ARRENDAMENTO SEM PRAZO CERTO
DENÚNCIA PELO SENHORIO
Sumário

I - Os contratos de arrendamento urbano, para fins não habitacionais, celebrados até ao momento em que a lei passou a permitir a celebração de contratos com duração limitada, ou seja, até 1995, eram contratos sem prazo certo.
II - A oposição à renovação é exclusiva dos contratos de prazo certo.
III - Sendo o contrato dos autos de 1994, sem prazo certo, o mesmo está sujeito às disposições transitórias dos arts. 27 a 29 do NRAU, por força das quais não se admite a denúncia pelo senhorio, senão em situações excepcionais, não aplicáveis ao caso.
IV - Neste caso, a denúncia pelo senhorio é juridicamente irrelevante.

Texto Integral

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

P..., Lda., instaurou procedimento cautelar comum contra F..., Lda., pedindo que seja entregue o locado identificado e a Requerida condenada, a título de sanção pecuniária compulsória, no pagamento de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) por cada dia de atraso na entrega.

Alega para o efeito, em síntese:

A 29.03.2021, a Requerente, como senhoria, enviou à Requerida, carta registada, nos termos da qual, lhe comunicava que não pretendia renovar o contrato de arrendamento com termo certo celebrado, pelo que o referido contrato cessaria a 30.11.2021, devendo a mesma desocupar o locado nessa data.

Uma vez que a Requerente já obteve o respectivo licenciamento para as obras que incidem sobre os prédios arrendados, tendo a respectiva licença, como validade, o dia 21.01.2025, a não entrega do locado à Requerente está a determinar um atraso na execução das obras, daí decorrendo prejuízos decorrentes da dificuldade em cumprir o prazo de realização das obras licenciadas, acrescida da dificuldade em contratar os trabalhos de demolição do imóvel; a tudo acresce o aumento sucessivo e quase exponencial dos preços de mão-de-obra e dos materiais a utilizar nas obras a executar.

Contestou a Requerida, em síntese:

Ato contínuo ao envio da carta, o legal representante da Requerente abordou os gerentes da Requerida e disse-lhes que iam receber a carta, mas que não lhe atribuíssem qualquer valor, porquanto tencionava fazer obras de vulto nos espaços locados e nos prédios a estes ligados, mas conduziria a sua execução de modo a que, na extrema norte do prédio, construiria um espaço com capacidade equivalente ao do locado, onde fosse possível a manutenção do contrato até à conclusão das obras.

Recebida a carta de 07.12.2021, a Requerida respondeu à Requerente, comunicando o depósito das rendas, na CGD. Do mesmo modo, recebida a carta de 11.02.2022, a Requerida respondeu, também por carta, a 23.02.2022, voltando a referir o acordo de realojamento celebrado entre as partes.

No contrato de arrendamento aqui em causa, para fins não habitacionais, o mesmo é de duração indeterminada, sendo a carta enviada pela senhoria, a comunicar a oposição à renovação do contrato, ilegal, não produzindo os efeitos visados e também não pode valer enquanto denúncia porque não respeitou o prazo de pré-aviso de dois anos.

Não se encontra preenchido ainda o pressuposto legal do “perigo na demora”.

Realizado o julgamento, foi proferida decisão a julgar totalmente improcedente o procedimento, não decretando a entrega do locado.


*

            Inconformada, a Requerente recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1)- No caso em apreço, destinando-se os arrendamentos para instalação de um armazém e de um escritório, enquanto actividade que se encontra, directa e objetivamente, relacionada com o exercício do comércio, e que não se destinou a satisfazer uma actividade transitória do locatário, limitada no tempo, até porque se prolongou, consecutivamente, durante vinte e oito anos, por força das sucessivas renovações contratuais, não deve ser qualificado como uma modalidade de arrendamento predial urbano, para outros fins lícitos, diferentes dos enunciados, mas antes como um arrendamento para o exercício do comércio.

