ANIMAL DE COMPANHIA
ABANDONO
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
LEGISLAÇÃO ESPECIAL
Sumário

I-As associações zoófilas podem constituir-se como assistente em processo penal que tem,  entre outros, por objeto o de abandono de animal doméstico na via pública, em virtude legislação especial ( Lei 92/95 de 12 de Setembro) que enquadra e permite tal constituição;
II-Nestes termos e no essencial, da Lei n.º 92/95, de 12/09 (lei especial – cfr. art.º 68.º, n.º 1, do CPP) infere-se , que é proibido abandonar animais domésticos na via pública, e que as associações zoófilas podem constituir-se como assistentes nos processos originados com as violações dos preceitos de tal lei, as quais actualmente também constituem crimes previstos e punidos no Código penal nos artigos 387º e 388º.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I
RELATÓRIO
1
No âmbito do processo de inquérito com o n.º 93/22.0PXLSB foi proferido pelo juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal o seguinte despacho:
Indefiro o pedido de constituição como assistente de NIRA - Núcleo de Intervenção e Resgate Animal, por falta de legitimidade da mesma para o efeito, uma vez que não é ofendida nos presentes autos, ou seja, não possui a titularidade dos interesses que a lei especialmente pretendeu proteger com a incriminação em causa - cfr. art. 68.°, n.° 1, ai. a), do Código de Processo Penal -, não estando em causa qualquer dos crimes a que se refere a al. e) daquele n.° 1, e que este não é processo a que se refere a Lei n.° 92/95, de 12 de Setembro.
Notifique.
*
Tal decisão incidiu sobre o requerimento de 28 de março de 2022, apresentado nos autos principais, através do qual a ora recorrente solicitou a sua admissão a intervir nos autos com o estatuto de assistente.
2
Não se conformando com a decisão, o NIRA – Núcleo de Intervenção e Resgate Animal interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1 - Por despacho datado de 19-04-2022, o Tribunal a quo indeferiu o requerimento de constituição de assistente da Recorrente alegando a sua falta de legitimidade.
2 - O Tribunal a quo não podia ter decido neste sentido, uma vez que viola os preceitos nos artigos 68.° do CPP e 10.° da Lei n.° 92/95, de 12 de Setembro.
3 - O animal recolhido tem direitos que se encontram plasmados na Lei 92/95, de 12 de Setembro.
4 - A investigação decorrente neste inquérito tem como intuito apurar os responsáveis pelo crime de abandono do animal de companhia, previsto e punido no artigo 388,° do Código Penal.
5 - O acto de abandono na via pública de um animal sujeito à protecção humana é uma conduta proibida ao abrigo do artigo 1.° n.° 3 alínea d) da Lei n.° 92/95, de 12 de Setembro. 5 - A Recorrente é uma associação zoófila que tem por objecto a proteção, defesa, promoção, divulgação e apoio ao resgate de animais, bem como o tratamento e encaminhamento para adopção dos mesmos.
6 - O Tribunal a quo viola assim as normas constantes nos artigos 68.° n.° 1 alínea a) e n.° 3 alínea a), 70.° n.° 3 todos do CPP, o artigo 10.° da Lei n.° 92/95 de 12 de Setembro.
7 - Como tal tem a Recorrente o direito de se constituir assistente nos presentes autos, estando isenta do pagamento da taxa de justiça nos termos da alínea f) do n.° 1 do artigo 4.° do Regulamento das Custas Processuais e do n.° 1 do artigo 10.° da Lei n.° 92/95 de 12 de Setembro.
Nestes termos, e nos que doutamente serão supridos por V/Exas, deverá ser dado provimento ao recurso, revogando-se o despacho que indeferiu o pedido de constituição de assistente e declarando-se válida a constituição de assistente da Recorrente.
3
O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela procedência do recurso, uma vez que se encontra já esclarecida a natureza e objeto da recorrente.
4
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, foi emitido parecer pelo Ministério Público, acolhendo a posição assumida na resposta ao recurso, explanando de modo mais aprofundado as razões de tal posição.
