IMPUGNAÇÃO DA PERFILHAÇÃO
FALTA INJUSTIFICADA A EXAME
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO PASSIVO
Sumário

I - Em acção de impugnação de perfilhação intentada contra o perfilhante, a falta injustificada deste a exame hematológico acarreta, em regra, a inversão do ónus da prova.
II – Não há lugar, no entanto, a esta inversão quando, no lado passivo da acção, figurar também o perfilhado. 

Texto Integral

Acordam na Secção Cível (3.ª Secção), do Tribunal da Relação de Coimbra

1.1.- AA veio intentar acção comum de impugnação de paternidade contra BB e CC, pedindo que se declare que o R. perfilhante não é o pai do R. perfilhado, se declare a nulidade do acto de perfilhação feito pelo primeiro e se ordene o cancelamento do averbamento da paternidade do 1º R. no registo de nascimento do 2º.

Para fundamentar tal pretensão alega, em síntese que é mãe do 2º R. e embora se encontre averbada como pertencente ao primeiro R. a paternidade do segundo, na realidade isso não corresponde à verdade biológica, pois ela A. manteve com terceiros, relações sexuais nos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o nascimento do 2º R..

Foi nomeado curador especial ao R. CC, atenta a sua menoridade e a circunstâncias de A. e 1º R., serem partes nos autos.

                                                                  ***

1.2. - O dito R. foi citado na pessoa do curador especial nomeado e o 1º R, na sua própria pessoa.

Não foi apresentada contestação.

                                                                   ***

1.3. - Por escrito, foi proferido despacho saneador que, de forma tabelar, aferiu positivamente os pressupostos de validade e regularidade da instância.

Na mesma sede se fixou o objecto do litígio e consignou os temas de prova, sem que tivessem sido apresentadas reclamações.

Na sequência de pretensão nesse sentido apresentada, foi determinada a realização de exames hematológicos, os quais não foi possível concluir, pois o 1º R., não obstante regular a pessoalmente notificado para tal não compareceu nas várias datas agendadas e nada disse tendente a justificar a sua ausência.

A A. nada requereu, em consequência da comunicação que de tal ocorrência lhe foi feita.

Realizou-se audiência de julgamento, com observância do legal formalismo, conforme da acta elaborada, nessa sequência, melhor consta.

Os pressupostos de validade e regularidade da instância mantêm-se inalterados desde o momento da sua apreciação.

Após foi proferida sentença onde se decidiu:

1)- Julgar a ação improcedente;

2)-Manter o registo ao assento de nascimento do segundo R., nos exactos termos em que se encontra redigido.

3)- Condenar a A. nas custas do processo, sem prejuízo do apoio judiciário que a beneficia.

Registe e notifique.

        ***

1.4. – Inconformada com tal decisão dela recorreu a A. AA, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

“1ª- Vem este recurso interposto da douta sentença proferida nos autos à margem identificados em 30/9/2021, pelo qual foi a ação de impugnação de perfilhação, totalmente improcedente, por não provada.

2ª- Nos arts. 1º a 9º da p.i., o ora recorrente alegou o seguinte:

-No dia 30 de Junho de 2018 nasceu o menor CC, aqui segundo réu.

-No respectivo assento de nascimento, lavrado a 03 de Julho de 2018, com o n.º 2161 a paternidade do segundo réu não foi estabelecida.

-Todavia, por declaração de 27 de Julho de 2018, prestada junto da Conservatória do Registo Civil ..., o 1,º Réu declarou que “reconhece como seu filho” o aqui segundo réu.

-A dita Conservatória do Registo Civil lavrou o respectivo assento de perfilhação, com o n.º 7 do ano de 2018 .

-Pelo que, actualmente, o segundo réu está registado com a indicação de maternidade da aqui Autora, e com a menção de paternidade do ora 1.º Réu.

-Ora, sucede que o 1.º Réu não é o pai biológico do segundo réu.

-Com efeito, a autora manteve relações sexuais com terceiros durante os primeiros 120 dias dos 300 dias que precederam o nascimento do segundo réu.

-Não correspondendo, portanto, à verdade que o segundo réu é filho do 1.º Réu.»

3ª- Requerendo que fosse efetuado o exame de ADN, ao 1.º Réu para que efetivamente se prove de que o mesmo não é o Pai.

