EFEITO DA INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
REMESSA DO PROCESSO AO TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário

I - A decisão de incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal, terminada a fase dos articulados, implica a absolvição do réu da instância, assim se extinguindo a ação.
II - Todavia, pode o autor requerer, em 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, ao abrigo do art.º 99.º, n.º 2, do NCPCiv., a remessa do processo do tribunal incompetente para o tribunal competente, por razões de economia processual, para aproveitamento dos articulados da ação extinta.
III - A remessa depende, porém, da inexistência de oposição justificada do réu, o que terá de ser aferido perante as circunstâncias do caso concreto.
IV - Se o réu, na sua oposição à remessa, invoca pretender, na nova ação, alargar os seus meios de defesa – mediante a dedução de nova matéria de exceção – e deduzir reconvenção, a caber na esfera de competência do tribunal onde correrá termos a nova ação, o que lhe seria vedado, por preclusão, em caso de aproveitamento da contestação deduzida na ação extinta, então deve considerar-se haver oposição justificada, por estar em causa o exercício pleno do direito de defesa na nova ação judicial

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

AA, com os sinais dos autos,

intentou, na Comarca de Leiria – Juízo Central Cível –, ação declarativa condenatória, com processo comum, contra

C..., S. A.”, também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de € 119.619,20, acrescida de juros vincendos, até integral e efetivo pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

- o A. era acionista único da R. e presidente do seu conselho de administração desde 2009, sendo que, em 2013, alienou 50% das ações representativas do respetivo capital social;

- tendo a R. passado a ser uma sociedade gestora de participações sociais, com apenas dois acionistas, sendo o A. um deles, apenas os membros da comissão executiva tinham direito a remuneração pelo exercício do cargo, âmbito em que o A. passou a receber as remunerações a que tinha direito daquela R., até que, em outubro de 2017, ocorreu um conflito acionista, com invocação contra o A. de práticas concorrenciais;

- na sequência, o A. foi suspenso de funções – com posterior destituição, o que não implica perda dos créditos remuneratórios –, tendo a R. deixado de proceder ao pagamento das remunerações a que o A. tinha direito, no valor de € 102.847,94, a que acrescem juros moratórios, estes a perfazer € 16.771,26;

- apesar de interpelada, a R. nada pagou.

Contestou a R., defendendo-se por impugnação – âmbito em que impugnou diversa factualidade alegada na petição – e negando que o A. tenha direito a quaisquer créditos, para o que alegou:

- ser a R. vítima do A., o qual foi destituído judicialmente por violação dos seus deveres de lealdade – exercício de atividade paralela e concorrencial lesiva –, destituição essa com justa causa, quanto a todas as sociedades operacionais do grupo, tendo aquele cessado qualquer função a partir de 29/09/2017, pelo que não lhe são devidos os créditos reclamados, referentes ao período de outubro de 2017;

- não ter o A. alegado a celebração de contrato de trabalho, pelo que não é aplicável o método de cálculo estabelecido no Código do Trabalho, não tendo aquele correspondido ao ónus da prova que lhe cabia;

- ser inviável tudo quanto foi peticionado pelo aqui A..

Concluiu pela total improcedência, por não provada, da ação, com a consequente absolvição da R..

No despacho saneador – com dispensa da audiência prévia – considerou-se que «O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território», bem como não existirem «questões prévias, excepções ou nulidades processuais de que incumba apreciar», razão pela qual foram identificados o objeto do litígio e os temas da prova.

Na sequência – só então –, veio a R., «tendo sido notificada de despacho saneador proferido», invocar que o litígio é da «competência de um juízo de comércio, e não no juízo central cível de Leiria», tratando-se de «uma exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria deste Douto Tribunal, (…) que implica a absolvição do Réu da instância (…)», a carecer de discussão em sede de audiência prévia e apreciação pelo Tribunal, posto, embora sem alegação em sede de articulados, se tratar de matéria/questão de conhecimento oficioso.

Respondeu o A., concluindo pela improcedência de tal «arguição da exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria».

Logo depois veio a R. interpor recurso do despacho saneador na parte em que o Tribunal se declarou competente em razão da matéria, recurso esse julgado improcedente pela Relação de Coimbra, a que se seguiu recurso de revista, vindo o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a decidir revogar o acórdão recorrido, julgando incompetente, em razão da matéria, o Tribunal de 1.ª instância onde os autos foram instaurados.

