INSPECÇÃO JUDICIAL
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Sumário

I - O tribunal pode ordenar oficiosamente a realização de uma inspeção judicial, tal como previsto no art. 490º, nº1 do n.C.P.Civil, o que é expressão do poder-dever conferido ao juiz, em termos probatórios, genericamente consagrado no art. 411º do mesmo normativo (com a epígrafe de “Princípio do inquisitório”)
II – O princípio do inquisitório opera no domínio da instrução do processo, sendo um poder vinculado que impõe ao juiz, o dever jurídico de determinar, oficiosamente, as diligências probatórias complementares “necessárias” à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (independentemente, pois, de solicitação das partes).
III – A inobservância do inquisitório gera nulidade processual, nos termos gerais do nº1, do art. 195º, do n.C.P.Civil, porquanto consiste na omissão de um ato que a lei prescreve e a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa.
IV – Assim, não deve o Juiz autolimitar-se, vedando em definitivo uma sua pronúncia sobre a conveniência/necessidade de produção do meio de prova da inspeção judicial, apreciação e pronúncia essa que, de forma fundada, só pode e deve ter lugar aquando da realização da audiência de julgamento e até ao encerramento desta.

Texto Integral

            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

1 – RELATÓRIO

A..., Lda.” propôs ação declarativa de condenação contra AA, alegando, em síntese, que sendo uma sociedade comercial por quotas que se dedica à indústria da construção civil, no âmbito da sua atividade foi contratada pelo R. para executar trabalhos de construção civil numa empreitada a realizar em obra do R., sita em ..., ..., concelho ..., sucedendo que esse contrato de empreitada já foi declarado nulo em anterior ação que correu termos entre as partes, pelo que importa agora extrair todos os efeitos jurídicos de tal situação, designadamente quanto ao valor dos “trabalhos a mais”, oportunamente por si executados na obra do R. e por este nunca liquidados, relativamente ao que foram emitidas 3 faturas e elaborado um auto de medição, ascendendo a quantia em dívida a € 39.220,93, a que acrescem juros moratórios vencidos e vincendos, à data da propositura da ação contabilizados em € 3.722,56, acrescendo que o R. reteve um equipamento [“Crivo”] dela A., cuja retenção lhe está a causar prejuízos, à data da propositura da ação contabilizados em € 7.200,00, devendo ainda o R. ser condenado em sanção pecuniária compulsória à razão de € 30,00 por dia desde a citação e até efectiva entrega do equipamento que retém.

Terminou formulando pedidos em conformidade contra o R..

Citado, o R. apresentou contestação-reconvenção, na qual, além do mais, sustentou que contratou a execução das obras com “BB”, empreiteiro, desconhecendo a aqui Autora até que apareceram faturas emitidas por esta, sendo que em termos do que releva para efeitos recursivos, no que à reconvenção propriamente dita, alegou concretamente o seguinte:

«(…)

69 - O contrato de empreitada ao ser declarado nulo por sentença e, não tendo sido apreciado na ação primitiva o pedido reconvencional haverá, na decorrência dos efeitos do caso julgado lugar ao efeito retroativo do que foi prestado e, quando a restituição não ser possível, o valor correspondente; mas, tão só, na medida do enriquecimento (cf. art. 289º, nº 2 e 290º e 428º, nº 1 do CC).

70 - No montante da quantia que foi prestado pelo empreiteiro ao R., em termos de custos, não estando incluído lucro, esperado retirar do negócio, dado a lei considerar o contrato nunca ter existido, devendo por isso, a restituição seguir as regras do enriquecimento sem causa.

71 - É comum nos contratos de empreitada, o empreiteiro imputar ao custo como margem de lucro - no exercício dessa sua atividade industrial - uma margem a oscilar - entre 30% a 40% do valor global.

72 - Invoca-se como emergente da solução jurídica do pretendo acordo, como de € 188.739,97 x 35% = € 66.058,97; de onde, o valor a considerar da obra executada, ser de (€188.739,91 - €66.058,97 =) € 122.680,94 neles não estando inserido o valor do IV liquidado sob, pena de ofensa do princípio do enriquecimento sem causa à custa alheia, devendo a restituição ser simultânea, nos termos dos artigos 290º e 479º do Código Civil.

