EMBARGOS DE EXECUTADO
DECISÃO SOBRE A MATERIA DE FACTO
USO DE PRESUNÇÕES JUDICIAIS
OBRIGAÇÃO EXEQUENDA LIQUIDADA EM PRESTAÇÕES
PRESCRIÇÃO
PRAZO
Sumário

I - É na apreciação e fixação da matéria de facto que cumpre fazer apelo às presunções judiciais, pelo que, tendo-se concluído, na matéria de facto, pela falta de prova da existência de qualquer acordo de pagamento entre a mutuante e os mutuários, não pode depois, na subsunção jurídica dos factos, concluir-se que tal acordo existiu;

II - Resulta do art.º 781 do C.C. que, sendo a obrigação liquidada em prestações, o credor fica com o direito de exigir a realização, não apenas da prestação a que o devedor faltou, mas de todas as prestações restantes cujo prazo ainda não se tenha vencido, o que não significa que o devedor entre de imediato em mora e que se prescinda, para o efeito, da sua interpelação;

III - De acordo com o AUJ nº 6/2022, de 30.6.2022, publicado no DR nº 184, 1ª série, de 22.9.2022, no caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310, al. e), do C.C., em relação ao vencimento de cada prestação e, ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do art.º 781 do mesmo Código, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo a quo na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I- Relatório:
A, B e C, vieram, em 23.4.2021, deduzir embargos à execução para pagamento de quantia certa que, em 21.8.2020, contra si foi movida por D, e a que foi atribuído o valor de €64.146,25.
Alegam, no essencial, que não havia incumprimento quando foi instaurada a execução, estando então em vigor acordo, primeiro no âmbito de processo de insolvência, e depois no âmbito da reestruturação extrajudicial da dívida, celebrado entre os executados e a Caixa Geral de Depósitos, S.A., para reembolso do mútuo entre eles contratado, sendo que a cessionária do crédito, aqui exequente, não aceitou o referido acordo. Dizem, ainda, que não lhes foi devidamente comunicada a cessão do crédito, nem foram interpelados para pagar a totalidade da dívida que não é a indicada, e que os juros estão prescritos até 5 anos antes da apresentação do requerimento executivo. Pedem a extinção da execução.
Admitidos os embargos, contestou a exequente, impugnando a factualidade alegada e pedindo a improcedência da oposição, com o prosseguimento da execução.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que conferiu a validade formal da instância, identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi, em 11.4.2022, proferida sentença, nos seguintes termos: “(...) Julgo os embargos à execução procedentes por provados e, em consequência, declaro que:
- o valor do capital em dívida emergente do empréstimo em causa é de 36.790,80 euros;
- os juros de mora vencidos até ao dia 26 de Agosto de 2015 estão prescritos e os juros de mora em dívida são os vencidos entre 27 de Agosto de 2015 e Novembro de 2015;
- a mutuária CGD, S.A. e os mutuantes embargantes celebraram acordo (tácito) de pagamento daquele valor do capital em dívida e juros vencidos (entre 27 de Agosto de 2015 e Novembro de 2015), em prestações mensais de 190 euros, em Novembro de 2015, oponível à embargada;
- tal acordo foi, ilegitimamente, recusado pela embargada, está em curso e a obrigação exequenda é inexigível;
- a acção executiva é extinta.
Condeno a embargada no pagamento das custas da instância, por vencida - art.º 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.(…).”