Veio então o A., ao abrigo do disposto no art.º 99.º, n.º 2, do NCPCiv., requerer a remessa do processo para o tribunal competente, o Juízo de Comércio de Leiria.

Ao que se opôs a R., concluindo pela rejeição do pedido de remessa, para o que invocou, em síntese:

- a remessa não é admissível, por o respetivo pedido ser extemporâneo, a dever ser rejeitado;

- esse pedido não merece a concordância da R., «em virtude da compressão das suas garantias e direitos processuais que tal remessa comportaria»;

- com efeito, o aproveitamento dos articulados impedirá a R. de desenvolver plenamente a sua estratégia de defesa, desde logo quanto à dedução da exceção de incompetência absoluta por preterição do tribunal arbitral, exceção esta que pretende invocar no novo litígio;

- por outro lado, tendo o A. provocado inúmeros danos à R., como alegado na contestação, a aqui demandada, mercê da incompetência material do tribunal para o pedido do A., viu-se impedida de deduzir reconvenção contra aquele, «peticionando os valores que lhe são devidos pelo Autor», por esse tribunal ser também materialmente incompetente para conhecer de um pedido reconvencional de responsabilidade dos administradores;

- por isso, a R. tem agora o direito de deduzir pedidos reconvencionais no novo litígio societário, o que lhe seria inviabilizado se os articulados desta ação fossem aproveitados;

- a R., tendo a ação sido intentada junto de juízo cível, centrou a sua linha de defesa em conceitos e aspetos de regime relacionados com o contrato de trabalho, relegando para segundo plano tudo o que estava relacionado com a execução, pelo A., do cargo de administrador da R., o que não teria sucedido se tal ação houvesse sido intentada nos juízos de comércio.

Por despacho datado de 06/05/2022 (Ref. 100201840), foi assim decidido:

«O autor requer que se “determine a remessa dos presentes autos para o Tribunal competente, nos termos do n.º 2 do artigo 99.º do Código de Processo Civil.”

A ré opõe-se. Alega, designadamente, que o referido pedido de remessa é extemporâneo, e não merece a concordância da Ré, em virtude da compressão das suas garantias e direitos processuais que tal remessa comportaria.

Vejamos.

Por acórdão proferido neste[s] autos foi declarada a incompetência material deste juízo central cível de Leiria.

O pedido foi formulado em tempo uma vez que o autor pagou a multa prevista no art. 139.º do CPC, por ter praticado o ato no 1º dia após o termo do prazo de 10 dias de que dispunha, nos termos do disposto no art. 99.º, n 2, do CPC.

Alega a ré que a remessa comprime as suas garantias e direitos processuais.

Apesar do mérito da alegação, e ressalvado o devido respeito por outra opinião, não nos parece que tal ocorra. Estamos perante um processo comum. Ou seja, aquele que, nos termos da nossa lei de processo, mais garantias oferece e disponibiliza mais direitos processuais. Direitos esses que as partes, em concreto, utilizaram.

De resto, a tramitação no tribunal concretamente competente é precisamente a mesma.

Atento o disposto no art. 573.º, n.1, do CPC não nos parece atendível a alegação de que, no tribunal de comércio, a defesa da ré seria outra.

Assim, e pelo exposto e nos termos do disposto no artigo 99.º, n. 2 do CPC determino a remessa dos presentes autos ao juízo de comércio de Leiria, desta comarca de Leiria.» (destaques aditados).

Inconformada, recorre a R., de apelação, apresentando alegação, onde veio formular as seguintes

Conclusões ([1]):

«(…)

C. Acontece que o Tribunal a quo considerou, no Despacho Recorrido, que com a remessa dos autos para o Tribunal competente não se assistiria a uma compressão das garantias e direitos processuais da Recorrente, não atendendo assim aos fundamentos e pedido por si vertidos na Oposição à Remessa. Nada mais errado.