5
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
6
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.
II
FUNDAMENTAÇÃO
1
Objeto do recurso
As associações zoófilas podem constituir-se como assistente em processo penal que tem por objeto o abandono de animal doméstico na via pública?
2
Decisão recorrida
Indefiro o pedido de constituição como assistente de NIRA - Núcleo de Intervenção e Resgate Animal, por falta de legitimidade da mesma para o efeito, uma vez que não é ofendida nos presentes autos, ou seja, não possui a titularidade dos interesses que a lei especialmente pretendeu proteger com a incriminação em causa - cfr. art. 68.°, n.° 1, ai. a), do Código de Processo Penal -, não estando em causa qualquer dos crimes a que se refere a al. e) daquele n.° 1, e que este não é processo a que se refere a Lei n.° 92/95, de 12 de Setembro.
Notifique.
*
Consta da participação que deu início ao processo que:
À data e hora acima mencionadas, no decorrer das minhas funções profissionais, serve o presente auto de noticia para dar continuidade ao processo  explanado na participação com NPP 56536/2022, onde consta uma intervenção do Núcleo de Intervenção e Resgate Animal (IRA) (devidamente identificado em Iten Organização), no resgate de um canídeo que se encontrava acorrentado na via pública.
Mais informo que foi reencaminhado via eletrónica para esta Polícia, um Relatório Médico Veterinário, emitido pelo Médico Veterinário ……………, com a cédula profissional n°……., onde constam diversos fatores que evidenciam os maus tratos (magreza, pré-molar superior esquerdo coro raiz exposta, parasitose externa e interna severa) causados ao canídeo (devidamente identificado em Iram Próprio), conforme anexo que janto se apensa.
Importa referir que com base na participação com o NPP acima descrito, foram efetuadas novas diligências na tentativa de contactar com o proprietário do canídeo, ………….. (devidamente identificado em Item Proprietário), revelando-se infrutíferas até ao momento de elaboração deste Auto de Notícia.
Na manhã do presente dia, compareceu neste Departamento Policial o Sr. ………… (devidamente identificado em Item Suspeito), a reclamar a posse do animal, sendo portador do Documento de Identificação de Animal de Companhia em formato digital.
Mais informou não ser o detentor legal pio canídeo, no entanto, encontra-se à guarda do mesmo, com conhecimento e autorização do proprietário, afirmando que 'O animal se encontra bem de saúde e que estaria acorrentado na via pública por se encontrar a efetuar a higienização do canil onde o animal habitualmente permanece, com base no Aditamento elaborado na Participação com o NPP acima referido.
3
O direito.
Vejamos o que diz a lei sobre a constituição como assistente em processo penal:
Do assistente
Artigo 68.º
Assistente
1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;
d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de protecção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime;
e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.
2 - Tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, o requerimento tem lugar no prazo de 10 dias a contar da advertência referida no n.º 4 do artigo 246.º
3 - Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz:
a) Até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento;
b) Nos casos do artigo 284.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º, no prazo estabelecido para a prática dos respectivos actos.
c) No prazo para interposição de recurso da sentença.
4 - O juiz, depois de dar ao Ministério Público e ao arguido a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento, decide por despacho, que é logo notificado àqueles.
5 - Durante o inquérito, a constituição de assistente e os incidentes a ela respeitantes podem correr em separado, com junção dos elementos necessários à decisão.
Além disso, convém ter presente o que dispõe a Lei n.º 92/95, de 12/09:
Artigo 10.º
Direitos de participação procedimental e ação popular
1 - As associações zoófilas podem constituir-se assistentes em todos os processos originados ou relacionados com a violação da presente lei e ficam dispensadas de pagamento de custas e taxa de justiça, beneficiando do regime previsto na Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, com as necessárias adaptações.
2 - Às associações zoófilas pode ser atribuído o estatuto das organizações não-governamentais do ambiente, nos termos previstos na Lei n.º 35/98, de 18 de julho.
