IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
COMODATO
PRAZO
DETERMINAÇÃO DO USO DA COISA
Sumário


I- Facultar o uso da coisa até à morte do comodatário não consubstancia a convenção de um prazo certo; poderá considerar-se um prazo determinável, mas não um prazo certo.
II- Não preenche o pressuposto legal de determinação do uso da coisa afirmar-se que o comodatário pode servir-se da fração enquanto viver; só o preenche se a determinação do uso “… delimitar a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer”.
III- Não se deve aceitar que o comodante haja de permanecer vinculado contratualmente por período de tempo indeterminado que pode ser o da própria vida do comodatário.
IV- Emprestar a fração para a realização de uma consulta de medicina constitui comodato para uso determinado, mas não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo da referida fração para consultas médicas até morrer ou enquanto viver o comodatário.
IV- Uma vez que não foi convencionado prazo certo nem determinado o uso da coisa, existe o direito de exigir do comodatário a entrega da casa a todo o tempo.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

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I. Relatório (que se transcreve):

“Na presente acção declarativa comum, o autor deduz os seguintes pedidos:
1. Condenar a Ré a reconhecer que o autor tem direito a usufruir da fracção identificada no artigo 2º da petição inicial, nos termos constantes do contrato de comodato junto aos autos.
2. Condenar a Ré a restituir ao autor a posse plena da fracção acima identificada e constante do contrato de comodato, restabelecendo o fornecimento de energia eléctrica e de água à fracção em causa.
3. Condenar a Ré a abster-se de praticar quaisquer actos que perturbem a posse daquela fracção por parte do autor.
4. Condenar a Ré a pagar ao autor, a indemnização global de €: 4.000,00 (quatro mil euros) sendo €: 2.000,00 (dois mil euros) a título de danos patrimoniais e €: 2.000,00 (dois mil euros) a título de danos morais.
5. Condenar a Ré apagar ao autor as rendas vincendas após Agosto de 2020 no arrendamento que o autor teve que fazer do novo consultório, até efectiva restituição.
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A ré foi citada e contestou tendo deduzido pedido reconvencional com os seguintes pedidos:

1. Deverá ser a ré/reconvinte ser declarada legitima proprietária do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito no gaveto da Rua ... com o Largo ..., da cidade de Barcelos, inscrito na matriz Urbana da União de Freguesias de ..., ... e ... sob o artigo ..., que teve origem ... da extinta matriz urbana de Barcelos, descrito na competente conservatória do Registo Civil de Barcelos sob o n.º .../19860506 e registado a favor da aqui autora pela Ap. 2831 de 20/09/2016.
2. Nomeadamente ser declarada legitima proprietária da fração urbana designada pela letra “F” localizada no prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito no gaveto da Rua ... com o Largo ..., da cidade de Barcelos, inscrito na matriz Urbana da União de Freguesias de ..., ... e ... sob o artigo ..., que teve origem ... da extinta matriz urbana de Barcelos descrito na competente conservatória do Registo Civil de Barcelos sob o n.º .../19860506 e registado a favor da aqui autora pela Ap. 2831 de 20/09/2016.
3. Ser também declarada legitima proprietária da fração urbana designada pela letra “I” localizada no prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na gaveto da Rua ... com o Largo ..., da cidade de Barcelos, inscrito na matriz Urbana da União de Freguesias de ..., ... e ... sob o artigo ..., que teve origem ... da extinta matriz urbana de Barcelos, descrito na competente conservatória do Registo Civil de Barcelos sob o n.º .../19860506 e registado a favor da aqui autora pela Ap. 2831 de 20/09/2016.
4. Ser declarado que sobre as fracções supra indicadas inexiste qualquer contrato que possibilite o seu uso pelo aqui autor;
5. Ser, por via de tal, o autor condenado a restituição à ré/reconvinte da fração designada pela letra “F” localizada no prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito no gaveto da Rua ... com o Largo ..., da cidade de Barcelos, inscrito na matriz Urbana da União de Freguesias de ..., ... e ... sob o artigo ..., que teve origem ... da extinta matriz urbana de Barcelos, descrito na competente conservatória do Registo Civil de Barcelos sob o n.º .../19860506 e registado a favor da aqui autora pela Ap. 2831 de 20/09/2016, livre de pessoas e bens;
6. Ser o A. condenado a pagar a R. os consumos de agua e luz efectuados pela fração “f” desde fevereiro de 2013, no montante de sendo tal no montante de €2.400,00,acrescido dos meses de valor excecionalmente alto no montante € 1680,00.
7. Ser ainda condenado, nos termos do enriquecimento sem causa, pela utilização do imóvel, no montante de €3.000,00
8. Ser ainda condenado como litigante de má-fé.

Foi elaborado despacho saneador e a audiência foi realizada com rigoroso respeito pelas normas legais sobre a matéria.”
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Após a competente audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, o Tribunal decide julgar a presente acção totalmente improcedente e, em consequência absolve a ré de todos os pedidos contra si formulados pelo autor.