Inconformada, recorreu a embargada/exequente, culminando as alegações por si apresentadas com as seguintes conclusões que se transcrevem:
 “
1- O Tribunal a quo julgou procedentes os embargos com consequente absolvição dos executados da instância executiva;
2- Fundamenta a decisão por entender que os juros de mora vencidos até ao dia 26 de agosto de 2015 estão prescritos e os juros de mora em dívida são os vencidos entre 27 de agosto de 2015 e novembro de 2015;
3- Entendeu também que, a mutuária CGD, S.A. e os mutuantes embargantes celebraram acordo (tácito) de pagamento daquele valor do capital em dívida e juros vencidos, em prestações mensais de €190,00;
4- Acordo este que entendeu ter sido recusado pela ora Recorrente, estando ainda em curso, e, por isso, decidiu pela inexigibilidade da obrigação exequenda;
5- O Tribunal a quo julgou procedente, para todos os efeitos, a Oposição à Execução por Embargos de Executado com fundamento na inexistência da obrigação exequenda, concluindo assim pela extinção da ação executiva;
6- O Contrato de mútuo foi celebrado no dia 04 de agosto de 1998, entre a CGD, S.A., na qualidade de mutuante, e A e B, na qualidade de mutuários, e C, na qualidade de fiadora, pela qual a primeira emprestou aos segundos o montante de 13.600.000$00 (€67.838,51);
7- Tendo os mutuários deixado de pagar as prestações de reembolso convencionadas no contrato, em 04-10-2011;
8- Nos termos do disposto nos artigos 577.º e ss do C.C. a CGD, S.A. cedeu os seus créditos à ora Recorrente, tendo, por isso, nos termos do disposto do artigo 583.º do C.C. remetido aos executados uma carta com a informação de que tinha sido celebrado o contrato de cessão de créditos;
9- Ainda que, não tivessem sido notificados da cessão de créditos, foram judicialmente notificados da mesma por via da citação para a presente ação executiva;
10- Em virtude do incumprimento do contrato, as demais prestações se venceram na sua totalidade, de acordo com o artigo 781º do C.C, onde consta o seguinte: “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”;
11- A qualificação jurídica de tais prestações, enquadra-se no conceito de “quotas de amortização do capital” para capital e juros, sujeitos aos prazos de prescrição de 20 anos para o capital, conforme o disposto no artigo 309.º do C.C;
12- Os juros de mora vencidos até ao dia 26 de agosto de 2015, aquando da propositura da primeira ação executiva, não prescreveram;
13- No âmbito do processo de insolvência n.º 4118/11.6TBALM-B, que correu termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal de Almada e depois no Tribunal do Barreiro, Instância Central, no Juiz 3 da 2.º Secção do Comércio, foi aprovado e homologado um plano de pagamentos;
14- No entanto, o referido acordo de pagamentos não foi cumprido;
15- Os pagamentos dos valores mensais de €150,00 e de € 90,00 terão ocorrido desde junho de 2015 a maio de 2020 a título voluntário, não tendo sido suficiente para liquidar a totalidade da dívida, mas nunca a título de acordo de pagamentos;
16- A Recorrente não concorda com o disposto na sentença do Tribunal a quo, quando é referido que “(...) ficaram provadas três realidades que nos levam a concluir ter havido um acordo tácito de pagamento em prestações (...)”;
17- Não houve nenhum acordo expresso de pagamento da dívida do mútuo em prestações mensais inicialmente de €150,00 e posteriormente de €190,00. Não podemos também entender que estamos perante uma declaração tácita da celebração do alegado acordo de pagamento;
18- Não existe acordo tácito na nossa ordem jurídica. O acordo homologado em 2012, não foi cumprido pelos executados, visto que aqueles pagamentos realizados mensalmente foram feitos a título voluntário, a qual a CGD, S.A. aceitou;
19- Estes valores pagos a título voluntários no valor inicialmente de €150,00 e depois no valor de €190,00, não são decorrentes de um acordo de pagamentos, visto que o único que existiu foi logo incumprido pelos executados, nem muito menos podemos dizer que estamos perante um acordo tácito, até porque tal figura jurídica não existe;
20- Nem podemos justificar a existência de acordo entre as partes pelo facto da ação executiva proposta em 2015 ter sido deserta;
21- Visto que, a deserção da execução foi decidida ou por falta de indicação de bens à penhora ou até por simples inércia por parte do Agente de Execução responsável pelo prosseguimento daquele processo;
22- Atente o exposto no artigo 281.º, n.º 1 do C.P.C., onde refere que “(...) considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”;
23- Até porque se tivessem apresentado algum plano de pagamentos no decorrer dessa ação executiva, a execução tinha sido julgada extinta por inutilidade superveniente da lide nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e) do C.P.C;
24- Como sabemos, a 12 de maio de 2020 operou-se a cessão de créditos à ora Recorrente, tendo, por isso, sido cumprido o disposto no artigo 587.º do C.C., designadamente pela sua existência e exigibilidade de crédito ao tempo da cessão;
25- Sendo que a cessão de créditos apenas foi formalizada com o pressuposto de esses créditos cedidos estarem vencidos, senão nunca tinha sido possível proceder à própria cessão, visto que esta já pressupõe o incumprimento dos contratos e vencimento dos créditos cedidos, evidenciando assim a exigibilidade dos mesmos;
26- Na medida em que foi celebrado entre a CGD, S.A. e a ora Recorrente o contrato de cessão de créditos, esses mesmos créditos tinham que estar vencidos, pressupondo que houve realmente incumprimentos de contratos celebrados com a cedente, concluindo pela exigibilidade desses créditos.”
