ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
CONDENAÇÃO EM OBJECTO DIVERSO DO PEDIDO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
CUSTAS
Sumário

I - A modificação do contrato resultante de operante alteração anormal das circunstâncias constitui uma excepçao peremptória modificativa, que, como as demais, determina uma modificação do objecto invocado pelo autor.
II - Uma sentença que condena no pagamento de um quantitativo que se contém na quantia pedida na acção e que permite o pagamento desse quantitativo em prestações, não condena em quantidade superior nem em objecto diverso do pedido, quando este se traduza na condenação numa quantia pecuniária.
III - Tendo a autora informado os autos, fazendo-o antes da citação dos réus, que estes já lhe tinham devolvido o equipamento cuja devolução pedira na acçao, o correspondente pedido mostra-se extinto por inutilidade superveniente da lide, devendo a autora pagar as correspondentes custas.

Texto Integral

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I - N... UNIPESSOAL, LDA., intentou, em 21/4/2021, a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra R... UNIPESSOAL, LDA. e AA,  pedindo a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia de € 37.520,00 e juros de mora vencidos calculados à taxa de juro comercial de 7% ao ano, desde 2/12/2020, ate 21/4/2021, no valor de € 1.007,39, sem prejuízo dos juros vincendos até integral pagamento, bem como a condenação da R. na devolução de dois moinhos e de uma máquina de café.

Alegou para o efeito – e muito resumidamente – que celebrou com a R., com fiança do R., um contrato de fornecimento de café que, além do mais, previa a aquisição de 9.000 Kg de café ao longo os 5 anos da sua duração, e que lhe entregou, como contrapartida, a quantia de € 148.215,00. Como a R. não adquiriu toda a quantidade de café convencionada, tendo apenas adquirido 5.248 kg dos 9.000 que deveria ter adquirido, entende que a mesma lhe deve, a titulo de cláusula penal, o montante de 10,00 por cada kilo de café contratado e não adquirido, o que perfaz  a quantia de 37.520,00. Pede, em consequência, o pagamento deste valor, acrescido dos juros desde 2/12/2020 – dez dias sobre a segunda carta que lhes enviou - bem como pede a devolução da maquinaria que  havia colocado no estabelecimento.

Por requerimento de 4/5/2021, e antes da citação dos RR, deu, no entanto, conhecimento no processo, que, «no dia 26.04.2021, obteve a entrega voluntária do equipamento cuja devolução fazia parte do pedido, requerendo, ao abrigo do disposto no artigo 283º/1 do CPC, a redução do pedido quanto à restituição do equipamento, por inutilidade superveniente, devendo os autos prosseguirem quando ao demais», não tendo chegado a recair qualquer despacho sobre o requerimento em causa.

Os RR. contestaram, pretendendo, antes de mais,  estar em causa um contrato de adesão que não lhes foi  explicado, nada tendo a R. podido negociar, assim pugnando por que unicamente sejam válidas as cláusulas 1ª, 8ª, 9ª e 10ª. Mais alegaram que quando a  A. resolveu o contrato por incumprimento já o mesmo havia caducado, em função do decurso do prazo pelo qual foi celebrado, e  que, de todo o modo,  o contrato não foi incumprido pela R., pois que vigoraria até ser consumida a quantidade de café contratada ou até que se encontrasse decorrido o período de 5 anos, facto este que sucedeu. Sustentam ainda que a A. age em abuso de direito, porque nunca reagiu à circunstância de a R. nunca ter consumido a quantidade de café mínima mensal prevista no contrato durante a sua vigência, pois nunca os interpelou no sentido de se encontrarem em mora ou em incumprimento. Pretendem ainda que a fiança é nula por objecto indeterminado, e que o contrato deve ser modificado por alteração anormal das circunstâncias, atendendo a que surgiram, após a sua celebração, factos insólitos que assim o justificam, entre os quais a pandemia, pretendendo também que a cláusula penal estabelecida é desproporcional e excessiva.

A A. replicou, pugnando pelo indeferimento das excepções.

Teve lugar audiência prévia, no qual foi proferido despacho saneador, se fixou valor à acção  - € 51.445,65 – se conheceu da excepção de abuso de direito e da excepção peremptória de nulidade da fiança,  tendo uma e outra sido julgadas  improcedentes, se identificou o objecto do processo e se enunciaram os temas de prova.

Ainda nessa audiência, e no que se refere à apreciação da prova requerida pelos RR,  a R. requereu, para prova do alegado nos  13 a 17 e 57  da contestação, a notificação da A.  para informar os autos, «juntando suporte documental para o efeito, de qual o custo de fabrico e preço de venda (para revenda e considerando as quantidades aqui em causa) do café descafeinado da marca “B...” “Lote Gold”», tendo o o Exmo Juiz convidado os RR. a aguardarem pela audiência final, onde teria lugar depoimento de parte do R., depois se reavaliando da necessidade ou pertinência da pretendida notificação .

Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou a  acção parcialmente procedente, condenando os RR. no pagamento, à A, da quantia de € 12.000,00, em sessenta prestações mensais e iguais, a liquidar no último dia útil do mês a que respeitem, e a iniciar no mês seguinte ao do trânsito em julgado da decisão, sendo  devidos, em caso de eventual incumprimento, aferido mensalmente, juros,  à taxa legal, no momento em vigor entre empresas comerciais, sobre a(s) quantia(s) em dívida, e até integral pagamento da(s) mesma(s), mais absolvendo  RR. de tudo o mais contra eles pedido.

II – Do assim decidido, apelaram A e RR.

II – A – A A. concluiu as alegações da sua apelação, do seguinte modo:

I -Salvo o devido respeito, o Mmº juiz não possuía elementos que lhe permitisse concluir que o preço de custo de cada quilo de café para a recorrente era de 15€.

II- O Mm juiz assentou a sua convicção apenas e só no depoimento da testemunha BB, aliás sem qualquer convicção, recheado de hesitações, umas vezes afirmando “não faço ideia”, “eu prefiro não fazer ideia”, apenas concretizando a insistência do Mmº juiz que sabia até onde poderia ir nas negociações. – declarações gravadas do (minuto 12,06 a 12,25; 13,04 a 13,48; 13,59 a 15,50

III- Não relevando para a fixação desse preço de custo a especificidade de cada negócio, isto é, a contrapartida financeira entregue pela recorrente à recorrida, no caso concreto 148.215,00€, com IVA incluído – facto provado ponto 4, bem como a perda de publicidade.

IV- Investimento essencial para a fixação do preço de custo, como explicou a testemunha BB – gravação de 16,50 a 18,08 e 21,28 a 23,26).

V- Assim, o facto dado como provado no ponto 57 – “o preço do fabrico e distribuição do quilo de café em causa ascende a cerca de € 15,00” deverá ser considerado -não provado

 VI- Estando em causa uma cláusula penal com natureza indemnizatória e compulsória, era aos recorridos que competia a alegação e prova de factos que permitissem considerar a cláusula penal manifestamente excessiva, o que não aconteceu.

VII- Apenas no alegado preço do custo do quilo do café, atribuído pelo Mmº juiz com base no único depoimento, inconsequente e inconsistente, sem considerar qualquer outro custo associado à colocação do café no estabelecimento da recorrida, designadamente o elevado montante despendido pela recorrente, serviu de fundamento para a elevada redução da clausula penal pedida pela recorrente.

VIII- Na nossa opinião, salvo o devido respeito, teria o Mº juiz, com base na prova produzida em audiência, para além de levar em consideração o elevado investimento da recorrente, a perda de publicidade à sua marca de café, também fixar-se na causa de incumprimento da recorrida, que mais não foi do que contratar com a marca de café “D...”

Considerando o depoimento da testemunha BB – (minuto 31,36), da testemunha CC (gravação minuto 3,09 a 3,15) e DD -gravação 4,49 a 5,47), deveria o Mmº Juiz ter considerado provado -“que em 2020 a ré mudou de marca de café”.

IX- Para além da redução da cláusula penal o Mmº juiz fixou o seu pagamento em 60 prestações mensais.

X- Salvo o devido respeito, o Mmº juiz extrapolou os seus poderes.

XI- Não se vislumbrando, salvo melhor opinião, justificação legal para o ter feito.

XII- A recorrente pede a condenação dos recorridos no montante global de 38.527,39€, a título de indemnização. Ao condenar os recorridos ao pagamento da indemnização de 12.000,00 € em prestações mensais, o Mmº juiz condenou-os em objecto diverso do pedido.

XIII- O que, de acordo com o estabelecido no artigo 615º, nº 1, al. e) do CPC, tem como consequência a nulidade da sentença.

XIV- Nulidade que não impede este tribunal de recurso do conhecimento da apelação, como decorre do artigo 665º/1 do CPC

A R. apresentou contra-alegações, sem conclusões,  pugnando pelo indeferimento do recurso.

II – B – Por sua vez, concluiu as alegações da sua apelação, nos seguintes termos:

I . O presente recurso tem por objecto a decisão proferida pelo Tribunal a quo que, por um lado, entendeu que ocorreu incumprimento contratual, desconsiderando que o contrato celebrado entre as partes havia caducado aquando da resolução do mesmo operada pela Autora e, por outro lado, que julgou improcedente a excepção peremptória de abuso de direito invocada pelos réus (esta última apreciada no despacho saneador, proferido na audiência prévia ocorrida em 14- 01-2022).

 II. O Tribunal a quo deu como provado que “A ré não devolveu o equipamento” (facto provado nº 17, por referência à petição), contudo o mesmo deveria ter sido dado como não provado.

 III. Acontece que, por requerimento datado de 04-05-2021 (ref.ª 38754906), a Autora deu a conhecer ao processo que “N... UNIPESSOAL, LDA., autora no processo à margem identificado que move a R... UNIPESSOAL, LDA., vem informar V. Exa. que no dia 26.04.2021, obteve a entrega voluntária do equipamento cuja devolução fazer parte do pedido. Assim, ao abrigo do disposto no artigo 283, nº 1 do CPC, vem requerer a V. Exa a redução do pedido quanto à restituição do equipamento, por inutilidade superveniente, devendo os presentes autos prosseguir quanto ao demais”.

IV. Perante a inequívoca confissão/redução da Autora, o aludido facto deverá ser dado como não provado para todos os efeitos legais, aditando-se um facto à matéria dada como provada, nos seguintes termos: “A ré devolveu o equipamento que lhe foi comodatado à autora”.

V. Por outro lado, a sentença dá como não provado que “(…) devendo tal aquisição ser obrigatoriamente efectuada através de uma compra mínima mensal de 150 kg, durante os 60 meses do contrato previstos no número 1) da cláusula sexta” (facto não provado nº 3, por referência à petição), quando o mesmo deveria ter sido dado como provado.

