EMBARGOS DE EXECUTADO
DEVEDOR MUTUÁRIO
INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO
FIANÇA
EXTINÇÃO
Sumário

A declaração de exoneração do passivo restante no âmbito de um processo de insolvência de pessoa singular, ao extinguir a obrigação principal afiançada nos termos do artigo 245º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não faz extinguir a obrigação do fiador e, por isso, não determina a extinção da fiança.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
Por apenso à execução ordinária contra si intentada por “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, para pagamento da quantia global de € 79.513,53, veio o embargante B deduzir os presentes embargos de executado, peticionando a “absolvição do embargante do pedido executivo”.
Para o efeito, alegou, em síntese útil, que: o devedor mutuário C foi declarado insolvente no proc. nº 606/16.6T8SNT da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra – Inst. Central – Sec. Comércio – J5; em tal processo, foi concedido ao referido C, devedor, a exoneração do passivo restante, ficando a hipoteca e o crédito garantido extinto nos termos do disposto no art. 730º do Cód. Civil; a exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados (art. 245º, nº 1 do CIRE); com o facto de o mutuário ter vindo a ser exonerado do passivo restante, deixa de ser possível ocorrer a sub-rogação, por deixar de existir a possibilidade de o fiador vir a executar o seu crédito, por falta de consistência jurídica do seu crédito, nos termos dos arts. 644º e 653º do Cód. Civil; e, em face da exoneração do passivo restante concedido a C, a extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança, nos termos do disposto no art. 651º do Cód. Civil.
Foi proferida decisão de indeferimento liminar com o seguinte teor:
“O executado B veio por apenso à execução para pagamento de quantia certa movida por Caixa Geral de Depósitos, sa contra si e Carla ….., s.a., deduzir embargos de executado por facto superveniente, requerendo a extinção da execução instaurada contra o embargante.
Para tanto alega em síntese:
- na execução de que os embargos de executado são apenso a exequente apresentou como titulo executivo a cópia de dois contratos de mútuo com hipoteca e fiança, celebrados por escrito particular, outorgados a 27/04/2007, pela qual o Executado/Embargante se constituiu solidariamente fiador e principal pagador da dívida contraída pelo mutuário C;
- o mutuário C foi declarado insolvente a 18.01.2016 e a ora exequente reclamou créditos no âmbito do processo de insolvência daquele, tendo adquirido nesse processo, com dispensa do deposito do preço, o bem imóvel hipotecado para garantia dos contratos de mutuo dados à execução;
- em 21.10.2021 foi, no respetivo processo de insolvência, concedido a C a exoneração do passivo restante, ficando assim a hipoteca e o credito garantido extinto nos termos do disposto no art 730º do CPC;
- não obstante o disposto no art 217 nº 4 do CIRE, o facto de o mutuário ter vindo a ser exonerado do passivo restante deixou de ser possível a sub-rogação do fiador que cumpra a obrigação nos direitos do credor conforme prevê o art 644º do CC, pelo que, face ao disposto no art 653º do CC, o fiador, por virtude da impossibilidade da sub-rogação, fica liberado da obrigação.
Cumpre apreciar liminarmente, tendo –se para tal em consideração que:
1 - No requerimento executivo da execução de que os presentes autos são apenso alega-se a seguinte factualidade:
“1-A 27/04/2007 a exequente celebrou com C, divorciado, na qualidade de mutuário, um contrato de mútuo com hipoteca e fiança, ao qual a exequente atribuiu o n.º PT ..., no montante de € 67.500,00 (sessenta e sete mil e quinhentos euros) – vide pf. Doc.1 em anexo;
2 – O mutuário C apresentou-se à insolvência no processo n.º 606/16.6T8SNT da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra – Inst. Central – Sec. Comércio – J5, razão pela qual não se interpõe o presente requerimento executivo contra o mesmo.
