PROCESSO DE MAIOR ACOMPANHADO
AUDIÇÃO PESSOAL DO ACOMPANHADO
VÁRIOS PROCESSOS APENSADOS
AGREGAÇÃO DE PROCESSOS
PRINCÍPIO DA GESTÃO PROCESSUAL
Sumário

I. No apenso a processo de maior acompanhado em que o requerente (filho do maior acompanhado e irmão da acompanhante) requere a revisão da medida de acompanhamento de maior,  com pedido de remoção provisória da acompanhante nomeada, não pode ser proferida decisão sem que se proceda, previamente, à audição pessoal do acompanhado.

II. Tendo o tribunal a quo ordenado a prestação forçada de contas pela acompanhante (novo apenso), na sequência da petição em que o requerente questiona a administração do património e das contas bancárias que tem vindo a ser feita pela acompanhante, justifica-se que seja atuado o princípio da gestão processual, na modalidade de agregação de processos, devendo ocorrer articulação entre a instrução deste apenso e do apenso de prestação de contas de molde a que a decisão a proferir neste processo espelhe também o resultado da instrução do apenso de prestação de contas.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Por sentença de 24 de maio de 2021, transitada em julgado, e proferida nos autos principais, foi a filha do Maior Acompanhado e requerente, VT, nomeada Acompanhante do requerido/Beneficiário JL. Mais se determinou aí o acompanhamento do Requerido/Beneficiário, com inicio de incapacidade fixada em 21 de Fevereiro de 2020, sendo em concreto aplicada a medida de representação geral, com administração total de bens, conforme art.º 145º, n.º 2, als. b) e c) e n.º 4, do Código Civil, com dispensa de constituição do Conselho de Família, e com limitação do direito pessoal de testar, conforme art.º 147º, n.º 2, do Código Civil.
Por requerimento de 16 de Fevereiro de 2022 deste Apenso, veio LC requerer a Revisão da Medida de Acompanhamento de Maior,  com pedido de remoção provisória da Acompanhante nomeada, com efeitos à data da entrada do progenitor de ambos, no lar onde se encontra, atualmente, o Lar (...), em (...) - a sua institucionalização ocorreu em 24 de Julho de 2021.
Terminou formulando os seguintes pedidos:
a) que seja decretado a revisão do regime de acompanhamento do Beneficiário JL com medida de representação geral, com administração total de bens, e com limitação do direito pessoal de testar, conforme art.º 145º, n.ºs 2, al. b) e 4 do Código Civil, nomeando provisoriamente ambos os filhos como acompanhantes, ou em alternativa não se prescindindo do conselho de família;
b) Seja exonerada a acompanhante VT, filha, desde Outubro de 2020, data em que deixou de desempenhar cabalmente as suas funções,
c) Seja ouvido o beneficiário presencialmente ou por videoconferência no lar, na presença de ambos os seus filhos.
d) Determine a alteração para o correcto e actual domicílio do requerido/beneficiário, que não é há muito o da acompanhante.
e) Que a anterior acompanhante preste contas nos termos legais desde 21 de Fevereiro de 2020, às quais se tem reiteradamente recusado,
f) E seja elaborada lista de bens imóveis e móveis pertencentes ao acompanhado.
g) Oficiar o banco Caixa Geral de Depósitos e a acompanhante a informar que poderes conferidos através de procuração fora dos presentes autos detém neste momento.»
Foi proferido desapcho de aperfeiçoamento do requerimento inicial, com a correspondente articulação factual e com a junção de um documento autêntico, o que apenas satisfez, nesta última parte, comprovando a sua legitimidade ativa.
Realizou-se a audição do requerente (Ata de 21 de Abril de 2022), tendo o mesmo esclarecido que o que pretende é que a irmã e Acompanhante lhe preste contas e ao Tribunal, do Acompanhamento de Maior, não pretende nem demonstrou a intenção/disponibilidade de ser nomeado Acompanhante, sequer de questionar a necessidade ou pertinência de qualquer uma das Medidas de Acompanhamento decretadas.
Nessa mesma data (21.4.2022), foi proferido despacho em que, além de outros aspetos, se decidiu: «No mais, notifique a acompanhante, para proceder à prestação forçada de contas conforme artigo 949º, n.º 1, parte final, do Código Processo Civil, o qual corre por apenso aos presentes autos.»