Pede a procedência do recurso e a revogação da sentença recorrida.
Não se mostram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II- Fundamentos de Facto:
A decisão da 1ª instância fixou como provada a seguinte factualidade:
1) No dia 04 de Agosto de 1998, a CGD, S.A., na qualidade de mutuante, A e B, na qualidade de mutuários, e C, na qualidade de fiadora, outorgaram escritura de “Compra, Venda, Empréstimo e Fiança”, pela qual a primeira emprestou aos segundos o montante de 13.600.000$00 (67.838,51 euros), os segundos confessaram-se devedores de tal quantia e a terceira declarou responsabilizar-se como fiadora e principal pagadora, cf. escritura e documento complementar juntos ao requerimento executivo, cujos teores se dão por reproduzidos.
2) A partir de 04 de Outubro de 2011, as prestações de reembolso do empréstimo deixaram de ser pagas.
3) Em 2011, foi proposto processo de insolvência dos embargantes A e B.
4) Em 2012, em incidente apenso ao processo de insolvência, foi homologado plano de pagamentos, integrando o crédito da CGD.S.A., que, após, veio a ser incumprido.
5) No dia 13 de Março de 2015, a CGD, S.A. instaurou acção executiva para pagamento da quantia de 49.451,07 euros contra A, B e C com fundamento em incumprimento do empréstimo referido em 1.
6) A acção executiva foi declarada deserta, por falta de impulso processual da exequente, por despacho de 05 de Abril de 2016, notificado às partes.
7) Entre Novembro de 2015 e Junho de 2020, os embargantes A e B pagaram, todos os meses, 190 euros à CGD, S.A., que os afectou ao pagamento do capital e juros do empréstimo referido em 1., emitindo documentos comprovativos dos pagamentos e extractos, designadamente os juntos à petição sob os números 7 e 8, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
8) No dia 04 de Maio de 2020, CGD, S.A. considerou que o capital em dívida emergente do empréstimo referido em 1. era de 36.790,80 euros.
9) Em 12 de Maio de 2020, a CGD, S.A e a embargada outorgaram escritura pública de cessão de créditos e garantias, abrangendo o crédito e a hipoteca resultantes da escritura referida em 1.
10) Em data não apurada, a embargada enviou cartas aos embargantes a dar-lhe conhecimento da cessão do crédito pela CGD, S.A..
11) Em 01 de Julho de 2020, a CGD recusou o depósito do valor mensal de 190 euros, alegando que o crédito tinha sido cedido a outra entidade.
12) Após, A e sua filha VM dirigiram-se à embargada que lhes comunicou não aceitar o pagamento em prestações e que teriam de proceder ao pagamento da totalidade do capital mutuado, acrescido de juros vencidos e vincendos.
13) O embargante trabalha e teve, em 2019, rendimento anual ilíquido de 18.026,15 euros e líquido de 13.922,15 euros; a embargante não trabalha; o agregado familiar de ambos é ainda composto de dois filhos, um deles menor.
Deu-se ainda como não provado:
A CGD, S.A. ou a embargada resolveu o empréstimo e interpelou os embargantes para pagarem a totalidade da dívida.
Em Junho de 2015, no âmbito da acção executiva, as partes chegaram a um acordo de pagamentos, tendo sido fixada, a título transitório, a prestação mensal de 150,00 euros e retomado o débito na conta de depósitos à ordem.
Em Novembro de 2015, a CGD propôs a A e a B, a fixação, a título definitivo, a prestação mensal de 190,00 euros, que estes aceitaram.
*
III- Fundamentos de Direito:
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com as conclusões acima transcritas em causa está apreciar:
- Da inexistência do acordo celebrado entre a mutuária CGD e os embargantes, do incumprimento do contrato de mútuo e do vencimento antecipado das prestações ao abrigo do art. 781 do C.C.;
- Da não prescrição dos juros de mora vencidos até ao dia 26.8.2015.
