PROCESSO DE MAIOR ACOMPANHADO
INTERVENÇÃO PRINCIPAL ESPONTÂNEA
RECURSO
LEGITIMIDADE
PREJUÍZO
Sumário

1. Não configura um incidente de intervenção principal espontânea, nos termos e para os efeitos dos arts. 311.º ss. do CPC, um requerimento em que a requerente:
- não refere sequer a qual das partes pretende associar-se;
- não alega um único facto concreto donde resulte ter interesse igual ao de qualquer uma das partes;
- não alega um único facto concreto do qual resulte que pretende fazer valer um direito próprio paralelo ao da parte a que se associa;
- não apresenta qualquer articulado próprio;
- não declara aderir a qualquer articulado apresentado por qualquer uma das partes.
2. A expressão «pessoa direta e efetivamente prejudicada pela decisão», vertida no n.º 2 do art.º 631.º, consagra expressamente a doutrina de que não basta um prejuízo direto para legitimar a interposição de recurso por quem não pode considerar-se parte principal vencida;
3. (...) casos havendo em que o prejuízo proveniente da decisão, embora seja direto (no sentido de que não é simplesmente mediato ou reflexo) é, todavia, eventual, longínquo, incerto, apenas provável ou possível.
4. A redação do n.º 2 do art.º 631.º significa que um prejuízo dessa natureza não basta para legitimar a posição do recorrente, sendo indiferente para aplicação desse preceito, à luz da sua letra e do seu espírito, a circunstância de a pessoa prejudicada pela decisão ter tido ou não ter tido intervenção no processo.
5. Deste modo, encontram-se, automaticamente, excluídas do conceito «pessoa direta e efetivamente prejudicada pela decisão»:
- em primeiro lugar, as pessoas a quem a decisão cause um prejuízo indireto ou reflexo; e,
- em segundo lugar, as pessoas a quem a decisão seja suscetível de produzir um prejuízo eventual, longínquo e incerto,
porquanto, apenas, têm legitimidade para recorrer os terceiros que sofram um prejuízo atual e positivo com a decisão que pretendam impugnar.
6. Assim sendo, o terceiro a quem é reconhecida legitimidade para o recurso é toda a pessoa que, não sendo parte, principal ou acessória, na causa, seja direta e efetivamente prejudicado com a decisão, porquanto o prejuízo tem que ser real e jurídico, não podendo ser meramente factual, exigindo-se, para assegurar o reconhecimento da sua legitimidade «ad recursum», um prejuízo que se repercuta, de forma nuclear, no seu património físico ou moral, não se tratando de um prejuízo ou dano meramente colateral ou reflexo.

Texto Integral

Acordam em Conferência na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

TN instaurou a ação especial de acompanhamento de maior com:
- nomeação de acompanhante;
- pedido de suprimento de autorização do beneficiário; e,
- requerimento de medida cautelar e nomeação provisória de acompanhante,
nos termos dos artigos 891º a 904º, do Código de Processo Civil,
contra sua mãe,
MN, alegando, em suma, que esta apresenta um quadro demencial de natureza degenerativa, provavelmente Doença de Alzheimer.
Atenta a patologia de que padece, a requerida necessita de acompanhamento permanente de terceira pessoa, encontrando-se a mesma impossibilitada de governar a sua pessoa e bens.
A incapacidade de que a requerida é portadora, é permanente e absoluta, não sendo reversível.
Na sequência do despacho de 27 de abril de 2022, o Ministério Público foi notificado para se pronunciar quanto:
- ao pedido de suprimento;
- às solicitadas medidas provisórias.
No dia 6 de maio de 2022, AN, veio requerer o seguinte:
«1. A Requerente teve conhecimento que foi interposto o presente processo de maior acompanhado relativamente a MN.
2. A Requerente é filha de MN (...).
3. A Requerente, atenta a sua qualidade, tem interesse em consultar e intervir no presente processo de maior acompanhado da sua mãe.