4ª- O 1.º Réu recusou se a comparecer nas várias tentativas de recolha e com a sua conduta determinou a impossibilidade da prova direta da procriação biológica, que era em concreto, o meio idóneo para a Autora fazer prova da invocada falta de coincidência entre a verdade registada e a verdade biológica, enquanto facto essencial constitutivo do direito, que se arroga na ação de impugnação da perfilhação.

5ª- Deve operar a inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.º n.º 2 Código Civil.

6ª-Passando a incumbir ao 1.º Réu demonstrar que é efetivamente o pai biológico da criança, aqui 2.º Réu.

Por conseguinte, entende a ora recorrente que A Mmª Juíza a quo deveria ter considerado o ónus da prova nos termos do previsto no artigo 344.º n.º 2 CC e julgando a ação de impugnação de perfilhação procedente.

Termos em que, deve a apelação ser julgada procedente, com o que se fará a necessária e costumada

Justiça!”

    ***

1.5. Feitas as notificações a que alude o art.º 221.º, do C.P.C. respondeu o Ministério Público, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

1- A Autora AA invoca a sua discordância relativamente à interpretação dada às normas jurídicas na sentença recorrida;

2- Já que, tendo o 1.º Réu recusado comparecer nas várias tentativas de recolha,   sua conduta determinou a impossibilidade da prova direta da procriação biológica, o que em concreto era o meio idóneo para a Autora fazer a prova da invocada falta de coincidência entre a verdade registada e a verdade biológica, enquanto facto essencial constitutivo do direito, que se arroga na ação de impugnação de perfilhação.

3- Todavia, entendeu, e bem, o Tribunal não assacar consequências à falta de comparência do 1.ª réu do INML,CF, para a recolha de material biológico e realização de exames hematológicos;

4- Não operando, neste caso, a inversão do ónus da prova a que alude o art.º 344.º n.º 2 do Código Civil.

5- Já que havendo dois réus, em litisconsórcio necessário, o 2.º réu não adotou conduta omissiva, culposa, não lhe podendo ser imposta a sanção da inversão do ónus da prova.

6- E, tendo o 1.º R. declarado perante oficial publico ser o pai do 2.º R. não foi apresentada prova da desconformidade do declarado com a verdade.

Pelo exposto, deverá ser mantida a douta sentença proferida, nos seus precisos termos, pugnando-se, assim, pela total improcedência do recurso interposto.

Termos em que se conclui pela manutenção da sentença recorrida, devendo assim o presente recurso ser julgado improcedente.

Mas, V.Ex.ªs farão acostumada

JUSTIÇA!”

                                                                        ***

1.6. - Foi proferido despacho a receber o recurso do seguinte teor:

“ Recurso interposto com legitimidade e em tempo, que vai admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e efeito suspensivo.

Notifique.”

                                                                       ***

1.7. - Com dispensa de vistos cumpre decidir.
    ***

                                                      2.- Fundamentação

Da discussão da causa resultou provada a seguinte factualidade:

1. No dia 30.6.2018, na freguesia ..., ..., ... e ..., concelho ..., nasceu uma pessoa do sexo masculino, a quem foi dado o nome de CC.

2. Tal indivíduo foi registado como filho de AA, no estado de divorciada, sem referência à paternidade.

3. No dia 27.7.2018, nas instalações da Conservatória do Registo Civil ..., BB declarou reconhecer como seu filho o referido CC.

4. Em consequência de tal reconhecimento do assento de nascimento de CC passou a constar o nome do pai como o dito perfilhante.

5. Notificado para comparecer aos exames hematológicos agendados nos autos, o R. BB não o fez nem justificou a sua falta.

                                                                       *

Não se provou a restante matéria alegada;

- designadamente que o reconhecimento da paternidade dado como provado não corresponda efectivamente à verdade biológica subjacente ao nascimento do R. CC, (matéria retirada por este Tribunal)

- que a A. tenha mantido com terceiros relações sexuais, nos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o nascimento do referido R..

                                                                       ***

     3. Motivação

É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

Constitui ainda communis opinio, de que o conceito de questões de que tribunal deve tomar conhecimento, para além de estar delimitado pelas conclusões das alegações de recurso e/ou contra-alegações às mesmas (em caso de ampliação do objeto do recurso), deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes, bem como matéria nova antes submetida apreciação do tribunal a quo – a não que sejam de conhecimento oficioso - (vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. ed., Almedina, pág. 735.