3-O empréstimo destinou-se à aquisição à habitação própria permanente do mutuário – vide pf. Doc 1;
4-Em garantia do capital mutuado, juros e despesas, foi dada fiança de B e mulher Carla ….. que declararam responsabilizar-se como FIADORES e PRINCIPAIS PAGADORES por tudo quanto viesse a ser devido à exequente em consequência do empréstimo, dando o seu acordo a eventuais modificações da taxa de juro, do prazo ou moratórias que viessem a ser convencionados entre ambas as partes – vide pf. Doc 1;
5-Acresce que igualmente em 27/04/2007, a exequente celebrou com os mesmos outorgantes quer na qualidade de mutuário, quer na qualidade de fiadores, um segundo contrato de mútuo com hipoteca e fiança, ao qual a exequente atribui o n.º PT ... no montante de € 10.000,00 (dez mil euros) – vide pf. doc. 2 em anexo.
6-O empréstimo destinou-se a facultar recursos para o financiamento de investimentos múltiplos, não especificados, em bens imóveis – vide pf. doc. 2 em anexo;
7-Também em garantia do capital mutuado, juros e despesas, foi dada fiança pelos mesmos outorgantes já acima melhor identificados e com o mesmo âmbito e extensão já indicado anteriormente – vide pf. doc. 2 em anexo;
8-A partir de 27/05/2013 em relação ao primeiro contrato e de 27/06/2013 em relação ao segundo, o mutuário deixou de cumprir com as obrigações assumidas perante a exequente no âmbito do clausulado dos contratos celebrados entre ambos;
9-Do incumprimento foi dado conhecimento aos fiadores por carta, sendo que nenhum deles se propôs liquidar os atrasos verificados nos empréstimos;
10-O incumprimento das obrigações assumidas no âmbito dos contratos acima indicados, por parte do mutuário, que deixou de proceder ao pagamento das prestações mensais a que estava obrigado, confere à exequente o direito de exigir judicialmente a totalidade do valor em divida no âmbito dos empréstimos, tendo em conta que o incumprimento do prazo de pagamento das prestações mensais determina o vencimento de todas as prestações vincendas e, por isso, a sua exigibilidade por parte da exequente;
11-A exequente tem direito a receber o valor do capital em dívida, no âmbito dos contratos celebrados com os executados, acrescido dos juros vencidos calculados nos termos legais e nos termos da liquidação da obrigação feita no presente requerimento, o que se peticiona.”
2 – Dão –se por reproduzidos os documentos apresentados com o requerimento executivo.
*
O executado veio alicerçar a sua oposição no facto de o mutuário dos contratos dados à execução -contratos relativamente aos quais o ora executado se responsabilizou como fiador e principal pagador- , ter sido declarado insolvente, e a exequente no respetivo processo de insolvência ter adquirido, com dispensa de preço, o imóvel hipotecado para garantia dos referidos contratos; e bem assim ter sido concedida ao insolvente a exoneração do passivo restante, o que impossibilita a sub-rogação do ora executado na posição do credor nos termos e para os efeitos do art 744º do CC, e consequentemente libera o executado da obrigação exequenda nos termos do art 653º do CC.
Ora, tendo-se o executado responsabilizado como fiador e principal pagador relativamente aos contratos de mutuo celebrados por outrem e dados à execução, renunciou, nos termos previstos no art 640º al. a) do CC, ao beneficio de excussão previsto no art 638 do mesmo Código, tornando-se devedor litisconsorte.
Nada impedia, pois, que a exequente o demandasse em sede de execução, independentemente de reclamar o seu credito no processo de insolvência do devedor mutuário.
Todavia, os pagamentos efetuados à exequente no âmbito do processo de insolvência em causa não poderão deixar de se refletir na quantia exequenda peticionada na execução, sob pena de a exequente receber duas vezes o mesmo credito.
Sobre esta questão veja- se o Ac do TRP de 11.01.2016 proferido no Proc. 2537/13.2TBGDM-A.P1 , que passamos, em parte, a transcrever:
“Os executados/embargantes são, juntamente com a mutuária declarada insolvente, devedores solidários das obrigações assumidas nos contratos (arts. 627.º e 631.º e art. 640.º, todos do Código Civil).
A totalidade da dívida pode ser exigida a qualquer um dos co-executados mutuários (embora apenas responda pela mesma, quanto ao bem hipotecado, a metade indivisa de que cada um é titular) ou fiadores.