O tribunal julga o pedido reconvencional parcialmente procedente e, em consequência:
a) Reconhece o direito de propriedade da ré sobre o prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito no gaveto da Rua ... com o Largo ..., da cidade de Barcelos, inscrito na matriz Urbana da União de Freguesias de ..., ... e ... sob o artigo ..., que teve origem ... da extinta matriz urbana de Barcelos, descrito na competente conservatória do Registo Civil de Barcelos sob o n.º .../19860506 e registado a favor da aqui autora pela Ap. 2831 de 20/09/2016, nomeadamente das Fracções “F” E “I” ali localizadas.
b) Condena o autor a restituir à ré a fração designada pela letra “F” localizada no prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito no gaveto da Rua ... com o Largo ..., da cidade de Barcelos, inscrito na matriz Urbana da União de Freguesias de ..., ... e ... sob o artigo ..., que teve origem ... da extinta matriz urbana de Barcelos, descrito na competente conservatória do Registo Civil de Barcelos sob o n.º .../19860506 e registado a favor da aqui autora pela Ap. 2831 de 20/09/2016, livre de pessoas e bens.
c) Julga improcedentes os restantes pedidos formulados na reconvenção e deles absolve o autor.
d) Condena as partes no pagamento das custas processuais na respectiva proporção fixando-se esta em 70% a cargo do autor e 30% a cargo da ré.
Notifique e registe.”.
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É desta decisão que vem interposto recurso pelo A, o qual termina o seu recurso formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem):

A-O contrato de comodato tem prazo certo. Não há, salvo devido respeito, prazo mais que a morte. Pode não ser determinável, mas é determinado. De resto e, salvo melhor opinião, não existe disposição legal alguma que exija no contrato de comodato a existência de prazo.
B- Em se entendendo que o contrato não tem prazo, o comodatário tem a obrigação de restituir a fracção logo que aí deixe de exercer a medicina (nº1 do artigo 1137º do Código Civil.)
C- Assim, carece de fundamento a decisão de restituição da fracção pois existe título bastante do autor para ocupação da mesma.
D- A douta sentença recorrida fez uma incorreta apreciação da matéria de facto, vertida e provada no próprio texto da sentença, nomeadamente quanto ao arrendamento e ás rendas do novo consultório do autor, as quais devia ter considerado provadas.
E- A douta sentença recorrida deu como não provados factos que estão provados, e constam do texto da própria sentença(!), ignorou prova documental junta e desvalorizou outra, nomeadamente o contrato de arrendamento e os recibos de renda juntos aos autos.
F- A douta sentença julgou matéria que lhe não submetida a apreciação, nomeadamente a questão da inoponibilidade dos efeitos do contrato de comodato dos autos.
G- A douta sentença menosprezou a questão do desconforto e do dano moral e psicológico do autor, em face dos factos praticados pela Ré, manifestamente provados no depoimento das testemunhas transcritos no próprio texto da sentença.
H- No geral, a douta sentença faz uma interpretação restritiva e “à contrario” da vontade do comodante no acto do contrato de comodato.
I- No essencial a douta sentença limita-se a transcrever jurisprudência e faz uma areciação superficial e com muitas contradições sobe a questão concreta “sub judice”.
J-A fixação da percentagem da responsabilidade por custas é estranha, não fundamentada, matematicamente incorrecta e injusta.
L- Ao decidir da forma que o fez, a douta sentença violou, entre outras disposições legais:
- O artigo 1129º do Código Civil.
- O nº 1 do artigo 1137º do Código Civil:
- A alínea d) do nº1do artigo 615º do Código de Processo Civil.
- A alínea b) do nº1 do artigo 616º do Código de Processo Civil;

Deve, assim, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que julgue válido e eficaz o contrato de comodato, com as legais consequências, assim se fazendo
JUSTIÇA!”
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Foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido, após os vistos.
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II- FUNDAMENTAÇÃO

As questões a decidir no presente recurso, em função das conclusões recursivas e segundo a sua sequência lógica, são as seguintes:

A) – saber se é possível a apreciação da impugnação da matéria de facto;
B) saber se o tribunal aplicou a lei que ao caso cabia, nomeadamente importa saber se com o contrato de comodato em causa dispõe, ou não, o recorrente de título jurídico que justifique a sua ocupação da fração imóvel em causa.

III- Para a apreciação das questões elencadas, é importante atentar na matéria que resultou provada e não provada, que o tribunal recorrido descreveu nos termos seguintes:

“1. O direito de propriedade sobre o prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito no gaveto da Rua ... com o Largo ..., da cidade de Barcelos, inscrito na matriz urbana da União de freguesias de ..., ... e ... (…) sob o artigo ..., que teve origem no artigo ... da extinta matriz urbana de Barcelos encontra-se registado a favor da autora.
2. Aquele prédio foi adquirido por sucessão hereditária de seu pai, M. R., falecido em - de Fevereiro de 2015 e tem, entre as várias fracções, a fracção “I”, sita no -º andar, contígua à fracção “H”, com 10,90 metros quadrados, destinada a escritório de comércio ou profissões liberais, que se encontra inscrita a favor da requerida pela inscrição .../Barcelos, da Conservatória do Registo Predial de Barcelos.
3. No dia 01 de Outubro de 2013, entre o falecido M. R., como primeiro outorgante e A. B., como segundo outorgante, foi convencionado um acordo escrito intitulado contrato de comodato, com o seguinte teor: 1ª cl. “O 1º outorgante é proprietário da fração correspondente a “escritório de comércio ou profissões liberais” (…) 2ª claúsula: “pelo presente contrato o primeiro outorgante cede gratuitamente ao 2º outorgante a fração autónoma atrás identificada para que dela se sirva.
O prazo do presente contrato é para vigorar enquanto o 2º outorgante (Dr. A. B.) viver.”
4. Cerca de dois anos antes da celebração do acordo escrito referido anteriormente o autor usava o imóvel de forma graciosa e com autorização verbal do pai da ré.
5. Há mais de oito anos que o autor usa aquela fracção como consultório médico, no exercício da sua profissão, ali recebendo pacientes seus clientes, dando consultas e cobrando os respectivos honorários.
6. O que faz forma regular às terças e quintas-feiras e, pontualmente, os sábados, sempre que os doentes o solicitem.
7. Após a morte do seu pai, em meados do ano de 2019, a Ré estabeleceu contactos com o autor para se inteirar da situação daquela fracção.
8. No âmbito desses contactos, chegaram mesmo a colocar a hipótese, em face da morte do pai da Ré, de renegociar os termos de ocupação daquela fracção.
9. Não havendo chegado a acordo, a Ré enviou ao autor uma notificação judicial avulsa, em 22 de Janeiro de 2020 em que alegava a ocupação não autorizada e sem justificação daquela fracção e requeria a sua entrega de imediato. (Proc. 77/20.2T8BCL – Barcelos JL Cível - Juiz 1)
10. O autor não observou o pedido daquela notificação e continuou a usar o imóvel.
11. No dia 13 de Fevereiro de 2020 (quinta-feira), o autor entrou naquele consultório e constatou que não tinha luz eléctrica nem água.
12. Na terça-feira seguinte, dia 18 de Fevereiro, quando o autor se dirigia, como habitualmente para o seu consultório para atender doentes, deparou-se com uma grade em ferro, pregada às paredes, que impedia por completo e de forma “segura” o acesso à porta do consultório.
13. Dentro do consultório ficaram retidos processos de vários doentes do autor, relatórios e resultados de análises clínicas que são necessários aos doentes e ao autor, e aos quais este esteve impedido de aceder.
14. Naquelas circunstâncias de tempo e modo, o autor requereu o procedimento cautelar de restituição provisória de posse, que correu termos pelo Juiz 2 do Juízo Local Cível de Barcelos sob o número 583/20.9T8BCL, e que lhe foi deferido.
15. O imóvel foi restituído ao autor em 20 de Maio de 2020.
16. Desde o dia 13 de Fevereiro até ao dia 20 de Maio de 2020, esteve o autor impedido de receber naquela fração os seus doentes, aí os consultar, observar e tratar.
17. Desde o dia 13 de Fevereiro até final desse mês, o autor esteve impedido de dar consultas aos seus doentes, de os tratar e de receber os honorários respectivos no imóvel em causa nos autos.
18. Com o decesso do seu pai, M. R., no dia - de Fevereiro de 2015, a ré adquiriu por testamento, entre outras coisas, o prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito no gaveto da Rua ... com o Largo ..., da cidade de Barcelos, inscrito na matriz Urbana da União de Freguesias de ..., ... e ... sob o artigo ..., que teve origem ... da extinta matriz urbana de Barcelos.
19. Aquele mesmo prédio é composto várias fracções, num total de treze.
20. E encontra-se descrito na competente conservatória do Registo Civil de Barcelos sob o n.º .../19860506;
21. E registado a favor da aqui autora pela Ap. 2831 de 20/09/2016.
22. No início do ano de 2018 a ré é alertada pela pessoa que a auxilia na gestão das suas propriedades que os custos e as despesas referentes aos consumos daquele mesmo prédio eram elevados e que havia uma necessidade de rentabilizar o mesmo.
23. A ré apercebeu-se que, volvidos quase três anos, ou seja, no final do ano de 2017, o autor estava desde 2015 sem pagar as despesas de água e luz.
24. Assim que teve conhecimento daquela situação, entrou em contacto com o A., de forma a confrontá-lo com tal e obter explicação para o sucedido, explicando-lhe que nunca esperaria tal comportamento da sua parte.
25. Foram marcadas várias reuniões entre o autor e a ré para discutir a situação do imóvel, mas o autor nunca apareceu.
26. A sala onde o autor exercia o seu múnus está identificada pelo nº4, no segundo andar do edifício identificado no artigo 1 da petição inicial e nenhuma das restantes fracções em todo o prédio (com excepção do rés-do-chão) está identificada pela letra, mas por números de 1 a 4 em cada um dos andares.
27. Ou seja, o prédio tem treze fracções, uma no rés-chão e as restantes doze distribuídas por quatro em cada um dos três andares.
28. Por vontade do pai da Ré, sempre este suportou a despesas de água e luz consumidas pelo A. na sala em causa, aliás, antes ainda da data do contrato de comodato dos autos.
29. Foi na sequência de conversa com a Ré, após a morte do pai desta, que o Autor se prontificou a assinar um contrato de arrendamento, que minimizasse os “prejuízos” da Ré com aquele prédio.
30. Pese ter sido restituído provisoriamente na posse daquela fracção, o autor não mais conseguiu aí exercer a sua profissão, nomeadamente porque não foi ainda restabelecido o fornecimento de energia eléctrica e de água naquele espaço.
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Factos não provados:

1. Posse que de resto, nunca teve oposição de ninguém e vem sendo exercida pelo autor de forma pacífica, à vista e com conhecimento de toda a gente, de boa-fé e na convicção de quem exerce um direito próprio.
2. Com o esbulho cometido pela Ré, viu-se o autor obrigado a conseguir outro espaço para aí receber os seus doentes/clientes, o que apenas aconteceu no início de março de 2020.
3. O autor recebia em média quatro a cinco doentes nos dias em que dava consultas no espaço em questão, (terças e quintas feiras) e aos sábados quase sempre atendia dois ou três doentes, ou seja, por semana o autor dava em média 12 consultas.
4. Entre o dia 13 de Fevereiro e o final desse mês deixou de dar 28 consultas, sendo que autor cobra por cada consulta €: 50,00, pelo que deixou de receber naquele período a quantia global de €: 1.400,00 (mil e quatrocentos euros).
5. Após o dia 2 de Março, em que começou a sua actividade no novo consultório, o autor tem pago a renda pelo espaço, no montante de €:100,00/mês, pelo que até à data, o autor pagou de rendas a quantia de €: 600,00 (seiscentos euros).
6. Muitos doentes se deslocaram àquele consultório e encontraram a grade a fechar o acesso – o que, para além para além do transtorno que causou, deixou uma má imagem sobre o médico, ora autor.
7. O autor ficou profundamente chocado com a atitude da Ré, pois a relação de amizade que existia entre o comodante e o comodatário, longa e verdadeira, sendo o comodante paciente (doente/cliente) do autor foi, pese a ausência física do Sr. M. R e, até por causa disso, um golpe baixo e de enorme falta de respeito.
8. O autor ficou abalado e triste e, sendo Barcelos um meio pequeno, teve vergonha que se soubesse do sucedido, pois ao autor é pessoa muito conhecida no meio social onde vive, está envolvido nas lides politicas concelhias e sentiu a sua imagem e o seu nome muito prejudicados pelos acontecimentos gerados pelo esbulho praticado pela Ré.
9. Teve ainda, o autor, de se desdobrar em contactos com os seus doentes, dar satisfações, adiar consultas, indicar, a seu tempo, o novo endereço de consultório – o que tudo constituiu um transtorno e desgaste emocional grande.
10. Na verdade, pouco tempo volvido do falecimento do pai da Ré, M. R., o A. dirigiu-se à mesma, justificando-se com o intuito de a informar que ocupava uma fracção naquele prédio e disponibilizando-se para reunir com a mesma para combinarem entre si o valor de uma renda e para resolver questões relacionadas com os contadores de água e luz.
11. A aqui R. disse ao A. que não se incomodasse com esse assunto e que falariam mais tarde, de molde a permitir que a mesma recuperasse do grande abalo que sofreu.
12. O A., fazendo juz da memória do pai da aqui R., convenceu-a novamente de que iria de imediato pedir contadores em seu nome. E com base nisso solicitou-lhe uma vez mais que para que acordassem uma renda de forma a que lhe fosse permitido manter-se na sala que estava a ocupar indevidamente.
13. Na sua boa fé, a aqui R. cedeu uma vez mais.
14. O motivo da exorbitância de valores das facturas referidas foi facilmente identificado: - o autoclismo da casa de banho, utilizada pelo A. estava avariado e a água corria de forma constante e há largos meses.
15. A R. questionou o A. que lhe disse que não se tinha dado conta, uma vez que raramente usava o consultório e que há mais de um mês que lá não ia.
16. Da mesma forma, apercebeu-se então a R. que o dito consultório não estava a ser utilizado por aquele, mas antes pela sua filha de nome “S. A.”, psicóloga clínica, estando instalado na fracção “F” daquele mesmo edifício.
17. O comportamento imoral e desrespeitoso do A. foi sendo cada vez mais desavergonhado, chegando o mesmo a propor uma renda de 50 euros e um jantar todos os meses à aqui R. que naturalmente não só recusou como se sentiu ofendida na sua honra e na sua pessoa.
18. O autor não ocupa, nem nunca ocupou, pelo menos desde o ano de 2015, a dita fração “I”. 19. Em Julho 2018, a R. tem conhecimento de várias facturas de água com valores muito acima do normal (que seria entre 18 e 33 euros). As facturas 01/198640 de Maio de 2018 no valor de 297,96, A factura 01/237261 de Junho 2018 no valor de 650,24, a factura 01/275953 de Julho de 2018 no valor de 725,73 o que faz um total de 1673,93.
20. Não entendendo tais valores, a R. pediu a um funcionário que fosse ao prédio e que tentasse perceber o que ali se estaria a passar, nomeadamente averiguar da existência de alguma fuga de água.
21. Com conhecimento, autorização e mesmo agrado do pai da Ré, após a licenciatura da filha do A., esta passava algumas horas, de forma irregular e sempre que o A. lhe solicitava, até por questões de apoio específico, na sala em causa.
22. A Ré sabe, e tem obrigação de saber, que o prédio em causa é antigo, carece de obras profundas de remodelação nas condutas de água, electricidade, etc., etc.,
23. Apresentou ao autor um contrato em que a sala a arrendar seria no primeiro andar, mais pequena e sem casa de banho nem ponto de água.
24. A renda não era de € 50.00, e não se incluíam jantares.”
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A- Da apreciação da impugnação da matéria de facto (conclusão D), E), G))