 VI. O facto de que a aquisição do café deveria ser efetuada através de uma compra mínima mensal de 150 kg resulta categoricamente do contrato outorgado entre as partes, além de se tratar de um facto admitido e assente por confissão das partes (artigo 3º da PI e artigos 30º a 32º da contestação). Não sendo sequer um facto controvertido, salvo o devido respeito, não poderia o mesmo ter sido dado como não provado.

VII. Ao contrário do que considerou a sentença (embora de forma imprecisa), o facto de existir a possibilidade de o contrato ser prolongado se, no termo do mesmo, a Ré não tivesse adquirido a totalidade do café, isso não afasta que, nos termos do contrato, o café devesse ser adquirido através de compras mínimas mensais de 150 kg.

VIII. Face à prova documental (ponto 3 da cláusula segunda do contrato – DOC. 1 da PI) e ao acordo das partes quanto a esse facto, o mesmo deveria ter sido dado como provado, o que se requer.

 IX. Assim, deverá constar do elenco dos factos provados o seguinte: “(…) devendo tal aquisição ser efectuada através de uma compra mínima mensal de 150 kg, durante os 60 meses do contrato previstos no número 1) da cláusula sexta”

X. A acrescer, entendeu o tribunal a quo que a questão da caducidade ou da resolução do contrato celebrado entre as partes não era relevante, na medida em que considerou que a indemnização pedida pela Autora adviria do incumprimento contratual, e não da resolução do contrato com esse motivo.

XI. Na verdade, a douta sentença refere que “suscitou a ré a questão de estar ou não o contrato caducado, ou de ter ele sido resolvido, matéria que, à face do texto contratual (…) se não me afigura relevante; a questão central é ele ter sido incumprido”. Acrescentando ainda que “as consequências contratuais prejudiciais para os interesses da ré derivam não do termo por resolução ou por caducidade, antes do incumprimento”. – cfr. penúltimo parágrafo da alínea a) do ponto IV da sentença.

 XII. Sucede que, face ao alegado pela Autora na sua petição inicial (pedido e causa de pedir), o que estava (e está) em causa nos presentes autos é a indemnização por consequência da “resolução com justa causa” operada pela Autora.

XIII. Esta conclusão resulta cristalina do confronto do alegado nos artigos 13º a 18º com o documento n.º 6, tudo da petição inicial, bem como do facto provado n.º 21 por referência à petição.

XIV. Ora, configurando a Autora a causa de pedir na indemnização alegadamente devida em consequência da resolução do contrato, nos termos do número 3 da cláusula 5ª do contrato, e não, por exemplo, em consequência de mora do devedor – a própria sentença também não faz qualquer distinção entre mora incumprimento definitivo – não poderia o douto Tribunal a quo, oficiosamente, “sanar” os articulados das partes e alterar a causa de pedir formulada pela autora.

 XV. É indubitável que o que a Autora pediu foi uma indemnização como completamento ou consequência da resolução do contrato (prevista no artigo 801º nº 2 do CC) e não uma indemnização simplesmente pelo incumprimento do contrato (prevista no artigo 798.º do CC).

XVI. E causa de pedir da presente acção é justamente a resolução do contrato operada pela Autora.

XVII. Na verdade, não se trata de interpretar, indagar e aplicar regras de direito de forma distinta face à alegação das partes (o que é permitido nos termos do disposto no artigo 5.º n.º 3 do CPC), mas antes de apreciar a de causa de pedir que não foi alegada pela Autora.

XVIII. Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão datado de 24- 01-2019, processo n.º 948/14.5TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, que: “(…) a decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo. Incumbe sim ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido. É-lhe, pois, vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, o mesmo é dizer, não comportada na órbita do efeito prático-jurídico deduzido (…)”[10]”

XIX. Ora, a causa de pedir é o acto ou facto jurídico em que o Autor se baseia para formular o seu pedido e exerce uma função individualizadora deste último para o efeito da conformação do objecto do processo.

XX. Sendo dentro dos limites fixados pela causa de pedir que o tribunal exerce os seus poderes de cognição, a sentença não pode basear-se em causa de pedir não invocada pelo Autor, sob pena de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC. – cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19-12-2019, proferido no processo n.º 240/18.6T8BJA.E1

 XXI. A sentença recorrida é, portanto, nula, por excesso de pronúncia (por se basear em causa de pedir não invocada pela Autora) e por condenação em objecto diverso do pedido, nos termos do artigo 615.º n.º 1 alíneas d) e e) do CPC e dos artigos 608.º n.º 2 e 609.º n.º 1 do CPC (estes últimos violados pelo Tribunal a quo), nulidade que expressamente se invoca para todos os efeitos legais.

XXII. Caso assim não se entenda, a sentença sempre padeceria de erro de julgamento quanto a este tema, como se passará a demonstrar.

XXIII. Em 27-10-2020 a autora enviou uma carta aos réus, na qual referenciava que a Ré não se encontrava a consumir a quantidade de café acordada, em violação do disposto na cláusula segunda, 2), do contrato.

XXIV. Facto este que a autora entendia constituir uma violação grave do contrato e fundamento de resolução do mesmo.

XXV. Assim, a Ré devia regularizar a referida situação no prazo de 10 dias a contar da data da recepção da carta, sob pena de a Autora resolver o contrato com justa causa nos termos da cláusula oitava, sem prejuízo do direito ao pagamento das indemnizações previstas no mesmo contrato.

XXVI. Ora, em 18-11-2020 a Autora resolveu o contrato com base na dita cláusula, reclamando a quantia de € 37.520,00, a título de cláusula penal.

XXVII. Acontece que, o contrato foi celebrado em 25-03-2015 e a sua duração máxima era de 5 anos, pelo que o seu termo ocorreu no mês de Março de 2020 – facto provado n.º 22, por referência à contestação.

XXVIII. Ou seja, o contrato caducou em Março de 2020, tendo o negócio caducado quando se completou este prazo, não vigorando mais o negócio para o futuro - vide Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. III, 2002, pág. 333 e P. Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 3a Ed., pág. 45, 47/48.

XXIX. Ou seja, o contrato caducou mais de 7 meses antes da interpelação e mais de 8 meses antes da “resolução” do contrato.

XXX. De facto, aquando da interpelação dos Réus para cumprirem o contrato, quanto à compra do café, com aviso que se encontravam em incumprimento contratual, ameaça de resolução e pagamento da indemnização prevista no mesmo, e posterior resolução, em Novembro seguinte, com reclamação do pagamento da consequente indemnização indicada, já o aludido incumprimento, resolução contratual e inerente reclamação indemnizatória não tinham virtualidade jurídica nenhuma, pois o contrato já havia cessado os seus efeitos em Março de 2020.

XXXI. Neste sentido veja-se o acórdão proferido por esta RELAÇÃO DE COIMBRA, em 23-02-2021, relatado pelo Meritíssimo Juiz Desembargador João Moreira do Carmo, proferido no processo n.º 50/19.3T8CNF.C1, referência 9497461, em caso muito semelhante ao dos autos.

XXXII. Onde se sumariou que: “iv) Causa de extinção contratual automática é a caducidade, sendo exemplo palmar o decurso do prazo, não vigorando mais o contrato para o futuro; v) Se a A. interpela, em Novembro de 2018, o R. para cumprir o contrato, quanto à compra do café, com aviso que estava em incumprimento contratual, ameaça de resolução e de pagamento da indemnização prevista no mesmo e, posteriormente, resolve o contrato, em Dezembro seguinte, com reclamação do pagamento da consequente indemnização, o aludido incumprimento e subsequente resolução contratual e inerente reclamação indemnizatória não têm validade nenhuma, se o contrato já havia cessado os seus efeitos em Fevereiro de 2014.”

 XXXIII. Face ao supra exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença da 1ª instância, substituído-se por outra que julgue a acção totalmente improcedente e absolva os Réus dos pedidos deduzidos pela Autora.

XXXIV. Por fim, A Autora peticionou a condenação dos Réus no pagamento da quantia de € 37.520,00, acrescida de juros de mora, alegando que a Ré apenas lhe adquiriu 5.248 quilos de café, quando devia ter adquirido a quantidade total de 9000 quilos, devendo tal aquisição corresponder a um mínimo mensal de 150 quilos.

XXXV. Ora, a ser verdade, quer isto dizer que, em média, a Ré consumiu 87,47 quilos mensais de quantidade de café (5.248,00 kg / 60 meses = 87,47kg) no decorrer da vigência do contrato.

XXXVI. Isto é, desde o início do contrato a Ré nunca consumiu as quantidades mínimas mensais alegadas pela Autora (150 kg) no artigo 3.º da sua petição inicial, tendo esta perfeito conhecimento de tal facto.

XXXVII. Deste modo, se por mera hipótese académica se admitisse que a Autora teria algum direito, que não tem, a indemnização peticionada pela mesma seria manifestamente excessiva face aos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social do direito da Autora, consubstanciando uma clara injustiça e abuso de direito nos termos do artigo 334.º, do Código Civil.

XXXVIII. Por outro lado, a inacção por parte da Autora durante 5 anos (ao não interpelar os Réus alegando que estes se encontravam em mora ou incumprimento para com a mesma), constitui um dos elementos da modalidade do abuso de direito na vertente da posição do venire contra factum proprium, designada pelo Professor Menezes Cordeiro de suppressio.

 XXXIX. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23/05/2005, proc. 0552581: I - Actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, a empresa que contratou fornecer café, em exclusivo a um restaurante, ao resolver o contrato alegando incumprimento, se desde o início do acordo negocial, e por cerca de três anos não reage ao facto de o consumidor não adquirir a quantidade mínima de café a que se vinculara, o que foi sempre do seu conhecimento. II - O facto de ter havido tolerância para com o incumprimento é decisivo, para enquadrar a conduta abusiva pois, se tal passividade da ré fosse esporádica não teria relevo, mas perdurando pelo tempo que perdurou, e dada a natureza do contrato, quando a autora o resolveu, agiu, contraditoriamente, com a sua conduta inicial, passando a considerar infractor aquilo que antes não considerara, podendo considerar, assim traindo a expectativa da ré de que tal actuação não seria considerada pela autora como violadora do contrato.

