ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONTRATO DE SEGURO
EXCLUSÃO DA COBERTURA DANOS PRÓPRIOS
ABANDONO DO LOCAL DO ACIDENTE
CHAMAMENTO DA AUTORIDADE POLICIAL
Sumário

A exclusão da cobertura do seguro facultativo de danos próprios quando o condutor do veículo, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade, só ocorre se a autoridade policial já tiver sido chamada no momento do abandono e o condutor tenha conhecimento desse facto.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. A intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra Seguradoras Unidas, SA pedindo que a R. seja condenada a pagar ao A. “os danos patrimoniais referentes aos danos próprios do automóvel com a matrícula ..-BC-.., propriedade do A., no valor total de 4.650,00€, mais juros a partir da citação”, bem como “os danos patrimoniais resultantes da paralisação do veículo automóvel ..-BC-.., propriedade da A., no valor de 2.910,00€ (30,00€ x 97 dias), mais juros a partir da citação” e ainda “o valor de 30,00€/dia desde a presente data até que este pleito esteja resolvido”.
Para tanto, alega que no dia 20 de Junho de 2020, pelas 2h00m, o veículo comercial da sua propriedade, com a matrícula ..-BC-.., de marca Peugeot, era conduzido por RO na Rua 1º de Maio, na Granja, esteve envolvido em acidente de viação, tendo ficado paralisado. Mais alega que reportou tal acidente à R., a qual declinou a sua responsabilidade.
2. Contestando, a R. alegou que o acidente em causa foi caracterizado de fuga pelas autoridades policiais, tendo ainda impugnado a factualidade alegada.
3. Convidado para se pronunciar, reiterou o A. os termos da petição inicial.
4. Foi proferido despacho saneador dispensando-se a fixação do objecto do litígio e de temas de prova.
5. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença julgando a acção improcedente.
6. Inconformado, o A. recorre desta sentença, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“1ª – O A. intentou a presente PI contra a R., tendo alegado o acima transcrito, para o qual se remete V. Exas.
2ª – A R. contestou dizendo que não assumia o acidente, tendo excecionado.
3ª – O A. respondeu às exceções da forma acima transcrita, para o qual se remete V. Exas.
4ª – Foi realizado o julgamento de acordo com as normas legais.
5ª – A M. Juiz “a quo” proferiu sentença, tendo decidido que:
“Pelo exposto, e em conformidade com as disposições legais supra citadas, decido julgar a presente ação totalmente improcedente e, em consequência absolver a R. do peticionado.”
6ª – O recorrente não pode aceitar esta decisão, porque, não estamos em face de fuga do condutor, pois o mesmo não fugiu, ele teve o acidente, telefonou ao patrão, informou que o veículo estava em segurança fora da estrada, em terreno privado, não impedia a circulação nem causava dificuldades de trânsito, tendo a M. Juiz “a quo” a este respeito proferido o seguinte aresto: “Ora, provou-se que após o acidente passou e parou no local um trabalhador do MARL que ofereceu boleia ao condutor do BC e, após este telefonar ao A. e este ter-lhe dito para se ir embora, dado que o veículo encontrava-se fora da estrada, o mencionado condutor foi-se embora do local.”
7ª – A leitura deste facto dado como provado não pode ser interpretado que o condutor fugiu do local do acidente, antes pelo contrário, ser interpretado que houve o acidente, que o carro ficou fora da estrada, livre de perigo, não impedia a circulação, tendo o BC ficado em terreno privado para ficar entre as 02 da manhã e as 08h/09h do mesmo dia para ser rebocado, como foi.
8ª – Devido a essa preocupação por parte do condutor e do dono do veículo, aqui A., a M Juiz devia ter feito a interpretação dos factos e a sua subsunção ao direito previsto no artigo 9.º do CC, que manda ler nas entrelinhas para uma melhor aplicação da lei.
9ª – Dado que o condutor e o recorrente salvaguardaram a segurança dos utentes da estrada, preocuparam-se em deixar o veículo em sítio seguro, sem impedir a circulação rodoviária, deveria a M. Juiz “a quo” ter considerado que não se verifica aqui a exclusão da cláusula 5ª, nem a exclusão da cláusula 40ª das condições gerais da apólice e ter condenado a R. no pedido formulado na PI, incluindo veículo de substituição, porque não houve fuga do condutor do veículo BC.
10ª – Não o tendo feito, foram violadas as normas dos artigos 483.º, 562.º e 563.º do CC e cometido a nulidade a que se refere o artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.
11ª – Ao decidir como decidiu, em face do exposto a M. Juiz “a quo” violou por errada aplicação e interpretação as cláusulas 5ª e 40ª da apólice, os artigos 9.º, 483.º, 562.º e 563.º do CC e o cometeu a nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.
Devendo pois a presente sentença ser revogada e substituída por outra que condene a R. no pedido formulado pelo A. na PI.”.