Na conclusão D), E) e G) julga-se que o recorrente pretende impugnar a factualidade dada como provada e não provada.
Com efeito, como emerge das conclusões recursivas que apresentou, sustenta o apelante que “ A douta sentença recorrida fez uma incorreta apreciação da matéria de facto, vertida e provada no próprio texto da sentença, nomeadamente quanto ao arrendamento e ás rendas do novo consultório do autor, as quais devia ter considerado provadas… a douta sentença recorrida deu como não provados factos que estão provados, e constam do texto da própria sentença(!), ignorou prova documental junta e desvalorizou outra, nomeadamente o contrato de arrendamento e os recibos de renda juntos aos autos.”. Ainda acrescentou que “ A douta sentença menosprezou a questão do desconforto e do dano moral e psicológico do autor, em face dos factos praticados pela Ré, manifestamente provados no depoimento das testemunhas transcritos no próprio texto da sentença”.
Contudo, o recorrente não especificou os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, nem especificou os motivos pelos quais não deveria ser atribuído valor probatório decisivo aos meios de prova considerados pelo julgador a cada um dos factos respetivos.
Desde já se diga que não se mostram preenchidos todos os requisitos de que depende a impugnação da matéria de facto (artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil).
Vejamos.
Aparentemente, o recorrente pretendia, além do mais, impugnar a decisão da matéria de facto.
Questão que se coloca é a de saber se, no entanto, o fez de forma processualmente válida.
A possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.
Desde logo, como deflui do nº 1 do art. 639º, quando o apelante interpõe recurso de uma decisão jurisdicional fica automaticamente vinculado à observância de dois ónus, se quiser prosseguir com a impugnação de forma regular (1).
Assim, para além do cumprimento do ónus de alegação, o recorrente fica igualmente sujeito ao ónus de finalizar as alegações recursórias com a formulação sintética de conclusões, em que resuma os fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão prolatada pelo tribunal a quo.
Além destes, vem-se igualmente autonomizando um ónus de especificação de cada uma das concretas razões de discórdia em relação à decisão sob censura, seja quanto às normas jurídicas (e sua interpretação) aí convocadas, seja a respeito dos concretos pontos de facto que o apelante considera que foram julgados de forma incorreta e dos concretos meios de prova que impunham uma diversa decisão relativamente a essa facticidade.
Isso mesmo determina a al. a) do nº 1 do art. 640º, na qual se preceitua que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados”.
Por imposição do segmento normativo transcrito, deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende ver reapreciados pelo tribunal ad quem.
Isto posto, procedendo à exegese das alegações apresentadas, primo conspectu, afigura-se-nos que não foi observado esse ónus de especificação dos concretos pontos de facto que o apelante considera terem sido incorretamente julgados pelo tribunal de 1ª instância, ainda que ali aluda aos pontos 5º e 8º não provados.
O mesmo ocorre a respeito das respetivas conclusões: nenhuma referência lhes é feita de forma individualizada, isto é, não se indicam quais os concretos pontos de facto provados e/ou não provados que pretende impugnar.
Saliente-se que as conclusões têm a importante função de definir e delimitar o objeto do recurso e, desta forma, circunscrever o campo de intervenção do tribunal superior encarregado do julgamento.
Por isso, sendo a impugnação de matéria de facto uma autêntica questão fundamental, suscetível de conduzir a decisão diferente, deve ela ser incluída nas conclusões das alegações, de forma sintética mas obviamente com indicação precisa dos pontos de facto impugnados, com o resumo do que a tal respeito tenha sido referido no corpo das alegações. Só assim se pode entender que é suscitada tal questão: para se impugnar matéria de facto há, forçosamente, que especificar nas conclusões, de forma concreta, quais os pontos de facto impugnados, pois de contrário o recurso não tem objeto fático.
Entende-se, por conseguinte, que para uma correta impugnação da matéria de facto, se exige a inclusão da concretização dos pontos de facto ou matéria impugnada, nas conclusões, sob pena de rejeição do recurso, inclusão essa que, in casu, não se verificou. É que, para o aludido feito, não basta – como fez o apelante – aludir genericamente à materialidade que se reputa erroneamente apreciada, exigindo-se antes uma indicação concreta e precisa dos pontos de facto, provados ou não provados, que se considera terem sido incorretamente julgados.
Com efeito, não basta a alusão conforme fez na conclusão D), como se de mera referência na sentença se tratasse e não de facto impugnado.
Por outro lado, o apelante não efetua, nem nas alegações qualquer análise crítica dos elementos de prova que considera relevantes à infirmação pretendida ou a medida em que o mesmo releva para alteração do decidido, não fazendo sequer referência às gravações.
Ora, as omissões assinaladas levam à rejeição do recurso no que se refere à impugnação pretendida.
Com efeito, tem sido também jurisprudência pacífica, e que se perfilha, que no âmbito da impugnação da matéria de facto não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento da alegação, ao contrário do que se verifica quanto às alegações de direito.
A intenção da lei é não permitir impugnações vagas e genéricas da decisão da matéria de facto (sendo aqui mais exigente no princípio da auto-responsabilização das partes). É que, essa maior responsabilização é premiada com um alargamento do prazo processual para a apresentação das alegações quando o recurso se funda também na impugnação da matéria de facto.
A tal acresce que, a leitura das normas que regem esta matéria não permite outro entendimento, como resulta da análise do teor taxativo do artigo 640º e da previsão dos casos que justificam o convite constante do artigo 639º do Código de Processo Civil.
Considerando o que ficou exposto, temos que, no caso dos autos, não estão reunidos os pressupostos de ordem formal para admitir a reapreciação da decisão da matéria de facto requerida, que assim se rejeita.
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IV- Considerando que não houve nenhuma alteração introduzida na decisão relativa à matéria de facto, a factualidade a atender para efeito da decisão a proferir é a já constante de III.
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V- Reapreciação de direito.