4. Pelo exposto, requer a sua associação na qualidade de interveniente, bem como a associação da sua mandatária, permitindo a consulta e acesso ao processo através do Citius.
5. Mais requer a junção aos autos de procuração forense a favor das suas mandatárias.»
Na sequência daquele despacho de 27 de abril de 2022, o Ministério Público pronunciou-se assim, mediante promoção de 25 de maio de 2022:
«(...) o Ministério Público nada tem a opor a que seja concedido o suprimento da autorização para propor a presente acção.
Mais se consigna que, atenta a situação descrita na petição inicial, nada temos a opor a que seja aplicada uma medida de acompanhamento urgente, designadamente a prevista no artigo 145º, n.º 2, al. c) do CCivil, na modalidade de administração de bens.»
No dia 6 de junho de 2022 foi proferida a seguinte decisão:
«Req. de 06.05.2022[1]: Nada havendo a opor, defere-se.
*
A requerente TN, veio intentar ação especial de acompanhamento de maior com nomeação de acompanhante, indicado fazer, além do pedido de suprimento supra deferido, ainda REQUERIMENTO DE MEDIDA CAUTELAR E NOMEAÇÃO PROVISÓRIA DE ACOMPANHANTE.
O MP nada teve a opor, consignando, atenta a situação descrita na petição inicial, nada ter a opor a que seja aplicada uma medida de acompanhamento urgente, designadamente a prevista no artigo 145º, n.º 2, al. c) do CCivil, na modalidade de administração de bens.
Notificada, a requerente respondeu que deverá ser aplicada a medida de administração total dos bens, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 145º nº 2 c) do Código Civil, porquanto a Beneficiária não consegue por si só executar tal tarefa.
Ora, considerando a posição das partes e os elementos documentais constantes dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 139.º, n.º 2 do Código Civil, nomeio como Acompanhante Provisório da Requerida a requerente TN, a qual terá por a administração total de bens da beneficiária.»
Notificada deste despacho, na pessoa da primeira das ilustres advogadas identificadas na procuração referida no ponto 5. do sobredito requerimento de 6 de maio de 2022, dele veio AN interpor recurso de apelação, que entende ser autónomo, nos termos do art.º 644.º, n.º 1, al. h) do CPC.
Tanto na motivação, como nas exageradamente extensas conclusões, a apelante afirma que «(...) requereu em 15/06/2022 a sua intervenção principal espontânea, nos termos dos art.ºs 311º e ss. do CPC, bem como requereu a sua nomeação provisória conjunta como Acompanhante; ainda não foi proferida decisão sobre tal requerimento.
A Recorrente é filha da Beneficiária, MN, conforme prova já feita nos autos (assento de nascimento junto com o requerimento apresentado em 06/05/2022), que tem apenas duas filhas, a Recorrente e a pessoa que foi nomeada Acompanhante provisória.
A nomeação em exclusivo da requerente TN para acompanhamento provisório, quando já havia sido dado conhecimento ao tribunal da intenção da intervenção da ora Recorrente e ambas as filhas desde há muito cuidam da Beneficiária e gerem efetivamente o património desta, em parte também próprio das filhas, por ser herança por óbito do pai de ambas e marido daquela, afeta os direitos da Recorrente.
A Recorrente é assim direta e efetivamente prejudicada pela decisão recorrida, pelo que, nos termos do art.º 631º, n.º 2 do CPC, tem legitimidade para apresentar o presente recurso.»
Nas contra-alegações, a autora alega o seguinte:
«No que se afere quanto à legitimidade activa, preceitua o art.º 631º nº 1 do CPC que “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencida”.
Ora, desde logo e ao abrigo do disposto legal imediatamente supra referido, a Recorrente não tem legitimidade para interpor o presente recurso porque não é parte principal na causa e também ainda não foi decidido o seu pedido para nela intervir na qualidade de interveniente principal espontânea!
Continua o nº 2 do mesmo preceito legal que “As pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias”.
Firma-se a Recorrente neste artigo para justificar a sua legitimidade para interpor o presente recurso.