Calcorreando as conclusões das alegações do recurso, verificamos que a questão a decidir consiste em saber – Se a sentença recorrida deve ser anulada e substituída por acórdão onde se decida pela procedência da ação.

                                                           *

Antes de entrarmos, propriamente, na análise do recurso, cabe referir, que por conclusiva, será retirada da matéria de facto, não proada, o colocado a negrito na mesma, apesar de não ter relevo por não provada.

                                                           *

A recorrente assenta o seu ponto de vista na inversão do ónus da prova, pois refere que requereu que fosse efetuado o exame de ADN, ao 1.º Réu para que efetivamente se prove de que o mesmo não é o Pai.

Este recusou se a comparecer nas várias tentativas de recolha e com a sua conduta determinou a impossibilidade da prova direta da procriação biológica, que era em concreto, o meio idóneo para a Autora fazer prova da invocada falta de coincidência entre a verdade registada e a verdade biológica, enquanto facto essencial constitutivo do direito, que se arroga na ação de impugnação da perfilhação.

Devendo, por isso, segundo, o seu ponto de vista, operar a inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.º n.º 2 Código Civil, passando, por isso, a incumbir ao 1.º Réu demonstrar que é efetivamente o pai biológico da criança, aqui 2.º Réu.

Opinião oposta teve o recorrido Ministério Público que pugna pela manutenção do decidido.

A sentença recorrida para defender o seu ponto refere: “Tem entendido a jurisprudência mais recente, e também a doutrina, particularmente no que respeita à recusa do Réu de se submeter a exames hematológicos em sede de acção de investigação ou impugnação de paternidade, que a consequência da inversão do ónus da prova deve aplicar-se nos casos em que, tal recusa impossibilita a prova do facto a provar pela contra parte, por não ser possível consegui-la por outros meios, atenta a sua importância neste tipo de acções, conforme se conclui das várias posições jurisprudenciais e doutrinárias supramencionadas, muito embora com algumas posições divergentes (no sentido de que a sanção de ordem probatória para a recusa ilegítima é apenas a prevista no segundo período do n. 2 do artigo 519 do CPC então em vigor -livre apreciação do facto pelo tribunal-, não havendo lugar à inversão do ónus da prova, aludida no artigo 344 n. 2) entre os quais se conta o Ac. de 09-12-1993, em www.dgsi.pt..

Tendemos, efectivamente, em regra, a adoptar a primeira tese exposta no sentido de que a recusa ilegítima de colaboração deve ter por consequência a inversão do ónus da prova, verificadas que sejam os pressupostos acima referidos, não cabendo aqui apurar a eventual legitimidade da recusa, até porque ela não foi invocada pelo 1º R..

Nesse sentido, afigura-se-nos agora pertinente se no caso concreto é legitimo sancionar o recusante com as sanções referidas no art.º 417.º n.º 2 do CPC, o que parece lógico em função do raciocínio que se vem de expor e, nessa medida, transferir para os RR. o ónus de provar a conformidade do acto de perfilhação com a verdade biológica, se será, meramente, de, por aplicabilidade do que alude o n.º 2 do art.º 417.º, concluir que o tribunal aprecie livremente o valor da recusa, ou então não assacar daí quaisquer consequências.

No caso dos autos parece-nos ser esta última a solução adoptar, não obstante tudo o que antes se deixa dito.

Efectivamente no caso dos autos, não existe apenas um R., mas dois, que entre si se não confundem e que em caso como o presente têm se ser demandados, em litisconsórcio necessário, legalmente imposto pelo art.º 1846.º, pois que são respectivamente de perfilhante e perfilhado, sendo a A. a mãe deste.

Ora, o perfilhado não adoptou qualquer conduta omissiva, culposa, ou não, donde, para ele seria indevida a sanção da inversão do ónus da prova que para si seria demasiado penalizadora.

De resto, o desfecho da lide diz-lhe, directamente, respeito em medida pelo menos idêntica ao que se pode concluir para o R. perfilhante e em todo o caso superior ao da própria A., que só reflexamente poderá considerar-se atingida ou afectada pela questão da paternidade de seu filho.

E, nessa medida, salvo melhor opinião, não se poderia aqui concluir no mencionado sentido, até porque a manutenção do acto de registo por falta de prova da desconformidade, trará a este R., muitos menos desvantagens futuras, caso tal desconformidade exista, pois não estará impedido de actuar novamente nesse sentido, atenta a sua menoridade e os fundamentos de tal eventual improcedência, enquanto a inversa já poderá não ser verdadeira.