Inexiste, pois, qualquer incerteza quanto ao crédito da exequente e à correspondente obrigação dos executados decorrente dos mútuos celebrados, nomeadamente dos ora embargantes enquanto assumidos fiadores dos mutuários, solidariamente responsáveis pelo pagamento das quantias emprestadas pelo Banco, tendo renunciado ao benefício da excussão prévia.
As vicissitudes resultantes da venda (liquidação) de ½ indivisa do prédio (fracção autónoma) aprendido no aludido processo de insolvência, concretamente do valor dessa venda e do pagamento efectuado ao credor reclamente, aqui exequente, não interferem com a certeza da obrigação exequenda.
Apenas terão óbvia repercussão no montante da quantia exequenda. Naturalmente que o valor obtido naquela venda será, oportunamente, deduzido à dívida exequenda.”
Para esse efeito (consideração no processo executivo do pagamento obtido no processo de insolvência), cabe apenas ao executado, se tal não tiver sido feito pela própria exequente, dar conhecimento ao processo executivo dos pagamentos relativos ao credito exequendo que, na pendencia da execução, tenham sido efetuados à exequente no âmbito do processo de insolvência de devedor litisconsorte, juntando documento comprovativo, conforme prevê o art 846º nº5 do CPC.
Trata-se, pois, de situação a apreciar no próprio processo executivo nos termos do art 846 nº5 e 847 do CPC, à semelhança de qualquer outro pagamento externo ao processo executivo mas que seja feito na pendencia da execução.
Não é, pois, suscetível de fundamentar embargos de executado, por ser posterior à propositura da execução, devendo antes ser demonstrado no próprio processo executivo (art 846 nº5 e 847º do CPC).
Veja-se aliás que a 29.10.2021 a exequente espontaneamente apresentou no processo executivo requerimento de redução da quantia exequenda, o qual foi notificado ao ora executado, redução essa expressamente reconhecida no art 33º da p.i. de embargos.
Passemos então a apreciar o outro fundamento de embargos- a alegada liberalização do executado por impossibilidade de se proceder à sua sub-rogação, enquanto fiador que cumpre a obrigação, na posição do credor perante o afiançado, impossibilidade essa decorrente da concessão a este do beneficio da exoneração do passivo restante com a consequente extinção do credito exequendo.
De acordo com o nº 1, do artigo 245º do CIRE, a decisão final de exoneração do passivo restante importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no nº4 do art 217º do CIRE.
Este preceito (artigo 217 nº4 do CIRE) prescreve que as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.
Ou seja, a exoneração do passivo restante extingue os créditos sobre a insolvência, não sendo, contudo, afetados os direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação.
O executado veio, contudo, alegar a impossibilidade de, cumprindo a obrigação exequenda, se sub-rogar nos direitos do credor relativamente ao devedor litisconsorte que beneficiou da exoneração do passivo restante.
Efetivamente, dispõe o art 644 do CC que o fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos.
Ora, por virtude do disposto no art 245 nº1 e 217 nº4 ambos do CIRE, o credito exequendo, na parte ainda não satisfeita, extingue-se, relativamente ao devedor insolvente por virtude da exoneração do passivo restante que lhe foi concedida, pelo que ainda que o fiador venha a cumprir integralmente a obrigação exequenda perante o credor, não pode sub-rogar-se nos direitos deste contra o insolvente, pois tais direitos deixaram de existir.
Nessa senda, entende o executado que deve ser liberado do cumprimento da obrigação exequenda ao abrigo do art 635º do CC.
Dispõe o art 653 do CC que os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem.
Ora, conforme resulta expressamente deste preceito legal, para que ocorra a liberação do fiador é necessário que a impossibilidade de sub-rogação daquele nos direitos do credor decorra de facto positivo ou negativo do credor.
Veja-se a este propósito o Ac do TRC de 08.11.2016 proferido no proc 1343/14.1TBFIG-A.C1, onde se refere o seguinte:
“ (…) Para que ocorra a desoneração do devedor prevista no artigo 653º, é necessário a ocorrência de um facto voluntário, positivo ou negativo (não necessariamente culposo), do credor: é razoável que o credor perca a vantagem da fiança na medida em que a perda do direito lhe seja imputável.