Cabe agora verificar se deve a sentença apelada ser revogada/alterada, no seguimento da impugnação do autor/apelante.
Não se discute nos presentes autos que o contrato que esteve na base da utilização da fração em causa por parte do apelante foi celebrado entre este e o pai da Ré, que, entretanto, faleceu; nem se discute a sua qualificação: um contrato de comodato.
Também não se discute ser a Ré proprietária do referido imóvel por o ter adquirido por transmissão mortis causa de seu pai, falecido, e daí ter formulado, além do pedido de reconhecimento da propriedade, em termos de pedido reconvencional, ainda o pedido de condenação do autor a restituir-lho.
Esse direito de propriedade sobre o imóvel foi reconhecido à Ré/reconvinte pela sentença ora impugnada e não é posto em causa.
E o que dizer acerca da restituição do imóvel?
Como se sabe - entre outras formas que não interessa ora considerar - o autor poderá contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade da Ré, com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa - cfr. Profs. Pires Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, pág. 116.
Princípios esses que estão, de uma forma geral, consagrados no art.º 1311.º do CC.
E a existência de um contrato de comodato constitui precisamente um dos meios, previstos no nosso ordenamento jurídico, que obsta à entrega da coisa pelo seu detentor ao seu proprietário.
Ora, como vimos, o contrato que esteve na base da utilização da fração em causa por parte do apelante foi celebrado entre este e o pai da ré, que, entretanto, faleceu.
Os direitos e as obrigações decorrentes do referido contrato podem ser feitos valer contra os herdeiros do falecido comodante, a apelada, ora ré, dada a sua natureza patrimonial e não se extinguiram com o decesso do pai da ré (cfr. art. 2024º e 2025 do CC).
Daí que se a morte do comodatário determina a caducidade do contrato, nos termos do art. 1141º do CC, já de modo diverso a morte do comodante não acarreta a caducidade do contrato. (2)
Em face dos factos dados como provados, e mais concretamente de se ter provado que a Ré é a proprietária do bem imóvel em causa e que o seu pai, em vida, autorizou e cedeu ao autor a fração de comércio e escritório “para que dela se sirva até viver”, garantindo-lhe que ali poderia continuar a utiliza-lo, aliás como sempre fez e se veio a provar: utilizava como seu consultório para exercer a medicina, enquanto quisesse e até morrer, conclui a sentença recorrida pela celebração de um contrato de comodato, contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir – artigo 1129º do Código Civil –.
E entendeu-se ainda que estava ele obrigado a restituí-la à Ré logo que lhe fosse exigida, nos termos do disposto no artigo 1137º, n.º 2 do Código Civil: por não ter sido convencionado prazo certo para a restituição nem determinado o uso da coisa, na esteira do que se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2015 e AC da RE de 19.11.2020 ,ambos disponíveis em www.dgsi.pt e jurisprudência ali citada.
O autor entende que, contrariamente ao decidido na decisão recorrida, não está obrigado a restituir a fração imóvel em causa, quer porque existe prazo certo, e ainda que assim não se entenda, não findou o uso para que a fração foi emprestada (exercício da medicina).

Em suma: não se questionando a qualificação do contrato de comodato, estava essencialmente em causa a interpretação e aplicação das normas dos n.ºs 1 e 2 do art. 1137.º que regulam a obrigação de restituição da coisa e que aqui se transcrevem:

«1. Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação.
2. Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.»