Os autos foram ainda instruídos com o valor da pensão de invalidez do CNP,  print com relação dos pagamentos efectuados, informações clínicas do Acompanhado de 5.02.2022, 16.02.2022, 9.03.2022, 16.04.2022 e 3.05.2022,  informações do Lar e valor da pensão de sobrevivência da CGA.
Em 13.7.2022, foi proferida decisão com o seguinte teor  [decisão impugnada]:
« Apreciando.
Desde já se consigna que, em face da alegação factual do Requerente, e dos atos judiciais praticados nos autos principais, veja-se a audição do requerido/beneficiário, e a realização de exame pericial, não se entende, em face do pedido, relevante ou pertinente a inquirição das três testemunhas que o Requerente arrolou, até porque, como supra se aludiu e nos autos se alertou, “este não é um processo entre partes”, é uma acção especial, expressamente prevista e legislada, cfr. os art.ºs 891º e ss. do Código de Processo Civil que se não compadece, com arguições de “falta de liberdade” ou de “pressões” a que o Requerido alegadamente fora sujeito durante a sua audição pessoal, quando à mesma presidiu este Tribunal, no caso a signatária, bem como o Digno Magistrado do Ministério Público, em sua defesa, a Sra. Perita Médica do Gabinete Médico Legal e a Sra. Oficial de Justiça.
Ademais, tal audição foi reduzida a escrito, e nela se encontra a posição e a “ligação/relacionamento” mantida entre o Requerido e o filho, sendo o próprio filho que admite que, além de passar a residir na casa pertença do Pai, com a sua família, indo este viver para casa de uma companheira, ficou na posse dos bens do Pai e geriu-os, sem a autorização deste (pelo menos válida, vg a data fixada de inicio da incapacidade) ou da sua irmã, nada mais tendo feito no que respeita à saúde do requerido ou outras diligências, vg “acompanhar de facto uma pessoa maior de idade com necessidade de acompanhamento”.
Estes actos da vida diária, foram escrutinados, muito além da audição da Requerente no processo principal, ato que em si, propositura da acção, já revela um acompanhamento de facto.
E tais atos foram vertidos nos autos.
De resto, exercido o contraditório, cfr. fls. 54 e ss., pela Acompanhante, e fls. 90/91, pelo Digno Magistrado do Ministério Público, estamos em condições de proferir decisão, neste conspecto não concordando com a promoção antecedente, pois que inexiste qualquer prejudicialidade entre o processo de Prestação de Contas e este processo de Revisão de Medida e Acompanhamento a Maior, nem o Requerente demonstrou de qualquer forma, quer alegando, quer comprovando o que alegou, qualquer mau desempenho do cargo da Acompanhante ou a necessidade de alteração da decisão já proferida, quanto ao Acompanhado, cujo bem-estar e autonomia, não podem ser violados, coarctados, pelo simples facto de se pretender ver “tudo questionado, novamente”, repetidos atos judiciais válidos, vg, sequer o exame pericial realizado e vertido em relatório nos autos, convenceu o requerente, entendendo este que eventualmente “seria de estar na audição, (o Maior) acompanhado ainda por um psicólogo ou pessoa idónea”.
Por último, refira-se, a audição do requerido e a realização de exame pericial, via webex, cfr. fls. 66 e ss., em Março de 2021, ainda em período de estado de emergência por Pandemia de Covid 19, não lhe retira qualquer credibilidade ou isenção, não sendo sequer legalmente obrigatória a presença do filho, ora Requerente, ali mero interveniente acidental, não cabendo no leque legal das pessoas referidas no n.º 2 do art.º 898º.
Ademais, é a própria Lei que prevê como possibilidade, o Tribunal ouvi-lo (ao beneficiário), sozinho se tal se revelar pertinente (cfr. art.º 898º, n.º 3 do CPC).
Os art.ºs 138º e ss. do CC, invocados pelo Requerente no RI, pertencem à Subseção III, da Secção V Menores e Maiores Acompanhados, do Capitulo I Pessoas Singulares, do Subtítulo Das Pessoas, ou seja, a toda a secção do Código Civil (doravante CC) que respeita ao atual Regime legal do Maior Acompanhado.