2)- Desta forma, tratando-se de arrendamento urbano para o exercício do comércio, aplicavam-se-lhe, desde logo, na data da sua constituição, as disposições gerais do arrendamento urbano e rústico não rural, constantes dos artigos 1083º a 1106º, e as disposições gerais da locação que as não contrariem, incluídas nos artigos 1022º a1063º, com as especialidades respeitantes aos arrendamentos para comércio ou indústria, a que aludiam os artigos 1112º a 1118º, todos do Código Civil de 1966.

3)- A este tempo, por força do princípio da renovação obrigatória do contrato, no final do prazo, ou da relocação tácita, consagrado pelo artigo 1095º, do Cód. Civil nos arrendamentos de prédios urbanos, o senhorio não gozava do direito de denúncia, considerando-se o contrato renovado, por períodos sucessivos, caso não fosse denunciado pelo arrendatário, no tempo e pela forma convencionados ou designados na lei, em conformidade com o disposto pelo artigo 1055º, com as excepções constantes do artigo 1096º, também do Cód. Civil, mas que aqui não interessam.

4)- Na transição para o RAU, os contratos celebrados, enquanto actos constitutivos, são factos que se produziram inteiramente no âmbito temporal de vigência da versão originária do Código Civil de 1966, razão pela qual as condições da sua validade, formal e substancial, devem ser regidas pela lei, então, em vigor, o que, aliás, aquele diploma respeita, na sua plenitude, ao estatuir, no seu artigo 6º, que o mesmo “…não é aplicável aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor”.

5)- Deste modo, os contratos analisados continuam a reger-se pelo regime vinculístico, estabelecido pelo artigo 1095º, do Cód. Civil de 1966, cujo princípio se manteve com o estatuído pelo artigo 5º, nºs 1 e 2, do RAU, que impõe, por via de regra, o regime da sua prorrogação forçada, no final de cada prazo de vigência, com excepção da situação da sua denúncia pelo arrendatário.

6)- Finalmente, com a entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, as modalidades do arrendamento urbano, quanto ao fim a que se destina, de acordo com o preceituado pelo artigo 1067º, nº 1, passam a ser apenas duas, ou seja, o arrendamento para habitação – artigos 1092º a 1107º, do Cód. Civil – e o arrendamento para fins não habitacionais – artigos 1108º a 1113º, todos do Cód. Civil -, sendo certo, porém, que, nesta segunda categoria, definida apenas pela negativa, se concentram as três categorias, anteriormente, especificadas – arrendamento para comércio ou indústria, para o exercício de profissão liberal e para outros fins não habitacionais -, muito embora a recomposição destas modalidades não contenda com qualquer mudança de opções de natureza material-valorativas.

7)- O critério geral de delimitação do âmbito temporal da aplicação desta nova lei,

está fixado no artigo 59º, nº 1, do NRAU, que estipula que “o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”, acrescentando o respectivo nº 3, que “as normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável”.

8)- A nova disciplina legal corresponde, no fundamental, a uma regulação do mercado de arrendamento mais adequada às necessidades e conceções atuais, onde os arrendatários não habitacionais e, particularmente, os comerciais, surgem condicionados no que concerne à tutela do seu interesse na continuidade da relação locatícia, com ampla possibilidade de denúncia livre, por parte do senhorio.

9)- É clara, portanto, como pano de fundo interpretativo do NRAU, a preferência do legislador pelo novo regime, no qual deposita a ilimitada crença voluntarista no ressurgimento de um mercado de arrendamento, forte e concorrencial, que faça regressar ao sector uma parte considerável dos edifícios, atualmente, desocupados ou degradados, com a correspetividade de rendas justas, mas, também, como se deseja, não especulativas.

10)- Do ponto de vista substancial, a alteração mais relevante introduzida pelo NRAU consistiu na eliminação do monopólio da oposição à renovação, por parte do inquilino, que se traduzia para o senhorio no regime da prorrogação forçada do vínculo contratual, como resultava da herança deixada pelos artigos 1095º, da versão originária do Código Civil, e 68º, nºs 1 e 2, do RAU.