A) Da inexistência do acordo celebrado entre a mutuária CGD e os embargantes, do incumprimento do contrato de mútuo e do vencimento antecipado das prestações ao abrigo do art.º 781 do C.C.:
Na sentença, discorreu-se sobre o acordo de pagamento celebrado entre a mutuária CGD e os embargantes do seguinte modo: “(…) Os embargantes alegaram ter celebrado com a mutuária CGD, em Novembro de 2015, um acordo expresso de pagamento da dívida do mútuo em prestações mensais de 190 euros.
Não provaram o acordo expresso - ver factos não provados.
Mas ficaram provadas três realidades que nos levam a concluir ter havido um acordo tácito de pagamento em prestações:
- primeira: ficou provado que, entre Novembro de 2015 a Junho de 2020, os embargantes pagaram à CGD, todos os meses, 190 euros, por conta da divida do mútuo — facto provado 7.;
- segunda: ficou provado que a CGD tinha proposto acção executiva para pagamento da totalidade do capital em divida em Março de 2015, que deixou de impulsionar por prazo, pelo menos, de seis meses, levando à extinção da instância por deserção em Abril de 2016 e de cujo despacho os embargantes foram notificados — factos provados 5. e 6.;
- terceiro: ficou provado que, em face dos pagamentos mensais de 190 euros, a CGD emitiu os comprovativos e os extractos que foram juntos com a petição — facto provado 5.
Quer dizer: se a CGD exige judicialmente (acção executiva), em Março de 2015, o pagamento da totalidade do capital em dívida, mas, em Novembro de 2015, passa a aceitar dos embargantes o pagamento extrajudicial mensal de 190 euros por conta da dívida, e, se deixa de impulsionar o andamento daquela acção executiva, que vem a ser declarada extinta, por deserção, por despacho de Abril de 2016 notificado às partes, a que acresce o pagamento e aceitação daquele valor mensal de 190 euros até Junho de 2020, portanto, durante mais de cinco anos, na sequência do que emite comprovativos do pagamento e extractos que continuam a referir-se a “prestações”, então impõe-se concluir que os embargantes pretenderam pagar a dívida em prestações de 190 euros e que a mutuária CGD aceitou (tacitamente) essa proposta - art.º 217.º, n.º 1, do CC.
Em face do exposto, firmado entre as partes do contrato do mútuo, mutuante CGD e mutuários embargantes, um acordo de pagamento da dívida em prestações, dele resultou para a primeira, a obrigação de receber tais prestações até ao pagamento total da dívida e, para os segundos, a obrigação de a pagarem através de prestações, com vencimento mensal, de 190 euros - art.º 406.º, n.º 1, do CC.
Os mutuários cumpriram essa obrigação de pagamento até Junho de 2020.
A mutuante incumpriu essa obrigação de aceitação em Julho de 2020, quando recusou o pagamento - facto provado 11.
Porque o acordo de pagamento acompanhou a cessão do crédito, podendo ser oposto à embargada - art.º 585º do CC - também esta incumpriu aquela obrigação quando, após Julho de 2020, recusou o pagamento - facto provado 12.
(…).”
A apelante/embargada defende, neste tocante e em síntese, que não houve qualquer acordo entre a mutuária CGD e os embargantes de pagamento da dívida do mútuo em prestações mensais de €190,00, e que os pagamentos dos valores mensais de €150,00 e de €190,00, ocorridos desde Junho de 2015 a Maio de 2020, foram realizados a título voluntário que a CGD aceitou. Mais argumenta que não pode retirar-se da extinção, por deserção, da anterior execução interposta em 2015, que tenha existido um tal acordo.
Cremos que a resposta à questão resulta da própria matéria de facto que foi elencada na sentença e que não foi impugnada.
Com efeito, resultou apurado que entre Novembro de 2015 e Junho de 2020, os embargantes A e B pagaram, todos os meses, €190,00 à CGD que os afetou ao pagamento do capital e juros do empréstimo celebrado (ponto 7) supra).
Por sua vez, deu-se como não provado que, em Junho de 2015, no âmbito da ação executiva, as partes chegaram a um acordo de pagamento, tendo sido fixada, a título transitório, a prestação mensal de €150,00 e retomado o débito na conta de depósitos à ordem, e também não provado que, em Novembro de 2015, a CGD propôs a A e a B , a fixação, a título definitivo, a prestação mensal de 190,00 euros, que estes aceitaram.