D. Como a Recorrente teve oportunidade de enunciar, na Oposição à Remessa, por o Recorrente não ter intentado a ação no tribunal competente, ficaram por invocar argumentos de defesa, nomeadamente:

a. Em primeiro lugar, a Recorrente avançou que pretendia invocar a exceção dilatória de incompetência absoluta (dos Tribunais Judiciais) por preterição do tribunal arbitral.

b. Em segundo lugar, alegou a Recorrente que o Recorrido, na qualidade de seu administrador, lhe provocou inúmeros danos, em seu exclusivo benefício e da sua família, cujo ressarcimento a Recorrente se viu impossibilitada de peticionar em sede de reconvenção contra aquele, mercê da incompetência material do douto Tribunal a quo para o conhecimento do pedido formulado pelo Recorrido e por ser também materialmente incompetente para conhecer de um pedido reconvencional de responsabilidade dos administradores – direito que sempre lhe assistiria por via de um novo litígio societário.

c. Em terceiro lugar, alegou ainda que, impelida pela dedução da presente ação junto do juízo cível, a Recorrente centrou a sua linha de defesa, plasmada na contestação que apresentou junto do Tribunal a quo, em conceitos e aspetos de regime relacionados, essencialmente, com o contrato de trabalho, relegando para um segundo plano tudo o que estava relacionado com a natureza, implicações e moldes de execução, pelo Recorrido, do cargo de administrador da Recorrente.

E. A Recorrente logrou assim demonstrar, junto do Tribunal a quo, que caso o Recorrido tivesse – como lhe competia – intentado a ação junto do tribunal competente para a apreciar, teria, certamente, apresentado uma defesa substancialmente diferente da que foi ali apresentada.

F. Mas, na sequência, veio o douto Tribunal a quo, estranhamente, concluir que a fundamentação adiantada pela Recorrente não era, afinal, suficiente para sustentar, nos termos do n.º 2 do artigo 99.º do CPC, uma oposição à remessa.

G. Acontece que o Tribunal a quo, ao ter acolhido esta justificação, não só contrariou o entendimento que tem sido pacificamente perfilhado pela nossa Doutrina e pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores em torno do conceito de «oposição justificada» constante do artigo 99.º, n.º 2 do CPC, como extravasou, manifestamente, a margem de apreciação que lhe é reconhecida ao abrigo daquele preceito.

H. É entendimento pacífico na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores que a oposição a que se refere o n.º 2 do artigo 99.º do CPC tem de ser uma oposição justificada, i.e., que forneça motivos plausíveis e atendíveis, não podendo traduzir-se, em caso algum, numa oposição meramente arbitrária, que equivalha a uma recusa imotivada – vd. Jurisprudência e doutrina citadas supra.

I. A exigência de justificação fica-se, precisamente, pela necessidade da sua alegação, dela não decorrendo qualquer ónus de pormenorização dos motivos acarreados pelo réu para a oposição à remessa, nem qualquer prerrogativa de escrutínio, pelo Tribunal incompetente, da sua idoneidade – vd. jurisprudência citada supra.

J. A Recorrente apresentou uma justificação para a sua oposição à remessa dos autos para o Tribunal competente, não se tendo bastado – pese embora tal tivesse sido suficiente, à luz do entendimento perfilhado pacificamente pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores – com uma enunciação meramente genérica dos argumentos que poderia vir a aduzir na sua defesa junto do Tribunal competente; diferentemente, procedeu à concretização de tais argumentos – a saber, (i) a exceção dilatória de incompetência absoluta (dos Tribunais Judiciais) por preterição do tribunal arbitral; (ii) a dedução de um pedido reconvencional de responsabilidade dos administradores; e (iii) o recentrar da sua defesa na natureza, implicações e moldes de execução, pelo Recorrido, do cargo de administrador da Recorrente (e não em conceitos de ordem laboral).

K. O que o Tribunal a quo não aceitou foi a suficiência dos argumentos aduzidos pela Recorrente para se opor à remessa dos autos para o Tribunal competente; mas fê-lo exorbitando, de forma manifesta, a margem de apreciação que lhe é reconhecida ao abrigo do artigo 99.º, n.º 2 do CPC.

L. Cumpre esclarecer que, como é do mais elementar bom senso, não recai sobre o Tribunal materialmente incompetente – no caso sub judice, sobre o Tribunal a quo – a competência para apreciar o mérito da argumentação de que o oponente à remessa pretende fazer uso junto do Tribunal materialmente competente para conhecer da ação.

M. Diferentemente, cabe-lhe apenas garantir que a possibilidade de remessa dos autos não esbarra em motivos arbitrários, que a mais não se reconduzam do que a uma oposição meramente imotivada, visando-se assim impedir que uma oposição abusiva constitua um entrave ao princípio da economia processual – o que, como ficou comprovado, não é, de perspetiva alguma, o caso da Oposição à Remessa – vd. jurisprudência citada supra.

