Coimbra Almedina 1966, pág. 147) e de Figueiredo Dias (em “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Lisboa Aequitas 1993, pág. 262) também será relevante para efeitos da sua punição, conforme a previsão do art. 76º do CP.
Em suma, não há qualquer fundamento para a peticionada absolvição do arguido/recorrente e a qualificação jurídico-penal operada pelo Tribunal coletivo recorrido não merece qualquer reparo.
3ª questão – A pena devia estar próxima do limite mínimo ?
O arguido/recorrente veio requerer (para o caso de não ser absolvido) a alteração da graduação da pena para uma próxima do seu limite mínimo, alegando que a pena aplicada pelo Tribunal recorrido é excessiva e desproporcional porque superior à medida da sua culpa e atentatória do princípio da inviolabilidade da sua dignidade pessoal, não respeitando o regime contido nos arts. 40º, nº 1 e 2, 70º e 71º, nºs 1 e 2, do CP.
O Ministério Público quer  junto do Tribunal recorrido quer junto deste Tribunal da Relação refutou tal, considerando que a pena aplicada ao arguido é adequada e nada excessiva, atentos os circunstancialismos apontados, a gravidade dos ilícitos e as necessidades de prevenção geral e especial.
Por se mostrar relevante para a decisão desta terceira questão, iremos transcrever o acórdão recorrido na parte relativa à determinação concreta da medida da pena:
« 2. DETERMINAÇÃO CONCRETA DA MEDIDA DA PENA
Nessa conformidade, passemos, então, à determinação concreta da medida da pena a aplicar ao arguido por cada um dos crimes por que vimos dever ser condenado.
Conforme resulta do art. 40.°, do Código Penal, “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.° 1), sendo que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (n.° 2).
Por outro lado, estipula o art. 70.º, do Código Penal, a preferência do legislador pelas penas não privativas da liberdade, sempre que realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, e estatui o art. 71.°, do mesmo diploma legal, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” e, para essa operação, o tribunal terá de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (n.º 2 do mesmo normativo).
Assim, a culpa, segundo a função que lhe é político-criminalmente determinada, constitui condição necessária de aplicação da pena e limite inultrapassável da sua medida. Dentro do limite máximo permitido pela culpa, a pena deve ser determinada no interior de uma moldura de prevenção geral positiva, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral positiva a medida da pena será encontrada em função de exigências de prevenção especial, maxime, de socialização. Em sentido idêntico, cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, in Direito Penal Português. As consequências jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, Coimbra, pp. 227 a 229.
*
Comecemos, então, pelo crime de violência doméstica.
No caso em apreço, prevê o tipo legal da violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, al. a), do Código Penal, pena de prisão, prisão essa que tem como limite mínimo 2 anos de prisão e como limite máximo 5 anos de prisão.
Tal limite mínimo, por força do mencionado art. 76.º, n.º 1, do Código Penal, em virtude da reincidência, que, como vimos, entendemos verificar-se (e não ser possível de aplicar ao caso prisão efectiva inferior a 6 meses), passa a ser de 2 anos e 8 meses de prisão.
Isto posto, no que concerne ao concreto tempo de privação da liberdade a impor ao arguido, importa ponderar, à luz dos critérios estabelecidos pelo art.º, 71.º, do Código Penal, que, quanto ao crime em apreço, são elevadíssimas as necessidades de prevenção geral, derivadas do facto de a incriminação em causa se apresentar, cada vez mais, frequente por todo o país, com um claro alarme social e incidência nesta comarca, e, por vezes, com graves consequências para as vítimas.
Contudo, se, como já dissemos, são, cada vez mais, prementes as necessidades de prevenção geral em crimes deste tipo, também não deixa de ser verdade que a pena a aplicar concretamente há-de resultar das regras da prevenção especial, segundo as quais esta será o limite necessário à reintegração do arguido na sociedade, causando-lhe apenas e tão-só o mal necessário.