Ou seja, deu-se como provado que, entre Novembro de 2015 e Junho de 2020, os embargantes pagaram todos os meses à CGD a referida quantia de €190,00 que aquela afetou ao pagamento do capital e juros do empréstimo, mas deu-se como não provado que tenha havido qualquer acordo de pagamento nesse sentido, que tenha ficado acordado entre as partes que o reembolso do empréstimo seria realizado através do pagamento mensal de €150,00 ou de €190,00.
Diga-se que não entendemos, s.d.r., a distinção avançada na motivação de direito da sentença recorrida de que não se provou o acordo expresso, mas provou-se o acordo tácito. Ainda que se admita que o dito acordo expresso quereria significar um acordo escrito (que não se teria provado), a verdade é que a matéria de facto elencada não suporta aquela interpretação.
O que importa à decisão dos embargos é saber se houve algum acordo, entre a mutuante e os mutuários, sobre um novo modo de pagamento do empréstimo contratado a justificar os pagamentos realizados, entre Novembro de 2015 e Junho de 2020, no valor de €190,00. E a existência de um tal acordo – fosse ele qual fosse e a forma de que se revestisse – teria de constar, inevitável e diretamente, da matéria de facto.
De resto, averiguar se esse acordo teria sido formal ou informal, escrito ou verbal, não teria a menor relevância, nada tendo alegado os embargantes a tal respeito.
Por conseguinte, não resultando afirmada na matéria de facto provada a existência do acordo alegado – negado, por sua vez, na factualidade não provada – não pode depois, na aplicação do direito aos factos, extrair-se conclusão contrária com o argumento de que tal decorre, afinal, de outros factos apurados.
Com efeito, nas presunções judiciais, parte-se da prova de um facto conhecido (base da presunção) para um facto desconhecido (art.º 349 do C.C.).
As denominadas presunções judiciais (simples ou de experiência), distintas das presunções legais (estabelecidas na lei), “inspiram-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana”([1])([2]).
Assim, as presunções judiciais correspondem a processos mentais que permitem ao tribunal afirmar a verificação de certo facto controvertido “suprimindo lacunas de conhecimento ou de informação que não possam ser preenchidas por outros meios de prova ou servindo ainda para valorar os meios de prova produzidos.(…).”([3]).
Por outras palavras, ainda: “(…) A presunção pode definir-se como um raciocínio em virtude do qual, partindo de um facto que está provado (facto-base/facto indiciário), chega-se à consequência da existência de outro facto (facto presumido), que é o pressuposto fáctico de uma norma, atendendo ao nexo lógico existente entre os dois factos.(…).”([4])
É, por conseguinte, na apreciação e fixação da matéria de facto que devemos fazer apelo às presunções judiciais, especialmente nos casos em que se torna mais difícil o apuramento dos factos por prova direta. Ou seja, é na formação da convicção e a propósito da livre apreciação da prova, consagrada no nº 5 do art.º 607 do C.P.C., que opera a presunção judicial([5]).
Assim, e voltando ao caso, tendo-se concluído, na matéria de facto, pela falta de prova do acordo de pagamento alegado, não poderá depois, na subsunção jurídica dos factos, concluir-se ao invés, como na sentença recorrida, que esse encontro de vontades afinal ocorreu, afirmando-se “que os embargantes pretenderam pagar a dívida em prestações de 190 euros e que a mutuária CGD aceitou (tacitamente) essa proposta - art.º 217.º, n.º 1, do CC.”
Pelo que, não se apurando, em face da factualidade acima descrita, a existência de um acordo de pagamento entre a mutuante e os mutuários como fora defendido na oposição, não é possível também sustentar que a CGD, e depois a cessionária/exequente, incumpriram qualquer obrigação ao recusar o pagamento de €190,00 (ver pontos 11 e 12 supra), conforme se entendeu em 1ª instância.
E, assim sendo, também não pode defender-se que a embargada incorreu em mora, que a obrigação não se venceu e que é inexigível, até porque, como se referiu na sentença, não tendo ficado provada a interpelação prévia, nada obsta à aplicação do disposto no art.º 781 do C.C. a partir da citação.