Resulta ainda da seguinte Lei que:
Princípios gerais
Artigo 1.º
Medidas gerais de protecção
1 - São proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal.
2 - Os animais doentes, feridos ou em perigo devem, na medida do possível, ser socorridos.
3 - São também proibidos os actos consistentes em:
a) Exigir a um animal, em casos que não sejam de emergência, esforços ou actuações que, em virtude da sua condição, ele seja obviamente incapaz de realizar ou que estejam obviamente para além das suas possibilidades;
b) Utilizar chicotes com nós, aguilhões com mais de 5 mm, ou outros instrumentos perfurantes, na condução de animais, com excepção dos usados na arte equestre e nas touradas autorizadas por lei;
c) Adquirir ou dispor de um animal enfraquecido, doente, gasto ou idoso, que tenha vivido num ambiente doméstico, numa instalação comercial ou industrial ou outra, sob protecção e cuidados humanos, para qualquer fim que não seja o do seu tratamento e recuperação ou, no caso disso, a administração de uma morte imediata e condigna;
d) Abandonar intencionalmente na via pública animais que tenham sido mantidos sob cuidado e protecção humanas, num ambiente doméstico ou numa instalação comercial ou industrial;
e) Utilizar animais para fins didácticos, de treino, filmagens, exibições, publicidade ou actividades semelhantes, na medida em que daí resultem para eles dor ou sofrimentos consideráveis, salvo experiência científica de comprovada necessidade;
f) Utilizar animais em treinos particularmente difíceis ou em experiências ou divertimentos consistentes em confrontar mortalmente animais uns contra os outros, salvo na prática da caça.
g) Utilizar pombos como alvo na prática desportiva do tiro ao voo, incluindo treinos e provas.
4 - As espécies de animais em perigo de extinção serão objecto de medidas de protecção, nomeadamente para preservação dos ecossistemas em que se enquadram.
Assim sendo, no essencial, resulta da Lei n.º 92/95, de 12/09 (lei especial – cfr. art.º 68.º, n.º 1, do CPP), que é proibido abandonar animais domésticos na via pública, e que as associações zoófilas podem constituir-se como assistentes nos processos originados com as violações dos preceitos de tal lei.
Ora, atento o teor da participação que originou os presentes autos, não restam dúvidas que se encontra suficientemente indiciada, pelo menos, a situação de abandono na via pública de animal doméstico, sendo ainda certo que tal animal revela evidentes sinais de tratamento negligente – na verdade, as afirmações posteriores de quem diz ter o animal à sua guarda carecem de investigação e confirmação, sendo, pelo menos, inusitado que alguém prenda a cadeado um cão na via pública para proceder à limpeza do canil onde o mesmo estaria alojado, e que tal animal seja visto e retirado do local sem que o higienizador do dito espaço e autointitulado depositário do animal se aperceba sequer disso.
A factualidade participada e indiciada integra, em princípio, o disposto na tipicidade objetiva das previsões legais dos artigos 387.º ou 388.º do Código Penal.
Quanto à natureza da recorrente, afirma o Ministério Público no seu parecer que:
“Uma outra questão a analisar, se o recorrente NIRA-Núcleo de Investigação e Resgate Animal, vulgarmente conhecida por IRA, é uma associação zoófila.
Como se pode ler no ebook do CEJ, Direito dos Animais, abril 2022, nota 27, pág. 50, “Não se mostra legalmente criado qualquer regime especial da associação “zoófila” ou mesmo qualquer definição legal conceptual do que deverá ser considerado como tal, o que cria sérias dificuldades de interpretação do aplicador do direito relativamente às normas que atribuem expressamente direitos a associações que possuam essa qualidade”.
Considerando que o NIRA é uma organização não governamental portuguesa, legalmente constituída, sem fins lucrativos, que tem por objeto ações de proteção, defesa, divulgação e apoio ao resgate animal, bem como o seu tratamento e encaminhamento para a adoção, não temos dúvidas que pode ser integrada no conceito de associação zoófila.