O artigo 653º exige ainda um nexo de causalidade entre o facto do credor e o efeito de o fiador não poder ficar suficientemente sub-rogado nos direitos daquele. Por um lado, terá de tratar-se de direitos que, em caso de cumprimento pelo fiador, se lhe transmitiriam por sub-rogação; por outro, a medida do funcionamento do nexo de causalidade marca a medida da liberação[16]”.
In casu, o executado não alegou qualquer facto, positivo ou negativo, do credor que tenha tornado impossível a sub-rogação em causa. Limitou-se a alegar a impossibilidade da sub-rogação por virtude de um beneficio previsto na lei (a exoneração do passivo restante) que foi concedido ao afiançado, sem que que impute ao credor qualquer contribuição causal para essa situação.
Deste modo é manifestamente improcedente este fundamento de embargos.
Impõe-se, portanto, por manifesta improcedência, o indeferimento liminar dos embargos de executado, ao abrigo do art 732º nº 1 al. c) do CPC.
Pelo exposto, indefiro liminarmente os presentes embargos de executado – art 732 nº1 al. c) do CPC.
Custas pelo embargante, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Notifique e registe.”.
Inconformado, o embargante recorre desta decisão, requerendo a respectiva revogação e substituição por outra “que declare totalmente procedente os embargos deduzidos”, formulando as seguintes conclusões:
“1.º Por se ter verificado a extinção da obrigação principal afiançada, uma vez que o devedor principal foi exonerado do passivo restante no âmbito dum processo insolvência de pessoa singular nos termos do art.º 245º, n.º 1, do CIRE, verifica-se igualmente a extinção da fiança nos termos do disposto no art.º 651 do CPC.
2.º Ao ter desatendido esta pretensão do recorrente, em manifesto erro de julgamento, deverá este Tribunal de Instância recursiva fazer uso da faculdade prevista no art.º 665 do CPC, decidir imediatamente da causa, declarando procedente os embargos por se ter verificado a extinção da divida principal nos termos do disposto no art.º 651 do CPC.
3.º Transindo sem jamais consentir, sempre se dirá deve-lhe ser concedido ao recorrente o benefício cedendarum actionum uma vez que o aqui embargante perdeu o seu direito de sub-rogação.
4.º Pelo que deverá ser revogado o despacho sentença recorrido, que indeferiu os embargos de executado, igualmente por este motivo, devendo este Tribunal de Instância recursiva fazer uso da faculdade prevista no art.º 665 do CPC, decidir imediatamente da causa, declarando procedente os embargos declarando-se o embargante desonerado da obrigação que contraiu junto do embargado, na medida em que, por facto positivo deste, não pode agora ficar sub-rogado nos direitos que a este competiam, nos termos do art.º 653 do CC.”.
O apelado apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR
De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambas do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do Recorrente que se delimita o objeto e o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão do Recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que colocam. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º, nº 3 do Cód. Proc. Civil). De igual modo, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas de todas as questões suscitadas que se apresentem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (cfr. art. 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, ex vi do art. 663º, n.º 2 do mesmo diploma). Acresce que, não pode também este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas, porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas - cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 114-116.
Nestes termos, no caso em análise, a questão a decidir é a seguinte:
- se a exoneração do passivo restante no âmbito de um processo insolvência de pessoa singular, ao extinguir a obrigação principal afiançada nos termos do art. 245º, nº 1 do C.I.R.E., tem como consequências:
a) a extinção da fiança, de acordo com o art. 651º do Cód. Civil;
b) a impossibilidade de o fiador ficar sub-rogado nos direitos que lhe competem, nos termos do art. 653º do Cód. Civil.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados com interesse para a decisão do recurso são os que constam da parte I-Relatório desta decisão, que se dão aqui por integralmente reproduzidos.
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Vejamos, em primeiro lugar, se a exoneração do passivo restante decretada no processo de insolvência relativamente ao devedor mutuário, C , tem como consequência a extinção das fianças prestadas pelo embargante/ora apelante, de acordo com o art. 651º do Cód. Civil.