7. Em sede de contra-alegações, a R. defendeu a improcedência do recurso.
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II. QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos art.ºs 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, são:
- da nulidade da sentença;
- da verificação da causa de exclusão do contrato de seguro celebrado.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso decidiu os factos do seguinte modo:
“Encontra-se assente e provada a seguinte factualidade com relevância para a decisão da causa:
1. Pela ap. nº ….. de 30.5.2016 encontra-se inscrita a favor do A. a propriedade do veículo ligeiro de passageiros, marca Peugeot, com a matrícula ...-BC-...
2. No dia 20 de Junho de 2020, cerca das 2h00m, o veículo anteriormente referido era conduzido na Rua 1º de Maio, Granja, em Vialonga, por RO, empregado do restaurante do A. no MARL, o qual tinha saído do emprego e havia acabado de levar dois colegas a casa, quando o mesmo resvalou numa valeta aí existente, despistou-se, capotou e foi parar a um terreno junto à PRIO.
3. Após o acidente anteriormente referido passou e parou no local um trabalhador do MARL que ofereceu boleia ao condutor do BC e, após este telefonar ao A. e este ter-lhe dito para se ir embora, dado que o veículo encontrava-se fora da estrada, o mencionado condutor foi-se embora do local.
4. Momentos depois a polícia recebeu uma denúncia anónima, tendo-se deslocado ao local, por volta das 3h00m, e tomado conta da ocorrência, verificando que se encontravam dentro do BC os seus documentos e a chave do veículo.
5. No mesmo dia, já de manhã, a polícia contatou o A. e entregou-lhe os documentos e chave do BC, tendo o mesmo se deslocado ao local e tratado do reboque desse veículo.
6. Na data referida em 2) o condutor do BC tinha habilitação legal para conduzir e não foi sujeito a teste de alcoolemia por não se encontrar no local do acidente quando a polícia aí chegou, apenas se tendo deslocado ao posto de manhã e aí prestado declarações.
7. Na data referida em 2) o A. havia transferido para a R. a responsabilidade civil pela circulação do veículo BC, mediante contrato de seguro celebrado com a mesma titulado pela apólice nº ……., a qual incluía danos próprios por choque, colisão e capotamento, com o capital seguro de €4.650,00, correspondente ao valor do veículo BC, e uma franquia de €250,00.
8. No contrato anteriormente referido foi ainda incluída, no âmbito da assistência em viagem VIP e Multi Assistência VIP Plus, a cobertura de veículo de substituição, de entre o mais em caso de acidente, pelo máximo de 30 dias e de duas ocorrências por ano, entendido aquele como sinistro devido a causa externa, fortuita imprevista e independente da pessoa segura que nela produzisse lesões, bem como o acontecimento súbito e inesperado, não intencional, que provocasse a imobilização imediata do veículo seguro, que resultasse exclusivamente da circulação rodoviária e que não constituísse avaria, nos termos da cláusula 1ª das condições especiais do contrato, na parte atinente à “Multi Assistência VIP PLUS” e “Assistência em Viagem VIP”.
9. Nos termos da cláusula 39ª, designada de “Coberturas facultativas”, nº 1, als. b) e k) das condições gerais do contrato referido em 7), este poderia garantir, nos termos estabelecidos nas condições especiais e relativamente às que expressamente constassem das condições particulares, o pagamento das indemnizações devidas por choque, colisão e capotamento e por automóvel de substituição.
10. Nos termos da cláusula 40ª das condições gerais do contrato referido em 7), designada de “Exclusões”, “1. Para além das exclusões previstas na cláusula 5.ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: (…) c) Sinistros resultantes de demência do condutor do veículo ou quando este conduza em contravenção à legislação aplicável à condução sob o efeito de álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos, ou ainda quando este se recuse a submeter-se aos testes de alcoolemia ou de deteção de estupefacientes, bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade; (…).
11. Nos termos da cláusula 46ª das condições gerais do contrato referido em 7), designada de “Franquias”, “1. As franquias aplicáveis em relação a cada uma das coberturas serão as estipuladas nas Condições Particulares. 2. O valor da franquia será sempre deduzido no momento do pagamento da indemnização, ainda que o Segurador o realize diretamente à entidade reparadora ou a qualquer outra.”
12. No contrato referido em 7) não foi incluída nos danos próprios a cobertura de “Automóvel de Substituição”.
13. O A. participou à R. em 27.06.2020 o sinistro referido em 2), não tendo solicitado à mesma um veículo de substituição.
14. Nessa sequência, em 08.07.2020 foi efetuada uma peritagem condicional ao BC, sem desmontagem, por determinação da R., na sequência do que a respetiva reparação foi orçada em €12.239,48.
15. A R. efetuou licitação on-line do salvado do BC, tendo a melhor oferta sido apresentada pela A2B Visual, pelo valor de € 337,00.
