EXECUÇÃO
PRESTAÇÃO DE FACTO
SOCIEDADE COMERCIAL
DISSOLUÇÃO E LIQUIDAÇÃO
HABILITAÇÃO
Sumário

I – Ainda que tenha sido registada a dissolução e encerramento da liquidação de uma sociedade comercial antes da entrada do requerimento executivo em Juízo, pode ser aplicado o disposto no art. 162º do Código das Sociedades Comerciais, sendo o título executivo uma sentença proferida antes daquele registo e correndo a execução nos próprios autos.
II – No entanto, para aquela aplicação, pretendendo-se o pagamento de quantia certa, é necessário que o exequente alegue e prove que a sociedade extinta tinha património que foi partilhado pelos sócios.
III – Sendo a execução para prestação de facto e dizendo tal facto respeito a um estabelecimento comercial da sociedade extinta, sendo indissociável do mesmo, não pode ser utilizado o mecanismo do art. 162º do Código das Sociedades Comerciais, impondo-se a habilitação, como executado, daquele para quem tal estabelecimento tiver sido transmitido.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO:
B… intentou acção executiva, para prestação de facto, contra C…, L.da, apresentando, como título executivo, uma sentença homologatória de transacção, e tendo o requerimento executivo dado entrada em Juízo em 2/3/2022.
Alega que a executada incumpriu as prestações que lhe eram impostas por aquela transacção, consistentes em:
a) nomeação de um perito para elaborar um relatório de avaliação da sala de fabrico da pastelaria explorada pela executada, com vista a identificar medidas para a redução dos ruídos;
 b) implementação dessas medidas, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do teor desse relatório;
c) deslocação, juntamente com a exequente e o perito, à pastelaria, a fim de este confirmar a execução de todas as medidas que fossem identificadas.
Finaliza pedindo que o facto seja prestado por terceiro e que seja nomeado um perito que avalie os custos, com a subsequente penhora de bens da executada.
Efectuada a citação da executada, veio A…, em 22/3/2022, apresentar requerimento de extinção da execução. Alega ter sido gerente da executada, a qual veio a ser dissolvida e liquidada, tendo a sua matrícula sido cancelada em Maio de 2021, data em que não tinha qualquer activo ou passivo, não sendo dona do estabelecimento comercial em causa nos autos, pelo que já não se mostra possível a realização da pretendida vistoria.
Ouvida a exequente, pela mesma foi, em 23/5/2022, apenas requerido que, atento o disposto no art. 162º do Código das Sociedades Comerciais, a execução prosseguisse contra os sócios da sociedade Prestígio Universal, na pessoa do seu liquidatário, nada tendo dito relativamente aos factos alegados naquele petitório de 22/3/2022 relativos à inexistência de activo.
Foi, então, proferido despacho, com o seguinte teor:
“Requerimento de 23.05.2022: Ao abrigo do disposto no art.º 162.º do CSC, defere-se o requerido”.
Não se conformando com esta decisão, dela apelou o liquidatário da sociedade executada, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
“A) Considera a recorrente que não deveria ter sido deferida a prossecução da acção contra os sócios da sociedade C…, na pessoa do seu liquidatário;
B) Em 3 de março de 2022, a exequente apresentou uma execução “para prestação de facto” contra a sociedade C…, Lda;
C) A referida sociedade executada C…, Lda foi dissolvida, liquidada e a sua matrícula cancelada em maio de 2021;
D) A exequente apresentou um requerimento a requerer a prossecução da acção contra os sócios da sociedade C…, na pessoa do seu liquidatário;
E) A exequente não alegou ou provou que o recorrente obteve bens da sociedade resultantes da partilha do seu património;
F) O Tribunal a quo proferiu douto despacho recorrido a deferir o requerido pela exequente, com uma mera remissão genérica para o artigo 162.º do CSC;
G) O despacho recorrido é contrário ao disposto no arts. 162º e 163º nº1 do C.S.C, bem como com a orientação jurisprudencial uniforme do Supremo Tribunal de Justiça sobre a matéria;
H) Conforme decidiu doutamente o Supremo Tribunal de Justiça por acórdão de 09-12-2021 “A existência de bens e a sua partilha entre os sócios da sociedade extinta constitui um facto constitutivo nos termos e para os efeitos do regime previsto no artigo 163.º, n.º 1, do CSC. II. Não tendo a exequente alegado e provado que o sócio tenha recebido algum bem por força da partilha, não poderá a execução prosseguir contra o sócio.”;