N. Não se entende, por isso, por que razão o Tribunal a quo – em manifesto desalinhamento com o entendimento da jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores – indeferiu a Oposição à Remessa, constatando-se que esta, não só observou todas as exigências que se lhe impunham, como foi mesmo – por excesso de zelo da Recorrente – além destas, ao ter-se nela procedido à concretização dos diversos argumentos que seriam pela Recorrente explorados na sua defesa junto do Tribunal competente.

O. Fê-lo, porém, como se deixou já cabalmente demonstrado, exorbitando, de modo flagrante, as suas competências, substituindo-se ao Tribunal materialmente competente no escrutínio do mérito dos argumentos aduzidos pela Recorrente na Oposição à Remessa.

P. Mas, salvo o devido respeito, a interpretação do artigo 99.º, n.º 2 do CPC levada a cabo pelo Tribunal a quo é ainda grosseiramente violadora da sua letra.

Q. No entendimento do Tribunal a quo, não há margem para, num processo que corra sob a forma comum, o réu se opor ao aproveitamento dos articulados. Esta interpretação não encontra, na letra do artigo 99.º, n.º 2 do CPC, o mínimo de suporte, porquanto nele não se prevê que o aproveitamento dos articulados deva ocorrer inevitavelmente – mesmo quando o réu tenha justificação para a ele se opor – quando o processo em causa tenha corrido sob a forma comum.

R. Pelo contrário, a letra do preceito aponta, precisamente, no sentido da sua aplicabilidade a todo o tipo de processos. Ao criar uma exceção não comportada pela letra do artigo 99.º, n.º 2 do CPC, o Tribunal a quo enveredou, isso sim, por uma interpretação contra legem, o que lhe era vedado pelo disposto nos artigos 8.º, n.º 2 e 9.º do Código Civil e que, no limite, poderia ser considerada inconstitucional por violação dos direitos de defesa da Recorrente.

S. Mas diga-se mais: se o Despacho Recorrido não for revogado, dando-se assim guarida ao excessivo intervencionismo judicial do Tribunal a quo, a Recorrente fica impossibilitada de desenvolver plenamente a sua estratégia de defesa junto do Tribunal competente, quando:

(i) a forma como condicionou – coartando-a – a preparação da sua contestação se ficou a dever a um erro exclusivamente imputável ao Recorrido, que intentou a ação num tribunal incompetente para a apreciar; (ii) o Recorrido em nada fica prejudicado com o não aproveitamento dos articulados, porquanto lhe assiste sempre o direito de propor uma nova ação, com os mesmos fundamentos, ainda que, desta vez, perante o tribunal competente.

T. Uma decisão do Tribunal ad quem que não passe pela revogação do Despacho Recorrido equivalerá, em bom rigor, à atribuição de uma «benesse» ao Recorrido, correspondente à possibilidade de, depois de um erro seu, litigar junto do Tribunal competente contra uma defesa que foi condicionada, «enfraquecida» e deduzida de forma redutora pela Recorrente: este é, naturalmente, um resultado que favorece o infrator e que não se pode aceitar!

U. Em face de tudo o que antecede, impõe-se a conclusão de que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado pelo Venerando Tribunal ad quem o Despacho Recorrido.

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o Despacho Recorrido, que deve ser substituído por outro que ordene, ao abrigo do artigo 99.º, n.º 2 do CPC, a não remessa dos presentes autos para o Juízo de Comércio competente.

Só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!».

O A. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

Este foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

Ordenada a subida dos autos a este Tribunal ad quem, foram mantidos tais regime e efeito do recurso, pelo que, nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado nos articulados das partes, está em causa na presente apelação saber, apenas, se devia o Tribunal recorrido ter recusado a remessa dos autos aos Juízos de Comércio, por a R./Recorrente ter oferecido oposição justificada (art.º 99.º, n.º 2, in fine, do NCPCiv.).

III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

Ante os elementos documentais dos autos, os pressupostos fácticos, a considerar, são os que já antes se deixaram explicitados (cfr. relatório supra), aqui dados por reproduzidos.

          B) O Direito

Da dedução de oposição justificada à remessa do processo para o tribunal materialmente competente

A R./Apelante pretende a revogação da decisão impugnada, pela qual foi determinada a remessa do processo para o tribunal materialmente competente (Juízos de Comércio), considerando a Recorrente que ofereceu, para tanto, a oportuna «oposição justificada», a que alude o art.º 99.º, n.º 2, in fine, do NCPCiv..

Cabe, pois, começar por delinear o que deve ser entendido por tal oposição justificada.