No caso dos autos, aliás, a alegação da A. é vaga, pois a mesma nunca disse que não se tinha relacionado sexualmente com o 1º R., o que se entende bem, à luz de critérios de normalidade, pois mal se compreenderia que este viesse perfilhar, se não fosse sua convicção ser o pai da criança, a qual só lhe poderia advir da existência de um tal tipo de relacionamento, ressalvada, a hipótese de fraude voluntária à lei, que se não concebe, muito menos sem intervenção activa e directa da própria A..

Nessa circunstância, a singela circunstância de ter a A. mantido relações de cópula com terceiros, por si só, não inviabiliza a fecundação por parte do 1º R., sendo a alegação de falta de correspondência entre a declaração de perfilhação e a realidade biológica meramente conclusiva, por traduzir o facto jurídico que serve de fundamento a toda a acção (causa de pedir).

Diga-se, aliás, que a única testemunha ouvida, confirma que A. e R. acompanhavam um com o outro antes daquela engravidar, embora diga que não lhe conhecia relacionamento íntimo, mas igualmente diz, que não lho conhecia com qualquer outro homem, o que não deixa de ser sintomático.

Razão para o 1º R. ter declarado perante oficial público ser o pai do 2º R., não foi alegada nem apresentada para dentro de patamares da dita normalidade se concluir pelas razões que motivaram a desconformidade do declarado com a verdade.

Resta-nos dizer que num caso como este, em que o R. perfilhante não tem paradeiro desconhecido e efectivamente não é o pai da criança, ao contrário do que declarou, não se vislumbram motivos óbvios, para não tendo ele próprio vindo pedir ao tribunal que declare o contrário, seja a própria mãe da criança a fazê-lo, e ele, um dos maiores interessados na reposição da verdade, não queira fazer o exame que indiscutivelmente o eximirá de uma responsabilidade que substancial e moralmente lhe não pertence.

Já pelo contrário, com alguma facilidade se conseguem descortinar motivos para a posição que nos autos adoptou, se estivermos perante um pai verdadeiro, mas sem vontade de o ser, que pretenda eximir-se ás suas inerentes responsabilidades, ficcionando uma realidade de falta de colaboração com exames que na realidade não pretende fazer, porque resultado efectivo poderia não ser o pretendido, o que igualmente poderia salvaguardar os interesses da mãe do seu filho, se tivesse reorganizado a sua vida e pretendesse segui-la livremente, mas não satisfaria os interesses da criança, assim subtraído ás suas raízes.

Nesses termos, não tendo a A. logrado provar como lhe competia, para além das apontadas dúvidas, que o perfilhante não é o verdadeiro pai seu filho, o perfilhado, o que se presume verdadeiro, improcede a presente acção”.

Vejamos.

A questão que temos, entre mãos, consiste em saber, se numa impugnação de paternidade, onde houve perfilhação, o perfilhante, que culposamente não realizar os testes de ADN, ocorre na inversão do ónus da prova.

Como se sabe, é notório o valor probatório, em acções de investigação e de impugnação de paternidade, como é o caso em apreço, dos exames de sangue, cujos resultados - saliente-se - tanto podem ser favoráveis ao A. como ao R., no caso perfilhante.

A recusa do réu nas acções de reconhecimento, bem como de impugnação de paternidade, em submeter-se a exame hematológico tem sido discutida na doutrina e na jurisprudência à volta de três questões:

- se a recusa é legítima; se o exame pode ser realizado coercitivamente; se a recusa inverte o ónus da prova.

Dispõe o artº 417º, nº 1 do CPC que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.

Nos termos do nº 2 do mesmo normativo, aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; e se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do artº 344º do CC.

 O dever de cooperação para a descoberta da verdade tem dois limites: o respeito pelos direitos fundamentais, imposto pela CRP e referido nas als. a) e b) do nº 3 do artº 417º do CPP; e o respeito pelo direito ou dever de sigilo, a que se refere a al. c) do nº 3 do mesmo normativo.

A jurisprudência tem-se pronunciado tendencialmente, cremos mesmo em grande maioria, no sentido de que da ilegitimidade da recusa do réu em se submeter a exames hematológicos nas acções de reconhecimento e de impugnação da paternidade e da impossibilidade da realização coerciva do exame, origina a inversão do ónus da prova.