Não invocou o requerente, inicialmente ou a convite judicial, em concreto, em que preceito legal respalda a sua atuação e pretensão.
É facto, dispõe o art.º 149º do CC que “1- O acompanhamento cessa ou é modificado mediante decisão judicial que reconheça a cessação ou a modificação das causas que o justificaram.
2 - Os efeitos da decisão podem retroagir à data em que se verificou a cessação ou modificação referidas no número anterior.
3 - Podem pedir a cessação ou modificação do acompanhamento o acompanhante ou qualquer uma das pessoas referidas no n.° 1 do artigo 141.°” (sublinhado nosso) e são estas, cfr. art.º 141º, n.º 1 do Código Civil
“1 - O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público. (...)” (sublinhado nosso).
Já o art.º 904º do CPC, prevê que “(...) 2 - As medidas de acompanhamento podem, a todo o tempo, ser revistas ou levantadas pelo tribunal, quando a evolução do beneficiário o justifique.
3 - Ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário, o disposto nos artigos 892.º e seguintes, correndo os incidentes respetivos por apenso ao processo principal” (sublinhado nosso).
Esta não é claramente a situação dos autos, pelo que necessariamente improcede a pretensão do Requerente.
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Por todo o exposto, julgo inverificados os requisitos para alteração ou revisão da medida de acompanhamento decretada, bem como para a remoção do cargo de Acompanhante, ainda que só provisoriamente, da irmã do Requerente, dado que como incidente que é, nestes autos, tinha o mesmo de alegar e fazer prova do preenchimento dos requisitos legais, e não o satisfez.
As custas deste incidente de Revisão de Medida de Acompanhamento, ficam a cargo do Requerente, que nele decaiu.
Fixo ao incidente, valor igual ao da acção: €30.000,01.»
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Não se conformando com a decisão, dela apelou o Ministério Público, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:
1. «Por sentença proferida em 13-07-2022, o Tribunal a quo indeferiu o presente incidente, sem, por um lado, se ter pronunciado sobre a audição pessoal do acompanhado promovida pelo Ministério Público e, por outro lado, tendo entendido que não existia uma relação de prejudicialidade entre a revisão de acompanhamento/remoção da acompanhante e a ação de prestação de contas.
2. A Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto veio introduzir o regime do maior acompanhado, revogando os anteriores institutos da interdição e da inabilitação e operando uma alteração de paradigma relativamente a estes, alicerçado na primazia da autonomia da vontade do beneficiário.
3. Construído sob a égide de ‘proteger sem incapacitar’, o novo regime encontra o seu fundamento na Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pelas Nações Unidas em 30 de Março de 2007, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 07 de Maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de Julho.
4. Tendo em consideração que um dos objetivos básicos do novo regime consiste na primazia da autonomia do visado, cuja vontade deve ser respeitada, o legislador estipulou, expressamente e sem exceções, a audição pessoal e direta do beneficiário (cfr. artigo 897.º, n.º 2, do CPC e artigo 139.º do CC).
5. No que concerne à revisão do acompanhamento, o artigo 904.º, n.º 3, do CPC, remete, com as necessárias adaptações, para o disposto nos artigos 892.º e seguintes, onde se inclui a audição pessoal e direta do beneficiário.
6. O acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito, designadamente quanto à escolha do acompanhante (cfr. artigo 143.º, n.º 1, do Código Civil) e modificação ou cessação do acompanhamento.
7. A omissão de tal ato processual padece da nulidade prevista no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, por poder influir no exame ou na decisão da causa, que inquina a própria decisão proferida (sentença), a qual pode ser arguida em sede de recurso a interpor da mesma, como também configura a nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
8. Embora não exista uma relação de prejudicialidade formalmente prevista entre a revisão do acompanhamento/remoção de acompanhante e a ação de prestação de contas, materialmente ambos se relacionam, podendo existir uma relação causal entre os mesmos.
9. Com efeito, a medida de representação geral aplicada inclui a gestão da pessoa do acompanhado, bem como a administração total dos seus bens.
10. Caso se conclua que as contas foram prestadas de modo válido e regular, então concluir-se-á que a acompanhante se encontra a exercer o seu cargo, no que à gestão do património diz respeito, de forma adequada e diligente.