Na doutrina, referem Abrantes Geraldes e outros ([2]) que «(…) o réu será ouvido, podendo suscitar objeções que serão apreciadas pelo juiz. Nesta decisão entrarão em linha não apenas os argumentos formalmente expostos pelo réu, como ainda outros que a concreta situação justifique, envolvidos na margem de apreciação do juiz que, designadamente, emerge do facto de a remessa ser encarada como uma “possibilidade” e não como um efeito decorrente do mero confronto entre as posições assumidas pelas partes ou do exercício de um direito potestativo». E acrescentam, exemplificando, que há «fundamento bastante para a oposição à remessa (…) quando (…) o réu não deduziu reconvenção pelo facto de o tribunal também ser materialmente incompetente para conhecimento do pedido reconvencional (…). Neste caso, a remessa do processo, com o referido aproveitamento dos articulados, determinaria uma restrição nas garantias do réu, assim se justificando a recusa» (itálico aditado).

Para depois complementarem que «Noutros casos, os motivos poderão não ser relevantes (…) ou não serem tão evidentes, devendo ser feita uma apreciação global da defesa que foi ou poderia ter sido apresentada (…)».

Por sua vez, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ([3]) analisam assim o que está em causa no âmbito normativo (art.º 99.º, n.º 2, aludido):

«O n.º 2 constitui manifestação do princípio da economia processual, na vertente da economia de atos e formalidades processuais. Decretada a incompetência depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se se o autor requerer a remessa do processo para o tribunal competente e o réu não se opuser de modo justificado.

No correspondente n.º 2 do art. 105.º do CPC de 1965, o aproveitamento dos articulados só se fazia mediante o acordo de autor e réu. O Anteprojeto da Comissão contentava-se com o requerimento do autor, apresentado dentro dos 30 dias posteriores ao trânsito em julgado da decisão, ao qual o réu não se podia opor. O Projeto da Comissão reduziu o prazo para 10 dias e a Proposta de Lei admitiu a oposição do réu, acolhendo parecer do Conselho Superior da Magistratura e da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, com o que se fixou a redação desse número. Essa oposição tem de ser justificada, o que se harmoniza com o direito de defesa e o princípio da economia processual: será injustificada se, na contestação, o réu utilizou todos os meios que lhe seriam proporcionados se a ação tivesse sido proposta no tribunal competente; é discutível se continuará a sê-lo se o réu não utilizou todos esses meios, embora os pudesse utilizar (…).

Sublinhe-se que, por este meio, o autor evita a inutilização do processo, mas não obvia à absolvição do réu da instância – o que, no atual código, decorre inequivocamente da alusão ao trânsito em julgado da decisão sobre a incompetência absoluta –, pelo que no tribunal competente se inicia uma nova instância. Assim, aproveitam-se apenas os articulados e os atos processuais que eles impliquem (citação do réu, notificações, eventual despacho liminar ou pré-saneador), mas não os restantes atos praticados pelas partes ou pelo tribunal, nomeadamente as provas produzidas (sem prejuízo do art. 421.º), os despachos eventualmente proferidos (por exemplo, sobre o valor da ação) ou a tramitação de qualquer incidente (…).» (destaques aditados).

Já Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro ([4]) dão o seguinte exemplo de justificação bastante do réu (para obstar à remessa): «(…) poderá o réu não ter reconvindo por ser o tribunal materialmente incompetente também para o conhecimento do pedido reconvencional (art. 93.º, n.º 1). Sendo o processo remetido ao tribunal competente, findos os articulados, não tem o réu nova oportunidade para deduzir reconvenção. Pretendendo oferecer oposição à remessa com este fundamento, deverá, no contraditório que lhe for oferecido depois de recebido o requerimento do autor, demonstrar que não deduziu reconvenção apenas por este motivo, o que só logrará fazer se, na sua contestação, tiver invocado uma exceção de incompetência absoluta do tribunal – podendo logo adiantar que só não apresenta reconvenção por este motivo.».

Também na jurisprudência podem ser encontradas diversas perspetivas sobre o tema, umas mais rigorosas que outras quanto à amplitude de análise dos argumentos do réu de oposição à remessa.

Assim, para o Ac. TRG de 23/11/2017 ([5]), «(…) o réu só não será prejudicado com a remessa do processo se não tiver alegado certos factos na sua defesa na acção anterior, mas puder alegá-los na nova acção; se não tiver arguido uma excepção e puder agora invocá-la ou até apresentar uma contestação diferente da anterior, se o quiser fazer.