As suas ações na prossecução destes objetivos são aliás conhecidas. Tiveram ampla divulgação, na televisão e nas redes sociais, as suas intervenções no resgate de animais e posterior apoio no decurso dos recentes incêndios em Palmela e na Serra da Estrela.”
Porque concordamos inteiramente com o que acima se transcreveu a este respeito, consideramos, igualmente, que a recorrente é uma associação zoófila e que, portanto, se integra no conceito legal previsto na Lei n.º 92/95, de 12/09.
Em síntese, ao contrário do que diz a decisão recorrida, o objeto dos autos está abrangido na Lei n.º 92/95, de 12/09, designadamente no seu art.º 1.º, n.º 3, alínea d), devendo recordar-se que quando aquela lei iniciou a sua vigência não existiam os artigos 387.º a 389.º do Código Penal, que lhe foram aditados pela Lei n.º 69/2014, de 29/08, que criminalizou os maus tratos a animais de companhia, tendo a redação deste último preceito, sido ainda alterada pela Lei n.º 39/2020, de 18/08. Assim, só de um modo estritamente literal se pode afirmar que o processo criminal aqui em causa não versa sobre matérias abrangidas pela Lei n.º 92/95, de 12/09, ou que a participação procedimental prevista no art.º 10.º, n.º 1, da Lei n.º 92/95 se refere, atualmente, exclusivamente aos processos contraordenacionais .
Na verdade, a lei deve ser interpretada de modo atualista, tal como impõe o art.º 9.º, n.º 1, do Código Civil – “ e ao mesmo tempo que manda atender às circunstâncias (históricas) em que a lei foi elaborada, o preceito não deixa de expressamente considerar relevantes as condições específicas do tempo em que a norma é aplicada (nota vincadamente actaulista), tal como ensinam os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 4.º Edição, Vol. I, pag. 58.
Além disso, se é certo que no proémio do art.º 10.º da Lei n.º 92/95, de 12/09, se refere a participação procedimental, o que, em face de tal lei só prever responsabilidade a título de contraordenação, poderia, numa interpretação puramente literal, levar-nos a afirmar, como faz a decisão recorrida, que a constituição de assistente só poderia ter lugar em tais procedimentos, deve recordar-se que, logo no seu n.º 1, a norma se refere também “a  todos os processos originados ou relacionados com a violação da presente lei”, o que nos transportaria para o presente processo, que, por força das referidas normas aditadas ao Código Penal, está, indubitavelmente, relacionado com tal lei, como já se demonstrou, sendo ainda de relembrar que a intervenção como assistente num processo de contraordenação nunca seria, certamente, muito intenso, e que, nos termos do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, o processo de contraordenação pode seguir para impugnação judicial, e que esse processo contraordenacional pode até ser convertido em processo criminal por decisão do respetivo juiz, mantendo-se em qualquer dessas fases, naturalmente, o assistente que tenha sido autorizado a intervir na fase administrativa do procedimento contraordenacional – ora, assim sendo, não parece, mesmo no período de vigência exclusiva da dita Lei n.º 92/95, que a intervenção como assistente de uma associação zoófila num processo criminal fosse impossível, e, muito menos, deve sê-lo agora, num tempo em que a consciência coletiva se apercebeu de forma mais evidente da necessidade de proteger os animais, muitas vezes vítimas dos mais inaceitáveis desmandos, e em que as associações zoófilas desempenham um importante papel neste campo, quer no plano pedagógico, quer no plano da intervenção ativa para sanação dos danos criados pelos recalcitrantes praticantes daqueles desmandos.
Assim sendo, a decisão recorrida será revogada, admitindo-se a recorrente a intervir nos autos com o estatuto jurídico-processual de assistente.
*
DISPOSITIVO
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 9.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso, e, em conformidade, revogar a decisão recorrida, admitindo a recorrente NIRA – Núcleo de Intervenção e Resgate Animal a intervir nos autos com o estatuto jurídico-processual de assistente.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 24-11-2022,
António Bráulio Alves Martins
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
Maria Manuela Barroco Esteves Machado