Para o que aqui releva, resulta assente nos autos, de forma incontroversa, que: a embargada/ora apelada celebrou dois contratos de mútuo com C , mediante os quais lhe emprestou determinas quantias monetárias, tendo o embargante/ora apelante outorgado tais contratos na qualidade de fiador; tais empréstimos não foram pagos; o mutuário C apresentou-se à insolvência, tendo-lhe sido concedida exoneração do passivo restante.
 Pretende o embargante/ora apelante que, com essa concessão de exoneração do passivo restante, se extinguiram as fianças por si prestadas.
Porém, afigura-se-nos que não tem razão.
Senão, vejamos.
No caso dos autos, o devedor mutuário foi declarado insolvente e foi-lhe concedida exoneração do passivo restante.
A exoneração do passivo restante encontra-se regulada nos artigos 235º a 248º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março (doravante, designado por C.I.R.E.).
A exoneração do passivo restante consubstancia uma medida especial de protecção do devedor pessoa singular e traduz-se na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos (actualmente e desde a entrada em vigor da Lei nº 9/2022, de 11/01, que alterou o art. 235º do C.I.R.E.; sendo que, até àquela entrada em vigor, a lei previa um prazo de cinco anos) posteriores ao encerramento deste.
É, de forma unânime, reconhecido na doutrina e na jurisprudência o espírito do legislador ao consagrar tal medida: conjugar “o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica” (cfr. Ponto 45 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o C.I.R.E.), ou seja, o princípio do fresh start para os devedores singulares de boa fé incorridos em situação de insolvência.
Os efeitos da exoneração do passivo restante encontram-se descritos no art. 245º do C.I.R.E., nos seguintes termos, com sublinhados nossos:
“1 - A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º.
2 - A exoneração não abrange, porém:
a) Os créditos por alimentos;
b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade;
c) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações;
d) Os créditos tributários e da segurança social.”
O principal efeito da exoneração do devedor consiste, pois, na extinção dos créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, ainda que não tenham sido reclamados e verificados no processo de insolvência (cfr. 1ª parte do nº 1 do preceito em referência).
Porém, este efeito extintivo das dívidas do devedor ainda existentes aquando do despacho final de exoneração não é absoluto. Na verdade (para além de não serem abrangidos pela exoneração os créditos previstos no nº 2 do citado art. 245º), para o que aqui especialmente releva, a parte final do nº 1 do mencionado preceito, remete para o nº 4 do artigo 217º que estabelece: “As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência, designadamente os que votem favoravelmente o plano, contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.” – sublinhados nossos.
O que significa, de forma cristalina, que o efeito extintivo da exoneração do passivo restante, previsto na primeira parte do nº 1 do art. 245º do C.I.R.E., não se repercute na esfera jurídica dos condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, por força da aludida remissão para a norma do nº 4 do artigo 217º do mesmo diploma. Ou seja, pese embora a extinção de dívida na esfera jurídica do devedor insolvente, os credores poderão exigir o cumprimento dos seus créditos aos condevedores ou a terceiros garantes da obrigação. Por outras palavras, ainda: esta extinção, legalmente consagrada, da obrigação do devedor insolvente não é comunicável, não afecta, a existência, nem o montante dos direitos dos credores contra os condevedores ou terceiros garantes daquela obrigação. Em suma, os créditos de que sejam titulares os credores da insolvência contra condevedores ou os terceiros garantes mantêm-se; os direitos dos credores quanto aos co-obrigados ou terceiros garantes do devedor insolvente são intocáveis.
Esta norma consagrada no nº 4 do art. 217º do CIRE, aplicável à exoneração do passivo restante, por força da parte final do nº 1 do art. 245º do mesmo diploma, é uma norma especial que protege os credores do devedor insolvente.
No caso dos autos, estão em causa, como se viu, as fianças prestadas pelo embargante/ora apelante.   
A fiança é, na definição de Vaz Serra, “uma garantia pela qual um terceiro assegura o cumprimento de uma obrigação (...), responsabilizando-se pelo devedor, se este não cumprir a obrigação” – in “Fiança e Figuras Análogas”, BMJ, nº 71, p. 19.
A fiança é, assim, uma garantia pessoal das obrigações, estando o seu regime previsto nos arts. 627º e seguintes do Cód. Civil.