I) A referida jurisprudência, conforme referido nesse douto acórdão, segue a orientação uniforme desse Tribunal, existindo várias decisões recentes sobre a matéria em causa;
J) Não pode ser admitida a referida substituição, porquanto a exequente não alegou ou provou que o recorrente obteve bens da sociedade resultantes da partilha do seu património, nomeadamente o estabelecimento comercial em causa;
K) De acordo com o requerimento executivo, não estamos em presença de uma alegada dívida da sociedade executada;
L) Nos termos do artigo 162.º n.º 1 do CSC as acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163.º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164.º, n.ºs 2 e 5;
M) Nos termos do artigo 163.º do CSC, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada;
N) Não está em causa a continuação de uma acção em que a sociedade seja parte, pois quando a presente acção executiva foi proposta já a sociedade estava extinta e, por isso, é inaplicável o artigo 162.º n.º 1 do CSC;
O) Também não está em causa qualquer passivo social (crédito) não satisfeito ou acautelado nos termos do artigo 163.º do CSC;
P) A substituição da sociedade pelo liquidatário sempre seria inútil porquanto o mesmo não é dono, direta ou indiretamente, do estabelecimento comercial em causa;
Pelo exposto, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que não aceite a prossecução da execução contra os sócios da sociedade
Prestígio Universal, na pessoa do seu liquidatário, com o que farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA”.
Não houve contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta dos arts. 635º nº4 e 639º nº1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, as quais desempenham um papel análogo ao da causa de pedir e do pedido na petição inicial. Ou seja, este Tribunal apenas poderá conhecer da pretensão e das questões [de facto e de direito] formuladas pelo recorrente nas conclusões, sem prejuízo da livre qualificação jurídica dos factos ou da apreciação das questões de conhecimento oficioso (garantido que seja o contraditório e desde que o processo contenha os elementos a tanto necessários – arts. 3º nº3 e 5º nº3 do Código de Processo Civil). Note-se que “as questões que integram o objecto do recurso e que devem ser objecto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. Argumentos não são questões e é a estes que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa”. Por outro lado, não pode o tribunal de recurso conhecer de questões novas que sejam suscitadas apenas nas alegações / conclusões do recurso – estas apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, salvo os já referidos casos de questões de conhecimento oficioso [cfr. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 2022 – 7ª ed., págs. 134 a 142].
Nessa conformidade, são as seguintes as questões que cumpre apreciar:
- a existência de erro de julgamento, decorrente da falta de preenchimento dos pressupostos do art. 162º do Código das Sociedades Comerciais.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Embora a decisão sob recurso não tenha indicado quaisquer factos, limitando-se a remeter para o requerimento da exequente de 23/5/2022, impõe-se discriminar a seguinte matéria assente, com relevância para a decisão[1]:
A) Mediante sentença proferida em 7/11/2019, no âmbito do processo nº 4158/17.1T8OER, que correu termos no Juízo Local Cível de Oeiras (Juiz 1), no qual foi A. B…. e R. C…, L.da, foi homologada a transacção celebrada entre as partes – documento que consta do sistema informático CITIUS do processo principal com data de 2/3/2022, ref. 20560219, e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
B) Aquela transacção tem o seguinte teor:
“1 – A autora desiste do peticionado nos pontos 1, 2, 4, 5 e 6 do petitório deduzido;
2 – No que concerne ao ponto 3 do petitório, e por referência apenas à sala de fabrico da pastelaria, as partes acordam no seguinte:
2.1 - A ré compromete-se a não utilizar os carrinhos de fabrico nessa mesma sala no período que decorre entre as 5 horas e as 7 horas da manhã;
2.2 - A ré compromete-se a utilizar os tabuleiros apenas a partir das 6 horas da manhã;
2.3 - A ré compromete-se a, no prazo de 8 dias, começar a aplicar sobre as mesas existentes na sala de fabrico de pastelaria, uns tapetes de silicone com vista a minimizar os ruídos produzidos pelo contacto dos tabuleiros de alumínio sobre essas mesmas mesas;