16. A R. enviou uma carta ao A. em 14.07.2020 onde invocou que a estimativa de reparação do BC referida em 14) era excessivamente onerosa face ao valor seguro de €4.650,00 e que, considerando a franquia contratual de €250,00 e o valor do salvado de €337,00, colocava condicionalmente à disposição do A. a quantia de €4.063,00.
17. Por carta de 17.07.2020 a R. comunicou ao A. que não assumia a responsabilidade do sinistro referido em 2) em virtude do disposto na cláusula 40ª, número 1, al. c) das condições gerais do contrato referido em 7).
18. O veículo BC foi entregue pelo A. para abate em 23.12.2020.
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Não resultou provada a seguinte factualidade:
a) Nas circunstâncias referidas em 2) da factualidade provada esse trato da estrada estava muito mal iluminado e assinalado.”.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Face ao teor das alegações de recurso e às questões a decidir, importa iniciar a sua análise de forma lógica, o que se passa a efectuar.
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Suscita, antes de mais, o apelante a nulidade da sentença recorrida nos termos do art.º 615º, nº 1, al. d) do CPC.
Nos termos deste preceito, a sentença é nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Relaciona-se este preceito com o disposto no art.º 608º do CPC, segundo o qual a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais suscitadas pelas partes ou de conhecimento oficioso e que possam determinar a absolvição da instância, bem como resolver todas as questões de mérito que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se de outras, salvo as que forem de conhecimento oficioso.
Assim sendo, na fundamentação da sentença deve o juiz pronunciar-se sobre cada uma das pretensões trazidas a juízo, bem como sobre cada um dos fundamentos que lhes são opostos em sede de contestação, seja a título de excepção dilatória e que não tenha sido antes apreciada, seja a título de excepção peremptória.
Por outro lado, “… não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito”, cfr. Tomé Gomes, in Da Sentença Cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, ebook publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jan. 2014, pág. 370, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf.
Quer isto dizer que não há qualquer omissão de pronúncia quando as questões estruturantes da posição das partes sejam implícitas ou tacitamente decididas, já que a análise da argumentação das partes não se confunde com a apreciação das questões que devem ser conhecidas, esta sim essencial.
Nas palavras de Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143, “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
No caso dos autos, verifica-se que a sentença recorrida se pronuncia sobre todas as questões trazidas a juízo pelas partes, não sendo a discordância do apelante quanto ao fundamento jurídico da decisão enquadrável na omissão de pronúncia, mas sim uma questão de mérito.
Donde, nesta parte é a apelação improcedente.
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Insurge-se o apelante com a sentença recorrida, defendendo que a mesma deve ser revogada e substituída por outra que condene a R. no pedido, porquanto não houve qualquer fuga do condutor do veículo, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo.
Estruturou o A. a presente acção com base no contrato de seguro celebrado com a R., alegando ter transferido para a R. a responsabilidade civil pela circulação do veículo BC, o qual foi interveniente em acidente coberto pela respectiva apólice de seguro.
Contrato de seguro é o contrato pelo qual alguém transfere para outrem o risco da verificação de um dano, comprometendo-se o segurador a satisfazer as indemnizações ou a pagar o capital seguro em caso de ocorrência de sinistro, nos termos acordados, e ficando o segurado com a obrigação do pagamento de uma remuneração.
O seu regime jurídico está previsto no DL 72/2008, de 16 de Abril (LCS), que estabelece no seu art.º 1º que “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
Por outro lado, o contrato de seguro rege-se pelas estipulações da respectiva apólice não contrárias à lei e acordadas pelas partes, pelo regime do contrato de seguro, pela lei geral e subsidiariamente pelas disposições da lei comercial e civil, tal como resulta do art.º 4º da Lei do Contrato de Seguro (DL 72/2008, de 16 de Abril, doravante aqui designada por LCS) e do art.º 7º, nº 2 do CC.
No que ao caso diz respeito, dúvidas não restam que foi celebrado um contrato de seguro entre o A. e a R., já que está assente que, na data de ocorrência dos factos, o A. havia transferido para a R. a responsabilidade civil pela circulação do veículo BC, mediante contrato de seguro celebrado com a mesma titulado pela apólice nº ….., a qual incluía danos próprios por choque, colisão e capotamento, com o capital seguro de €4.650,00, correspondente ao valor do veículo BC, e uma franquia de €250,00 (cfr. facto nº 7).
Entendeu a sentença recorrida que “… há que ter em conta que nos termos da cláusula 40ª das condições gerais do contrato de seguro celebrado entre o A. e a R., designada de “Exclusões”, “1. Para além das exclusões previstas na cláusula 5.ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: (…) c) Sinistros resultantes de demência do condutor do veículo ou quando este conduza em contravenção à legislação aplicável à condução sob o efeito de álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos, ou ainda quando este se recuse a submeter-se aos testes de alcoolemia ou de deteção de estupefacientes, bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade; (…).” (o negrito é nosso) – cfr. ponto 10) da fatualidade provada.