Essa faculdade mostra-se, no caso, precludida, uma vez que, mostrando-se finda a fase dos articulados, a ser o presente processo remetido para a jurisdição administrativa materialmente competente, com o consequente aproveitamento dos articulados, não disporá aquele de meio processual adequado para invocar em sua defesa as questões ou exceções supra elencadas que, tendo pertinência em sede de jurisdição administrativa, não o foram anteriormente por a acção ter sido intentada num tribunal de natureza civil.».

Concluindo-se neste aresto que, «(…) como fundamento de oposição à remessa o réu carece apenas de apresentar uma razão plausível e não arbitrária, sem lhe ser exigível que a especifique em pormenor ou detalhadamente, além de que o tribunal que se declarou incompetente não deve apreciar o mérito da pretensão enunciada pelo réu e que este pretende concretizar no tribunal competente.» ([6]).

Por sua vez, no Ac. TRC de 29/01/2015 ([7]) foi entendido que, no âmbito do disposto no art.º 99.º, n.º 2, do NCPCiv., quanto à remessa do processo ao tribunal declarado competente, «o atendimento da oposição do réu a essa remessa pressupõe que tal oposição seja de considerar justificada, o que implica basear-se ela em motivo atendível do qual resulte ter o réu feito descaso, por razões ligadas à natureza e tramitação na jurisdição considerada incompetente, de meios de defesa que lhe seriam proporcionados no quadro da jurisdição afirmada como competente», termos em que «não vale como justificação a simples afirmação de diferenças de tramitação nas duas jurisdições, quando a defesa apresentada pelo réu contra a pretensão do autor pode ser feita valer, fundamentalmente nos mesmos termos, na tramitação a observar no Tribunal declarado competente.» ([8]).

Ponderados estes vetores doutrinais e jurisprudenciais, concorda-se com o expendido no Ac. TRC de 12/02/2015 ([9]), segundo o qual: (i) é indispensável que a oposição do réu à remessa seja justificada, não bastando uma oposição pura e simples, ou seja, imotivada; (ii) haverá fundadas razões para oposição à remessa sempre que a defesa já deduzida possa ser ampliada no novo tribunal, suscitando questões que só naquela jurisdição assumem pertinência ([10]).

Analisando o caso dos autos, verifica-se que a R., demandada em ação cível, não deduziu uma defesa esgotante, mormente na perspetiva da jurisdição dos Tribunais de Comércio.

Nota-se até que, na sua contestação – onde deveria ter concentrado todos os meios de defesa à pretensão do A. ([11]) –, a R. nem sequer deduziu a exceção da incompetência do Tribunal Cível em razão da matéria, incompetência essa que, aliás, só viria a ser reconhecida pelo STJ.

Toda essa contestação foi gizada para a deduzida ação cível, onde o pedido do A. se reportava a invocados créditos remuneratórios – pagamentos de remunerações em falta, no valor de € 102.847,94, acrescidos de juros moratórios (de € 16.771,26).

Assim é que a R. se defendeu por impugnação, negando que o A. tenha direito a quaisquer créditos e alegando, por sua vez:

- ter o A. sido destituído judicialmente por violação dos seus deveres de lealdade, com justa causa, não lhe sendo devidos os créditos reclamados, referentes a período posterior ao seu afastamento;

- não ter o A. alegado a celebração de contrato de trabalho, não lhe sendo aplicável o método de cálculo estabelecido no Código do Trabalho, nem tendo aquele correspondido ao ónus da prova que lhe cabia, pelo que é inviável tudo quanto peticionou.

É certo que poderia a R. ter esgotado todos os meios de defesa possíveis e deduzido, querendo, reconvenção, se admissível, e não o fez, posto nem sequer ter excecionado na contestação a incompetência do Tribunal (o que só fez mais tarde e foi atendido por se tratar de matéria de conhecimento oficioso).

Porém, é também certo que se defendeu perante a pretensão que o A. escolheu lançar e perante o tribunal que aquele escolheu acionar, sendo líquido, claramente, que a errada escolha do tribunal somente à parte demandante é imputável.

Por isso, não parece exigível que, perante um erro da contraparte, a R. tivesse de esgotar os seus meios de defesa na perspetiva das matérias cometidas aos Tribunais de Comércio.

Não pode a parte ser prejudicada na sua defesa por efeito de um erro da contraparte, de que esta, assim, acabaria por beneficiar.