3 – Mais acordam as partes no seguinte, e por referência apenas à sala de fabrico da pastelaria:
- A autora no prazo máximo de 8 dias indicará à ré na pessoa do seu Exmo. mandatário a identificação de uma entidade/pessoa que realizará uma avaliação na sala de fabrico da pastelaria com vista a identificar outras possíveis medidas a adoptar para a redução dos ruídos, clarificando que estas medidas terão que ser similares em termos da sua natureza não estrutural àquelas que já se encontram identificadas na cláusula 2;
3.1 - A ré dispõe de igual prazo de 8 dias a fim de comunicar à autora se concorda com a indicação efetuada por esta ou se indica, nesse mesmo prazo, outra entidade/pessoa que acompanhe aquela que a autora já indicou e a fim de em conjunto produzirem um relatório com os fins já indicados em 3;
3.2 - Quando conhecido pelas partes o relatório elaborado pelo perito ou peritos, a ré compromete-se a no prazo máximo de 30 dias executar/implementar as medidas que vierem a ser definidas no relatório elaborado pela entidade (e/ou entidades) nomeadas pelas partes;
3.3 - Findo o prazo de 30 dias para a implementação das medidas mais acordam as partes na deslocação à pastelaria do perito ou peritos que elaboraram o relatório a fim de confirmarem a execução de todas as medidas que foram identificadas a realizar;
4 – O custo das medidas a implementar na decorrência do relatório a ser elaborado será integralmente suportado pela ré;
5 – O custo com os relatórios ou relatório a produzir será suportado em partes iguais por autora e ré;
6 – Custas a dívida a juízo em partes iguais, prescindido ambas as partes das custas de parte”.
C) Em 20/5/2021 foram levados a registo a dissolução e encerramento da liquidação da sociedade C…, L.da, e o cancelamento da sua matrícula, sendo depositário A…. – documento que consta do sistema informático CITIUS do processo principal com data de 27/6/2022, ref. 21340871, e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
D) Na data da sua dissolução e liquidação, a C…, L.da, não era dona do estabelecimento comercial sito na Avenida …. [art. 4º do requerimento de 22/3/2022, não impugnado nessa parte].
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Pela execução, pretende a exequente a prestação de um facto [elaboração de um relatório pericial e subsequente implementação das medidas que resultarem desse relatório]. Alegando que se trata de facto que pode ser prestado por terceiro, pede que seja avaliado o custo da prestação e que sejam penhorados os bens da executada necessários ao respectivo pagamento.
Tendo a execução sido apresentada em 2/3/2022, apurou-se, após a diligência de citação da executada, que esta se encontra dissolvida e liquidada, com cancelamento da sua matrícula, factos que foram levados a registo em 20/5/2021 (portanto, antes da entrada do requerimento executivo em Juízo).
Nos termos do art. 162º do Código das Sociedades Comerciais:
“1 - As acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163.º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164.º, n.ºs 2 e 5.
2 - A instância não se suspende nem é necessária habilitação”.
Por seu turno, refere aquele art. 163º que:
“1 - Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.
2 - As acções necessárias para os fins referidos no número anterior podem ser propostas contra a generalidade dos sócios, na pessoa dos liquidatários, que são considerados representantes legais daqueles para este efeito, incluindo a citação; qualquer dos sócios pode intervir como assistente; sem prejuízo das excepções previstas no artigo 341.º do Código de Processo Civil, a sentença proferida relativamente à generalidade dos sócios constitui caso julgado em relação a cada um deles.
3 - O antigo sócio que satisfizer alguma dívida, por força do disposto no n.º 1, tem direito de regresso contra os outros, de maneira a ser respeitada a proporção de cada um nos lucros e nas perdas.
4 - Os liquidatários darão conhecimento da acção a todos os antigos sócios, pela forma mais rápida que lhes for possível, e podem exigir destes adequada provisão para encargos judiciais.
5 - Os liquidatários não podem escusar-se a funções atribuídas neste artigo, sendo essas funções exercidas, quando tenham falecido, pelos últimos gerentes ou administradores ou, no caso de falecimento destes, pelos sócios, por ordem decrescente da sua participação no capital da sociedade”.