Cumpre relembrar que existe uma distinção entre exigibilidade da obrigação e vencimento automático da mesma.
O art.º 781 do C.C. preconiza que o vencimento de todas as prestações por falta de pagamento de uma delas respeita à sua imediata exigibilidade.
Como defende Antunes Varela([6]), do aludido normativo resulta que o credor fica com o direito de exigir a realização, não apenas da prestação a que o devedor faltou, mas de todas as prestações restantes cujo prazo ainda não se tenha vencido, o que não significa que o devedor comece desde logo a responder pelos danos moratórios, já que o vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não vencera constitui um benefício que a lei concede (não impõe) ao credor, não prescindindo consequentemente da interpelação do devedor.
Deste modo, não se mostrando comprovado que tenha sido dirigida aos mutuários qualquer declaração a considerar vencidas as mencionadas prestações – deu-se, aliás, como não provado que a CGD ou a embargada tivessem resolvido o empréstimo e interpelado os embargantes para pagarem a totalidade da dívida – não pode concluir-se que o seu vencimento tenha operado automaticamente, desencadeando desde logo a mora dos devedores.
Donde, e aqui se concordando com a sentença recorrida, a mora dos embargantes apenas se poderia considerar aqui iniciada com a citação para a execução instaurada em 13.3.2015 e referida no ponto 5) supra dos factos assentes, que valerá como interpelação (art.º 805, nº 1, do C.C.).
B) Da não prescrição dos juros de mora vencidos até ao dia 26.8.2015:
Na sentença entendeu-se, sobre os juros devidos, o seguinte: “(…) À data de 04 de Maio de 2020, o valor do capital em dívida era de 36.790,80 euros - facto provado 8 - pelo que à data de 26 de Agosto de 2020, quando foi proposta a acção executiva, não podia ser o peticionado e indicado de 42.711,30 euros.
O valor do capital em dívida é, pois, de 36.790,80 euros.
Passemos à prescrição.
Vêm peticionados juros de mora desde o dia 04 de Outubro de 2011, data do incumprimento do contrato.
Os juros de mora prescrevem no prazo de cinco anos - art.º 310º, al. d), do CC. Na primeira acção executiva, proposta no dia 13 de Março de 2015, onde vinham já exigidos os juros de mora, o prazo de cinco anos (últimos) interrompeu-se com a citação no dia 19 de Março de 2015 - art.º 323º, n.º 1 e 2, do CC - e, porque a instância foi declarada deserta, reiniciou-se no dia 20 de Março de 2015 - art.º 327º, n.º 2, do CC.
Na segunda acção executiva, proposta no dia 20 de Agosto de 2020, o prazo de prescrição interrompeu-se com a citação no dia 26 de Agosto de 2020 - art. 323.º, n.º 1 e 2, do CC.
Pelo que, os juros de mora vencidos até ao dia 26 de Agosto de 2015 prescreveram.
Em suma: o valor da quantia exequenda é de 36.790,80 euros; os juros de mora vencidos até 26 de Agosto de 2015 prescreveram.
(…).”
Defende a apelante no recurso que estando em causa “quotas de amortização do capital” para capital e juros, estão estes sujeitos ao prazo de prescrição de 20 anos para o capital, nos termos do art.º 309 do C.C., e não ao prazo de 5 anos previsto no art.º 310 do C.C.. Pelo que os juros de mora vencidos até ao dia 26.8.2015 não prescreveram.
Não lhe assiste razão, à luz da mais recente jurisprudência sobre a matéria – sem prejuízo do que acima acabámos de dizer sobre o início da mora dos embargantes a considerar.
Na verdade, sendo a questão controvertida durante largo período de tempo, o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, AUJ nº 6/2022, de 30.6.2022, publicado no DR nº 184, 1ª série, de 22.9.2022, veio uniformizar a jurisprudência nos seguintes termos: “I – No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação.
II – Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo ‘a quo’ na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.”
Diferentemente do que sucedia com os anteriores Assentos, através dos quais os tribunais fixavam doutrina com força obrigatória geral (de acordo com o art.º 2 do C.C. que veio a ser revogado pelo art.º 4 do DL nº 329-A/95, de 12.12), os acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não são vinculativos para quaisquer tribunais.