 XL. No mesmo sentido, com particular aplicação ao caso dos autos face ao que já se disse, veja-se Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, 9.ª edição, 2019, Almedina, págs. 285, 283 e 284: “Supressio (Verwirkung) e surrectio (Erwirkung) são subtipos do venire contra factum proprium. Traduzem o comportamento contraditório do titular do direito que o vem exercer depois de uma prolongada abstenção. A abstenção prolongada no exercício de um direito, pode, em certas circunstâncias, suscitar uma expectativa legítima e razoável de que o seu titular o não irá exercer ou que haja renunciado ao próprio direito, ao exercício de algum dos poderes que o integram, ou a certo modo do seu exercício. Esta expectativa é atendível quando a sua criação seja imputável ao titular do direito e resulte de uma situação de confiança que seja justificada e razoável.

XLI.Este binómio supressio/surrectio integra-se no tipo do venire contra factum proprium, do qual só se distingue por o comportamento prolongado inicial do titular do direito se traduzir numa abstenção e não numa acção, o que não parece ser suficiente para instituir um novo tipo de abuso do direito.”

 XLII. E, antes, dizem o seguinte a propósito do venire contra factum proprium: “Este tipo de abuso centra-se na proscrição de comportamentos contraditórios e da frustração de expectativas criadas e nas quais outrem haja legítima e razoavelmente confiado. Ao agir no Mundo, cada um é responsável "pelo significado intersubjectivo (objectivo) da sua conduta" (Baptista Machado) e não pode desconsiderar o sentido que a sua acção representa perante os outros, nem as expectativas que neles suscita, nem desinteressar-se deles. A comunicação humana está cheia de significados implícitos e subentendidos que integram e complementam a linguagem das palavras. A vida em sociedade exige que as pessoas possam confiar nas expectativas criadas e que essas expectativas sejam atendidas pelo Direito (reliance).

XLIII. Como tipo de abuso, o venire contra factum proprium encontra um fundamento duplo, negocial e ético. Por um lado, a anterior conduta reiterada ou prolongada tem uma eficácia conformadora do conteúdo do direito subjectivo como correspondendo ao modo como o titular do direito o vinha reiterada e prolongadamente exercendo. Este efeito conformador emerge do diuturnus usus et consensus, justifica-se particularmente nas relações prolongadas e significa um consenso tácito sobre o conteúdo do direito e da relação, que é lícito e eficaz sempre que o direito ou a relação em questão sejam regidos pela autonomia privada, sejam disponíveis, e no limite em que o sejam. Assim pode suceder, por exemplo, nas relações prolongadas de negócios. Mesmo no domínio dos direitos reais, o princípio do numerus clausus (artigo 1306) não obsta a que, com carácter

 XLIV. obrigacional, se dê ao direito uma regulação negocial autónoma que pode ser tácita e resultar "com toda a probabilidade" (artigo 217) de uma prática consensual longa e reiterada. Assim, nada obsta a que, no relacionamento prolongado, por exemplo de vizinhança, de comunhão, de servidão ou outros semelhantes, se estabeleça e consolidem práticas consensuais que integrem e conformem o conteúdo dos direitos, das posições jurídicas, ou das relações em questão. Por outro lado, o exercício posterior do direito em contradição com a prática passada reiterada e com frustração das expectativas legítimas e razoavelmente suscitadas na parte a quem o direito é oposto ou contra quem é exercido, constitui uma conduta eticamente reprovável, indigna de uma pessoa de bem, e violadora do dever de honeste (bene) agere. Uma conduta contraditória como esta é contrária aos bons costumes e å boa fé, e constitui abuso do direito.”

 XLV. E ainda no mesmo sentido, falando no venire e na supressio, veja-se também Daniela Farto Baptista, no Comentário ao CC, art. 436, mm 11, pág. 151, a qual, depois de referir que “[n]ão tendo sido fixado nenhum prazo para a resolução do contrato, nem no momento da sua celebração, nem nos termos [do art. 432 do CC], o direito de resolução ficará sujeito à prescrição nos termos gerais (arts. 298 e ss),” mas que “alguns autores questionam, todavia, se se poderá considerar que o seu não exercício durante um certo prazo constituirá uma renúncia tácita”, lembra que “outros autores defendem que o exercício do direito de resolução poderá ser considerado abusivo e, portanto, ilícito, sempre que o seu titular, depois de ter tido conhecimento do fundamento que o fez nascer, continuar a actuar criando a aparência de não estar interessado em exercê-lo e sempre que, da sua inércia, se puder retirar a convicção de que este irá optar pela manutenção da relação contratual (venire contra factum proprium). Tendo sido criada a confiança legítima de que a resolução não será declarada, aceitam que possa verificar-se uma supressio ex bona fide.”

XLVI. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu, violou, o disposto, entre outros preceitos, dos artigos 224.º, n.º1, 230.º, 334.º e 801.º, n.º 2 todos do Código Civil e artigo 607.º, n.º 5, 5.º, n.º 3, 615 n.º 1 alínea d) e e), 608.º, n.º 2 e 69.º, n.º 1 todos do Código de Processo Civil.

A A. não apresentou contra-alegações.

 III – A 1ª instância julgou provados os seguintes factos (procedendo à sua enunciação em função da numeração que originariamente lhes foi atribuída nos articulados a que respeitam):

 Da petição:  

1 .A autora celebrou com a ré em 25.03.2015, um contrato para fornecimento de café nº 28512, cujo teor – que aqui se dá por integralmente reproduzido, nos seus precisos termos – é o que foi junto com a petição como “documento 1”.

 2- Na cláusula segunda, números 1) e 3) do contrato, a ré obrigou-se durante o período de vigência do contrato, a não adquirir a terceiros, nem publicitar ou revender outras marcas de café e descafeinado no seu estabelecimento, e bem assim, a revender e publicitar em exclusivo o café B..., lote Gold da autora.

 3 -Na mesma cláusula segunda, mas no número 2, obrigou-se também a adquirir 9.000 kg daquele café.

 4 - Como contrapartida das obrigações assumidas pela ré a autora entregou-lhe a quantia de 148.215,00€, com IVA incluído, a título de comparticipação publicitária, como resulta da cláusula quinta, número 1) do contrato.

5-  Na cláusula quinta, número 2), ficou estipulado que, resolvido o contrato com fundamento em qualquer causa não imputável à autora, e sem prejuízo de quaisquer indemnizações a que haja lugar, a ré obrigava-se a restituir a comparticipação publicitária, deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, contado em meses.

6- Estabelecendo-se no número 3) da mesma cláusula, que, sem prejuízo da responsabilidade decorrente do incumprimento de outras obrigações contratuais, o incumprimento das obrigações previstas no número dois da cláusula segunda, directamente ou como consequência da resolução do contrato por incumprimento de outras obrigações nele previstas, obrigava a ré a pagar à autora, a título de cláusula penal, o montante de € 10,00 por cada kg de café contratado e não adquirido.

7-  Também como contrapartida das obrigações assumidas pela ré, a autora, conforme o estabelecido na cláusula quarta, número 1) do contrato, colocou no seu estabelecimento, a título de comodato, o seguinte equipamento: \a) Um moinho de café Md..., no valor de 1.112,00€, acrescido de IVA;  b) Um moinho de café C...S, no valor de 905,00€, acrescido de IVA; c) Uma máquina de café C...C, no valor de 8.485,65€, acrescido de IVA. No valor global de 12.918,26€, com IVA incluído.

8 - Na cláusula quarta, número 2) do contrato, estipulou-se que o equipamento seria exclusivamente utilizado para a venda dos produtos objecto do contrato, pelo que seria comodatado pelo período que coincidisse obrigatoriamente com a vigência do mesmo, devendo ser devolvido à autora no prazo de 10 dias a contar do seu termo.

9 - O réu AA constituiu-se fiador e principal pagador solidário, garantindo a satisfação de todas as obrigações da sociedade, ficando pessoalmente obrigado perante a autora conforme o estabelecido na cláusula nona do contrato.

10 -A partir de Março de 2020 a sociedade deixou de consumir no seu estabelecimento o café da autora, não mais retomando o seu consumo.

11 - Interpelação de que a autora deu conhecimento ao réu como fiador por carta também de 27.10.2020.

12 - Na data em que deixou de adquirir o café da A., apenas tinha consumido 5.248kg dos 9.000kg contratados.

13- A autora dirigiu à ré, para morada que não a comunicada pela mesma ré em Junho de 2020, carta de 18.11.2020, exigindo o pagamento da quantia de 37.520,00€ (9.000 kg -5.248 kg x 10,00€), correspondente à indemnização pelos quilos de café não consumido, de acordo com o estipulado na cláusula quinta, número 3) do contrato.

 14 - Exigindo ainda a devolução dos dois moinhos de café e da máquina de café.

15-  Importância que também exigiu ao réu fiador por carta de 18.11.2020.

16-  Os réus nada pagaram à autora.

17 -A ré não devolveu o equipamento.

18 - Em 27-10-2020 a autora enviou uma carta aos réus, na qual referenciava que a Ré não se encontrava a consumir a quantidade de café acordada, em violação do disposto na cláusula segunda, 2), do contrato.

21 -Em 18-11-2020 a Autora resolveu o contrato com base na dita cláusula, reclamando a quantia de € 37.520,00, a título de cláusula penal.

22 -O contrato foi celebrado em 25-03-2015 e a sua duração (…) era de 5 anos.

25 - A ré não recebeu as referidas cartas.

26 - A 05-06-2020, a ré enviou uma carta à Autora, cujo teor – que aqui dou por integralmente reproduzido, nos seus precisos termos – é o que consta do texto junto como documento nº 1 com a contestação, além do mais, a solicitar que as futuras comunicações lhe fossem remetidas para a Urbanização ..., ..., ... ... e a Autora ignorou tal menção

 29-A A Autora (…) substituiu 30 conjuntos.

 51 -Após a celebração do contrato aqui em causa (…) ocorreu a pandemia.

52 -A referida situação repercutiu-se sobre a empresa aqui Ré e também na capacidade do fiador aqui réu.

56 -A autora não forneceu os quilos de café que a ré não adquiriu.

57 - O preço do fabrico e distribuição do quilo de café em causa ascende a cerca de € 15,00.

Da réplica

5 -O contrato a que se referem os réus, antes de elaborado foi previamente negociado e as suas cláusulas reflectem essa negociação.

7 - O réu gerente da sociedade ficou ciente do que assinava, não só na qualidade de gerente da sociedade, mas também como fiador.

18 - Dispõe a clausula sexta, nº 3) do contrato junto aos autos: “No final do prazo de duração do contrato, caso a quantidade de café indicada no número dois da cláusula segunda não tenha sido adquirida na totalidade, o contrato será prolongado, nos termos e por acordo entre as partes, até a quantidade remanescente seja adquirida…”

22 -  A cláusula quinta, número 3) do contrato (…) . 23. (…) estabelece, “sem prejuízo da responsabilidade decorrente do incumprimento de outras obrigações contratuais, o incumprimento das obrigações previstas no número dois da clausula segunda, directamente ou como consequência da resolução do contrato por incumprimento de outras obrigações nele previstas, obriga o segundo outorgante a pagar á N... UNIPESSOAL, LDA., a título de cláusula penal, o montante de 10,00€ por cada quilograma de café contratado nos termos do número dois da clausula segunda e não adquirido pelo segundo contratante.”