De acordo com a maioria dos arestos (cfr. entre outros, os Acs. do STJ de 04.10.94, www.dgsi.pt, e desta Relação de 12.02.87, CJ-I-231, de 16.02.89, CJ-I-193 e de 21.09.99, CJ-IV-203), a recusa é ilegítima porque viola o dever de colaboração das partes, já que a realização do exame hematológico é um acto necessário à descoberta da verdade e não se trata de acto vexatório, humilhante ou causador de grave dano (artº 417, nº 3 do CPC); mas a coacção da parte a submeter-se ao exame é ilícita porque viola a sua integridade física e é atentatória da sua dignidade.

É esta também a orientação da doutrina (cfr. Lebre de Freitas (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, pág. 411).

No mesmo sentido, Guilherme de Oliveira, in Estabelecimento da Filiação, pág. 19.], tido em conta o dever de colaboração, não é legítima a recusa à realização dos exames hematológicos em acção relativa à filiação (artº 1801º); mas, tida em conta a tutela dos direitos de personalidade, não é admissível a execução coerciva desses exames

Também Rui Rangel, in “O Ónus da Prova no Processo Civil”, pág. 300 entende que a prática de um acto médico pode constituir violação dos direitos fundamentais do homem e do cidadão, constitucionalmente consagrados.

Sendo ilegítima a recusa da submissão da parte a exame e não podendo o tribunal usar meios coercivos para a realização do exame, deve condenar a parte faltosa em multa, nos termos do artº 417, nº 2, 1ª parte do CPC”.

Resta aferir das consequências da recusa à luz do disposto na 2ª parte do mesmo nº 2: se há lugar à inversão do ónus da prova nos termos do artº 344º, nº 2 ou simplesmente à sua livre valoração em termos de prova.

O citado artº 344º, nº 2 estabelece que há inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado.

Lebre de Freitas, in Obra citada, pág. 409, entende que se verifica o condicionalismo daquele normativo quando a conduta do recusante impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos. Se outra prova dos factos em causa não existir ou, existindo, for insuficiente, a recusa pode dar lugar à inversão do ónus da prova, que ficará a cargo da parte não cooperante.

No mesmo sentido, Rui Rangel, in Obra citada, pág. 301, entende que o regime previsto no nº 2 do artº 344º não pressupõe que o único meio de prova idóneo para a demonstração de determinado facto seja o inviabilizado pela conduta culposa da parte. Basta que se trate de meio de prova de especial relevância, isto é, que só por si fosse idóneo para garantir a procedência da acção.

No que respeita à recusa da parte em se submeter a exame hematológico nas acções de reconhecimento e de impugnação de paternidade, entendem aqueles autores que há lugar à inversão do ónus da prova quando o exame for o único meio de provar a filiação biológica e a recusa implique a impossibilidade de o autor fazer essa prova, privando-o da prova directa, por meios científicos [Lebre de Freitas, obra e lugar citados na nota 7 e ainda “A Acção Declarativa Comum”, pág, 185; e Rui Rangel, obra e lugar citados na nota anterior.].

Também Lopes do Rego, in “Comentários do Código de Processo Civil”, pág. 361), refere que se o exame se configurar como absolutamente essencial à determinação da filiação biológica – implicando consequentemente a recusa do pretenso pai verdadeira impossibilidade de o autor fazer prova da invocada filiação biológica – deverá aplicar-se o preceituado no nº 2 do artº 334º, presumindo-se a paternidade.

Já Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, III vol., 3ª ed., pág. 326), defendia que se a parte não se submete a inspecção tendente a verificar certo facto, se deve ter esse facto por provado.

A jurisprudência, em tempos, mostrou-se dividida quanto a esta questão, propendendo alguns arestos para a posição doutrinária acima exposta (cfr. os Acs. do STJ de 28.05.02, e desta Relação de 21.09.99 e de 16.10.00 e 15.01.04, respectivamente), entendendo outros que, para além da multa prevista na 1ª parte do nº 2 do artº 417,º art.º 519.º, do C.P.C., revogado, do CPC, a sanção de ordem probatória da recusa só pode ser a sua livre apreciação pelo tribunal nos termos da 2ª parte do mesmo normativo (cfr. Ac. do STJ de 04.10.94).

Por outro lado, o Ac. do TC 616/98 de 21.10.98 [DR-II série de 17.03.99.], DR-II série, de 17.03.99 considerou constitucional a valoração da recusa nos termos do artº 519ºdo CPC., hoje 417.º, do C.P.C., vigente.