O recorrente entende estarmos perante um caso de prazo certo e, assim, regeria o nº1 do art. 1137º do CC e caso se entendesse que não haveria tal prazo, então, na sua ótica regeria a segunda hipótese prevista no n.º 2 do art. 1137º – ter sido determinado o uso da coisa (no caso o uso para exercício da medicina) – que afastaria a obrigação de restituição.
Diversamente, a decisão recorrida para além de ter entendido que não se verificava qualquer prazo certo, considerou não estar preenchida essa segunda previsão, uma vez que “O uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer”. Fazendo apelo à orientação adotada pela variada jurisprudência citada no AC da RE de 19-11-.2020, o qual além do mais cita, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão de 23.02.2017, proferido no proc. n.º 167/15.3T8ADV.E1, o qual entendeu que, permitindo o n.º 2 do art. 1137.º do CC a restituição ad nutum, “apenas se poderá obstar à restituição caso tenha ocorrido a estipulação de prazo certo ou determinado um uso de duração limitada, temporalmente delimitado”.
Em consequência, decidiu estar o autor obrigado a restituir a fração à Ré.
Quid iuris?
O recorrente entendeu que a sentença se limita a transcrever a jurisprudência e fez apreciação superficial sobre a questão concreta.
Sem embargo, lendo a mesma crê-se que ali foi entendido que afinal a questão objeto do processo se encontrava devidamente explanada e resolvida – a propósito de casos concretos de contornos factuais idênticos aos dos autos – pela mais recente jurisprudência, pelo que faz transcrições nomeadamente do AC da RE de 19.11.2020, o qual por sua vez faz uma resenha sobre a jurisprudência mais recente nestas matérias, desde o AC do STJ de 15-12-2011 até ao mais recente acórdão do STJ de 21.03.2019, todos ali citados.
Jurisprudência essa com a qual, deixamos desde já consignado e, salvo o devido respeito, concordamos na íntegra.
Vejamos.

Dispõe o artigo 1137º do Código Civil:
1. Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação.
2. Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.

Daqui resultam, pois, três situações:
- se for convencionado um prazo certo, a restituição só é devida decorrido esse prazo, independentemente de interpelação do comodatário pelo comodante. Como é habitual nas obrigações de prazo certo, o vencimento não carece de interpelação. O contrato caduca automaticamente ou ope legis; (3);
- não o sendo, mas a coisa foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la logo que o uso finde. Logo que termine o uso, o contrato caduca, não sendo necessário que o comodante interpele o comodatário. A caducidade é automática, opera ope legis, não carecendo de declaração a enviar ao comodatário, como resulta do art. 1137.º, n.º 1, in fine;
- não tendo sido convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.

Em relação à convenção de um prazo certo, cremos que tal não ocorre no caso sub judicio, ao contrário do que sustenta o recorrente.
Com efeito, provou-se tão só que, o pai da ré acordou com o autor que este poderia servir-se do imóvel (porventura para o exercício da sua profissão de médico e onde dava consultas) até à sua morte.
Ora, no nosso entendimento, cremos que facultar o uso da coisa até à morte do comodatário não consubstancia a convenção de um prazo certo; poderá considerar-se um prazo determinável, mas não um prazo certo. (4)
A este propósito, escreve-se no Ac. STJ de 15-12-2011 e citado na sentença: “Dir-se-á, no entanto, que a vinculação do comodante ao contrato estabelecido apenas se justifica quando o comodante se comprometeu durante determinado período à cedência da coisa a favor de outra pessoa ou à cedência da coisa para uso determinado, rectius, para utilização específica pois, tratando-se de um contrato gratuito, não se deve aceitar que o comodante haja de permanecer vinculado contratualmente por período de tempo indeterminado que pode ser o da própria vida do comodatário. A este argumento acresce ainda que, atenta a natureza deste contrato, deve ser sustentada uma interpretação que proporcione segurança mínima na aplicação do Direito.
Saliente-se ainda que a lei num contrato intuitu personae e gratuito como é o comodato não quis obviamente que o comodante que entregou coisa sua para utilização do comodatário ficasse na contingência de não mais a poder reaver”. (sublinhado nosso).

Também no AC do STJ de 21.03.2019 (e também citado na sentença) se escreve impressivamente, citando doutrina:
“A propósito da duração do uso da coisa refere Rodrigues Bastos [nota 2: Ob. cit., págs. 251-252.] que “o uso da coisa, no comodato, deve durar por todo o tempo estabelecido no contrato. Discute-se se será admissível um comodato por mais de trinta anos, dado o que preceitua o art. 1025.° (para a locação). Embora a lei não marque, para esta hipótese, um limite à duração do uso, a verdade é que tem de considerar-se a cedência sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel. Bastará para isso pensar que um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indireta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar por toda a vida da outra parte, o comodato descaracterizar-se-ia em direito de uso e habitação.”. (sublinhado nosso)