50 - Durante o período em que vigorou o contrato era a autora quem dava assistência a todo o equipamento utilizado para tirar café, oferecia as chávenas, pires e açúcar.

           

III – B – A 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:

 Da petição:

3  -(…) devendo tal aquisição ser obrigatoriamente efectuada através de uma compra mínima mensal de 150 kg, durante os 60 meses do contrato previstos no número 1) da cláusula sexta.

10 - (…) interpelada pela autora por carta de 27.10.2020.

Da contestação

4 - As cláusulas que constam do contrato celebrado entre as partes em 25 de Março de 2015, estão (…) redigidas e contêm linguagem (…) que os Réus não dominam.

4-Todas as cláusulas foram previamente e exclusivamente elaboradas pela Autora, na qualidade de proponente, não podendo os Réus, na qualidade de aderentes, influenciar ou negociar o conteúdo das mesmas.

5-  Os Réus apenas podiam tomar uma de duas decisões: aceitar ou repudiar, sem qualquer possibilidade de negociação, as cláusulas do dito contrato.

11 - Não foi lido, comunicado nem explicado a nenhum dos aqui Réus, nem ao legal representante da Ré “R... UNIPESSOAL, LDA.” o conteúdo da cláusula segunda, da cláusula terceira, da cláusula quarta, da cláusula quinta, da cláusula sexta e da cláusula oitava do contrato celebrado entre as partes.

14 - Em caso de incumprimento, (…) a Autora aufere vantagens patrimoniais superiores às que obteria com o cumprimento do contrato.

22- (…) máxima.

25 -Os Réus não tiveram conhecimento de nenhuma das referidas cartas, o que apenas ocorreu com a citação para a presente acção.

25- À excepção daquelas que foram devolvidas, as outras foram recebidas por terceiros que, por motivos que os Réus desconhecem, não lhes foram entregues nem dadas a conhecer de qualquer forma.

29-A Autora prometeu a Ré trocar as esplanadas e não cumpriu com o acordado.

48 -A quantidade de café a ser consumido pela Ré foi definida unilateralmente pela Autora, desconhecendo a Ré quais os indicadores analisados por aquela para a determinação da quantidade de 9.000 quilos totais e de 150 quilos mensais.

51- Após a celebração do contrato aqui em causa, Grande parte das faculdades que funcionavam muito perto do estabelecimento da Ré, deslocaram-se para outros locais, designadamente para o polo 3 – facto ocorrido em Setembro de 2015.

2 - A “...” encerrou – facto ocorrido em setembro de 2015;

3 - Encerrou o posto dos “CTT” que se situava na Praça ... - facto ocorrido em Fevereiro de 2018;

 4-O Município ... procedeu a uma redução dos horários de funcionamento dos estabelecimentos como o da Ré - facto ocorrido em Abril de 2016.

56 - A Ré não teve qualquer prejuízo.

58 -Foi a Autora que criou na Ré a expectativa que o consumo de café naquele estabelecimento, diga-se, que ainda nem sequer tinha aberto ao público, era muito superior ao que efectivamente se veio a verificar.

59 -Ao contrário do que a Autora contrata com a maioria dos seus clientes, no contrato que aqui nos ocupa a Autora impos à Ré o consumo de 9.000 quilos, ao invés de 7200 quilos.

 Da réplica

7- Depois de elaborado o contrato, todas as cláusulas foram explicadas ao réu gerente da sociedade.

 8 -O réu já tinha celebrado com a autora contratos idênticos.

9 - O contrato foi deixado no estabelecimento da ré, só dias depois sido levantado pelo representante da autora.

20 - Ao abrigo da cláusula sexta, número 3), o contrato prorrogou-se.

 48 -Viu a publicidade à sua marca de café restringida.

49- Teve que proceder à alteração da rota do vendedor da zona que passou a ter menos um cliente.

51- (…) todas as despesas associadas à propositura da presente acção, nomeadamente, com os seus advogados, taxas de justiça, deslocações, bem como perda de horas de trabalho com os seus trabalhadores arrolados como testemunhas.

 52 -O preço do quilo de café ronda os 26€/kg.

IV – Do confronto entre as conclusões da apelação da A. e a sentença recorrida,  importa apreciar no presente recurso:

-se o facto provado 57 (resultante da contestação) deve ser julgado não provado;

- se deverá ser acrescentado à matéria de facto, que «em 2020 a R. mudou de marca de café»;

- se os factos constantes dos autos não permitiam a redução da cláusula penal, ou se, permitindo-a, não justificavam a sua redução para € 12.000,00;

- se a sentença é nula, nos termos da al e) do nº 1 do art 615º CPC, por condenação em objecto diverso do pedido ao ter possibilitado à R. o pagamento da indemnização correspondente à cláusula penal em prestações mensais.

 

Por seu turno, e no que concerne à apelação da R., operado o confronto acima referido, importa decidir:

- se, se deverá acrescentar à matéria de facto, que «a R. devolveu o equipamento que lhe foi comodatado à A.»;

- se o facto não provado nº 3 (por referência à petição), deve ser julgado provado;

- se a sentença é nula por excesso de pronúncia em função de se ter servido para a condenação dos RR. de causa de pedir diversa da utilizada na acção pela A.;

-a assim não se entender, se, em todo o caso, a A., ao intentar a presente acção, agiu em abuso de direito.

           

Cumpre, antes de mais, reapreciar a factualidade impugnada por uma e outra das partes.

Entende a A. que o Tribunal a quo não tinha elementos que lhe permitissem julgar provado, como julgou, que «o preço do fabrico e distribuição do quilo de café em causa ascende a cerca de € 15».

Lembra, para esse efeito, que o Tribunal recorrido apenas fundamentou o decisão  em causa  no  depoimento da testemunha  BB, de cujo depoimento, no entanto, e do seu ponto de vista,  não resulta o valor referido.

Recorde-se  a fundamentação do Tribunal a quo a respeito do facto  em referência:                «O preço avançado para o quilo de café resulta, integralmente, do depoimento da pessoa que mais e melhor informação tinha sobre tal matéria, pois que se trata de um chefe de vendas da autora para a zona centro do país, que, conforme esclareceu, se estende da cidade ... à vila da ..., e que tem competência, dentro da estrutura da empresa, como esclareceu, para aceitar ou não um contrato deste tipo naquela região do país. Disse que, actualmente, o preço base de venda do quilo de café é de € 31,00, que era inferior aquando da celebração do contrato, que os custos de produção são de molde a que o quilo fique a 12, 13 euros à saída de fábrica, a 14, 15 euros a final, contabilizando os custos de distribuição. Mais referiu que só muito excepcionalmente poderia aceitar um contrato de cedência de café a € 15,00 o quilo, o que se poderia justificar – sem o que jamais seria aceite esse preço – porque “é um investimento que está associado”, é “a publicidade”. Para além do lucro, como referiu, há, por vezes, a imagem, quando se trata de “um ponto de venda de muita visibilidade e notoriedade”.» 

Atente-se, agora, aos excertos do depoimento da testemunha em causa, que a A. nas alegacões reproduziu com fidedignidade, como se constatou pela  audição da prova.             Tendo sido perguntado à testemunha, «qual é o preço do café actualmente, deste lote Gold?, respondeu, de chofre, «31 €». Sendo-lhe perguntado, de imediato, «Tem ideia quanto pode custar um quilo de café na produção? Com os custos todos associados que estão?», respondeu, «Não faço a mínima ideia senhor doutor. Não tenho a perceção disso. Mas eu diria, sei lá, olhando para o preço da matéria-prima e custos de produção, sei lá, pode custar à saída da fábrica doze, treze, catorze euros. Depois custos de distribuição, portanto, chegar com o produto a casa dos clientes através da rede comercial, armazéns, transportes, sei lá, uns catorze, quinze euros. Não faço ideia» .

Depois desta resposta a testemunha foi interpelada pelo Exmo Juiz que lhe fez entender não ser aceitável que se diga «doze-treze euros à saída, catorze-quinze com a distribuição e que se diga também simultaneamente "não faço a mínima ideia"»

Após essa interpelação, a testemunha referiu: «Eu prefiro então não ter ideia, porque … », ao que o Mmo Juiz retorquiu, «não é uma questão de preferência, é a realidade que não têm ideia?», adiantando, então, a testemunha: «Digamos, eu faço, eu faço alguma, alguma análise daquilo que são as minhas capacidades negociais Senhor Doutor Juiz. Portanto, eu tenho ideia (…) …  Eu sei até onde é que posso ir e nesse sentido… (…) se vender café abaixo de quinze euros a qualquer cliente, não é possível, eu não consigo…». Tendo-lhe sido perguntado pelo Mmo Juiz «se lhe era possível vender a quinze?», respondeu, «É possível vender a quinze».  Explicou, porém, e agora ao Exmo Advogada da A. porque dizia “por que podia vender a quinze e afinal vender a trinta”, referindo, «é o investimento. É o investimento que está associado (…) Hoje, nos nossos negócios nós fazemos investimentos das mais diversas ordens… (…)  O que aparece em primeiro plano é sempre o material de ponto de venda, a publicidade, os anúncios luminosos, as esplanadas, as cadeiras, o mobiliário interior e em situações muito particulares, o dinheiro, o valor financeiro em dinheiro que é muitas vezes usado até para obras nos estabelecimentos, para reformulações, para dotações dos espaços e, portanto, é em função desse valor que vai ser gasto nos espaços que nós definimos. O preço de vender é sempre o mesmo, mas depois o investimento tem que caber dentro dessa variação, do preço limite, vá lá, de quinze euros até aos trinta e um.»

 Tendo referido mais adiante, e ainda a instâncias do Exmo Advogado da A.: (..)