73 - O R. entregou valores cuja soma ascende a € 254.915,25. Assim, a A. ou o dito BB desviam restituir ao R. (€ 254.918,25 - € 122.680,94 =) € 134.243,31. Em virtude de,

74 - O valor do IVA não ter lugar, por não ser devido.

(…)»

De referir que o R. igualmente sustentou, para o que ora diretamente releva, que haviam sido efetuados pela A. “trabalhos a menos”, e bem assim a existência de defeitos dos trabalhos executados pela A. e não utilização por esta, na obra, do material acordado.

Sendo certo que foi do seguinte concreto teor a conclusão apresentada no final desse seu articulado, em termos de “Pedido”:

«1ª) A matéria de excepção ser julgada procedente e, em consequência o R. absolvido da instância. Ou quando assim se não entenda;

2ª) A ação julgada improcedente e, o R. totalmente absolvido do pedido. Em qualquer das situações,

3ª) A Reconvenção deduzida ser admitida, por legal, e julgada procedente e provada; em consequência, da declaração de nulidade por sentença judicial transitada no âmbito do processo nº 992/20... ser restituído todo o prestado por A./BB e R., sendo, em relação ao R. não ser possível em espécie, terá de ser em valor, de harmonia com o princípio do enriquecimento sem causa. Assim,

4ª) A A. ser condenada, a ver declarado que, no valor a restituir pelo R., não se inclui o valor reputado no orçamento, por si apresentado, e aceite pelo R.; como lucro de 35% do valor orçamentado de € 188.738,91; ou seja, do valor do lucro na quantia de € 66.058,97, sendo assim o valor a restituir pelo R. de € 122.680,94; ou naquele que, se vier a apurar. Mais,

6ª Ver declarado que, o R. lhes entregou por diversas vezes, as quantias enunciadas nas referidas datas, pela forma e modo alegado no ponto 33º desta contestação, cuja soma é de € 254.918,25. De onde

7ª Fazendo-se a compensação, entre o que o R. deve restituir € 122.680,94 e, o que tem a haver da A./BB, esta tem de entregar ao R. a quantia de (€ 254.918,25 - € 122.680,94=) € 134.234,31; acrescido de juros moratórios calculados à taxa legal em vigor, até efetivo e integral pagamento.

7ª Ainda assim, caso se não entenda e, seja considerado válido o contrato de empreitada entre A./BB e R., seja a A./BB condenada, a reconhecer que:
1) Não executou a obra em conformidade com o convencionado e, o projecto da obra aprovado pela Câmara Municipal ...;
2) Não concluiu a execução da obra, conforme o acordado;
3) O executado padece, também, de vícios e defeitos construtivos, que desvalorizam e depreciam a mesma na sua utilização e afectação. Concretamente,
4) Não aplicou na obra o betão de categoria C25/30, CI 0,4 D2253 e nem Aço A 400 NR; conforme o convencionado, sendo notório e evidente os vícios e defeitos enunciados nos pontos: 55º e 56º da p.i., aqui dados por reproduzidos;
5) Seja condenada no montante correspondente a quantia a liquidar em execução de sentença para a eliminação dos identificados vícios e defeitos.

              10ª Nas custas processuais.»

                                                           *

Em função desta situação, o Exmo. Juiz de 1ª instância consignou expressamente o seguinte no Despacho Saneador em termos de “Objeto do Litigio”:

«Objecto do litígio

Neste processo importa fundamentalmente decidir:

Da acção

§ Se o R. deve ser condenado a restituir à A., a quantia de € 39.220,93 acrescido de juros vencidos no valor de € 3.722,56 e vincendos desde a data da citação, por conta de trabalhos executados pela A. a pedido da R. e em obra desta.

§§ Se o R. deve ser condenado a pagar à A. a quantia de € 7.200,00 por reter equipamento pertencente à A., acrescido de juros de mora desde a data da citação.