11. Contudo, caso as contas não forem julgadas validamente prestadas, forçoso será concluir que a mesma não se encontra a exercer o seu cargo de acordo com o interesse do acompanhado, estando, até, eventualmente, a prejudicá-lo, o que implicará, consequentemente, a sua remoção do cargo ou a designação de um acompanhante para a administração do património ou ainda a constituição do Conselho de Família.
12. Se assim não for entendido, então a exigência da prestação forçada de contas, judicialmente determinada, terá sido inconsequente, implicando que, a final, seja necessário requer novamente a revisão do acompanhamento ou a remoção da acompanhante.
13. Assim, entendemos, s.m.o., que os autos ainda não se encontravam em fase de prolação de sentença, sendo necessária, por legalmente obrigatória, a audição do acompanhado, e, bem assim, a análise e a decisão sobre as contas apresentadas pela acompanhante no respetivo apenso e, ainda, a eventual audição da acompanhante.
14. Termos em que entendemos que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser anulada a sentença proferida, devendo proceder-se, nomeadamente, à audição pessoal e direta do maior acompanhado.
Contudo, V. Ex.as decidirão, fazendo, como sempre, JUSTIÇA!»
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Não se mostram juntas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Nulidade da sentença por preterição da audição pessoal e direta do beneficiário;
ii. Relação causal/prejudicialidade do apenso de prestação de contas.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria relevante para a apreciação de mérito é a que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Nulidade da sentença por preterição da audição pessoal e direta do beneficiário.
Este apenso iniciou-se em 16.2.2022, por requerimento de LC, filho do maior acompanhado, requerendo a Revisão da Medida de Acompanhamento de Maior, com pedido de remoção provisória da Acompanhante nomeada, com efeitos à data da entrada do progenitor de ambos, no lar onde se encontra.
Nos termos do Artigo 904º, nº3, do Código de Processo Civil:
«Ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário, o disposto nos artigos 892º e seguintes, correndo os incidentes respetivos por apenso ao processo principal
Conforme se refere em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2ª ed., 2022, Almedina, p. 360:
«O pedido de cessação ou modificação das medidas deve ser formulado por apenso, aplicando-se a tramitação prevista nos art.ºs 892º a 900º, com as necessárias adaptações. Esta remissão implica a obrigatoriedade da audição, pessoal e direta, do maior acompanhado (cf. art.ºs 897º, nº 2 e 898º). A tangibilidade do caso julgado justifica-se em nome da tutela da dignidade e da autonomia do beneficiário.»
Também Margaria Paz, “O Ministério Público e o maior acompanhado”, in O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, e-book do CEJ 2019, pp. 131-132, sinaliza que:
«Neste contexto, audição pessoal e direta do beneficiário não deve apenas ocorrer relativamente à tomada de decisão da medida ou medidas de acompanhamento a decretar pelo tribunal.
Na verdade, o acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito, nomeadamente:
- Escolha do acompanhante (como resulta diretamente do artigo 143.º, n.º 1, do CC);
- Decisão de acompanhamento (como resulta diretamente do artigo 898.º, n.º 1, do CPC);
- Revisão periódica do acompanhamento (artigo 155.º do CC);
- Modificação ou cessação do acompanhamento (artigo 904.º do CPC);
- Decretamento de medidas provisórias (artigo 891.º, n.º 2, do CPC);
- Autorização para a prática de atos, entendida em sentido amplo (Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de outubro).»
No caso em apreço, o tribunal a quo não procedeu à audição pessoal do beneficiário no que tange à pretendida revisão/alteração da medida de acompanhamento, o que consubstancia uma nulidade nos termos do Artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil. Todavia, essa nulidade processual é absorvida pela nulidade decisória a que se reporta o Artigo 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil.
Conforme refere Teixeira de Sousa, “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária clareza”, 22.9.2020, in Blog do IPPC:
«A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa).
Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência.
Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.
Note-se que, como se tem vindo a repetir neste Blog, esta solução é a única que é compatível com a impugnação da decisão-surpresa através de recurso e com o objecto do recurso. O objecto do recurso é sempre uma decisão, pelo que, se houvesse uma nulidade processual, a mesma não poderia constituir objecto de recurso e teria de ser reclamada no tribunal a quo.»