Ora, provou-se que após o acidente passou e parou no local um trabalhador do MARL que ofereceu boleia ao condutor do BC e, após este telefonar ao A. e este ter-lhe dito para se ir embora, dado que o veículo encontrava-se fora da estrada, o mencionado condutor foi-se embora do local.
Momentos depois a polícia recebeu uma denúncia anónima, tendo-se deslocado ao local, por volta das 3h00m, e tomado conta da ocorrência, verificando que se encontravam dentro do BC os seus documentos e a chave do veículo.
No mesmo dia, já de manhã, a polícia contatou o A. e entregou-lhe os documentos e chave do BC, tendo o mesmo se deslocado ao local e tratado do reboque desse veículo.
Apurou-se ainda que o condutor do BC não foi sujeito a teste de alcoolemia por não se encontrar no local quando a polícia aí chegou, apenas se tendo deslocado ao posto de manhã e aí prestado declarações – cfr. pontos 3) a 6) da fatualidade provada.
Do exposto decorre que o condutor do BC abandonou voluntariamente o local do acidente antes da chegada da autoridade policial, o que, objetivamente, e independentemente dos motivos subjacentes a tal, consubstancia causa de exclusão da cobertura do contrato de seguro celebrado com a R. nos termos estipulados pelas partes no referido contrato ao abrigo da liberdade contratual.
Nessa medida, tal determina a exclusão da responsabilidade contratual da R. pelo pagamento ao A. da indemnização acima referida por danos próprios decorrentes de choque, colisão e capotamento do BC.”.
Para o apelante, o facto provado sob o nº 3 (“3. Após o acidente anteriormente referido passou e parou no local um trabalhador do MARL que ofereceu boleia ao condutor do BC e, após este telefonar ao A. e este ter-lhe dito para se ir embora, dado que o veículo encontrava-se fora da estrada, o mencionado condutor foi-se embora do local), “não pode ser interpretado que o condutor fugiu do local do acidente, antes pelo contrário, ser interpretado que houve o acidente, que o carro ficou fora da estrada, livre de perigo, não impedia a circulação, tendo o BC ficado em terreno privado para ficar entre as 02 da manhã e as 08h/09h do mesmo dia para ser rebocado, como foi” (Cls. 7ª).
Entende assim o apelante que “Dado que o condutor e o recorrente salvaguardaram a segurança dos utentes da estrada, preocuparam-se em deixar o veículo em sítio seguro, sem impedir a circulação rodoviária, deveria a M. Juiz “a quo” ter considerado que não se verifica aqui a exclusão da cláusula 5ª, nem a exclusão da cláusula 40ª das condições gerais da apólice e ter condenado a R. no pedido formulado na PI, incluindo veículo de substituição, porque não houve fuga do condutor do veículo BC” (Cls. 9ª).
Com particular importância para esta questão, está provado que “Nos termos da cláusula 40ª das condições gerais do contrato referido em 7), designada de “Exclusões”, “1. Para além das exclusões previstas na cláusula 5.ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: (…) c) Sinistros resultantes de demência do condutor do veículo ou quando este conduza em contravenção à legislação aplicável à condução sob o efeito de álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos, ou ainda quando este se recuse a submeter-se aos testes de alcoolemia ou de deteção de estupefacientes, bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade; (…).”” (facto nº 10).
Mais está assente que o veículo seguro na R. se despistou, capotando e indo parar a um terreno perto da Rua 1º de Maio, Granja, em Vialonga, após o que, o condutor desse veículo, aproveitando uma boleia e depois de obter o acordo do A., se ausentou o local (factos nºs 2 e 3).
Foi ainda dado como assente que a polícia se descolou ao local e tomou conta da ocorrência, verificando que se encontravam dentro do veículo os respectivos documentos e chave, apenas tendo contactado com o A. no dia seguinte (factos 4 e 5).
Da conjugação destes factos extrai-se que o condutor do veículo segurado na R. abandonou voluntariamente o local do acidente antes da chegada da autoridade policial, sendo certo que apenas se sabe que o veículo se encontrava fora da estrada, não sendo possível afirmar que o mesmo estava em sítio seguro, sem impedir a circulação rodoviária, como alegado pelo apelante.
Entende o apelante que este abandono do local não se assume como fuga, não sendo causa de exclusão da cobertura de seguro contratada.
Antes de mais, cumpre referir que não ficou provado que o veículo tenha ficado fora da estrada, livre de perigo, e sem impedir a circulação rodoviária.
Por outro lado, está assente que as partes acordaram determinadas cláusulas no âmbito do contrato de seguro, as quais não sofreram qualquer negociação, razão pela qual devem ser consideradas como cláusulas contratuais gerais, a ser interpretadas de acordo com o disposto no art.º 236º do CC e nos termos do DL 446/85, de 15 de Outubro.