§§§ Se o R. deve ser condenado na sanção pecuniária compulsória à razão de € 30,00 por dia desde a citação e até efectiva entrega do equipamento que retém.

Da reconvenção

§§§§ Se a A. deverá ser condenada a restituir ao R. a quantia de € 134.234,31[2] acrescida de juros de mora a contar da citação, que corresponde à diferença entre o valor que o R. entregou à A. - € 254,91825 - e aquele que era devido à A. - € 122.680,94.

§§§§§ Subsidiariamente se a A. deve ser condenada a reconhecer:

i- que não executou a obra em conformidade com o convencionado e projectado;

ii- que não conclui a execução da obra conforme acordado;

iii- que a obra padece de vícios e defeitos construtivos que a desvalorizam e depreciam na sua utilização e afectação;

iii- não aplicou na obra o material convencionado;

iv- em incidente de liquidação, condenada na quantia necessária à eliminação dos vícios e defeitos.»

                                                           *

E igualmente consignou o Exmo. Juiz de 1ª instância o seguinte nesse mesmo Despacho Saneador em termos de “Temas da Prova”:

«Temas da prova

Importa apurar:

1- Valores devidos pela R. à A., e de que trabalhos provém.

2- Retenção por parte da R. de material da A. e eventual direito da R. a mantê-lo na sua posse.

3- Valor do lucro obtido pela A. com os trabalhos executados para o R., e valor do IVA, tendo por referência o montante orçamentado para a execução das obras.

4- Montantes efectivamente entregues à A. pelo R. por conta dos trabalhos efectuados.

5- Trabalhos a menos efectuados pela A.

6- Defeitos dos trabalhos executados pela A. e não utilização do material acordado em obra.

7- Desvalorização da obra por causa do indicado em 5) e 6).»

                                                           *

Sendo certo que antes desse dito “Despacho Saneador”, e imediatamente antecedendo-o, foi proferido o seguinte “despacho” no tocante à “Reconvenção”:

«(…)

Compulsada a contestação/reconvenção vejamos os pedidos do R deduzidos a título principal:

i- a reconvenção deduzida ser admitida, por legal, e julgada procedente por provados; em consequência, da declaração de nulidade por sentença judicial transitada no âmbito do processo nº 992/20... ser restituído todo o prestado por A./BB e R., sendo, em relação ao R. não ser possível em espécie, terá de ser em valor, de harmonia com o princípio do enriquecimento sem causa. Assim,

ii- A A. ser condenada, a ver declarado que, no valor a restituir pelo R., não se inclui o valor reputado no orçamento, por si apresentado, e aceite pelo R; como lucro de 35% do valor orçamentado de € 188.738,91; ou seja, do valor do lucro na quantia de € 66.058,97, sendo assim o valor a restituir pelo R. de € 122.680,94, ou naquele que, se vier a apurar. Mais,

iii- ver declarado que, o R. lhes entregou por diversas vezes, as quantias enunciadas nas referidas datas, pela forma e modo alegado no ponto 33 desta contestação, cuja soma é de € 254.918,25. De onde

iv- fazendo a compensação entre o que o R. deve restituir € 122.680,94 e, o que tem a haver do A/BB, esta tem de entregar ao R. a quantia de (€ 254.918,25 - € 122.680,94=) € 134.234,31; acrescido de juros moratórios calculados à taxa legal em vigor, até efectivo e integral pagamento.

Respondeu a A. ao pedido reconvencional

Apreciando:

O pedido é consabidamente a conclusão da exposição dos factos e dos fundamentos jurídicos, exprimindo aquilo que o A. pretende do Tribunal frente ao R., ou do R. perante o A. quando se deduz pedido reconvencional.

Deve ser certo e determinado.

Pois bem, respigando os pedidos acima indicados os mesmos da forma como são feitos, não são determinados, misturam-se com factos e parte deles reproduzem-se mais que uma vez.

Assim, não se endente o que se pretende com i) ii) iii) sendo certo que se refere um sujeito que sequer é parte na demanda, a saber BB.