Concordamos com a primeira das posições acima expressas, desde logo, por a não entender-se assim, no fundo, seria quase deixar nas mãos do R. a possibilidade de a verdade ser alcançada, para tanto, bastaria não haver qualquer outra prova.

A recusa ilegítima da parte em se submeter a exame constitui violação do dever de colaboração consagrado no artº 417, n.º 1, do CPC, não podendo aquela conduta deixar de se considerar culposa.

Acresce que a conduta culposa da parte pode ser omissiva, pelo que, é de atribuir à falta injustificada ao exame os mesmos efeitos que à recusa expressa em se submeter a exame: a parte que falta injustificada e, por vezes, reiteradamente, aos exames marcados, inviabiliza a prova exactamente da mesma forma que a parte que declara não querer submeter-se ao exame [Neste sentido, ver o Ac. do STJ de 28.05.02, relatado por Afonso de Melo).

Já concluímos pela relevância do exame hematológico e de outros métodos científicos na acção de impugnação e de impugnação de paternidade, pelo que o entendimento que perfilhámos para as acções de reconhecimento e de impugnação da paternidade é válido para aquele tipo de acções.

Por isso, a conduta do réu da acção de impugnação de paternidade que falta injustificadamente ao exame hematológico, acarreta a inversão do ónus da prova nos termos do art.º 344.º, n.º 2, caso a prova produzida nos autos se venha a revelar insuficiente para determinar a procedência da acção. (cfr.neste sentido entre outros, Ac. S.T.J. de 23/2/2012, proc.º n.º 994/06.2TBVFR.P1.S1, relatado por Bettencourt de Faria, bem como os arestos nele citados, nesse sentido, Ac. Rel. do Porto de 27/4/2006, JTRP 00039115, relatado por Deolinda Varão e os acórdãos e jurisprudência nele citada neste sentido, Ac. Rel. de Évora de 25/6/2015, proc.º n.º 2525/10.0TBPTM.E1, relatado por Silva Rato, Ac. desta Relação, de 6/2/2018, proc.º n.º 5525/16.3T8CBR.C1, relatado por Vítor Amaral, a doutrina e jurisprudência nele citada, Ac. do S.T.J., de 3/10/2017, proc.º n.º 737/13.4TBMDL.G1.S1, relatado por Pinto de Almeida e Ac. Rel. de Guimarães, 24 de abril de 2014, proc.º n.º 297/08.8TBPVL.G2, relatado por Isabel Rocha).

Dito isto passemos ao caso em apreço.

Da matéria de facto provada, resulta que - notificado para comparecer aos exames hematológicos agendados nos autos, o R. BB não o fez nem justificou a sua falta (cfr. ponto 5 da matéria provada).

Tendo presente aos ensinamentos, expostos e que advogamos, como já referimos, temos para nós, que o R. BB, se recusou ilegitimamente e culposamente a se submeter a exame, pois além de não ter comparecido aos mesmos, por mais de uma vez, não apresentou qualquer justificação para o efeito, como a querer dizer, que lhe era indiferente o que daí pudesse advir, ou seja, o tribunal não dispõe desse meio de prova porque o R. não quis assumir o risco do seu resultado, pelo que, não pode queixar-se de falíveis meios de contra-prova ao seu dispor para excluir a não paternidade (cfr. neste sentido Ac. do S.T.J., supra citado datado de 28/5/2002, que, quanto a nós, mantem plena atualidade).

Assim, numa primeira vista poderíamos ser levados a pensar que assistiria razão á recorrente.

Porém, assim, não será, desde logo, por estarmos perante um caso de litisconsórcio.

Por advogarmos o espelhado na sentença recorrida, aqui transcrevemos tal segmento:

Efectivamente no caso dos autos, não existe apenas um R., mas dois, que

entre si se não confundem e que em caso como o presente têm se ser demandados, em litisconsórcio necessário, legalmente imposto pelo art.º 1846.º, pois que são respectivamente de perfilhante e perfilhado, sendo a A. a mãe deste.

Ora, o perfilhado não adoptou qualquer conduta omissiva, culposa, ou não, donde, para ele seria indevida a sanção da inversão do ónus da prova que para si seria demasiado penalizadora.