No que se refere ao teor da cláusula 40ª invocada na sentença recorrida, suscita-se a questão de saber se essa exclusão apenas existe quando o condutor do veículo abandone o local, sabendo que as autoridades policiais foram chamadas ou se existe sempre, independentemente do conhecimento de tal realidade.
Tem sido entendimento maioritário da jurisprudência que a interpretação deste tipo de clausulado, seguindo as regras definidas através da teoria da impressão do destinatário, expressa nos art.ºs 236º a 239º do CC, deve ser no sentido de que a exclusão apenas terá lugar, restritivamente, se o sinistrado tiver tido conhecimento do chamamento das autoridades policiais ao local do sinistro, por sua iniciativa ou de terceiro, e, decida abandonar o local, evitando assim o contacto com as autoridades. Neste sentido, por todos, veja-se Ac. STJ de 24-05-2022, proc. 52/20.7T8TND.C1.S1, relator Luís Espírito Santo e jurisprudência aí citada.
Como se explica nesse aresto, “… não se compreende a solução de exonerar a seguradora da responsabilidade assumida por via contratual quando o condutor se desloque para fora do local do acidente sem que se prove que o mesmo o fez tendo a perfeita noção da iminente chegada das entidades policiais, convocadas por si ou por terceiro, e que o iriam seguramente submeter ao teste de alcoolemia, tal como legalmente previsto.
Apenas nestas exactas circunstâncias passará a existir verdadeiramente fundamento para a exclusão da cobertura do seguro, uma vez que só então se poderá admitir ou pressupor o seu propósito de procurar inviabilizar, pela sua ausência premeditada, a submissão à realização do dito teste de alcoolemia”.
E mais à frente explica, relativamente a cláusula de idêntico teor à que existe nestes autos que “reconhecendo alguma incontornável ambiguidade no teor da cláusula de exclusão em referência (onde se refere, como elemento essencial para a sua verificação, o chamamento ao local das entidades policiais, sem que se esclareça devidamente e com rigor a necessidade, ou não, do conhecimento deste facto pelo condutor envolvido), sempre esta natural dúvida interpretativa – aqui perfeitamente legítima – levaria à aplicação da regra prevista no artigo 11º, nº 2, do Decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro, optando-se pela leitura que se mostre mais favorável aos interesses do aderente/segurado”.
Retornando ao caso dos autos, importa referir que, da conjugação dos factos assentes, resulta que o despiste dos autos ocorreu às 02h00m; que após o acidente, o condutor do veículo, após contactar o A., saiu do local e que às 03h00, a policia estava no local verificando que se encontravam dentro do veículo os seus documentos e a respectiva chave.
Ora, se é certo que estamos perante um abandono voluntário do veículo, não está assente que o condutor tivesse conhecimento de que as autoridades policiais tivessem sido chamadas ao local e/ou que tivesse abandonado o local em virtude de tal facto.
Aliás, nada permite concluir nem no sentido do conhecimento, bem no sentido do desconhecimento pelo condutor do veículo do chamamento das autoridades policiais, já que nada foi alegado nesse sentido.
Recorde-se que incumbia à R. a prova desse conhecimento, nos termos do art.º 342º do CC, por estarmos perante um facto impeditivo do direito do segurado.
Face ao que se expôs e aos factos assentes, impõe-se concluir que não está preenchida a previsão da cláusula de exclusão do contrato de seguro referida em 10 dos factos provados.
Donde, o acidente descrito nos autos encontra-se coberto pelo contrato de seguro celebrado entre as partes, tal como defende o apelante, embora por motivos dos por si alegados, o que determina a procedência da apelação.
Pelo exposto, sendo a apelação procedente, impõe-se a revogação da sentença recorrida, nos termos pretendidos pelo apelante.
Aqui chegados, importa apurar a procedência do pedido deduzido.
A presente acção enquadra-se no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, a qual se estrutura com base em cinco pressupostos fundamentais: o facto voluntário do agente; a ilicitude; a imputação do facto ao lesante; o dano e o nexo causal entre o facto ilícito e o dano (cfr., neste sentido, Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, vol. I, 7ª edição, Coimbra, 1993, pág. 516).
Existindo estes requisitos, verifica-se uma situação de responsabilidade civil extracontratual, a qual investe o civilmente responsável numa obrigação de indemnizar, nos termos dos art.ºs 483º e ss. do CC.
A obrigação de indemnizar pressupõe a existência de danos, ou seja, que o facto ilícito em que se alicerça a responsabilidade civil tenha causado prejuízos a terceiros.