Assim, o limite aconselhado pela culpa e pela prevenção geral, deve ser temperado pela prevenção especial que, in casu, atendendo aos antecedentes criminais do arguido, olhando à forma como tudo ocorreu e espaço de tempo em que actuou, e consequências da sua actuação (excluindo-se como é óbvio os factos autonomamente caracterizados como de violação), aconselha uma agravação mediana.
Atendendo aos critérios estabelecidos pelo art. 71.º, n.º 2, do Código, temos, em síntese, que a favor do arguido militam as seguintes circunstâncias:
– o facto de o arguido se encontrar profissional e familiarmente enquadrado;
– a baixa escolaridade do arguido.
Por seu turno, em desfavor deste, há que considerar o seguinte:
– a ilicitude da sua conduta (não se tendo aqui em conta, repete-se, a sua actuação caracterizadas autonomamente como crimes de violação), com uma prática de violência ao longo apenas cerca de dois meses da vivência em comum, mas actuando logo ao nível físico, da liberdade, verbal e psicológico, embora sem grandes consequências na vítima, mas com um grave escalar de comportamentos;
– o facto de o arguido ter actuado com dolo directo;
– a negação e falta de consciencialização das suas condutas, invertendo o papel agressor/vítima;
– o facto de o arguido ter já duas condenações criminais, por 25 crimes, um deles de natureza idêntica.
Por conseguinte, em face das circunstâncias supra enumeradas e factualidade dada como provada, entendemos que a conduta deste deverá ser sancionada, pelo crime de violência doméstica, com uma pena de 3 anos e 8 meses de prisão.
*
Passemos, em segundo lugar, ao crime de violação agravado.
No caso em apreço, prevê o tipo legal da violação (do art. 164.º, n.º 2, al. a), do Código Penal) a punição do crime em causa com uma pena de prisão que tem como limite mínimo 3 anos de prisão e como limite máximo 10 anos de prisão.
Tais limites, por força do mencionado art. 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, em virtude de agravação de um terço, passam a ser, respectivamente, de 4 anos (limite mínimo) e de 13 anos e 4 meses (limite máximo).
Por seu turno, o limite mínimo, por força do mencionado art. 76.º, n.º 1, do Código Penal, em virtude da reincidência, que, como vimos, entendemos verificar-se (e não ser possível de aplicar ao caso prisão efectiva inferior a 6 meses), passa a ser de 5 anos e 4 meses de prisão.
Isto posto, no que concerne ao concreto tempo de privação da liberdade a impor ao arguido, importa ponderar, à luz dos critérios estabelecidos pelo art.º, 71.º, do Código Penal, que, quanto ao crime em apreço são, cada vez mais, prementes as necessidades de prevenção geral, derivadas do facto de a incriminação em causa se apresentar, cada vez mais, frequente por todo o país, com um claro alarme social e nefastas consequências.
Contudo, se, como já dissemos, são, cada vez mais, prementes as necessidades de prevenção geral em crimes deste tipo, também não deixa de ser verdade que a pena a aplicar concretamente há-de resultar das regras da prevenção especial, segundo as quais esta será o limite necessário à reintegração do arguido na sociedade, causando-lhe apenas e tão-só o mal necessário.
Assim, o limite aconselhado pela culpa e pela prevenção geral, deve ser temperado pela prevenção especial que, in casu, aexistência de antecedentes criminais de natureza semelhante e à forma como tudo aconteceu, aconselha uma agravação média.
Atendendo aos critérios estabelecidos pelo art. 71.º, n.º 2, do Código, temos, em síntese, que a favor do arguido militam as seguintes circunstâncias:
– o facto de o arguido se encontrar profissional e familiarmente enquadrado;
– a baixa escolaridade do arguido.
Por seu turno, em desfavor deste, há que considerar o seguinte:
– o facto de o arguido ter actuado com dolo directo;
– o facto de o arguido ter actuado sobre a sua própria companheira;
– a negação e falta de consciencialização das suas condutas, invertendo o papel
agressor/vítima;
– o facto de o arguido ter já duas condenações criminais, por 25 crimes, 24 deles de
natureza sexual.