«Para além, para além… para além dos, dos custos que implica perder o cliente, deixaram de vender café, o lucro eventualmente estaria na venda de café, a N... UNIPESSOAL, LDA. é afetada de alguma outra forma, digo em termos de prestígio, da existência…Da notoriedade, sim, é evidente» Esclarecendo relativamente ao negócio em causa: «Num espaço como é o C..., é um espaço muito… aí também a negociação foi difícil e dura e nós esforçámo-nos muito para fazer este negócio, deitámo-nos ao chão como se diz na gíria porque era um, é um ponto de venda de muita notoriedade, de muita visibilidade, mais, como lhe disse no início nós recorremos a um arquiteto. É interessante, eu não sei se isso é importante aqui para o Tribunal, mas aconteceu, o valor negociado eram cento e vinte mil euros mais IVA, no entanto, o valor do contrato são cento e vinte mil e quinhentos euros. Esses quinhentos euros foram para o Senhor AA pagar um arquiteto porque foi uma coisa que foi feita um bocadinho à posteriori da negociação. Esse arquiteto (…) , ele fez um projeto, eu tenho cópias desse projeto que foi feito para o espaço. Nós queríamos transformar aquele espaço numa coisa com notoriedade para que a N... UNIPESSOAL, LDA. pudesse e a marca B... pudesse ganhar com prestígio e com notoriedade aquilo que lá queríamos construir. Portanto, foi feito um projeto, o projeto foi apresentado, só não foi executado porque a Câmara Municipal, por aquilo que me foi dito pelo Senhor AA, não autorizou. Mas o projeto foi feito e foi pago pelo Senhor AA porque nós, como foi à posteriori nós não o conseguimos pagar diretamente ao arquiteto. Então fizemos um acordo com o Senhor AA, nós damos-lhe mais quinhentos euros no valor negocial e o senhor paga ao arquiteto».

Para além deste depoimento os autos não comportam outros elementos que permitam saber o preço do fabrico e distribuição do quilo de café «em causa», expressão esta utilizada no ponto de facto em apreciação.

 Tudo indica que a testemunha acima referida acabou por ser interrogada por referência ao preço de venda e distribuição daquele café – B..., Lote Gold – à data do respectivo interrogatório - Março de 2022 – e não, como seria curial, à data da realização do contrato dos autos, ainda que tendo em consideração a sua duração por cinco anos. Estando em causa, como está- desde logo, porque o facto em análise se situa na contestação dos RR. a propósito da cláusula penal  -  apurar da justeza dos 10€/Kg fixados na cláusula 5ª/3 do contrato como valor para a cláusula penal resultante do incumprimento decorrente da não aquisição da totalidade do café contratado, não podia, senão, ter-se em consideração a data da realização do contrato – Março de 2015 – e a sua duração.

A circunstância da testemunha, tanto quanto se perspectivou, não ter respondido tendo em consideração esse momento temporal, só por si, torna praticamente irrelevante a resposta dada.

 De todo o modo, e segundo se crê, do que a testemunha referiu não pode concluir-se que «o preço do fabrico e distribuição do quilo de café em causa ascende a cerca de € 15», pois, se bem se entendeu o que a testemunha globalmente referiu, o preço do fabrico e distribuição do quilo de café, por referência a 2022, só muito excepcionalmente poderia corresponder a 15 €Kg, mas em situações que não as da R., em que os custos de investimento foram muito significativos.

Por assim ser, julga-se como “Não Provado” o facto em causa.

Pretende seguidamente a A./apelante que se adite à matéria de facto que «em 2020 a R. mudou de marca de café».

Trata-se de facto que não foi propriamente alegado pela A. – o que a mesma alegou a esse respeito foi o que consta do art 10 da petição: «Acontece que a partir de Março  de 2020 a sociedade deixou de consumir no seu estabelecimento o café da autora, não mais retomando o seu consumo … » .

Sucede que em relação ao objecto do processo – pedido e causa de pedir – o facto em causa se analisa num facto instrumental.

Como é sabido, os factos instrumentais (ou probatórios) são os factos que permitem, através de uma presunção legal ou natural, inferir um outro facto, nomeadamente, um facto essencial.

A A. alegou na petição o facto essencial – a partir de Março  de 2020 a sociedade deixou de consumir no seu estabelecimento o café da autora, não mais retomando o seu consumo … »,  e, por isso, satisfez o ónus a que se reporta o nº 1 do art 5º CPC.

Não tinha o ónus de alegar, que infere esse não consumo pela R. no seu estabelecimento depois de 2020, da circunstância de, desde então, a R. ter mudado de marca de café[1]

Trata-se, pois, de um facto probatório que nada obsta a que seja considerado pelo Tribunal, desde o momento em que foi claramente referido pela testemunha acima referida -BB: «Chegámos lá e verificamos que estava lá uma outra esplanada da D... …» e pela  testemunha também da A.,  CC, «nós fomos surpreendidos porque o vendedor foi fazer a visita dele e fomos surpreendidos com a mudança de café”.

Deste modo, acrescenta-se ao ponto 10 da matéria de facto provada (advinda da petição) e de onde já consta que «A partir de Março de 2020 a sociedade deixou de consumir no seu estabelecimento o café da A., não mais retomando o seu consumo», a expressão, «tendo mudado de marca de café».

Passemos para a impugnação da matéria de facto respeitante à R./apelante.

Pretende em 1º lugar a R. que se acrescente à matéria de facto, que «a R  devolveu o equipamento que lhe foi comodatado à A.», em função do requerimento da A. a que se fez referência no relatório do acórdão, mediante o qual a mesma deu conhecimento que a R. tinha devolvido o moinho de café Md..., o moinho de café C...S e a maquina de café C...C.

Assim sendo, mais do que aditar à factualidade provada este facto, cumpre substituir o facto provado 17 (oriundo da contestação), onde se diz, «A ré não devolveu o equipamento», pelo facto, «a R. em momento anterior a 4/5/2021, procedeu á devolução à A. do moinho de café Md... do moinho de café C...S e da  máquina de café C...C» .

Pretende seguidamente a R./apelante que se julgue provado o segundo segmento da alegação da A. no art 3º da petição e, por isso, se adite ao mesmo toda a matéria de facto alegada nesse ponto  – não apenas  que, «na mesma cláusula segunda, mas no nº 2,  obrigou-se também a adquirir 9.000 kg daquele café», mas também, «devendo tal aquisição ser efectuada através de uma compra mensal de 150 kg, durante os 60 meses do contrato previstos no nº 1 da cláusula sexta».

È evidente a razão da R., tanto mais que se trata de matéria de facto alegada pela A., que resulta indiscutivelmente do contrato, e que se mostra relevante para a decisão da causa.

Impõe-se agora, em função da precedência lógica na apreciação das demais questões colocadas numa e noutra apelação, que se conheça da nulidade da sentença arguida pelos RR. resultante de, no seu entender, a sentença ter tido em consideração causa de pedir diferente da que como tal, foi erigida pela A, e que é  a da resolução do contrato por ela operada, e desse procedimento resultar excesso de pronúncia ou condenação em objecto diverso do pedido, nulidades essas previstas, respectivamente, nas als d) e e) do nº 1 do art 615º CPC.

Vejamos.

Os RR. defenderam-se na acção com a caducidade do contrato, referindo que este foi celebrado em 25/3/2015 e, como a sua duração era de 5 anos, o seu termo ocorreu no mês de Março de 2020, tendo, pois, caducado. E que a A., «quando os interpelou para cumprirem o contrato quanto à compra do café, com aviso que se encontravam em incumprimento contratual, ameaça de resolução e pagamento da indemnização prevista no mesmo,  e em Novembro de 2020  procedeu à resolução do contrato», já o mesmo, afinal, se achava findo, pelo que nenhum efeito podia ter a pretendida resolução, daí concluindo que não devem à A. a quantia por ela pretendida a titulo de cláusula penal em função do incumprimento da obrigação de aquisição  de 9.000 kg de café. 

No que a esta questão respeita, refere o contrato na Cláusula 2ª, quanto ao “Consumo mínimo e exclusividade “

«Durante o período de duração do presente Contrato, o Segundo Outorgante obriga-se a revender e publicitar em exclusivo café da marca B... Lote Gold, no seu estabelecimento referido no considerando B.

O Segundo Contratante obriga-se a adquirir à N... UNIPESSOAL, LDA.,, ou a distribuidor por esta indicado,  a quantidade de 9.000 kg de café, devendo tal aquisição ser efectuada  através de uma compra mínima mensal de 150, kg.

Referindo a clausula 5ª, no seu nº 3, que, «sem prejuízo da responsabilidade decorrente do incumprimento de outras obrigações contratuais, o incumprimento das obrigações previstas no nº 2 da Cláusula Segunda, directamente  ou como consequência da resolução do contrato  por incumprimento de outras obrigações nele previstas, obriga o Segunda Contratante  a pagar à N... UNIPESSOAL, LDA., a titulo de clausula penal, o montante de € 10  por cada quilograma de café contratado nos termos do nº 2 da clausula 2ª  e não adquirido pelo Segundo Contratante».

Referindo seguidamente a Clausula 6ª, com a epigrafe, “Duração”:

1 – O presente contrato tem início em 25/3/2015 e a duração de 60 meses, correspondente ao período considerado adequado à aquisição das quantidades estipuladas  no número dois da Cláusula Segunda, não podendo contudo a respectiva duração exceder o prazo máximo de cinco anos.

2 – O contrato terminará antes do prazo referido no número anterior, caso o Segundo Contratante adquira em menor período de tempo a quantidade de café mencionada no nº 2 da clausula 2ª

3 – No final do prazo de duração do contrato,  caso a quantidade de café indicada  no nº 2 da Clausula Segunda  não tenha sido adquirida na totalidade, o contrato será prolongado, nos termos e por acordo entre as partes, até que a quantidade contratada remanescente seja adquirida. No entanto, sempre que, em virtude de tal prolongamento, a vigência do contrato ultrapasse o período máximo de 5 anos, o Segundo Contratante deixará de estar vinculado, directa ou indirectamente, a qualquer obrigação de compra exclusiva ou de publicidade exclusiva de café e descafeinado, quer da mara B... e Lote Gold quer de outras marcas comercializadas pela N... UNIPESSOAL, LDA.».

No que à questão agora em apreço releva, resulta da Cláusula 5ª/3, acima transcrita, que, no caso do Segundo Contratante não adquirir a quantidade de 9.000 kg de café através de uma compra mínima mensal de 150 kg nos 5 anos de duração do contrato – e sem prejuízo da responsabilidade decorrente do incumprimento de outras obrigações contratuais – fica obrigada a pagar à  N... UNIPESSOAL, LDA., a titulo de cláusula penal, o montante de € 10  por cada quilograma de café contratado e não adquirido.  Resulta também que a obrigação de pagamento decorrente desta cláusula penal será devida ainda que o não cumprimento daquela quantidade de café se verifique «directamente» ou «como consequência da resolução do contrato  por incumprimento de outras obrigações nele previstas».

Expressões estas, que só podem significar que a obrigação de pagamento decorrente desta cláusula penal pode verificar-se independentemente da resolução do contrato por incumprimento de outras obrigações nele previstas.