De igual banda, pede-se a restituição de valor determinado ao mesmo tempo que se diz, “ou naquele que se vier a apurar”.

Ora o mesmo pedido ou é liquido, ou não é, situações podendo existir em que há pedidos líquidos e outros que o não são.

Continuando, não se entende qual o relevo ou que pedido se pretende quando se quer que o Tribunal reconheça que o R. entregou a A. um determinado valor. Pergunta-se para quê, se logo depois mais abaixo se efectuam cálculos para pedir a condenação da A. a liquidar ao R. um valor certo, a saber € 134.234,31.

Do mesmo modo, não é no pedido que deve ser certo e determinado que se efectuam os cálculos para se concluir pelo pedido de pagamento de um valor, devendo tal matéria constar da causa de pedir.

Em suma, torna-se impossível da forma como feitos foram, a final condenar a A. nos termos pedidos atento o modo como são deduzidos.

Pergunta-se então se haveria que efectuar algum convite ao aperfeiçoamento, para reformulação dos pedidos, caso não haja ineptidão deles, para que o R. não seja prejudicado por um eventual indeferimento liminar de parte da reconvenção ou de toda ela.

Entendemos que não, pela circunstância de conjugando todos os pedidos feitos, ser possível aproveitar um deles e admiti-lo, salvaguardando-se assim a posição do R. e fazendo uso do princípio do aproveitamento dos actos processuais.

Neste conspecto, entendemos ser de admitir, que pelo menos em relação ao ponto iv) o pedido é certo e liquido, já que o R. como lhe compete pede a condenação do A. no pagamento de determinado valor.

E esse pedido podia ser formulado já que o mesmo emerge da defesa do R.

Também os pedidos reconvencionais subsidiários podem ser formalmente admitidos, por feitos para a hipótese de não proceder o pedido principal

Pelo exposto decide-se:

1- Indeferir parcial e liminarmente a reconvenção no que se refere aos pedidos constantes da contestação/reconvenção sob os números 2) 3) 4) 6) - inexiste nº 5 -;

2- admitir liminarmente o pedido formulado sob o nº 7) com o seguinte conteúdo[3]:

iv- Condenação da A., a restituir a diferença entre o que o R. lhe deve devolver e o que o R. tem a haver da A., e nessa sequência a condenação da A. a entregar ao R. a quantia de € 134.234,31 acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal em vigor, até efectivo e integral pagamento.

3- Admitir os pedidos reconvencionais subsidiários sob o número 7) e números subsequentes de 1) a 5).»

                                                           *

Por outro lado, no final do já citado Despacho Saneador, tomando posição sobre os “Meios de prova” requeridos, o Exmo. Juiz de 1ª instância proferiu, para o que ora releva, o seguinte concreto “despacho”:

«(…)

Inspecção Judicial

Indeferida, por não ter qualquer interesse para a matéria a apreciar, tão pouco se indica em quê se revelaria a mesma necessária para a decisão da causa.

(…)»

                                                           *

Irresignado com estas decisões, apresentou o Réu/reconvinte recurso de apelação contra as mesmas, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões[4]:

«1ª) – Os pedidos reconvencionais formulados pelo R., consubstanciam ou fundamentam de facto e de direito, para o Tribunal apreciar e decidir sobre a sua pretensão.

2ª) – A reconvenção não se considera inepta; porquanto, foi entendido pela A., à qual deduziu Réplica.

3ª) – Os pedidos formulados sob os pontos 2º; 3º; 4º e 6º, não são incompatíveis e, revelam-se inteligíveis e processualmente admissíveis.

4ª) – Da sua leitura, análise e interpretação revelam-se líquidos e determinados e, o segmento “ou naquele que se vier a apurar reporta-se em alternativa ao que o Tribunal vier a fixar”.

5ª) – O nome mencionado de BB é do representante legal da A., seu sócio e gerente.

6ª) – Os pedidos constantes da contestação/reconvenção sob os números 2; 3; 4 e 6 não deviam ser indeferidos, parcial e liminarmente, mas, antes apreciados e julgados; após, audiência de discussão e julgamento e, em sede de sentença a proferir, procedente ou improcedente.