Por conseguinte, em face das circunstâncias supra enumeradas e factualidade dada como provada, entendemos que a conduta do Arguido deverá ser sancionada, pelo crime de violação agravado em causa, com uma pena de 7 anos e 6 meses de prisão.
*
Uma vez determinada a pena para cada um dos crimes cometidos pelo Arguido, há que proceder, nos termos do disposto no art. 77.º, do Código Penal, à determinação da pena única, levando em conta os factos e a personalidade do agente, no seu conjunto.
No cúmulo jurídico a efectuar há que atender as seguintes regras:
(1) Na medida da pena devem ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (cfr. art. 77º, n.º 1, parte final, do Código Penal);
(2) A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (não podendo ultrapassar os 25 anos) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (cfr. n.º 2 do art. 77º do Código Penal);
(3) Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos n.ºs 2 e 3, do art. 77.º, do Código Penal (cfr. art. 77.º, n.º 3, do Código Penal).
Assim, tendo em conta tais considerandos, sendo:
- o limite máximo da pena unitária a aplicar o que resulta da soma das penas concretamente aplicadas (in casu, respectivamente de 3 anos e 8 meses de prisão e de 7 anos e 6 meses de prisão), temos que o limite máximo da pena unitária nos presentes autos é de 11 anos e 2 meses de prisão;
- o limite mínimo a mais elevada das penas parcelares, temos que o limite mínimo da pena unitária nos presentes autos é de 7 anos e 6 meses de prisão.
Conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/03/2004, proc. 03P4431, “na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente. Mas tendo na devida consideração as exigências de prevenção geral e, especialmente na pena do concurso, os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente.
No presente caso em apreço em termos da gravidade da ilicitude global constata-se que os crimes que integram o concurso são crimes relacionados entre si, essencialmente de natureza pessoal e sobre a vítima sua companheira, embora, como vimos, constituindo várias actuações autónomas do arguido, e que, olhando aos seus antecedentes criminais, serão claros indicadores de uma personalidade que se voltou para a prática de crimes relacionados com as pessoas, personalidade que, actualmente, sem indicadores de mudança, não revela poder sofrer uma inversão no sentido da aceitação progressiva das regras de comportamento social e afastamento futuro da criminalidade, tanto mais que não demonstrou arrependimento.
Haverá, ainda, que considerar os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente em termos de não prejudicar em definitivo as possibilidades de reinserção futura de indivíduo que actualmente conta com 55 anos de idade.
Pelos fundamentos expostos, dentro da moldura aplicável (de 7 anos e 6 meses de prisão a 11 anos e 2 meses de prisão), entendemos adequada a pena única de 9 anos de prisão. »
Cumpre apreciar e decidir.
- O crime de violência doméstica praticado pelo arguido é, abstractamente, punível com pena de prisão de dois a cinco anos (nos termos do disposto no art. 152º, nº 1, al. a), do CP), a qual, por força da sua reincidência, sofre o efeito de agravamento de um terço no limite mínimo, desde que a agravação não exceda a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores (nos termos do disposto no art. 76º, nº 1, do CP).
Pelo que, no caso em apreço, a pena aplicável, abstractamente, a este crime passou a ser de 2 anos e 8 meses até 5 anos de prisão.
- O crime de violação agravado praticado pelo arguido é, abstractamente, punível com pena de prisão de quatro a treze anos (nos termos do disposto no art. 177º, nº 1, al. b), do CP com o inerente o agravamento de um terço relativamente a ambos os limites previstos no art. 164º, nº 2, al. a), do CP), a qual, por força da sua reincidência, sofre o efeito de agravamento de um terço no limite mínimo, desde que a agravação não exceda a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores (nos termos do disposto no art. 76º, nº 1, do CP).
Pelo que, no caso em apreço, a pena aplicável, abstractamente, a este crime passou a ser de 5 anos e 4 meses até 13 anos e 4 meses de prisão.