Isto é, mesmo que não haja lugar à resolução do contrato.

O que significa, que quando o contrato finde pelo decurso do prazo contratado  e nessa altura nenhum outro incumprimento se possa imputar ao Segundo Contratante senão aquele referente à não aquisição da quantidade de café contratada, ainda aí lhe poderá ser exigida a indemnização prevista a titulo de cláusula penal, a menos que – como decorre do transcrito nº 3 da cláusula  6ª - as partes, por acordo, entendam prolongar o contrato até que a quantidade contratada que se mostre remanescente venha a ser adquirida, sendo que nesta situação a Segunda Contratante deixa de estar sujeita à exclusividade  quer na compra do demais café  quer na publicidade.

Referem os RR. que a causa de pedir na acção é a resolução do contrato que a A. operou através das cartas que lhes enviou em 27/10/020 e e 18/11/2020  (que estão juntas aos autos, respectivamente a fls 11 e  12 vº e,  14 vº e 16 vº)

Mas não é assim.

Apesar de nestas cartas se falar, efectivamente, em resolução, a A. na petição inicial não se reporta – em lado algum - à resolução.

 Mas apenas ao incumprimento definitivo por parte da R, na data em que deixou de adquirir o café da A. – Março de 2020  -  da referida obrigação de aquisição de 9000 kg de café  durante os 60 meses  do contrato  previstos no nº 1 da cláusula 6ª (arts 13, 14 , 12 e  3 da petição).

Incumprimento esse que se tornou definitivo, não exactamente em função das ditas cartas – pese embora o envio das mesmas - mas da circunstância de o contrato ter findado com o decurso dos cinco anos convencionado como o da sua duração.

Sendo que o prolongamento do contrato previsto no nº 3 da clausula 6ª  tem como pressuposto, obviamente, o consenso de ambas as partes nesse sentido, bastando pois uma não o desejar para o mesmo não ter lugar.

Do que se conclui que os RR/apelantes não tem neste ponto razão.

Apesar, reconhece-se, da menor clareza da A. a este respeito em função da  referência às ditas cartas – que, apesar disso, têm a utilidade  de, da segunda, se extrair o início da mora dos RR. relativamente ao pagamento da quantia devida a titulo de cláusula penal -   o Exmo Juiz a quo não decidiu em função de causa de pedir diversa da invocada pela A.

O incumprimento, no termo do contrato, da obrigação em referência – da aquisição da quantidade de café estipulada no contrato - só por si, sem quaisquer outros incumprimentos, implicando o cumprimento defeituoso, inexacto, do contrato, justifica a aplicação da cláusula penal em causa.

Acresce que, por definição, esse incumprimento só pode tornar-se definitivo com o  terminus do contrato, a menos que tivesse justificado na pendência temporal do contrato a reacçao por parte da A. potenciada no nº 1 ou 2 da cláusula 8ª, que não foi o caso.

Na lógica do encadeamento das questões ainda a decidir, há agora que saber, se, ao contrário do que a 1ª instância decidiu, não deveria ter tido lugar a redução da cláusula penal, ou se essa redução se mostra, em todo o caso, excessiva.

O tribunal recorrido, depois de concluir que a cláusula penal em referência tem a dupla natureza  de indemnizatória e compulsória  («Resumindo: a cláusula penal aqui em causa tem, também ela, uma dupla finalidade: preventiva, fazendo “apelo” a que não ocorra incumprimento; reparadora, fixando, antecipadamente, o valor dos prejuízos suportados pela parte não incumpridora»), e depois de acentuar que para acontecer a redução dessa cláusula «não basta que seja excessiva, exigindo-se que ela se revele manifestamente excessiva, isto é, francamente exagerada ou desproporcionada às finalidades que presidiram à sua estipulação e ao conteúdo do direito que se propõe realizar», entendeu que a mesma é abusiva, vindo a ter «por adequado e razoável, logo, por equitativo, reduzir a cláusula penal a cerca de 1/3 do valor pedido, a saber, € 12.000,00».

Para assim concluir, lançou mão do critério que resulta do art 1146º CC em matéria de mútuo oneroso, expendendo seguidamente as seguintes considerações: «Lançando mão deste critério, e atendendo aos máximos valores aí previstos, obteremos uma taxa de 9% acima da dos juros legais, os quais, entre empresas comerciais, atendendo ao Aviso 1568/2020 da Direcção Geral do Tesouro e Finanças, publicada na II série do jornal oficial de 30 de Janeiro de 2020, é de 7%. Portanto, seria admissível, no máximo – sob pena de ser considerada usurária – uma cláusula penal de 16%. De acordo com os factos provados, o café teria, em 2020, um preço de cerca de € 30,00 por quilo, sendo o seu preço de custo, incluindo distribuição, de cerca de metade deste valor. Assim, teríamos, como lucro de referência da autora, na comercialização, a esta ré, do seu café B..., € 15,00 por quilo, donde resulta que a cláusula penal estipulada é de cerca de 66%, isto é, excede, por mais do quádruplo, o valor de referência apontado por estes mestres. (…) . No caso vertente, e para além de se poder ter como referência, como atrás mencionei, o valor de € 15,00 como o lucro da autora pela venda de um quilo de café, e considerando que, mantendo-se o contrato em execução, através da possível extensão temporal até à venda da totalidade da quantidade inicialmente prevista, isso significa que as vantagens decorrentes para a autora desse prolongamento, diluído no tempo, sempre seriam inferiores às que resultariam se a quantidade total tivesse sido adquirida no lapso de tempo inicialmente previsto» (…) Neste quadro, a comparação entre o natural lucro decorrente da execução contratual – inferior a € 15,00 por quilo – e o valor da cláusula penal, recebido sem mais quaisquer encargos, antes acrescido de juros, e coberto com uma garantia de fiança, alcança valores que se me afiguram, efectivamente, exagerado».

Não adianta ao presente Tribunal ponderar o mérito das considerações da 1ª instància a respeito da redução que operou na cláusula penal, na medida em que não pode partir do mesmo pressuposto de que aquele partiu – o de que «o preço do fabrico e distribuição do quilo de café em causa ascende a cerca de € 15».

Vejamos, então, se a cláusula penal deve ser reduzida, tendo presentes os seguintes ensinamentos doutrinários.

Nas palavras de Calvão da Silva [2], «cláusula penal é a estipulação mediante a qual as partes convencionam antecipadamente - isto é, antes de ocorrer o facto constitutivo de responsabilidade - uma determinada prestação, normalmente uma quantia em dinheiro, que o devedor deverá satisfazer ao credor em caso de não cumprimento perfeito (maxime em tempo) da obrigação».

Refere igualmente, que, «o art 812º encerra um princípio de alcance geral destinado a corrigir excessos ou abusos decorrentes do exercício da liberdade contratual, ao nível da fixação das consequências do não cumprimento das obrigações»  .  E explicita essa ideia, acrescentando: «A nosso ver, o fundamento que subjaz ao art 812º é o princípio da boa fé, ao nível do exercício de determinado direito. (…) trata-se de averiguar fundamentalmente se o credor ao exercer o seu direito à pena, age de acordo com aquele princípio. O art 812º surge, assim, como uma concretização especifica do dever de agir de boa fé, previsto no nº 2 do art 762º. A lei pretende evitar (…) um exercício abusivo do direito à pena (…) Daí, numa palavra, que nos pareça ser o art 812º expressão do dever de agir de boa fé (art 762º/2) e da proibição do exercício abusivo de um direito (art 334º)».

A respeito do carácter excessivo da pena faz notar  que «a fórmula por que optou o legislador - pena “manifestamente excessiva” – mostra que não bastará a sua mera superioridade, maior ou menor, em face do dano efectivo, para legitimar de per si a redução», e quando a mesma tenha sido estipulada como sanção compulsória, «a eficácia da mesma pressupõe, igualmente, que, só em casos de evidente e flagrante desproporção, haja lugar a um controlo judicial», referindo, ser «necessário, no dizer de Carbonnier, que essa desproporção saute aux yeux».

Comenta ainda o mesmo autor: «Na apreciação do carácter manifestamente excessivo da cláusula penal, o juiz não deverá deixar de atender à natureza e condições de formação do contrato (por exemplo, se a cláusula foi contrapartida de melhores condições negociais); à situação respectiva das partes, nomeadamente a sua situação económica e social, os seus interesses legítimos, patrimoniais e não patrimoniais; à circunstância de se tratar ou não de um contrato de adesão; ao prejuízo presumível no momento da celebração do contrato e ao prejuízo efectivo sofrido pelo credor; às causas explicativas do não cumprimento da obrigação, em particular à boa ou má-fé do devedor (aspecto importante, se não mesmo determinante, parecendo não se justificar geralmente o favor da lei ao devedor de manifesta má fé e culpa grave, mas somente ao devedor de boa fé que prova a sua ignorância ou impotência de cumprir); ao próprio carácter à forfait da cláusula e, obviamente, à salvaguarda do seu valor cominatório. É em função da apreciação global de todo o circunstancialismo objectivo e subjectivo do caso concreto, nomeadamente o comportamento das partes, a sua boa ou má-fé, que o juiz pode ou não reduzir a cláusula penal, (...

Refere ainda  que o «controlo judicial da cláusula penal impõe-se, mas limitado apenas à correcção de abusos; impõe-se, tão só, para proteger o devedor de exageros e iniquidades de credores, mas, não já, para privar o credor dos seus legítimos interesses, entre os quais se conta o de recorrer à cláusula penal como meio de pressão sobre o devedor em ordem a incitá-lo a cumprir a prestação que lhe é devida, resultado que, em si, tem o efeito moralizador de assegurar o respeito devido à palavra dada e aos contratos.

Por isso e para isso, a intervenção judicial de controlo do montante da pena não pode ser sistemática, antes deve ser excepcional e em condições e limites apertados, de modo a não arruinar o legítimo e salutar valor coercitivo da cláusula penal e nunca perdendo de vista o seu carácter à forfait. Daí que, por toda a parte, apenas se reconheça ao juiz o poder moderador, de acordo com a equidade, quando a cláusula penal for extraordinária ou manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente».

Salientando ainda que a «decisiva condição legal de intervenção do tribunal é, por conseguinte, a presença, ao tempo da sentença, de uma cláusula manifestamente excessiva - não basta uma cláusula excessiva, cuja pena seja superior ao dano - de uma cláusula cujo montante desmesurado e desproporcional ao dano seja de excesso manifesto e evidente, numa palavra, de excesso extraordinário, «enorme», que «salte aos olhos». Tem de ser, portanto, uma desproporção evidente, patente, substancial e extraordinária, entre o dano causado e a pena estipulada, mas já não a ausência de dano em si».