Naquele acórdão ainda se realça o seguinte:
“ Em razão dessa nota de temporalidade, assumida como traço essencial do comodato, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido que o «uso determinado», a que se alude no art. 1137º, do CC, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável.[nota 3: Cf., neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 13.5.2003, revista n.º 1323/03, Relator: Silva Salazar; de 27.5.2008, revista n.º 1071/08, Relator: Alberto Sobrinho; 31-03-2009 ; de 31.3.2009, revista n.º 359/09, Relator: Pereira da Silva; de 16.11.2010, revista n.º 7232/04.0TCLRS.L1.S1, Relator: Alves Velho, disponíveis in www.dgsi.pt.].” (5)
Também nos parece que não preenche o pressuposto legal de determinação do uso da coisa afirmar-se que o comodatário pode usar a fração, como acontece no caso dos autos; só o preenche se a determinação do uso “… delimitar a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer” – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, Volume II, página 596; de contrário, isto é, considerar-se que emprestar o imóvel para o comodatário “dele se servir enquanto viver” consubstancia a determinação do uso da coisa redundaria na exigência de estipulação inútil, face ao disposto no artigo 1131º do Código Civil.
Em verdade, emprestar a fração para a realização de uma consulta de medicina constitui comodato para uso determinado, mas não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo da referida fração para consultas médicas até morrer.
Também no já citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011 se sufragava este entendimento, aliás plasmado nos mais recentes acórdãos do Supremo (6): “Saliente-se também que, quando a coisa é entregue para um uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para um determinada finalidade, não a utilização da coisa em si. Emprestar a vivenda para a realização de uma festa constitui comodato para uso determinado, mas não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo da referida vivenda para habitação. Por isso, não será ao abrigo do uso determinado da coisa que ficará impedido o comodante de exigir a restituição ad nutum nos termos do artigo 1137.º/2 do Código Civil” – ver ainda a jurisprudência e doutrina citadas no aresto.
Do que se deixa dito resta a conclusão de que, uma vez que não foi convencionado prazo certo nem determinado o uso da coisa, tinha a Apelada o direito de exigir do Apelante a entrega da fração a todo o tempo, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art.º 1137º.
Goza, pois, a apelada do direito de ver deferida a pretensão de imediata restituição da fração que o seu pai emprestou ao autor.
Improcede, pois, a apelação.
*
Da condenação em custas:

Insurge-se o recorrente quanto à condenação em custas, por o tribunal ter condenado A e R na proporção que fixou em 70% a cargo do autor e 30% a cargo da ré.
Estamos perante a questão da responsabilidade do pagamento das custas da ação.
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º daquele Código, a decisão que julgue a ação condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
No caso vertente, apenas diremos que nos termos do art. 527º do CPC as custas foram fixadas em termos da proporção do decaimento dos pedidos formulados, pois se o autor decaiu na totalidade (dos 5 pedidos formulados), a Ré decaiu em cerca de 1/3 (dos 8 pedidos formulados, teve êxito em 5 deles), pelo que entendemos que a condenação em custas observou o estipulado na lei.

VI. Decisão.

Por tudo o exposto, acordam os Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo autor/recorrente.
Guimarães, 17 de novembro de 2022

Assinado eletronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira (relatora)
Jorge dos Santos e
Margarida Pinto Gomes


1. Sendo que, a este respeito, a casuística do Tribunal Constitucional (v.g. acórdãos nº 132/2002 e 403/2002, publicados, respetivamente, no DR, II série, de 29.05.2002 e de 16.12.2002) vem reiteradamente afirmando não ser incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes, desde que não sejam nem arbitrários nem desproporcionados, quando confrontada a conduta imposta com a consequência desfavorável atribuída à correspondente omissão.
2. Neste sentido, vide Pedro Romano Martinez, Da cessação do contrato, p. 366, 2 ed.
3. Neste sentido, Pedro Romano Martinez, “Da cessação do contrato”, p. 3662ª ed.
4. Aliás o exemplo clássico de termo incerto aposto nos negócios jurídicos é o momento da morte de uma pessoa, seja o contraente ou outrem, porque a morte é certa, mas a sua hora é incerta, o que os juristas antigos designavam por dies certus an incertus quando (Manuel A. Domingues, “Teoria Gerald a Relação Jurídica”, Vol II, p. 385 a 387, 1966).
5. Vide em sentido contrário, o acórdão da Relação do Porto, de 15.01.2007, proc. 0652373, e os acórdãos da Relação do Porto de 24.05.2005, proc. 0520792 e de 18.12.2013, proc. 7571/11.4TBMAI.P e ainda AC RL de 25-05-2000, CJ t, III, p. 99 e AC RC de 27-06-2006, CJ tIII, p. 20), cujo veredito é no sentido de que “tendo sido convencionado que o comodato da casa se destinava a que a comodatária a habitasse até à sua morte, o comodante não pode exigir a restituição dessa casa, enquanto a comodatária nela residir. Logo, não tendo, no caso sub judice, ainda findado ou terminado o uso convencionado para que a dita casa foi comodatada – o qual, em princípio, só ocorrerá com a morte da Ré, se esta lá continuar a viver - não se verifica o pressuposto legal para que o Autor possa exigir à Ré a restituição do dito imóvel, por cessação do contrato, à luz do artº 1137º, do C.C.».
6. Vide neste sentido, AC STJ de 26-11-2020 (Relatora Graça Trigo); STJ de 09.12.2021 (Relatora Rosa Tching); STJ de 14-12-2021 (Relatora Maria João Tomé).