Face ao disposto no art.º 562º do CC, esta obrigação de indemnizar deve destinar-se à reconstituição da situação que existiria na esfera do lesado se não se tivesse verificado o evento que obriga a reparação (teoria da diferença). Isto é, a indemnização a atribuir ao lesado deverá ser calculada em função da diferença entre a situação real actual do lesado e a situação hipotética em que este se encontraria, se não fosse a lesão, sendo apenas indemnizáveis os danos que derivem daquela lesão.
Este dever de indemnizar abrange os prejuízos decorrentes do facto ilícito verificados na esfera jurídica do lesado (cfr. art.º 564º do CC), neles se incluindo danos patrimoniais e danos não patrimoniais, consoante sejam ou não susceptíveis de avaliação pecuniária. Nos primeiros, integram-se os danos emergentes, isto é, os prejuízos causados nos bens ou direitos que o lesado já detinha no momento da lesão; e os lucros cessantes, ou seja, aqueles benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, mas a que ainda não tinha direito no momento em que ocorreu o facto ilícito culposo.
Face ao disposto no art.º 562º do CC, esta obrigação de indemnizar deve destinar-se à reconstituição da situação que existiria na esfera do lesado se não se tivesse verificado o evento que obriga a reparação (teoria da diferença). Isto é, a indemnização a atribuir ao lesado deverá ser calculada em função da diferença entre a situação real actual do lesado e a situação hipotética em que este se encontraria, se não fosse a lesão, sendo apenas indemnizáveis os danos que derivem daquela lesão.
Por último, saliente-se que apenas há lugar a indemnização quando exista um nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano, ou seja quando os danos existentes sejam consequência directa e necessária do facto lesante.
Na verdade, nem todos os danos resultantes do facto ilícito serão da responsabilidade do agente, mas apenas aqueles que derivam do facto e tenham sido causados por ele. Ou seja, deve existir um nexo de causalidade entre a lesão e os danos ocorridos, aferido de acordo com o critério da causalidade adequada, subjacente ao art.º 563º do CC, e segundo o qual se devem apenas considerar aqueles danos que decorram do facto ilícito culposo praticado pelo agente, como consequência necessária do mesmo. Assim, este facto ilícito e culposo tem de ser não só a condição da lesão, como ainda afigurar-se como idóneo para a produção daquele resultado, segundo a normalidade da vida social.
Peticionou o A. a condenação da R. no pagamento de €4.650,00 referente ao valor do veículo BC, o qual ficou sem poder circular e ainda em €2.910,00, relativos aos danos patrimoniais resultantes da paralisação do veículo.
Analisemos separadamente estes dois pedidos.
No que se refere à condenação no pagamento do valor do veículo, está provado que o capital seguro era de €4.650,00 (facto nº 7) e que a reparação do veículo foi orçada em €12.239,48, tendo a R. recebido €337,00, a título de salvado (cfr. factos 14 e 15).
Entende a apelada que apenas teria de indemnizar o A. no montante de €4.063,00 face ao disposto no art.º 41º do DL 291/2007 de 21 de Agosto, sendo que está assente que a R. enviou uma carta ao A. em 14.07.2020 onde invocou que a estimativa de reparação do BC era excessivamente onerosa face ao valor seguro de €4.650,00 e que, considerando a franquia contratual de €250,00 e o valor do salvado de €337,00, colocava condicionalmente à disposição do A. a quantia de €4.063,00 (facto nº 16).
O art.º 41ºdo DL 291/2007 de 21 de Agosto, sob a epígrafe “perda total”, dispõe:
“1 - Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:
a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total;
b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança;
c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.
2 - O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.
3 - O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.
4 - Ao propor o pagamento de uma indemnização com base no conceito de perda total, a empresa de seguros está obrigada a prestar, cumulativamente, as seguintes informações ao lesado:
a) A identificação da entidade que efectuou a quantificação do valor estimado da reparação e a apreciação da sua exequibilidade;
b) O valor venal do veículo no momento anterior ao acidente;
c) A estimativa do valor do respectivo salvado e a identificação de quem se compromete a adquiri-lo com base nessa avaliação.
5 - Nos casos de perda total do veículo a matrícula é cancelada nos termos do artigo 119.º do Código da Estrada”.
Tal como já referido, a obrigação de indemnização visa, nos termos do art.º 562º do CC, a reconstituição da situação anterior, referindo o art.º 566º, nº 1 do CC que “A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”.
Quando seja fixada em dinheiro, a indemnização “tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” (art.º 566º, nº 2), sendo que “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, tal como resulta do nº 3 do art.º 566º.
Quando haja necessidade de se proceder à fixação de um valor indemnizatório por não ser possível a reconstituição natural, há que optar entre o valor venal (comercial) ou o valor de substituição (patrimonial) do bem, sendo que tem sido entendido pela Jurisprudência que se deve atender ao valor patrimonial, o qual salvaguarda, de forma mais eficaz, os interesses do lesado. Neste sentido, vide Ac. TRP, de 19-02-2015, relator Pedro Martins, processo 1306/13.4TBMCM.P1, no qual é efectuada uma análise detalhada da questão, a nível doutrinário e jurisprudencial.