Assim sendo, se, não obstante esse erro, com a decorrente extinção/absolvição da instância (no tribunal incompetente), o autor, que cometeu o erro, poderá ser beneficiado com o aproveitamento dos articulados (com remessa para o tribunal competente), em tributo ao princípio da economia processual, tal não poderá nunca prejudicar as garantias de defesa da parte demandada, que não deu causa ao erro ocorrido, não podendo esta ficar em situação de indefesa na nova ação (a que correrá no tribunal competente).

Donde que a oposição à remessa, havendo de ser motivada/justificada, tenha de ser medida à luz do direito de defesa do demandado no âmbito da nova ação.

E se este invoca que pretende, nesta última, suscitar novos meios de defesa – não invocados na anterior, num diverso quadro de competências –, que sejam admissíveis e adequados perante o tribunal competente (no caso, os Tribunais de Comércio, em vez dos Cíveis), então terá de concluir-se que a remessa do processo com os articulados – finda já a fase destes – vai vedar, na nova ação, a dedução de outra matéria de exceção ou a formulação de reconvenção (com pedido caraterístico e da competência daqueles Tribunais de Comércio).

Em suma, teríamos uma nova ação, em tribunal com diversa competência, que, para favorecer o autor (com aproveitamento dos articulados), iria prejudicar o réu, perante errónea atuação pretérita que não lhe é imputável (mas sim à parte contrária), não permitindo ao demandado, em nova instância, exercer livremente o seu direito de defesa, por força de articulados de ação já extinta.

É certo que a R./Recorrente motivou a sua oposição, restando saber se é de ter por justificada.

Assim, tendo deixado alegado que pretende, na nova ação judicial (por a anterior estar já extinta), alargar os meios de defesa – mediante (i) dedução da exceção da incompetência absoluta (dos Tribunais Judiciais) por preterição do tribunal arbitral e (ii) perspetivação da sua defesa na natureza, implicações e moldes de execução, pelo Recorrido, do cargo de administrador da Recorrente (e não em conceitos de ordem laboral) – e, por outro lado, deduzir pedido reconvencional de responsabilidade do administrador (A./Recorrido), parece, salvo o devido respeito, que tal exercício de defesa, em nova ação judicial e perante tribunal com diversa competência material, não lhe poderá ser retirado, sob pena de poder ocorrer violação do princípio constitucional da proibição da indefesa (art.º 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRPort.).

A questão não é tanto a da aferição da semelhança das regras processuais da ação extinta e da nova ação e decorrente garantia, em abstrato, das prerrogativas de defesa da R., mas da operância em concreto dessas regras, uma vez aproveitados os articulados da ação extinta.

Com efeito, se as regras processuais dão semelhantes garantias em abstrato – nos Tribunais Cíveis e de Comércio –, já, no concreto do caso, o aproveitamento dos articulados da instância extinta (cível) impedirá, na nova ação (nos Tribunais de Comércio), a dedução de quaisquer novos meios de defesa (não supervenientes), por força da preclusão decorrente da anterior contestação, ou a dedução de reconvenção (que tem de ser obrigatoriamente deduzida com o articulado de contestação), que a R. pode ter entendido não dever deduzir perante o Tribunal Cível, por o entender incompetente para tanto em razão da matéria (não querendo cair no mesmo erro da contraparte).

Em suma, no caso temos motivada oposição à remessa, devendo a posição da R. ter-se por justificada, por em causa estar o exercício pleno do seu direito de defesa na nova ação judicial.

Donde, assim sendo, que haja de proceder a apelação.

(…)

                                                 ***
V – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, não se ordenando a remessa da ação extinta para o tribunal considerado materialmente competente.

Custas do recurso pelo A./Recorrido, ante o seu decaimento (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 25/10/2022