11)- Agora, qualquer que seja a modalidade de arrendamento – habitacional ou para fins não habitacionais – e o respectivo tipo de duração – com prazo certo ou com prazo indeterminado -, o locador passa, também, a gozar do direito de se opor à renovação ou de denunciar o contrato.

12)- Assim sendo, verifica-se uma tendencial uniformização da disciplina legal,

cessando a diferença, dentro do sistema normativo do arrendamento, entre os contratos

sujeitos ao regime vinculístico e aqueles que, pela delimitação negativa do artigo 5º, nº

2, do RAU, a ele estavam subtraídos.

13)- A admissibilidade de denúncia livre pelo senhorio constitui o denominador comum à totalidade dos contratos de arrendamento, conforme resulta do disposto pelos artigos 1096º, nº 2 e 1097º, pois, também, nos contratos de duração indeterminada, o senhorio goza da faculdade da denúncia não fundamentada, contemplada pelo artigo 1101º, c), todos do CC, com a única ressalva da observância do prazo de pré-aviso de cinco anos.

14)- Como assim, estão sujeitos ao NRAU, não apenas as relações locatícias que vierem a ser constituídas após o seu início de vigência, mas, igualmente, aquelas que, criadas antes dessa data, perdurarem para depois, com respeito pelos efeitos já produzidos no direito anterior, mas caindo no domínio da lei nova os efeitos futuros que vierem a produzir-se já no quadro temporal da mesma.

15)- Podendo o arrendamento urbano cessar, nomeadamente, por denúncia ou oposição à renovação, tratando-se de um arrendamento para fins não habitacionais, aplica-se, na falta de estipulação em contrário, o disposto quanto ao arrendamento para habitação, pelo que, tendo os contratos aqui em apreço o prazo de um ano, a respectiva denúncia teria de ser comunicada ao outro contraente, com uma antecedência não inferior a 120 dias do termo da renovação, de acordo com as disposições combinadas dos artigos 1067º, nº 1, 1079º, 1110º, nº 1, 1096º, nº 2 e 1097º, todos do Cód. Civil.

16)- E, respigando os factos dados como provados, verifica-se com facilidade que a requerente deu a conhecer à Requerida a sua oposição à renovação dos contratos aqui em causa com uma antecedência superior aos aludidos 120 dias - e daí, salvo o devido respeito e melhor opinião, a idoneidade de tal meio para fazer cessar a relação locatícia ora em apreço.

17)- Em consequência do que, ainda salvo o devido respeito e melhor opinião, verificado que está o primeiro pressuposto de que depende seja decretada a presente providência, deverá a decisão que se pretende seja proferida debruçar-se sobre a existência (ou não) dos demais requisitos necessários à procedência da pretensão da requerente -o que expressamente se pede.

18)- A decisão violou, entre outras, as normas dos arts. 1067º, nº 1, 1079º, 1110º, nº 1, 1096º, nº 2 e 1097º, todos do Cód. Civil; 362º e 368º, Cód. Proc. Civil.


*

            A Requerida contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

*

A questão a decidir é a de conferir a validade da oposição à renovação (denúncia) pelo senhorio.

*

            Os factos a considerar são os seguintes:

1) A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à construção civil, compra e venda de imóveis, terrenos e propriedades para venda ou construção e loteamentos, actividade pela qual se encontra devidamente coletada.

2) Por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 19.08.2016, no Cartório Notarial sito na Rua ..., na cidade ..., a Requerente comprou a AA, pelo preço global de duzentos mil euros, os seguintes bens móveis: i. Prédio urbano, constituído por rés-do-chão, ... andar e sótão com logradouro, sito em ..., Rua ..., ..., na Freguesia e Concelho ..., inscrito na matriz respectiva sob o artigo ...04º, que proveio do artigo ...9º da extinta freguesia ... (...), descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...79, extinta freguesia ... (...); ii. Prédio urbano, constituído por casa de rés-do-chão, ... andar e sótão com logradouro, sito em ..., Rua ..., ..., na Freguesia e Concelho ..., inscrito na matriz respectiva sob o artigo ...02º, que proveio do artigo ...8º da extinta freguesia ... (...), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...78, extinta freguesia ... (...).