Concluindo[3] que, do «que fica dito, é claro que o juiz tem o poder de reduzir, mas não de invalidar ou suprimir a cláusula penal manifestamente excessiva, e que só tem o poder de reduzir a cláusula penal manifestamente excessiva e não já a cláusula excessiva. Uma cláusula penal de montante superior (mesmo excessivo) ao dano efectivo não é proibida pela lei, não tendo o juiz poder para a reduzir».

Por outro lado, a  jurisprudência tem entendido que o ónus de alegar e provar os factos que integrem a desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados, recai sobre o devedor [4].

Vejamos os elementos  factuais que os autos comportam para a ponderação que se impõe nesta matéria, e que, no fundo, serão quase todos, vistos os critérios acima referidos por Calvão da Silva: se a  cláusula foi contrapartida de melhores condições negociais; estar em causa ou não contrato de adesão; quais os interesses legítimos, patrimoniais e não patrimoniais de uma e outra das partes; o prejuízo presumível no momento da celebração do contrato e o prejuízo efectivo sofrido pelo credor; às causas explicativas do não cumprimento da obrigação, em particular à boa ou má-fé do devedor;  o carácter à forfait da cláusula, a necessária  salvaguarda do seu valor cominatório.

 Assim:

O contrato antes de elaborado foi previamente negociado e as suas cláusulas reflectem essa negociação, constando dos considerandos do mesmo que «as quantidades de café que o Segundo Contratante se compromete a adquirir ao abrigo do presente contrato correspondem às suas expectativas realista de consumo, tendo sido por si definidas em conjunto com a N... UNIPESSOAL, LDA. .

A R. obrigou-se durante o período de vigência do contrato a não adquirir a terceiros, nem publicitar ou revender outras marcas de café e descafeinado no seu estabelecimento e bem assim a revender e publicitar em exclusivo o café B... Lote Gold da A .

Obrigou-se igualmente a adquirir 9.000 kg daquele café, devendo tal aquisição ser efectuada através de uma compra mensal de 150 kg , durante os 60 meses do contrato. 

Foi como contrapartida destas obrigações assumidas pela R. que a A. lhe  entregou a quantia de 148.215,00, com IVA incluído,  a titulo do comparticipação publicitária e colocou no seu estabelecimento, a título de comodato, o seguinte equipamento: \a) Um moinho de café Md..., no valor de 1.112,00€, acrescido de IVA;  b) Um moinho de café C...S, no valor de 905,00€, acrescido de IVA; c) Uma máquina de café C...C, no valor de 8.485,65€, acrescido de IVA. No valor global de 12.918,26€, com IVA incluído.

Ficou estipulado que resolvido o contrato com fundamento em qualquer causa não imputável à autora, e sem prejuízo de quaisquer indemnizações a que haja lugar, a ré obrigava-se a restituir a comparticipação publicitária, deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, contado em meses.

Estipulou-se que o equipamento acima referido seria exclusivamente utilizado para a venda dos produtos objecto do contrato, pelo que seria comodatado pelo período que coincidisse obrigatoriamente com a vigência do mesmo.

Durante o período em que vigorou o contrato era a A. quem dava assistência a todo o equipamento utilizado para tirar café, oferecia chávenas, pires e açucar, devendo esse equipamento ser devolvido à autora no prazo de 10 dias a contar do seu termo.

A A substituiu 30 conjuntos.

O contrato vigorou pela totalidade do tempo para que estava contratualmente estabelecido - 5 anos.

Dos factos acima referidos e da sua ligação com o nº 2 e 3 da Cláusula 6ª, ressalta, com nitidez, a relevância que para a A.  assume o consumo pelo cliente da quantidade de café contratada, pois só esse específico interesse pode justificar a possibilidade de, por acordo das partes, o contrato ser prorrogado até  se verificar o consumo total dessa quantidade, sem que nesse novo espaço temporal se obrigue, no entanto, o cliente a manter exclusividade com a A.; e só esse específico interesse, pode justificar que a A. desobrigue o cliente de todas as obrigações contratuais, fazendo terminar o contrato, quando, e logo, que o mesmo adquira a quantidade de café contratada.

 Nas palavras da testemunha BB, a comparticipação publicitária da A. é negociada com o potencial cliente, e virá a ser maior ou menor, consoante a quantidade de café que o mesmo se obrigue a consumir. Quer dizer, há uma relação directa entre essa quantidade e o investimento que a A. se dispõe a fazer, relação essa que o gestor da A. vigia na formação do contrato, sempre na óptica de que todo o investimento feito com a comparticipação publicitária inicial e a que decorra inerentemente da prestação de serviços da A. ao cliente durante a vigência do contrato, deverá resultar  amortizada  através do preço pago pelo cliente em função da compra da totalidade do café que se obrigou a consumir, o que, em principio, coincidirá com a  duração do contrato.

Toda a economia do contrato gira à volta do interesse da A. no cumprimento da aquisição da totalidade do café contratado, como resulta, maximamente, como já acentuado, da circunstância de, se essa quantidade for atingida antes da duração normal do contrato, este deixar de existir. Quando tal suceda, a normal duração do contrato, com a publicidade à marca que a mesma naturalmente implica, deixa de ser relevante para a amortização da comparticipação publicitária. È ainda esse interesse que justifica que quando o contrato seja objecto de resolução com fundamento em qualquer causa não imputável à A, o cliente, para além de estar as mais das vezes, obrigado a pagar a cláusula penal de que aqui se trata, esteja ainda obrigado a restituir a A. a parte daquela comparticipação que não resultou amortizada com o período contratual decorrido, como decorre do nº 2 da cláusula 5ª do contrato.

O que significará que a A. só obtém o lucro que expectou ter, aquando da realização do contrato, quando este ou chegue ao seu termo com a quantidade de café contratada adquirida, ou quando esta quantidade de café for adquirida antes desse termo, caso em que a A. mais depressa retoma os bens fornecidos e deixa de fazer o esforço da  distribuição.

Assim, pode dizer-se que verificando-se uma relação directa entre a comparticipação publicitária, o tempo da duração do contrato e a quantidade prevista de aquisição de café nesse período temporal, será a aquisiçâo da totalidade do café a obrigação principal do contrato.

A ponderação que se acabou de fazer torna evidente que não há nos autos elementos que permitam aferir, na cláusula penal estipulada no contrato, a parte que nela se mostra indemnizatória e a parte que será compulsória.

Percebe-se,  no entanto, que o montante estipulado como cláusula penal pode não se destinar prioritariamente a indemnizar a A. pelo lucro que deixou de auferir em consequência do incumprimento que está em questão – sendo por isso descabido que se diga que a mesma até lucra com o café contratado não consumido, porque o mesmo fica na sua posse  e não tendo  mais despesas com ele  o poderá afectar a outro comprador -  e destinar-se a obviar  à perda de um cliente na sua carteira, com a inerente publicidade que deixa de beneficiar e os esforços de publicidade que vai ter que fazer junto de outro cliente para vender aquele mesmo café.

Nas especificas circunstâncias contratuais acima referidas (a que se soma a do cliente ter de imediato, após o temo de contrato, mudado de café para uma marca concorrente, obviando ao consenso das partes para a acima referida prorrogação do contrato), não se mostra possível saber se o valor de 10 € por kilo, relativamente  ao café que tendo sido  contratado  não haja sido adquirido, constitui  pena excessiva, por traduzir uma desproporção evidente (patente, substancial) com as necessidades indemnizatórias e compulsórias a que se destina esse valor enquanto cláusula penal [5].

Veja-se, a este propósito, que nenhuma das partes trouxe aos autos, sequer, o preço do café efectivamente adquirido nos anos da vigência do contrato, o que é particularmente de admirar no que aos RR. respeita, dadas as excepções com que se defendeu.

E, como acima já se fez notar, a jurisprudência tem entendido que o ónus de alegar e provar os factos que integrem a manifesta desproporcionalidade da cláusula penal relativamente à finalidade indemnizatória e compulsória que a mesma se destina a exercer, recai sobre o devedor.

Assim, nem num plano abstracto, nem num plano concreto, se poderá dizer que a cláusula penal em causa nos autos se mostra excessiva.

 

È neste conspecto que a R. invoca nas contra-alegações a circunstância de a A. não ter indicado nos autos, tal como ela requerera na contestação, qual o custo de fabrico e preço de venda (para revenda considerando as quantidades aqui em causa) do café e descafeinado da marca B... lote Gold, entendendo que não tendo satisfeito esta pretensão, dever-se-á considerar o ónus da prova invertido e provada a matéria do acima referido facto 57.

Não pode, porém, subscrever-se este entendimento, desde logo porque a A. nunca chegou a ser notificada para aquele efeito.  Veja-se que, depois que foi proferido despacho no saneador relegando a aferência da necessidade ou conveniência dessa informação para depois da prestação de depoimento pelo R., os RR. nada requereram.

Do que se veio de expender, deverá concluir-se pela falta de prova relativa ao manifesto excesso da cláusula penal em causa e, consequentemente, pela impossibilidade da sua redução.

Entendem, no entanto, os RR., que a A., reclamando, como reclama, o pagamento do valor correspondente a essa cláusula, age em abuso de direito.

Esta questão, colocada como foi na contestação, foi conhecida no saneador. Agora, nas alegações do respectivo recurso, os RR. nada acrescentaram relativamente aos argumentos já então avançados para suporte dessa sua tese, o que mereceria que se remetesse, sem mais, para a decisão recorrida.

De todo o modo sempre se dirá, que, para que pudesse considerar-se abusivo o exercício do direito de acção por parte da A., teria sido necessário demonstrar factos, através dos quais, se pudesse considerar que a mesma em função da propositura desta acçao  tinha excedido manifestamente, (clamorosamente) o fim social ou económico do direito exercido ou que com a sua pretensão violava expectativas incutidas nos réus.

Lembre-se que os RR. pretendem que a circunstância de, desde o início do contrato, a R. nunca ter consumido as quantidades mínimas mensais de café nele exigidas, sem que a A. o pudesse desconhecer, e sem que a mesma os tivesse interpelado alegando a sua mora ou incumprimento, implica que lhes tivesse feito crer que já não o faria, com o que, com o intentar da presente acção se teria colocado em  abuso de direito na vertente do venire contra factum proprium ou de suppressio.

Muitas outras considerações em redor do abuso de direito se poderiam fazer , mas quanto às mesmas remete-se para a decisão recorrida.