Contudo, e salvo melhor opinião, a Recorrente não apresenta qualquer justificação para o facto de se considerar prejudicada nem elenca quaisquer danos que lhe possam ter sido causados com a douta decisão recorrida, nem tão pouco em que medida é que a referida decisão a afecta directamente.»
Por equacionar não poder conhecer do recurso, o relator ordenou o cumprimento do disposto no art.º 655.º, n.º 1, do CPC.
Notificada nos termos e para os efeitos do referido normativo, a recorrente apresentou requerimento que conclui assim:
«Termos em que
a) deve ser reconhecida a legitimidade da Recorrente para o presente recurso;
b) Devem ser os autos suspensos, até prolação da decisão sobre a nomeação provisória da Recorrente, a fim de evitar atos inúteis.»
*
Neste tribunal de recurso, o relator proferiu o seguinte despacho:
«O requerimento apresentado por AN não configura, manifestamente, um incidente de intervenção principal espontânea nos termos e para os efeitos dos art.ºs 311.º ss. do CPC.
Nele, AN:
- não refere sequer a qual das partes pretende associar-se;
- não alega um único facto concreto donde resulte ter interesse igual ao de qualquer das partes;
- não alega um único facto concreto do qual resulte que pretende fazer valer um direito próprio paralelo ao da parte a que se associa;
- não apresenta qualquer articulado próprio;
- não declara aderir a qualquer articulado apresentado por quem quer que seja.
Aquele requerimento configura, essencialmente, um pedido de AN no sentido de ter acesso e poder consultar o processo.
E nem sequer o singelo despacho proferido em 6 de junho de 2022 (“Req. de 06.05.2022: Nada havendo a opor, defere-se”), cuja bondade (da qual, diga-se, se duvida) não está aqui em apreciação, configura uma decisão de deferimento de um (no caso, inexistente) incidente de intervenção principal espontâneo.
Aliás, nem sequer se nos afigura que num processo de maior acompanhado como aquele de que os presentes autos de recurso em separado constituem apenso admita a dedução de um tal incidente.
Não restam, assim, dúvidas, de que AN não é parte, e nem sequer interveniente, na causa de que os presentes autos de recurso em separado constituem apenso, situação que a mesma reconhece ao invocar expressamente o disposto no n.º 2 do art.º 631.º CPC como fonte da sua legitimidade para a interposição do presente recurso.
Dispõe o n.º 1 do art.º 631.º do CPC, que “sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido», acrescentando o n.º 2 que «as pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.”
É por demais evidente, salvo o devido respeito, que a recorrente AN não é direta e efetivamente prejudicada pela decisão recorrida, proferida em 6 de junho de 2022: “(...) Ora, considerando a posição das partes e os elementos documentais constantes dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 139.º, n.º 2 do Código Civil, nomeio como Acompanhante Provisório da Requerida a requerente TN, a qual terá por a administração total de bens da beneficiária.”
Conforme refere ABRANTES GERALDES, “a exigência de um prejuízo direto tem subjacente a ideia de que a decisão visa diretamente o recorrente, afastando os caso em que o prejuízo, ainda que efetivo, é indireto, reflexo ou mediato, ou atinge unicamente a pessoa representada», não sendo vencido o terceiro o terceiro que apenas indireta ou reflexamente é atingido pela decisão.”[2].
No Ac. do S.T.J. de 20.10.2015, Proc. n.º 50/14 (HÉLDER ROQUE), in www.dgsi.pt, lê-se que «a expressão “pessoa direta e efetivamente prejudicada pela decisão”, adotada pelo legislador, veio “consagrar expressamente a doutrina de que não basta um prejuízo directo para legitimar a interposição de recurso por quem não pode considerar-se parte principal vencida. Há casos em que o prejuízo proveniente da decisão, embora seja directo (no sentido de que não é simplesmente mediato ou reflexo) é, todavia, eventual, longínquo, incerto, apenas provável ou possível. A nova redacção dada ao nº 2 significa que um prejuízo dessa natureza não basta para legitimar a posição do recorrente”.