De resto, o desfecho da lide diz-lhe, directamente, respeito em medida pelo menos idêntica ao que se pode concluir para o R. perfilhante e em todo o caso superior ao da própria A., que só reflexamente poderá considerar-se atingida ou afectada pela questão da paternidade de seu filho.

E, nessa medida, salvo melhor opinião, não se poderia aqui concluir no mencionado sentido, (inversão do  ónus da prova, sublinhado é nosso), até porque a manutenção do acto de registo por falta de prova da desconformidade, trará a este R., muitos menos desvantagens futuras, caso tal desconformidade exista, pois não estará impedido de actuar novamente nesse sentido, atenta a sua menoridade e os fundamentos de tal eventual improcedência, enquanto a inversa já poderá não ser verdadeira.

No caso dos autos, aliás, a alegação da A. é vaga, pois a mesma nunca disse que não se tinha relacionado sexualmente com o 1.º R., o que se entende bem, à luz de critérios de normalidade, pois mal se compreenderia que este viesse perfilhar, se não fosse sua convicção ser o pai da criança, a qual só lhe poderia advir da existência de um tal tipo de relacionamento, ressalvada, a hipótese de fraude voluntária à lei, que se não concebe, muito menos sem intervenção activa e directa da própria A..

Nessa circunstância, a singela circunstância de ter a A. mantido relações de cópula com terceiros, por si só, não inviabiliza a fecundação por parte do 1.º R., sendo a alegação de falta de correspondência entre a declaração de perfilhação e a realidade biológica meramente conclusiva, por traduzir o facto jurídico que serve de fundamento a toda a acção (causa de pedir).

Diga-se, aliás, que a única testemunha ouvida, confirma que A. e R. acompanhavam um com o outro antes daquela engravidar, embora diga que não lhe conhecia relacionamento íntimo, mas igualmente diz, que não lho conhecia com qualquer outro homem, o que não deixa de ser sintomático.

Razão para o 1.º R. ter declarado perante oficial público ser o pai do 2.º R., não foi alegada nem apresentada para dentro de patamares da dita normalidade se concluir pelas razões que motivaram a desconformidade do declarado com a verdade.

Resta-nos dizer que num caso como este, em que o R. perfilhante não tem paradeiro desconhecido e efectivamente não é o pai da criança, ao contrário do que declarou, não se vislumbram motivos óbvios, para não tendo ele próprio vindo pedir ao tribunal que declare o contrário, seja a própria mãe da criança a fazê-lo, e ele, um dos maiores interessados na reposição da verdade, não queira fazer o exame que indiscutivelmente o eximirá de uma responsabilidade que substancial e moralmente lhe não pertence.

Já pelo contrário, com alguma facilidade se conseguem descortinar motivos para a posição que nos autos adoptou, se estivermos perante um pai verdadeiro, mas sem vontade de o ser, que pretenda eximir-se ás suas inerentes responsabilidades, ficcionando uma realidade de falta de colaboração com exames que na realidade não pretende fazer, porque resultado efectivo poderia não ser o pretendido, o que igualmente poderia salvaguardar os interesses da mãe do seu filho, se tivesse reorganizado a sua vida e pretendesse segui-la livremente, mas não satisfaria os interesses da criança, assim subtraído ás suas raízes.

Nesses termos, não tendo a A. logrado provar como lhe competia, para além das apontadas dúvidas, que o perfilhante não é o verdadeiro pai seu filho, o perfilhado, o que se presume verdadeiro, improcede a presente acção

Aliás, estando nós, perante um caso de litisconsórcio, não faz sentido, por ser ilógico, que se aprecie livremente a conduta de um litisconsorte ou se inverta relativamente a ele o ónus da prova e que o autor continue vinculado, no tocante ao outro litisconsorte, a esse mesmo ónus da prova. Portanto, uma de duas: ou se aprecia livremente a conduta ou se inverte o ónus da prova quanto a todos os réus ou se não se procede a essa livre apreciação ou essa inversão quanto a nenhum deles.

É mais razoável e lógico, e só assim, se compreende as regras do ónus da prova, num caso como este, que o ónus da prova recaia sobre a A., nos termos do n.º 1, do art.º 342.º, do C.C.

Face a todo o exposto, não vemos razão, para alterar a sentença recorrida.                      

                                                          ***

                                                  4. Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso mantendo a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente, sem prejuízo de eventual apoio judiciário.

Coimbra, 25/10/2022

Pires Robalo (relator)

Sílvia Pires (adjunta)

Henrique Antunes (adjunto)