Aqui basta referir que para haver abuso de direito em função da inércia no exercício do mesmo, não basta essa inércia .[6]

Costuma afirmar-se, com base nos ensinamentos de Menezes Cordeiro [7], constituírem pressupostos para o abuso do direito na modalidade do venire contra factum proprium em causa, os seguintes: a) uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredita numa conduta alheia; b) uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível; c) um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma conduta na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; d) uma imputação da confiança à pessoa atingida pela proteção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo reconduzível.

Na situação dos autos não há qualquer justificação para que os RR. confiassem  na não propositura da acçâo pela A. para o exercício judicial do direito que nela está em causa. A circunstância de não ter censurado a R., na vigência do contrato, pelo não consumo mensal da quantidade estipulada de café, não afasta, sequer, contratualmente, a possibilidade de vir a exigir depois da vigência do mesmo, a indemnização que lhe é devida pela não aquisição da totalidade do café contratada, tendo em consideração o incumprimento imperfeito do contrato que esse procedimento implica, como atrás já se viu.

Por isso, aquela inércia da A. não era de molde a criar na Ré e Réu, a confiança de que mais tarde ou mais cedo a mesma não os viesse a incomodar com o incumprimento da referida obrigação. Essa confiança não era, por isso, plausível. Nem essa confiança, se subjectivamente existisse nos RR, se mostraria legitima, pois que à partida, os RR. bem sabiam não estarem a cumprir integralmente o contrato.

 Acresce que os elementos dos autos não permitem que se localize no comportamento da A. qualquer outra conduta que complementasse a apontada  inércia e conduzisse a um desenvolvimento da confiança.

Ora, a figura do abuso de direito, em qualquer das suas modalidades, só  ocorre «quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça»,  e nada disso se passa na situação dos autos.    

Há que concluir que a actuação da aqui A. que, no aspecto em apreço apenas se limitou a exercer o seu direito, não constitui qualquer forma de abuso de direito.

Cabe por fim ponderar, agora relativamente à apelação da A., se a sentença é nula nos termos da al e) do nº 1 do art 615º, por condenação em objecto diverso do pedido ao ter possibilitado à R. o pagamento da indemnização correspondente à cláusula penal em prestações mensais.

A questão em causa resulta do Exmo Juiz a quo ter entendido  que o surgimento da pandemia Covid 19 em 2020 funcionou, no campo da restauração, globalmente, como uma alteração anormal das circunstâncias,  e que, no caso, se justificava  a modificação do contrato segundo juízos de equidade .[8]

Citando Francisco Barona,[9]- que refere que «a modificação contratual pode consistir  numa moratória ou, em casos mais graves, numa redução equitativa das prestações, sendo certo que a distribuição do prejuízo causado não é nem tem de ser matemática ou percentualmente igualitária»-  entendeu que «a modificação a introduzir – assente que já está a redução da cláusula penal – se deve ficar pela concessão de uma moratória ponderada», entendendo devendo estende-la por cinco anos, «pois que seria injustificável um lapso de tempo superior ao do contrato mas que, como contrapartida do benefício conferido, deve ser integralmente respeitada, pelo que as prestações daí decorrentes, se não pagas, deverão ser acrescidas de juros, desde o incumprimento de cada uma delas», vindo a concluir, em sede de dispositivo, pela condenação dos RR.  no pagamento à A. da referida quantia de € 12.000,00, advinda da redução da cláusula penal, «em 60 prestações mensais e iguais, a liquidar no último dia útil do mês a que respeitem, e a iniciar no mês seguinte ao trânsito em julgado desta decisão; em caso de incumprimento, aferido mensalmente, serão devidos juros, à  taxa legal, no momento em vigor entre empresas comerciais  sobre a(s) quantia/s) em divida, e até integral pagamento das mesmas».

A A., no seu recurso, tanto quanto resulta das respectivas conclusões, e sem que as alegações inculquem o contrário, não se insurge relativamente à aplicação à situação dos autos do instituto da alteração superveniente das circunstâncias, mas apenas relativamente a esta solução do pagamento em 60 prestações, por entender que desse modo o juiz condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, com o resultado da decisão ser nula, nos termos da la e) do nº 1 do art 615º CPC.

Não pode, no entanto, concordar-se com a apelante.

Como é sabido, a invocação da alteração das circunstâncias, com a pretensão inerente da modificação ou resolução do contrato, implica a invocação de uma excepção  modificativa, vale dizer, de um facto modificativo que pode alterar o conteúdo do direito. As excepções  modificativas são peremptórias, constituindo um meio de defesa material que respeita ao mérito da causa, contendendo com a existência ou não, e em que termos, do direito do autor. 

 Costumam exemplificar-se estas excepções com a concessão de uma moratória ao réu devedor, a mudança do percurso ou lugar de uma servidão, a concentração (pela escolha) do objecto da obrigação . [10]

 Teixeira de Sousa [11] refere-se (ainda no âmbito do CPC anterior) às excepções modificativas, nos seguintes termos: «As excepções  modificativas são aquelas que determinam uma modificação do objecto invocado pelo autor, isto é, uma alteração do objecto da acção: este objecto, que originariamente era um, passa a ser outro depois da sua invocação pelo réu. Assim, a alegação de uma excepção modificativa pode ser considerada como uma modificação por parte do réu, do objecto do processo  e deve ser conjugada com as outras situações de modificação objectiva – a modificação consensual prevista no art 272º e a modificação pelo autor regulada no art 273º . Constituem exemplos de excepções modificativas a exceptio non adimpleti contractus – art 428º - , a condição suspensiva – art 270 CC – e a modificação do contrato oposta ao pedido  de resolução com fundamento em alteração anormal das circunstâncias – art 437º/2 CC  (…) Na verdade, essas excepções, ao implicarem uma modificação do objecto da acção, determinam de forma implícita, a improcedência do objecto originário da acção » .

Já se vê, em função destas considerações, que a modificação do objecto do processo a que conduza a procedência de uma excepção modificativa, não pode conduzir a uma sentença nula, por estar a condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

De resto, independentemente das considerações que se fizeram, uma  sentença que condena no pagamento de um quantitativo que se contém na quantia pedida na acção,  e permite o pagamento desse quantitativo em prestações, não condena em quantidade superior nem em objecto diverso do pedido, quando este se traduza, como é o caso, na condenação numa quantia pecuniária.

A sentença não é, pois, nula .

A circunstância das criticas da A./apelante, neste aspecto da alteração superveniente das circunstâncias, terem unicamente a ver com a referida nulidade da sentença, que já se viu que não se verifica, implica que este Tribunal aceite o procedimento do tribunal a quo no que àquela alteração respeita e, na sequência do que decidiu  a respeito da cláusula penal, venha a condenar os RR. no pagamento da quantia de € 37.520,00, em 60 prestações mensais, e nos demais termos da sentença recorrida.

Uma última palavra para o segundo pedido formulado nesta acção – o da condenação da R. a devolver à A. o moinho de café Md..., o moinho de café C...S e a maquina de café C...C, pedido esse que a 1ª instância julgou procedente.

Como se viu, a R. devolveu esses equipamentos à A. em momento anterior ao do citação das RR. para a acção, como a A informou, requerendo a redução do pedido, por inutilidade superveniente da lide no tocante ao pedido da devolução do equipamento.

Com efeito, tendo o interesse da A. ficado satisfeito com a devolução pela R. do equipamento em causa, verifica-se a inutilidade superveniente da presente lide quanto a esse pedido, devendo extinguir-se a instância no que a ele respeita, com custas pela A. nos termos do art 536º/4 CPC.

V - Pelo exposto, acorda este Tribunal, em:

- julgar extinta a instância relativamente ao segundo pedido formulado na acção;             -julgar improcedente a apelação dos RR.;

-julgar parcialmente procedente a apelação da A. e revogar, correlativamente, a sentença recorrida, condenando os RR. a pagarem à A. a quantia de € 37.520,00, em sessenta prestações mensais e iguais, a liquidar no último dia útil do mês a que respeitem, e a iniciar no mês seguinte ao do trânsito em julgado da decisão, sendo  devidos, em caso de eventual incumprimento, aferido mensalmente, juros  à taxa legal no momento em vigor entre empresas comerciais, sobre a(s) quantia(s) em dívida, e até integral pagamento da(s) mesma(s), mais se absolvendo as  RR. de tudo o mais contra eles pedido.

Custas pela A. no que respeita ao pedido de devolução, as quais se fixam em 1/6.

Custas pela A. e R, na 1ª instância e nesta, no que respeita ao pedido de condenação, sendo 4/6 para a R. e 1/6 para a A.

Coimbra, 25 de Outubro de 2022
(Maria Teresa Albuquerque)
(Falcão de Magalhães)
(Pires Robalo)

(…)


[1] - Veja-se a este respeito, Miguel Teixeira de Sousa, no Blog do IPCP de 21/1/2015

               [2] - «Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória», p 246/247
               [3]  - Obra citada, pp. 276/277

[4] - Cfr. Ac STJ de 17/011/98, CJSTJ, ano VI, tomo III, p. 120;  Ac STJ  9/02/99, CJSTJ, ano VII, tomo I, p. 99; Ac STJ  31/03/2009 (Santos Bernardino); Ac STJ 12/09/2013 (Azevedo Ramos), os dois últimos disponíveis in www.dgsi.pt

              
               [6] -Cfr a respeito do abuso de direito de propor a acção  Ac STJ 3/10/2019 ( Rosa Tching),  Ac STJ  8/9/2021(José Rainho), Ac R G  14/2/2020 (Moreira Dias), Ac R L 8/10/2020 (Pedro Martins), Ac  R P 12/9/2019 (Amaral Ferreira), Ac STJ 22/6/2021 (Pinto de Almeida) 
               [7] - Entre outros lugares, «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 58, Julho 1998, pág. 964.

               [8] - Cfr, a respeito da alteração das circunstâncias, e como a sentença recorrida o refere,  o artigo de Oliveira Ascensão, em http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Ascensao-Jose-OliveiraALTERACAO-DAS-CIRCUNSTANCIAS-E-JUSTICA-CONTRATUAL-NO-NOVO-CODIGO-CIVIL.pdf; Igualmente, Alberto de Sá e Mello, “Modificação ou Resolução do contrato por Alteração das Circunstâncias”, https://observatorio.almedina.net/index.php/2021/01/28/modificacao-ou-resolucao-do-contrato-por-alteracao-dascircunstancias-no-contexto-da-pandemia-covid-19/.

               [9] - Sócio da Sérvulo & Associados, a 15 de Junho de 2020, em https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/act-of-god-a-covid-19-e-o-impacto-nos-contratos-financeiros-600647.
               [10] Assim, Paulo Pimenta, «Processo Civil Declarativo», 2014, p  173.
               [11] «As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa», p 164