Como aí se escreveu, “não há hoje qualquer dúvida de que o valor a considerar, para os vários efeitos que estão aqui em causa, deve ser o valor de substituição e não o valor venal do veículo. Ora, com isto já se está a acolher a ideia de que a indemnização deve reparar não o valor abstracto, objectivo, do dano, que é aquilo que resultaria de se tomar em conta o valor que o lesado conseguiria apenas com a venda do veículo, mas sim o valor concreto, subjectivo, do dano, tomando-se em conta, por isso, o valor que seria necessário ao lesado, para adquirir um veículo com as mesmas características do anterior, ou seja, que tivesse o mesmo valor no seu património, isto é, o valor de substituição, aquilo que ele teria de gastar para adquirir um veículo semelhante”.
O citado art.º 41º do DL 291/2007 entronca, precisamente, nesta ideia, referindo expressamente que o valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.
Donde, e para o que nos interessa, o valor a atender para fixar uma indemnização quando a reconstituição natural seja impossível ou excessivamente onerosa é o valor de substituição.
Se a impossibilidade de reconstituição natural não oferece quaisquer dúvidas, já não se pode dizer o mesmo quanto ao que seja a “excessiva onerosidade”.
Como se referiu já, o citado art.º 41º estabelece os critérios determinantes para se optar pela indemnização em dinheiro em vez da reparação, tendo as seguradoras de o respeitar na fase extrajudicial do litigio, por forma a que o lesado tenha acesso a todos os elementos.
Todavia, tem sido entendido que este regime, próprio de uma fase conciliatória e de resolução extrajudicial, não vincula os tribunais. Com efeito, os limites previstos no art.º 41º, nº 1, al. c) do DL 291/2007, de 21 de Agosto devem ser adoptados por aquelas empresas com vista à regularização dos sinistros, e com base no que habitualmente se designa de “proposta razoável”, sendo apenas elementos de referência, não vinculativos para os tribunais, na fase judicial. Neste sentido, vide Acs. do STJ de 25-03-2010, de 09-09-2010 e de 07-07-2009, citados no Ac. TRP de 19-02-2015, a que já se fez referência.
Como se expõe no Ac. TRP de 08-02-2018, relator Madeira Pinto, proc. 3385/15.0T8PNF.P1, “Em sede judicial vigora o primado da reparação in natura, competindo ao lesado demonstrar, entre o mais, os danos sofridos na sua viatura e o respectivo montante e à seguradora a prova da excessiva onerosidade, susceptível de afastar tal princípio, tendo em conta dois factores: o preço da reparação e o valor patrimonial do veículo, não o seu valor venal.
A jurisprudência unanimemente afasta o conceito de valor venal do veículo, que no tradicional entendimento das seguradoras, correspondia ao valor comercial do mesmo, considerando-se que este não é justo, posto que o dano sofrido consiste, essencialmente, na diminuição da faculdade de uso do veículo e não na perda do seu valor de troca. Também a doutrina critica esse conceito considerando que atender-se estritamente ao valor de mercado do bem, no sentido do seu valor de venda, seria converter a responsabilidade civil numa forma de expropriação privada, pelo preço de mercado”.
Consequentemente, para efeitos de atribuição de indemnização nos termos do art.º 566º do CC, terá de se apurar, casuisticamente, a verificação de uma excessiva onerosidade na reparação, balanceando o interesse do lesado e do responsável pela indemnização, isto é, o interesse na reparação do veículo e o custo que a mesma representa. Como se pode ler no Ac. TRG, de 09-02-2017, relator Maria de Fátima Almeida Andrade, “Só perante uma manifesta desproporção entre estes dois interesses se deve entender justificado o afastamento da obrigação da reconstituição natural/in casu a reparação total da viatura.
Assim e na ponderação do interesse do lesado deverão ser levados em consideração, para além do valor da reparação e de substituição do mesmo, fatores como o uso dado ao veículo em questão; a possibilidade de o lesado vir a adquirir veículo idêntico que satisfaça de igual modo as suas necessidades ou até o valor sentimental que o poderá ligar ao veículo [vide neste sentido Ac. TRP de 25/02/2013 Relator Carlos Querido, bem como o Ac. TRG de 21/05/2015 já supra citado in http://www.dgsi.pt e Ac. STJ de 05/07/2007, Relator Santos Bernardino in http://www.dgsi.pt/jstj].
Da parte do devedor sendo de ponderar nomeadamente a repercussão que a reparação natural representará para o seu património”.
No caso vertente, não está em causa determinar se o valor da indemnização deve ou não corresponder ao valor da reparação, já que não foi esse o pedido formulado.
Com efeito, o A. apenas peticiona o valor venal do veículo, não ponderando sequer o valor da reparação, o que terá de ser concedido.