(…)

11ª) – O meio de prova requerida por inspecção judicial, visa a instrução do processo, quanto à factualidade subjacente dos temas enunciados sob os pontos 5 e 6; sendo legalmente admissível, a sua rejeição foi intempestiva.

(…)

16ª) – A decisão não se encontra fundamentada, nem de facto, nem de direito.

17ª) - A(s) decisão(s) proferidas não se revelam as mais assertivas, nem consentâneas com a mens legis, nem com os dispositivos legais aplicáveis.

18ª) – Mostram-se violados os princípios constitucionais de direito civil e, de direito processual civil atinentes. Concretamente,

19ª) – O disposto nos arts. 205º, nº 2; 208º, nº 1 da CRP; arts. 227º; 286º; 289º, nº 1; 473º do CC e, arts. 2º, nº 1; 154º; 186º, nº 2, al. a); 266º; 410º; 411º; 490º; 527º; 530º, nºs 2 e 3; 553º; 572º; 573º; 576º, nº 3; 579º; 580º; 587º, nº 1; 608º, nº 1; 609º, nº 2 do CPC.

Deve o presente recurso obter provimento, revogando-se o douto despacho na parte impugnada e, decidindo-se como pugnado e, em conformidade, seguindo-se os ulteriores termos processuais.

JUSTIÇA »

                                                                 *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                           *

            Cumprida a formalidade dos vistos nesta instância de recurso e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- (des)acerto da decisão que indeferiu, parcial e liminarmente, a reconvenção deduzida pelo Réu, no que se refere aos pedidos constantes da contestação/reconvenção sob os números 2) 3) 4) e 6);

- (des)acerto da decisão de indeferimento sobre a inspeção judicial requerida pelo Réu.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é, no essencial, a que consta do relatório que antecede.

                                                                       *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Importa no presente recurso começar por aferir e decidir do (des)acerto da decisão que indeferiu, parcial e liminarmente, a reconvenção deduzida pelo Réu, no que se refere aos pedidos constantes da contestação/reconvenção sob os números 2) 3) 4) e 6)

Relembre-se que esteve subjacente à decisão recorrida o entendimento de que os pedidos formulados que foram liminarmente indeferidos não eram “certos” nem “determinados”, para além de neles se misturarem factos e cálculos aritméticos, assim se desrespeitando o critério normativo e jurídico que deve presidir à correta formulação do “pedido” numa ação.

Contrapõe o R./recorrente, no essencial, que os ditos pedidos obedeciam aos critérios legais, revelando-se «(…) inteligíveis e processualmente admissíveis».

Que dizer?

Que, salvo o devido respeito – e releve-se o juízo antecipatório! – não assiste qualquer razão ao R./recorrente quanto a este particular, pois que não se justificava a por ele pretendida “cumulação real” de pedidos!

Na verdade, o despacho a tal propósito proferido pelo Exmo. Juiz a quo não fez mais do que interpretar adequadamente os conceitos legais nesta temática, ademais intentando prosseguir uma louvável intenção de boa ordenação processual.

Senão vejamos.

Desde logo, porque quando se está no domínio de uma ação de condenação – como era o caso! – o que importa é que seja especificada a prestação que a contraparte tem que satisfazer.

É certo que toda a condenação pressupõe uma apreciação prévia, de natureza declarativa, mas nesse tipo de ações [de “condenação”], o efeito jurídico que se pretende obter não é o efeito declarativo ou constitutivo, simplesmente sucede que o juiz, ao proferir sentença, começa por exercer uma atividade declarativa e acaba por emitir uma providência condenatória.

A este respeito já nos foi doutamente ensinado o seguinte:

«Em boa técnica jurídica uma coisa é a pretensão do autor, outra o pedido. A pretensão dirige-se ao réu, o pedido dirige-se ao tribunal. Aquela é um elemento da relação jurídica substancial, este um elemento da relação jurídica processual.