Finalmente, prevê o mencionado art. 164º que:
“1 - Verificando-se, depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade, a existência de bens não partilhados, compete aos liquidatários propor a partilha adicional pelos antigos sócios, reduzindo os bens a dinheiro, se não for acordada unanimemente a partilha em espécie.
2 - As acções para cobrança de créditos da sociedade abrangidos pelo disposto no número anterior podem ser propostas pelos liquidatários, que, para o efeito, são considerados representantes legais da generalidade dos sócios; qualquer destes pode, contudo, propor acção limitada ao seu interesse.
3 - A sentença proferida relativamente à generalidade dos sócios constitui caso julgado para cada um deles e pode ser individualmente executada, na medida dos respectivos interesses.
4 - É aplicável o disposto no artigo 163.º, n.º 4.
5 - No caso de falecimento dos liquidatários, aplica-se o disposto no artigo 163.º, n.º 5”.
Ora, antes de mais, poderia pensar-se que – como defende o recorrente – a aplicação do disposto no referido art. 162º do Código das Sociedades Comerciais, dispensando a dedução de incidente de habilitação, pressupõe que aquando da extinção da sociedade esta já fosse parte na acção em causa, o que não acontece no caso dos autos, em que havia já ausência de personalidade jurídica e judiciária da executada à data em que foi apresentada a execução (cfr. arts. 160º nº2 do Código das Sociedades Comerciais e 11º do Código de Processo Civil). Porém, não é assim.
Com efeito, resulta dos arts. 85º nº1 e 2 e 626º do Código de Processo Civil que no caso (como o que nos ocupa) de execução de decisão judicial condenatória, a execução corre nos próprios autos da acção declarativa [embora de forma autónoma].
Ora, a sentença exequenda foi proferida, naquela acção declarativa, em 7/11/2019, o que significa que, quando se verificou a extinção da aqui executada (20/5/2021 – cfr. art. 160º nº2 do Código das Sociedades Comerciais), esta já era parte no processo no qual corre a execução.
Nessa perspectiva, poderia ser aplicado no caso dos autos o disposto no mencionado art. 162º. Porém, esta norma não determina, sem mais, que as acções em que a sociedade seja parte continuem após a extinção desta – tal só ocorre nos termos dos já citados artigos 163.º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164.º, n.ºs 2 e 5.
Se analisarmos estas normas, de imediato concluímos que o art. 162º do Código das Sociedades Comerciais apenas se pode aplicar se existir passivo social não satisfeito e até ao montante que os sócios tiverem recebido na partilha.
Assim, desde logo, para que ocorra “a substituição da sociedade extinta pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, com o prosseguimento da execução nesses termos, é necessário que o exequente alegue e prove que a sociedade executada extinta tinha bens ou direitos que foram partilhados pelos sócios. Não cumprindo tais ónus, a execução deve ser declarada extinta, por inutilidade superveniente da lide”[2].
No caso dos autos, conforme resulta quer do relatório supra, quer dos factos assentes, vemos que a exequente não cumpriu tal ónus, já que se limitou a peticionar a substituição da executada pelos seus sócios, sem aludir a qualquer património social que tenha sido partilhado. Aliás, pelo contrário, nem sequer impugnou (o que havia sido oportunamente alegado pelo liquidatário da executada) que, na data da sua dissolução e liquidação, a C…, L.da, não tivesse qualquer activo.
Deste modo, não estando alegada a existência de quaisquer bens da executada sociedade que tenham sido partilhados e sejam susceptíveis de penhora [que é a finalidade última pretendida pela exequente – que declarou optar pela prestação de facto por terceiro], não pode considerar-se preenchida a hipótese do art. 162º do Código das Sociedades Comerciais, pelo que, por esta via, não pode subsistir a decisão recorrida.
Não é, também, caso de determinar que a exequente seja convidada a aperfeiçoar o seu requerimento de 23/5/2022, de modo a alegar a existência desses bens, discriminando-os e invocando a sua partilha pelos sócios, dado que, por um lado, trata-se de factos essenciais que constituem a causa de pedir e que foram totalmente omitidos [não podendo a falta de alegação ser suprida – cfr. arts. 590º nº4 e 5º nº2, a contrario, do Código de Processo Civil] e, por outro, tendo já tido oportunidade de se pronunciar acerca da invocada inexistência de activo da sociedade, a exequente nada disse.