3) Consta de fls. 19 dos autos, documento escrito, denominado «CONTRATO DE ARRENDAMENTO», datado de 21.11.1994, onde consta «AA» como «senhorio» e «BB» como «inquilino», cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido e onde, designadamente, se lê: «(…) fazem o presente contrato de arrendamento relativo a parte do prédio arrendado sito na rua ..., ..., (…) 1ª – O prazo é de um ano, a começar em 1 de Dezembro de 1994 e a terminar no último dia do mês de Novembro de 1994, considerando-se prorrogado por igual período e nas mesmas condições, enquanto por qualquer das partes não for denunciado nos termos legais. (…) 3ª – O prédio ou parte do prédio aqui arrendado, destina-se a armazém do arrendatário, não podendo este sublocar ou ceder por qualquer outra forma os direitos do arrendamento, sem consentimento por escrito do senhorio e devidamente reconhecido (…)».

4) Consta de fls. 41v dos autos, documento escrito, denominado «CONTRATO DE ARRENDAMENTO», datado de 21.11.1994, onde consta «AA» como «senhorio» e «BB» como «inquilino», cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido e onde, designadamente, se lê: «(…) fazem o presente contrato de arrendamento relativo a parte do prédio arrendado sito na rua ..., ..., (…) 1ª – O prazo é de um ano, a começar em 1 de Dezembro de 1994 e a terminar no último dia do mês de Novembro de 1994, considerando-se prorrogado por igual período e nas mesmas condições, enquanto por qualquer das partes não for denunciado nos termos legais. (…)

3ª – O prédio ou parte do prédio aqui arrendado, destina-se a escritório do arrendatário, não podendo este sublocar ou ceder por qualquer outra forma os direitos do arrendamento, sem consentimento por escrito do senhorio e devidamente reconhecido (…)».

5) Mercê da transmissão da posição contratual, a Requerida passou a ser a inquilina dos locados identificados em 3), 4) e do primeiro andar do n.º 33.

6) Em consequência da compra e venda referenciada em 2), a Requerente tomou a posição de senhoria da Requerida.

7) Razão pela qual passou a emitir o competente documento contabilístico que titulava tal relação contratual, que entregava à Requerida.

8) Através de carta registada, enviada à Requerida, com data de 29.03.2021, a Requerente comunicou à Requerida que “respeitando a antecedência prevista na lei (de120 dias) não pretendemos renovar o contrato de arrendamento com termo certo celebrado em 01/12/1994, relativo ao imóvel sito na Rua ... de polícia, cidade ... (arts. ...2º, R/C D e ...4º, R/C D e 1º). Assim, o contrato cessará em 30/11/2021, devendo V. desocupar o locado nessa data, entregando-o livre de pessoas e bens.”

9) Posteriormente, a Requerente, através do mandatário, informou a Requerida que, por mera cortesia, permitia que a entrega do locado ocorresse até 31.12.2021.

10) A Requerida respondeu, por carta, à Requerente, o seguinte: «(…) Dou em meu poder as cartas que V. Ex.ª em representação da sociedade P..., Lda., dirigiu à minha constituinte F..., Lda., a qual me incumbiu de expor e requerer a V. Ex.ª como segue: 1. A actividade funerária desenvolvida primeiro, individualmente pelo senhor BB