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro



([1]) Que se deixam transcritas no relevante.
([2]) Cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 129.
([3]) V. Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, ps. 229 e seg..
([4]) V. Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2014, p. 125.
([5]) Proc. 2089/16.1T8GRM.G1 (Rel. Alcides Rodrigues), em www.dgsi.pt, podendo ler-se no respetivo sumário: «Considera-se justificada a oposição se da remessa do processo puder advir prejuízo para a defesa do réu, nomeadamente vendo-se este impedido de alegar novos factos, invocar excepções ou deduzir reconvenção na nova acção, que não deduziu na anterior por só face à nova jurisdição (administrativa) considerada competente se tornarem pertinentes ou mesmo legalmente admissíveis».
([6]) Nesta linha, cfr., inter alia, o Ac. TRP de 11/10/2017, Proc. 1974/16.5T8PNF-A.P1 (Rel. Maria Cecília Agante), em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «I- Após o trânsito em julgado da decisão que absolve o réu da instância por incompetência absoluta do tribunal, o autor pode requerer e obter a remessa dos autos ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta. // II- O réu pode deduzir oposição a tal formulação, que tem de proceder se este invocar alguma razão plausível para se opor àquela remessa, sem carecer de a particularizar detalhadamente, bastando não estar em causa uma oposição arbitrária.». Também o anterior Ac. TRC de 20/04/2016, Proc. 1229/12.4TBLRA-F.C1 (Rel. Fernando Monteiro), em www.dgsi.pt, a concluir que, não podendo a remessa do processo prejudicar o réu, este «só não será prejudicado se, não tendo utilizado certo meio de defesa na ação anterior, puder fazê-lo na nova ação. (…) // Por conseguinte, obstará à remessa dos autos uma oposição do réu que expresse querer apresentar uma contestação diferente da apresentada.». E ainda o anterior Ac. TRP de 01/06/2015, Proc. 1327/11.1TBAMT-B.P1 (Rel. Alberto Ruço), igualmente em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «I- Nos termos do n.º 2 do artigo 99.º do Código de Processo Civil, o autor, após o trânsito em julgado da decisão que absolveu o réu da instância, não oferecendo este último oposição justificada, pode requerer e obter a remessa dos autos ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta. // II- No actual regime processual a instância inicial não continua no tribunal considerado competente: extingue-se. // III- A oposição do réu procede se este invocar alguma razão plausível para se opor à remessa, sem carecer de a especificar em pormenor, desde que mostre não se tratar de uma oposição arbitrária. // IV- O tribunal que se considerar incompetente não deve apreciar o mérito da pretensão enunciada pelo réu e que este pretende concretizar no tribunal competente.».
([7]) Proc. 141592/13.1YIPRT-A.C1 (Rel. Teles Pereira), também em www.dgsi.pt.
([8]) Em sentido semelhante, o Ac. TRL de 10/10/2017, Proc. 16/10.9TBPST-7 (Rel. Carla Câmara), em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «Tendo sido declarada a incompetência material do Tribunal, findos os articulados, vindo o autor a requerer, nos termos do artigo 99º, nº 2 do CPC, a remessa do processo ao tribunal declarado competente, no caso, o Tribunal Administrativo e Fiscal, não constitui oposição justificada que obstaculiza àquela remessa, a invocação de serem desadequados os articulados para prosseguirem no Tribunal Administrativo, por terem sido elaborados à luz das normas do Código de Processo Civil.».
([9]) Proc. 141591/13.3YIPRT.A.C1 (Rel. Carvalho Martins), também em www.dgsi.pt.
([10]) Como consta da fundamentação do Ac. TRP de 01/06/2015 (já citado), «Se o legislador prescinde do acordo do réu e se a instância primitiva termina por extinção (artigo 277.º, al. a), do Código de Processo Civil), então é seguro que há um novo começo, uma nova instância no tribunal competente e, muito embora se aproveitem os articulados, tudo se passa como se nunca tivesse existido qualquer processo. // Nestas condições, tendo-se extinguido a instância e tendo havido oposição do réu à remessa, tem de se concluir que a remessa do processo não pode prejudicar o réu. // Mas o réu só não será prejudicado se, muito embora, apesar da remessa, não tiver alegado certos factos em sua defesa na acção anterior, mas puder agora alegá-los na nova acção; se não tiver deduzido reconvenção, mesmo nos casos em que o podia ter feito, e puder agora deduzi-la; se não tiver alegado uma excepção e puder agora invocá-la, etc.».
([11]) É consabido, quanto aos deveres do réu ao contestar, dispor o normativo do art.º 573.º do NCPCiv., o qual estabelece o princípio da concentração da defesa na contestação, a que se ligam os subprincípios da eventualidade e da preclusão, resultando deste último que, salvo matérias de conhecimento oficioso, todos os meios de defesa não invocados pelo réu na contestação ficam prejudicados, não podendo ser alegados mais tarde. O princípio da eventualidade significa que, dado o risco de preclusão, o réu haverá de dispor todos os seus argumentos, mesmo em termos subsidiários (atendimento para o caso de qualquer dos anteriores improceder).