A pretensão exprime o direito que o autor se arroga contra o réu, o pedido traduz-se na providência que o autor solicita do tribunal.»[5]

Ora, no caso vertente, estava já adquirido e declarado judicialmente que o contrato de empreitada que havia sido celebrado entre as partes, e ao abrigo da qual se haviam estabelecido as relações entre elas, era nulo por não ter sido reduzido a escrito.

Assim, a respeito dessa relação jurídica material ou substancial da empreitada – que era a única que estava em causa! – a declaração de que a restituição é consequência dessa declaração de nulidade, ou a declaração de que no valor a restituir pelo R. não se inclui o lucro integrado no orçamento apresentado pela A., ou ainda a declaração de que os pagamentos parcelares já feitos ascendem a um determinado montante, ou, finalmente, a declaração de que o cálculo aritmético da dedução de uns valores aos outros corresponde a um montante também determinado, todos estes “pedidos” não são todos eles mais do simples requisitos de procedência do pedido de condenação.

O que tudo serve para dizer que o Réu/reconvinte/recorrente está a pugnar pelo acolhimento e deferimento de uma cumulação real de pedidos, quando o que explicitou correspondia a uma cumulação aparente de pedidos.

Sucede que a cumulação real de pedidos só se justifica e tem razão de ser quando exista uma verdadeira acumulação de ações ou de pretensões.

Ora não era essa a situação dos autos.

Com efeito, a condenação, na circunstância, consistia afinal e basicamente, por via da compensação dos valores/montantes aduzidos [isto é, condenação da A. a restituir a diferença entre o que o R. lhe deve devolver e o que o R. tem a haver da A.],  decisivamente no pedido do saldo final invocado, mais concretamente, tal como propugnado pelo Exmo. Juiz a quo, «na condenação da A. a entregar ao R. a quantia de € 134.234,31 acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal em vigor, até efetivo e integral pagamento».

Esta última é efetivamente a única pretensão com autonomia material face à unitária relação jurídica substancial da empreitada.

Acontece que na medida em se estava perante uma cumulação de pedidos que, precisamente por ser aparente, não tinha justificação sob o ponto de vista substancial nem processual, se afigura como perfeitamente legítima a decisão do Exmo. Juiz a quo de, à luz do princípio da economia processual e da boa ordenação processual, ter desde logo “expurgado” o petitório da reconvenção do que nele não tinha de necessariamente figurar e era dispensável.

Isto, obviamente, em natural correspondência com o correto entendimento de que, s.m.j., em termos dogmáticos, um pedido deve ser formulado de forma precisa e concisa.

De referir que nem se vislumbra qualquer prejuízo real e efetivo para o Réu/reconvinte/recorrente com a posição que se está a assumir [de não ter lugar o conhecimento dos pedidos que aquele havia formulado na sua contestação-reconvenção sob os números 2) 3) 4) e 6)], isto precisamente porque, na linha do supra sustentado, sempre terá que haver uma apreciação dos aspetos constantes dos mesmos, como atividade declarativa para aferir e ponderar sobre a possibilidade de condenação quanto ao que consta do pedido da contestação-reconvenção sob o número 7) [este obviamente com a redação/formulação que igualmente lhe foi dada pela decisão recorrida em apreciação].

Donde, a restrição expressa da decisão recorrida ao pedido da contestação-reconvenção sob o número 7), antolha-se bastante e suficiente para o que releva efetivamente em sede de pretensão substantiva e material formulada pelo Réu/reconvinte no seu articulado de contestação-reconvenção!

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, improcede a primeira questão recursiva.

                                                           ¨¨

Vejamos agora da segunda questão recursiva, a saber, do alegado (des)acerto da decisão de indeferimento sobre a inspeção judicial requerida pelo Réu.

Relembre-se que o Exmo. Juiz a quo fundamentou uma tal decisão de indeferimento da inspeção judicial requerida pelo Réu com a argumentação singela e linear de «Indeferida, por não ter qualquer interesse para a matéria a apreciar, tão pouco se indica em quê se revelaria a mesma necessária para a decisão da causa.»

Que dizer?

Quanto a nós, que nesta parte a decisão não poderá ser sancionada, sem que isso implique o deferimento da sua realização sem mais, tal como pretendido pelo Réu/recorrente.