Além disso, há que assinalar que, nos termos do art. 10º nº5 e 6 do Código de Processo Civil, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva, fim esse que pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo, quer negativo.
Deste modo, o objecto da execução tem de corresponder ao objecto da situação jurídica acertada no título, o que requer a prévia interpretação deste (cfr. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 1999, pág. 87). É assim que a acção executiva para pagamento de quantia certa tem lugar sempre que o objecto da obrigação, tal como o título o configura, é a prestação de uma quantia pecuniária, enquanto a acção executiva para prestação de facto tem lugar sempre que o objecto da obrigação, tal como o título o configura, é uma prestação de facto, seja este de natureza positiva (obrigação de facere) ou negativa (obrigação de non facere) – cfr. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva depois da reforma, 4ª ed., págs. 155 e 387.
Ora, mediante a sentença exequenda, a sociedade executada foi condenada, prima facie, a diligenciar pela obtenção de um relatório pericial que identificasse quais os procedimentos a adoptar para reduzir os barulhos provenientes da sua actividade na sua sala de fabrico de pastelaria e, após, a implementar esses procedimentos.
Assim, temos que a prestação em que a executada foi condenada não foi, em primeira linha, pecuniária, mas sim uma obrigação de facere, a prestação de um facto positivo, que só pode ser cumprida na sala de fabrico de pastelaria em que a executada exercia a sua actividade. Ora, encontrando-se a executada extinta, não pode, por definição, exercer qualquer actividade, pelo que a obrigação que resulta da sentença exequenda só poderá ser cumprida pela(s) pessoa(s) para quem tiver sido transmitido aquele estabelecimento comercial, seja um sócio, sejam alguns sócios, ou seja um terceiro. Deste modo, para que a execução pudesse prosseguir, era imperativo que a exequente, alegando os factos pertinentes, efectuasse a habilitação desse adquirente [cfr. art. 356º do Código de Processo Civil], não sendo idóneo para tanto o mecanismo do art. 162º do Código das Sociedades Comerciais, que pressupõe a intervenção da generalidade (indiscriminada) dos sócios [os quais poderão não ter na sua titularidade e, portanto, na sua esfera de acção, o estabelecimento em causa].
 Com efeito, a regra de que a sociedade se considera substituída pela generalidade dos sócios corresponde apenas “aos casos normais, como de acções de cobrança de dívidas da sociedade, mas não se adapta a toda e qualquer espécie de acção que esteja pendente contra a sociedade. Pode, com efeito, suceder que (…) o bem social a que a acção respeita tenha cabido a determinado sócio”, ou a um terceiro, “e, portanto, a ação deve continuar só contra este, nos termos gerais”[3].
Conclui-se, pois, que também por esta via não pode subsistir o despacho recorrido.
Uma última palavra para referir que não cabe a este tribunal optar pela extinção da execução ou suspensão da mesma para habilitação [sendo, aliás, certo que tal não vem pedido], sob pena de eliminação de um grau de jurisdição, atendendo a que o tribunal de primeira instância não se pronunciou ainda sobre o requerimento de 22/3/2022, o que lhe compete fazer.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que indefere o prosseguimento da execução contra a generalidade dos sócios da executada, substituídos pelo liquidatário.
Custas pela apelada – art. 527º do Código de Processo Civil.

Lisboa, 08-11-2022
Alexandra de Castro Rocha
Maria Amélia Ribeiro
Isabel Salgado
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[1] Cfr. art. 662º nº1 do Código de Processo Civil.
[2] Cfr. Ac. RL de 13/10/2022, proc. 4632/09 (disponível em http://www.dgsi.pt). No mesmo sentido, e no mesmo sítio, podem consultar-se os Ac. RL de 24/6/2014 (proc. 6804/10), RP de 15/11/2021 e 16/5/2017 (proc. 15/14 e 2899/15), RC de 22/3/2011 (proc. 1447/08), e STJ de 12/3/2013 e 1/10/2019 (proc. 7414/09 e 4022/06).
[3] Cfr. Raul Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades, 1993, pág. 467.