A circunstância de a pessoa prejudicada pela decisão ter tido ou não ter tido intervenção no processo, parece, à face da letra e do espírito da norma, indiferente para a aplicação desta.
Deste modo, encontram-se, automaticamente, excluídas do conceito “pessoa direta e efetivamente prejudicada pela decisão”, em primeiro lugar, as pessoas a quem a decisão cause um prejuízo indirecto ou reflexo e, em segundo lugar, as pessoas a quem a decisão seja susceptível de produzir um prejuízo eventual, longínquo e incerto, porquanto, apenas, têm legitimidade para recorrer os terceiros que sofram um prejuízo actual e positivo com a decisão que pretendam impugnar.
Assim sendo, o terceiro a quem é reconhecida legitimidade para o recurso é toda a pessoa que, não sendo parte, principal ou acessória, na causa, seja direta e efetivamente prejudicado com a decisão, porquanto “o prejuízo tem que ser real e jurídico, não podendo ser meramente factual”, exigindo-se para assegurar o reconhecimento da legitimidade «ad recursum» do terceiro um “prejuízo que se repercuta, de forma nuclear, no património físico ou moral do recorrente, não se tratando de um prejuízo ou dano meramente colateral ou reflexo.»
É por demais evidente, reitera-se, que a recorrente AN não é terceiro para efeitos de legitimidade para a interposição do presente recurso, pois não é direta e efetivamente prejudicada, nos termos expostos, pela decisão recorrida, proferida em 6 de junho de 2022.
Pelo menos, contrariamente ao que afirma, não alegou um único facto concreto demonstrativo desse prejuízo direto e efetivo.
A falta de legitimidade da recorrente configura uma causa obstativa do conhecimento do recurso (art.º 652.º, n.º 1, al. b), do CPC).
Por conseguinte, nos termos conjugados dos art.ºs 631.º, n.ºs 1 e 2, e 652.º, n.º 1, al. b), do CPC, rejeito o recurso interposto por AN da decisão proferida em 6 de junho de 2022
*
Notificada deste despacho, vem agora a recorrente reclamar para a Conferência, nos termos do art.º 652.º, n.º 3, insistindo que:
- no processo principal, de que os presentes autos de recurso em separado constituem apenso, deduziu incidente de intervenção principal espontânea;
- tem legitimidade para a interposição do recurso.
Conclui assim:
«Termos em que deve a presente reclamação ser admitida e consequentemente ser admitido o recurso e o mesmo julgado procedente.»
*
A recorrida respondeu à reclamação, concluindo assim:
«Nestes termos e nos mais de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá a presente Reclamação ser rejeitada e julgado rejeitado o recurso interposto pela Recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 652º nº 1 b) do CPC, fazendo-se assim a almejada Justiça.»
*
O Ministério Público pronunciou-se sobre a reclamação nos seguintes termos:
«A magistrada do Ministério Público junto deste tribunal vem, nos autos supra referenciados e na sequência da notificação efectuada, expressar a sua posição de que, tal como decidido, carece a ora requerente de legitimidade para intervir nos autos, pelo que deverá a reclamação improceder.»
*
A decisão singular do relator, de não admissão do recurso interposto por AN, acima transcrita, fez correta interpretação, integração e aplicação do direito processual civil à situação sub judice, razão pela qual, sem necessidade de mais considerandos, por desnecessários, este coletivo a confirma na íntegra.
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DECISÃO:
Pelo exposto, acordam em Conferência os juízes que integram esta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente reclamação, mantendo, em consequência, a decisão singular reclamada.
Custas pela reclamante.

Lisboa, 22 de novembro de 2022
José Capacete
Carlos Oliveira
Diogo Ravara

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[1] Ou seja, o requerimento apresentado por Ana Cristina Barata de Parro Nogueira, no dia 6 de maio de 2022, acima transcrito.
[2] Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, 2022, pp. 105 e 107.