Vejamos.

Consabidamente a inspeção judicial tem por fim a perceção direta de factos pelo Tribunal, cujo resultado é por si livremente apreciado [cf. arts. 390º e 391º do C.Civil].

Por outro lado, preceitua-se da seguinte forma no art. 490º do n.C.P.Civil, com a epígrafe de “Fim da inspeção”:

 «1 — O tribunal, sempre que o julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes, e com ressalva da intimidade da vida privada e familiar e da dignidade humana, inspecionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa, podendo deslocar-se ao local da questão ou mandar proceder à reconstituição dos factos, quando a entender necessária.

2 — Incumbe à parte que requerer a diligência fornecer ao tribunal os meios adequados à sua realização, salvo se estiver isenta ou dispensada do pagamento de custas.»

Assente isto, diremos agora que temos presente que é discutido se o poder judicial de indeferir a realização de uma inspeção judicial é discricionário ou não.[6]

Perfilhando nós o entendimento de que uma tal decisão não assenta no exercício de um poder discricionário, donde ser suscetível de recurso[7], e impondo-se nesta sede sindicar o acerto desse despacho, entendemos que face à identificação do “objeto do litígio” e enunciação dos “temas da prova” que simultânea e paralelamente fora feita – nos termos que supra foram devidamente enunciados e transcritos e que ora se dão por reproduzidos! – não nos parece que seria caso para concluir em definitivo e convictamente, como feito na decisão recorrida, que a inspeção não tinha qualquer interesse para a matéria a apreciar, nem que o Réu não havia evidenciado a necessidade de produção de um tal meio de prova.

Atente-se que, mormente a possível existência de “trabalhos a menos”, defeitos da obra, falta de aplicação de materiais acordados e possível desvalorização da obra por via de uma e outra situação, tudo isso são aspetos alegados pelo Réu/reconvinte, cujo ónus de prova lhe competirá, e que ao que tudo indica o mesmo se propõe fazer.

Isto é, s.m.j., o que foi invocado para o indeferimento da produção de um tal meio de prova não se mostrava líquido e incontroverso nesse momento da prolação do despacho de admissão ou rejeição dos meios de prova (constituendos).

Ao invés, o despacho recorrido concluiu liminar e afoitamente pela definitiva falta de interesse numa inspeção judicial ao local e que o Réu não havia evidenciado a necessidade de produção de um tal meio de prova!

Salvo o devido respeito, essa interpretação não se mostrava conforme aos dados do processo então conhecidos.

A esta luz esse despacho recorrido não pode ser sancionado, impondo-se reconhecer razão ao Réu/reconvinte ora recorrente.

O que idem se diga se se aquilatar a questão à luz do também invocado princípio do inquisitório.

Na verdade, sob esse ponto de vista, o despacho recorrido também não permite salvaguardar a descoberta da verdade material nem oferece garantias de se vir a alcançar uma justa composição do litígio.

É que, face ao desconhecimento sobre o que é que em termos de facto virá a resultar como consistente e concludente em termos de “trabalhos a menos”, defeitos da obra, falta de aplicação de materiais acordados e possível desvalorização da obra por via de uma e outra situação, pode vir a resultar uma necessidade de esclarecimento, o que se traduzirá num dever, oficiosamente exigido ao tribunal, de tendo em vista o apuramento da verdade, ordenar a realização da inspeção judicial em causa, por vir a ser patente essa necessidade.

Sendo certo que tal dever de oficiosamente determinar a realização da dita inspeção judicial, decorrerá então do princípio do inquisitório, posto que, «O princípio do inquisitório, a operar no domínio da instrução do processo, consagrado no art. 411º, do CPC, é um poder vinculado que impõe ao juiz, o dever jurídico de determinar, oficiosamente, as diligências probatórias complementares necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, independentemente, pois, de solicitação das partes.»[8]

Ora, consabidamente, a «inobservância do inquisitório gera nulidade processual, nos termos gerais do nº1, do art. 195º, do CPC, porquanto consiste na omissão de um ato que a lei prescreve e a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa.»[9]

A esta luz, importa obstar que o Tribunal venha a incorrer em tal vício processual, ou melhor, obstar que possa vir a estar em situação de tal se gerar.