Por isso, sendo todas estas, unicamente, penas de prisão não tem cabimento a invocação feita, pelo arguido/recorrente, para o art. 70º do CP (segundo o qual “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”).
Importa sim atentar aos demais e seguintes preceitos:
Sob o título «As consequências jurídicas do facto», o art. 40º do CP consigna que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1) e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (nº 2).
Com o título «Determinação da medida da pena», o art. 71º do CP consiga o seguinte:
“1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
Desta forma, o legislador penal pretendeu legitimar a finalidade das penas em consonância com o princípio constitucional consagrado no art. 18º, nº 2, da CRP (segundo o qual só podem ser restringidos, por lei, direitos, liberdades e garantias na medida do estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos).
E colhendo quer os ensinamentos doutrinais de Figueiredo Dias, quer os ensinamentos jurisprudenciais do STJ (em “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 78-85 e em “Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime”, Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, págs. 84-121, o acórdão do STJ de 16-01-2008, no processo n.º 4565/07 e o acórdão do STJ de 25/5/2016, no processo nº 101/14.8GBALD.C1.S1, ambos em dgsi.pt):
As penas como instrumentos de prevenção geral são instrumentos político-criminais destinados a actuar (psiquicamente) sobre a globalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através das ameaças penais estatuídas pela lei, da realidade da aplicação judicial das penas e da efectividade da sua execução. Então surgindo a prevenção geral positiva ou de integração: Como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal; e como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantabilidade da ordem jurídica, pese todas as suas violações que tenham tido lugar.
Sendo este o ponto de partida como a finalidade primária da pena: o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal do arguido.
E estando o ponto de chegada nas exigências de prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização e da prevenção negativa.
Mas, tudo isto, sempre sem olvidar o princípio da culpa inerente ao nosso Estado de Direito Democrático: em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa). Significando isto que a concepção retributiva da pena não pode nunca atentar contra o princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana do arguido e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena e, assim se obtendo uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.
Assim, o princípio da culpa no nosso sistema penal serve com incondicional proibição de excesso, como limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – quer sejam de prevenção geral positiva de integração e/ou de prevenção geral negativa de intimidação, quer sejam de prevenção especial positiva de socialização e/ou de prevenção especial negativa de segurança ou de neutralização.
Deste modo e perante cada caso concreto, a pena deve ser encontrada pelo Juiz dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e negativa (que são, respectivamente, o limite máximo e o limite mínimo desta “moldura” de pena -  pois a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores) e ponderando as circunstâncias do caso concreto, bem como o nível e preemência das necessidades especiais que se lhe apresentem de prevenção especial positiva e negativa (que são, respectivamente, a re-socialização do arguido e a prevenção da sua reincidência – tais as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento, os seus antecedentes criminais), ao mesmo tempo que também estas lhe transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente (sem ultrapassar a medida da culpa concreta), o juiz fixará o quantum da pena.
Agora, importa subsumir a todos estes critérios legais a factualidade apurada no caso concreto.
- Quanto ao crime de violência doméstica (conforme tão bem refere o acórdão recorrido):
 são preementes as necessidades de prevenção geral perante o aumento, mesmo alarmante, deste tipo de criminalidade quer na ilha dos Açores quer por todo o país, com as nefastas consequências inerentes ao enorme alarme social. Aliás, as cifras “negras” relativas ao crime de violência doméstica também são elevadas, escapando muitas situações à punição penal em virtude da dependência a que as vítimas são sujeitas e não raras vezes até redundam em homicídios;
militam a favor do arguido a sua baixa escolaridade e a sua inserção profissional e familiar;
militam contra o arguido: a ilicitude dessa sua actuação criminosa relativamente à sua companheira, durante cerca de 2 meses de vivência em comum com um grave escalar de comportamentos que vão desde as injúrias, ofensas físicas, ameaças, violência psicológica até à privação da liberdade; o dolo directo; a negação e falta de consciencialização das suas condutas, invertendo o papel agressor/vítima; as consequências lesivas da sua actuação relativamente à ofendida; os antecedentes criminais do arguido por 25 crimes, um deles também de violência doméstica.