No entanto, como nos explica Abrantes Geraldes([7]), a lei atribui-lhes um especial relevo, “conferindo-lhe implicitamente força persuasiva”, o que resulta, entre outros, dos art.ºs 629, nº 2, c), 672, nº 1, c), 686 e 688, nº 3, todos do C.P.C. de 2013. Explica-nos ainda o autor citado([8]) que “o respeito pela qualidade e pelo valor intrínseco da jurisprudência uniformizada do STJ conduzirá a que só razões muito ponderosas poderão justificar desvios de interpretação das normas jurídicas em causa (v.g. violação de determinados princípios que firam a consciência jurídica ou manifesta desatualização da jurisprudência face à evolução da sociedade)”, pelo que “para contrariar a doutrina uniformizada pelo Supremo devem valer razões fortes ou outras especiais circunstâncias que porventura ainda não tenham sido suficientemente ponderadas.(…).”
Ora, a lei não foi alterada após a prolação do indicado AUJ nº 6/2022 nem se verificam, na situação em apreço, especiais circunstâncias que não tenham já antes sido ponderadas.
Assim sendo, é de seguir, pelos motivos referidos, a orientação consagrada no referido AUJ nº 6/2022, não se detetando razões para desvalorizar a mencionada componente vinculativa da jurisprudência citada, o que nos dispensa de considerações acrescidas a favor da tese que fez vencimento.
O que significa que o prazo de prescrição a ter em conta é o de 5 anos previsto no art.º 310, al. e), do C.C..
Daqui se extrai que, não contrariando a apelante quando ocorreram as interrupções da prescrição indicadas na sentença recorrida e seguindo a linha de raciocínio que aí foi seguida, tendo a “citação ficta” na presente execução (instaurada em 21.8.2020) ocorrido em 26.8.2020, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 do art.º 323 do C.C.([9]), forçoso será concluir que se encontram prescritos os juros vencidos até 26.8.2015 (ou seja, mais de cinco anos antes por referência à data da referida citação), nos termos da al. e) do art.º 310 do C.C..
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Resulta, em síntese, de quanto se deixa dito que, não se provando qualquer acordo de pagamento celebrado entre os embargantes e a mutuante CGD ou a cessionária do crédito, e operando a citação como interpelação válida, será exigível o capital em dívida emergente do empréstimo em apreço no valor de €36.790,80 (tal como foi considerado em 4.5.2020 – ver ponto 8) supra), encontrando-se, entretanto, prescritos os juros vencidos até 26.8.2015, o que justifica a procedência apenas parcial dos embargos deduzidos.
Note-se que era aos embargantes que cabia a prova do pagamento da dívida exequenda ou de que a mesma estava a ser paga nos moldes devidamente acordados com a CGD ou com a cessionária exequente, nos termos do art.º 342, nº 2, do C.C..
Na verdade, é ao devedor que incumbe provar o cumprimento das obrigações, não sendo o credor que tem de provar a respetiva inexecução([10]).
Procede, pois, em parte o recurso.
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IV- Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em, considerando parcialmente procedente a apelação, revogar a sentença recorrida e julgar apenas parcialmente procedentes os embargos, determinando o prosseguimento da execução somente quanto ao valor de capital de €36.790,80 com juros acrescidos a partir de 27.8.2015.
Custas pela exequente e pelos executados, na proporção do vencimento.
Notifique.
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Lisboa 22.11.2022
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho                             
Edgar Taborda Lopes
                                                                                  
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[1] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 312.
[2] Já as presunções legais importam a inversão do ónus da prova (cfr. art.ºs 350 e 344 do C.C.), sendo designadas por presunções juris tantum as que podem ser ilididas por prova em contrário e por presunções juris et de jure as que não admitem prova do contrário.
[3] A. Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, II vol., págs. 220/221.
[4] Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova Por Presunção no Direito Civil”, 2017, 3ª ed., pág. 32.
[5] Ainda Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 31.
[6] In “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 7ª ed., págs. 53 e 54.
[7] “Recursos em Processo Civil”, 2020, 6ª ed., págs. 522 e ss..
[8] “Recursos em Processo Civil”, pág. 524.
[9] Será esta a data relevante para interromper a prescrição, posto que a citação dos executados na ação principal veio a ocorrer, de facto, posteriormente.
[10] Cfr. Galvão Teles, “Direito das Obrigações”, 6ª ed., pág. 326 e ss..