Dito de outra forma: não deve o Juiz autolimitar-se, vedando em definitivo uma sua pronúncia sobre a conveniência/necessidade de produção do meio de prova da inspeção judicial, apreciação e pronúncia essa que, de forma fundada, só pode e deve ter lugar aquando da realização da audiência de julgamento e até ao encerramento desta.

Impõe-se, assim, revogar esta decisão recorrida ora em apreciação, pois que, à luz do princípio do inquisitório, importa salvaguardar a conveniência/necessidade de produção do meio de prova da inspeção judicial, por ser caso de a realização do mesmo se vir a evidenciar como patentemente necessária.

Importando então neste particular relegar a apreciação e decisão para o decurso da realização da audiência de discussão e julgamento, momento processual em que mais fundada e pertinentemente se poderá e deverá proferir decisão nesse particular [aferir sobre a efetiva e real conveniência/necessidade da realização da inspeção judicial ao local].

Procedendo nestes termos as alegações recursivas e o recurso quanto à segunda questão nele suscitada.

                                                           *

(…)                                                     *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, concede-se parcial provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido que indeferiu a realização da inspeção judicial requerida pelo Réu, o qual se substitui por outro que relega a apreciação e decisão sobre tal para o decurso da realização da audiência de discussão e julgamento.

Custas pelo Réu/reconvinte/recorrente, na proporção de ½ das devidas.

Coimbra, 25 de Outubro de 2022

Luís Filipe Cravo

Fernando Monteiro

Carlos Moreira

                                              



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira

[2] «€ 254.918,25- 122.680,94 corresponde a € 132.237,31».
[3] «O Tribunal limita-se a não ultrapassando o conteúdo do pedido, reescrevê-lo, pelo que se entende não existir violação do princípio do dispositivo.»
[4] De referir que por despacho prévio do ora Relator, no quadro do art. 655º do n.C.P.Civil, com referência ao «Recurso deduzido pelos R./reconvinte, AA, tendo por objeto autonomamente os segmentos do despacho saneador através dos quais se «Indeferiu, parcial e liminarmente, a reconvenção, no que se refere aos pedidos constantes da contestação/reconvenção sob os números 2) 3) 4) e 6)», se julgou improcedente a exceção perentória de caso julgado/autoridade de caso julgado, se não admitiu o meio de prova “Inspeção Judicial” e se condenou o Réu em custas na totalidade pela improcedência e, na proporção de 1/4, por referência ao valor da causa», foi decidido que «(…) por se considerar não serem autonomamente recorríveis os segmentos da decisão proferida através dos quais se julgou improcedente a exceção perentória de caso julgado/autoridade de caso julgado e se condenou o Réu em custas na totalidade pela improcedência e, na proporção de 1/4, por referência ao valor da causa, nos termos do art. 655º, nº1 do n.C.P.Civil não se conhece do objeto do recurso interposto pelo dito R./reconvinte AA, nessas partes», donde, por economia processual, apenas se vai cuidar de transcrever na sequência as “conclusões” que na circunstância presente relevam.
[5] Citámos ALBERTO DOS REIS, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2.º, Coimbra editora, 1945, a págs. 361.
[6] Sobre a problemática, e enunciando defensores no sentido afirmativo e no sentido negativo, vide mais aprofundadamente LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2.º, 3ª Edição, Livª Almedina, 2017, a págs. 347-348.
[7] Neste sentido vide o acórdão do TRE de 3.11.2016, proferido no proc. nº 211/05.2TBARL-E.E1, acessível em www.dgsi.pt/jtre.
[8] Citámos o acórdão do TRP de 21.10.2019, proferido no proc. nº 18884/18.4T8PRT-A.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp, aliás, doutamente invocado nas alegações recursivas.
[9] Assim o acórdão do TRC de 14.10.2014, proferido no proc. nº 507/10.1T2AVR-C.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.