Ora, tendo em conta todos estes factores concretos e os já referidos limites abstractos de 2 anos e 8 meses até 5 anos de prisão, afigura-se-nos perfeitamente ajustada a pena parcelar fixada pelo Tribunal colectivo recorrido em 3 anos e 8 meses de prisão.
- Quanto ao crime de violação agravado (conforme tão bem refere o acórdão recorrido):
são preementes as necessidades de prevenção geral perante o aumento deste tipo de criminalidade quer na ilha dos Açores quer por todo o país, com as nefastas consequências inerentes ao alarme social;
militam a favor do arguido a sua baixa escolaridade e a sua inserção profissional e familiar;
militam contra o arguido: o dolo directo ao constranger a vítima à prática de cópula completa contra vontade desta; a negação e falta de consciencialização da sua conduta, invertendo o papel agressor/vítima; e os antecedentes criminais do arguido por 25 crimes, 24 deles de natureza sexual.
Não tendo este Tribunal de recurso considerado, nesta ponderação, como factor desfavorável ao arguido o facto de ter violado a própria companheira, isto porque esta circunstância já valera cima como factor constitutivo do tipo agravado de violação, com inerente agravação em um terço na respectiva moldura abstracta (nos termos conjugados dos arts. 164º, nº 2, al. a), e 177º, nº 1, al. b), do CP).
Pois, como sabemos, o nº 2 daquele art. 71º do CP (através dos dizeres “..não fazendo parte do tipo de crime..”) consagra o princípio da proibição da dupla valoração aquando desta tarefa de determinação da medida da pena respectiva.
 Ora, tendo em conta todos aqueles factores concretos e os já referidos limites abstractos de 5 anos e 4 meses até 13 anos e 4 meses de prisão, afigura-se-nos como mais ajustado fixar a correspondente pena parcelar em 6 anos e 4 meses de prisão.
Resta-nos fixar a pena única correspondente ao concurso (efectivo e heterogénero) destes crimes praticados pelo arguido.
A este propósito e com o título «Regras da punição do concurso» impõe o art. 77º do CP (na parte com interesse para o presente caso):
“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
Não tendo o legislador optado (no apuramento da pena no concurso de crimes) pelo sistema de acumulação material, é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta/única se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas, também e especialmente, pelo respectivo conjunto (não como mero somatório de factos criminosos), mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente – cfr. a título exemplificativo Cristina Líbano Monteiro em “A pena «unitária» no concurso de crimes (em RPCC, ano 16-2006,págs.151-169) e o acórdão do STJ de 21/11/2012 (no processo 86/08.0GBOVR.P1.S1, em dgsi.pt).
No caso em apreço, o conjunto dos apurados factos ocorridos ao longo de cerca de 2 meses, após a sua liberdade condicional e a personalidade revelada pelo arguido, não denotam mudança nem qualquer desvalor relativamente à sua inclinação para a prática de crimes quanto às pessoas e em especial com subjugação da vítima, embora se deva tentar, mais uma vez, uma inversão desta sua trajectória com a reinserção futura deste arguido com 55 anos de idade.
Ora, tendo em conta esses concretos factores e os limites concretos do caso em apreço, cuja moldura tem como limite mínimo 6 anos e 4 meses de prisão e como máximo 10 anos de prisão, afigura-se-nos ajustada a aplicação ao arguido da pena única de 8 anos de prisão.   
III - DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguidoAA, nos termos sobreditos:
Com redução para seis anos e quatro meses da pena parcelar correspondente ao crime de violação agravado;
Com redução da pena única para oito anos de prisão;
Confirmando o douto acórdão recorrido em tudo o mais.
*
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UCs (arts. 513º, nºs 1 e 3, e 514º, nº 1, ambos do CPP e art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa).
Notifique.
D.n.

Lisboa, 24 de Novembro de 2022 
Paula de Sousa Novais Penha
Carlos da Cunha Coutinho
Raquel Correia de Lima