Termos em que se conclui que a decisão impugnada é nula porquanto a M.mª Juíza se pronunciou sobre questão de que não podia ter tomado conhecimento sem audição prévia do beneficiário.
Relação causal/prejudicialidade do apenso de prestação de contas.
Na petição inicial, o requerente alegou diversa factualidade, pretendendo questionar o modo como a acompanhante (sua irmã) está a gerir o património do requerido, designadamente afirmou que:
22. Desde então, a irmã toma unilateralmente todas e quaisquer decisões, dispõe do seu património e nem sequer da contas ao seu irmão, ora requerente, estado de coisas que urge alterar pelo bem do pai de ambos
29. O acompanhado apresenta momentos de desorientação, desconhecimento do meio e pessoas que o rodeiam, assim como da sua situação física, não sendo capaz de caminhar sem auxílio e necessitando de estar sentado numa cadeira com recurso a faixa de contenção (cinto apropriado ou lençol atado) sob pena de tombar frontalmente.
30. Mas isso não permite que do ponto de vista financeiro, a acompanhante tenha tomado de assalto o controlo da vida, seus bens e conta bancária, nunca mais tendo dado conhecimento ao próprio pai ou ao irmão,
31. Recusando-se a prestar contas a quem quer que seja.
32. A Acompanhante, permanentemente desempregada, tem assim à sua exclusiva mercê o rendimento mensal do Beneficiário decorrente do valor da sua reforma, na ordem dos 1.300,00€ mensais,
33. E ainda a renda do imóvel propriedade do Acompanhado, presentemente de 450,00€, conforme doc. 7 para cujo conteúdo se remete,
40. Sabe somente que o condomínio do imóvel do pai não se encontra a ser pago, apesar dos vários avisos que tem dirigido à sua irmã, conforme doc. 8, que em Outubro de 2021 era já devido o valor de 500,00€.
Nesta senda, no despacho de 21.4.2022, o tribunal a quo ordenou que a acompanhante prestasse forçadamente contas.
Da prestação de contas (ou mesmo da sua prestação defeituosa) podem emergir (eventualmente) factos suscetíveis de fundamentar a remoção da acompanhante (cf. Artigos 152º e 1948º, al. a), do Código Civil), sendo certo que foi inicialmente pedida a “remoção provisória” da acompanhante. Neste tipo de processos, o tribunal não está sequer vinculado às medidas que tenham sido requeridas (cf. Artigos 987º e 891º; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2ª ed., 2022, Almedina, p. 355).
Embora formalmente se tratem de apensos distintos, a interconexão pode ser real e operativa, sendo certo que o apenso de prestação de contas nasceu deste apenso. Assim, visando assegurar a economia de atos e a obtenção de uma decisão abrangente em prazo razoável, entende-se que a decisão a proferir neste apenso deverá aguardar a finalização da instrução do apenso de prestação de contas. Trata-se de uma solução subsumível à denominada agregação de processos, na qual ocorre a prática em conjunto de atos processuais relativos a processos distintos, não perdendo os processos a sua autonomia. A agregação de processos reconduz-se à cláusula geral da gestão processual (cf. João Pedro Pinto-Ferreira, Adequação Formal e Garantias Processuais na Ação Declarativa, Almedina, 2022, pp. 95, 271-273). A agregação deva ser precedida da audição prévia das partes (Artigo 3º, nº3, do Código de Processo Civil; Op. Cit., p. 274).
Em suma, as circunstâncias referidas suscitam a intervenção do princípio da gestão processual (cf. Artigo 6º do Código de Processo Civil), devendo ocorrer articulação entre a instrução deste apenso e do apenso de prestação de contas de molde a que a decisão a proferir neste processo espelhe também o resultado da instrução do apenso de prestação de contas.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência:
1. Declara-se nula a decisão proferida em 13.7.2022, por conhecimento de questão de que o tribunal a quo não podia tomar conhecimento, determinando-se que o tribunal a quo proceda à audição pessoal e direta do beneficiário;
2. Determina-se que o tribunal a quo atue o princípio da gestão processual, agregando este apenso com o de prestação de contas na fase de produção de prova neste, visando a economia de atos, só depois proferindo decisão final neste apenso.
Sem custas.

Lisboa, 22.11.2022
Luís Filipe Sousa
José Capacete
Carlos Oliveira
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).