Atenta esta natureza - de garantia – da fiança, é aplicável à mesma o disposto no citado art. 217º, nº 4 do C.I.R.E. – cfr., neste sentido, Ac. do TRC de 12/12/2017, Alberto Ruço, acessível em www.dgsi.pt. 
Como já se deixou dito, a norma consagrada no nº 4 do art. 217º do C.I.R.E., aplicável à exoneração do passivo restante, por força da parte final do nº 1 do art. 245º do mesmo diploma, é uma norma especial que protege os credores do devedor insolvente.
Como norma especial que é, sobrepõe-se – para o que aqui interessa, face ao concretamente invocado a este propósito nas alegações de recurso - às regras constantes dos arts. 627º, nº 2 (“A obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor”); e 651º (“A extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança”), ambos do Cód. Civil. Cfr., neste sentido, o já citado Ac. do TRC de 12/12/2017, Alberto Ruço. 
Donde, e em suma, não se verifica no caso dos autos a extinção das fianças prestadas ao devedor insolvente, improcedendo, sem necessidade de maiores considerações, a argumentação do apelante a este respeito.
Vejamos, agora, se o embargante/ora apelante, enquanto fiador, se pode exonerar da fiança, nos termos do art. 653º do Código Civil.
De acordo com este preceito, “os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem.”.
Como é sabido, tal norma encontra-se relacionada com o disposto no art. 644º do Cód. Civil, nos termos do qual o fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos.
O fundamento da desoneração do devedor prevista no art. 653º do Cód. Civil, radica na conduta (activa ou omissiva, não necessariamente culposa) do credor “que, sendo contrária à vontade do fiador, traduz-se num prejuízo concreto para o exercício dos respectivos direitos. É a natureza de acção oposta à vontade e aos interesses do fiador que está substantivamente na base da exoneração da sua responsabilidade[1], considerando a lei que esse comportamento do credor não é compatível com a manutenção da obrigação do fiador[2]. Pode ler-se, sobre esta matéria, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Junho de 2011 (relator Pinto de Almeida), publicado in www.dgsi.pt : “ Sobre a razão de ser desta norma, afirmava Vaz Serra que “o credor não deve proceder de maneira a obstar a que o fiador se sub-rogue nos seus direitos, pois, se esta sub-rogação se não der, pode ser o fiador prejudicado. Ora, o credor, assim como recebe com a fiança uma garantia para o crédito, deve, por outro lado, evitar que o fiador, por falta daquela sub-rogação, seja lesado”.” - Ac. deste Tribunal e Secção, de 14/04/2015, Luís Espírito Santo, acessível em www.dgsi.pt.
No caso dos autos, para fundamentar a aplicação da norma a que vimos aludindo, invoca o apelante, quer em sede de petição de embargos de executado (cfr. arts. 29º e 30º desse articulado), quer em sede deste recurso (cfr. penúltimo parágrafo de fls. 6 e primeiro e segundo parágrafos de fls. 7 das motivações de recurso): “o facto de o mutuário ter vindo a ser exonerado do passivo restante”.
Desta alegação, constata-se, tal como já adiantado na decisão recorrida, que o embargante/ora apelante não alegou qualquer facto, positivo ou negativo, imputável à credora (embargada/ora apelada) que tenha tornado impossível a sub-rogação em causa. Na verdade, nesta sede, o embargante/ora apelante invoca apenas a concessão da exoneração do passivo restante ao devedor principal, sem imputar ao credor qualquer contribuição causal para essa situação.
Ora, assim sendo - ou seja, não tendo sequer sido imputada à credora/embargada/apelada um comportamento (por acção ou omissão) que haja obstado ao exercício pelo fiador/embargante/apelante do seu direito de sub-rogação que o art. 653º do Código Civil lhe consentia -, resta concluir, tal como fez o tribunal a quo, pela improcedência de tal argumentação. 
Por todo o exposto, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, concluímos pela total improcedência da apelação, sendo de manter a decisão recorrida.
*
As custas devidas pela presente apelação são da responsabilidade do apelante – cfr. art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 1º, nºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais.

V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a presente apelação improcedente, e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 8 de Novembro de 2022
Cristina Silva Maximiano
Alexandra Rocha
Maria Amélia Ribeiro