Entende a apelada que a esse valor terá de ser deduzido o valor da franquia e o valor do salvado.
Ora, no que se refere ao valor do salvado, naturalmente que este valor apenas terá de ser deduzido se o salvado ficar na posse do seu proprietário.
Considerando que está assente que o veículo BC foi entregue pelo A. para abate em 23.12.2020 (facto nº 18), tem de se concluir que assiste razão à apelada, quando refere que deve ser deduzido o valor do salvado.
De igual modo, está provado que as partes estipularam uma franquia de €250,00 (cfr. facto nº 7), devendo esse valor ser igualmente deduzido.
Consequentemente, deve a apelada ser condenada no pagamento de €4.063,00, referentes ao valor do veículo, acrescidos de juros vencidos desde a citação à taxa de 4% e até integral pagamento, como peticionado.
No que se refere ao pedido de condenação no pagamento do valor relativo a veículo de substituição, importa salientar que o A. fundamenta a sua pretensão no direito a uma viatura de substituição desde a data do acidente (20.06.2020) até que o assunto fique regularizado e que lhe advém do contrato celebrado.
Entende a apelada que as partes não contrataram, a cobertura de veículo de substituição, não assistindo ao A. direito a essa indemnização.
Na verdade, dos factos assentes extrai-se que no contrato de seguros dos autos não foi incluída nos danos próprios a cobertura de “Automóvel de Substituição” (nº 12), não tendo o A. solicitado qualquer veículo de substituição (nº 13).
Mas, aquilo que o A. peticiona não é um veículo de substituição, mas sim a fixação de um valor indemnizatório que supra a falta ou privação que teve em virtude do sinistro, como se extrai do facto de ser peticionado um valor diário para esse efeito e formulado um pedido com base na paralisação do veículo (cfr. al. c) do petitório).
Será, pois, nessa perspectiva que se apreciará o pedido do A..
A problemática da indemnização por privação de uso de veículo foi sendo debatida na doutrina e na jurisprudência, entendendo-se que a privação constitui em si mesma um dano indemnizável.
Com efeito, a posição maioritariamente seguida é no sentido de que a simples privação do uso constitui um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem. Neste sentido, vide, por todos, António Santos Abrantes Geraldes, in Indemnização do Dano da Privação do Uso, 3ª edição e ampla Doutrina e Jurisprudência aí citados.
Refira-se que, para este autor, a indemnização a fixar em decorrência da privação do uso de determinado bem é independente dos termos de utilização do bem, não sendo necessário que se prove uma utilização diária, sem olvidar a necessidade de ponderação de cada caso concreto.
Face à exiguidade da factualidade assente, não se mostra possível determinar o montante exacto dos prejuízos, pelo que se impõe a fixação do montante indemnizatório devido com recurso a juízos de equidade.
Refira-se que estamos perante um dano patrimonial que não depende da prova do prejuízo efectivo, bastando a verificação da privação temporária do uso da coisa, e que, não podendo ser determinado com exactidão, apenas poderá ser indemnizado com recurso à equidade e em conformidade com o disposto no art.º 566º, nº 3, do CC.
Assim, face aos elementos disponíveis e que se traduzem no facto de o A. ter ficado privado do seu veículo desde a data do acidente, afigura-se adequado fixar o valor da indemnização a atribuir, com recurso à equidade e ao abrigo do disposto no art.º 566º, nº 3 do CC, em €500,00.
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Pelo exposto, face à procedência da apelação, impõe-se a revogação da sentença recorrida a qual é substituída por outra que condena a R. nas seguintes quantias:
- €4.063,00, a título de danos próprios do automóvel com a matrícula ..-BC-.., propriedade do A., acrescidos de juros vencidos à taxa de 4% desde a data da citação e até integral pagamento;
- €500,00, a título de indemnização pela paralisação do veículo automóvel ..-BC-.., propriedade da A., acrescidos de juros vencidos à taxa de 4% desde a data da citação e até integral pagamento.
As custas devidas em primeira instância e pela presente apelação ficam a cargo do A. e da R. na proporção do respectivo decaimento, cfr. art.º 527º do CPC.
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V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida a qual é substituída por outra que condena a R. nas seguintes quantias:
- €4.063,00, a título de danos próprios do automóvel com a matrícula ..-BC-.., propriedade do A., acrescidos de juros vencidos à taxa de 4% desde a data da citação e até integral pagamento;
- €500,00, a título de indemnização pela paralisação do veículo automóvel ..-BC-.., propriedade da A., acrescidos de juros vencidos à taxa de 4% desde a data da citação e até integral pagamento.
Custas da acção e da apelação por A. e R., na proporção do respectivo decaimento, cfr. art.º 527º do CPC.
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Lisboa, 22 de Novembro de 2022
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
Cristina Silva Maximiano