, e depois pela sociedade de que é gerente, encontra-se instalada na Rua ..., na cidade ..., há mais de 40 anos. 2. No exercício da sua actividade, com caracter de grande utilidade social, aí é procurada pela sua vasta clientela, e do produto do seu negócio vivem os sócios e os seus colaboradores. 3. O legal representante da sua constituinte, há uns tempos, reuniu com o legal representante da minha constituinte e deu-lhe conhecimento de que iria fazer obras de vulto nos locais arrendados pela minha constituinte, mas deixou bem assente que: a) Orientaria a execução das obras de modo a

que a minha constituinte não saísse do local arrendado, embora pudesse mudar, temporariamente para local que reconstruiria primitivo, e efetuadas as obras no arrendamento, regressaria a este local. 4. Tanto assim foi que, quando lhe foi enviada a 1.ª carta do dia 29/03/2021, o legal representante da sua constituinte procurou o gerente da minha constituinte, senhor BB, e informou-o de que iria receber uma carta, mas que não ligasse, pois, o que valia, era de facto aquilo a que se tinha comprometido, inicialmente. 5. O mesmo aconteceu quando lhe enviou a carta do dia 17/12/2021, veja-se, com a devolução do cheque das rendas!! 6. A minha constituinte quer ver honrada a palavra melhor referida supra em 3., os contractos não findam por motivo das obras, e pretende manter o exercício da actividade no local. 7. As rendas encontram-se depositadas na CGD nas contas n.º ...50, ...50 e ...50, conforme documentos 1 a 3 que se juntam, e aí podem ser levantadas. JUNTA: Três documentos. Com os melhores cumprimentos (…)»

11) Após o que a Requerente, através do s/mandatário, enviou à Requerida, uma carta datada de 11.02.2022, onde comunicou que “entendimento que o arrendamento relativo ao imóvel sito na Rua ..., cidade ..., cessou em 30/11/2021 - o que lhe foi devida e em tempo comunicado. Até agora, e por mera cortesia, aquela m/ cliente permitiu que tenha vindo ainda a usufruir do mesmo locado. No entanto, e atendendo a que já foi obtido o licenciamento para as obras a efetivar naquele local (com datas de início e conclusão), e que já foram iniciados os trabalhos de demolição e remoção dos escombros dos edifícios ali existentes, sou a informar que a m/ cliente aguarda, extrajudicialmente, a entrega do dito locado impreterivelmente até ao final do corrente mês. Caso assim não suceda, e ao contrário das m/ melhores expectativas, de imediato se recorrerá a Tribunal, pedindo a entrega do imóvel em questão, bem como o ressarcimento de todos os prejuízos advenientes da não entrega em tempo do mesmo (prejuízos que sempre serão avultados).”

12) A esta respondeu a Requerida por carta datada de 23.02.2022, enviada a coberto do registo postal n.º ..., que a Requerente recebeu a 02.03.2022, com o seguinte teor:…: «(…) Dou em meu poder a sua carta do dia 11 deste mês, à qual fui incumbido de responder como segue: 1. Os meus constituintes mantêm tudo quanto tiveram ocasião de referir na carta do dia 10 de Janeiro do corrente ano que, por uma questão de simplificação processual vai em anexo. 2. A sua constituinte adquiriu o edifício com o encargo emergente do arrendamento. 3. As rendas (que não são de valor diminuto) sempre estiveram em dia e podem ser levantadas da conta onde se encontram depositadas e são do conhecimento da sua constituinte, quando quiser. 4. A minha constituinte sempre foi colaboradora com o legal representante da sua, acordaram os termos do realojamento muito antes do início das obras, sendo pessoas de honra, apenas têm que o respeitar. JUNTA: Um documento. Com os melhores cumprimentos (…)»

13) Até hoje, a Requerida não fez entrega, livre de pessoas e bens, do locado à Requerente.

14) A Requerente obteve já aprovação e licenciamento para as “obras que incidem sobre o edifício sito em Rua ..., da extinta freguesia ... (...), atual freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob os nº ...78, ...79, ...91, ...81 e inscrito nas matrizes urbanas sob o art. n.º ...02, ...04, ...06, ...08, respetivamente, da respectiva freguesia.”

15) Sendo que o prazo de validade da respectiva licença tem início em 21.01.2022 e termo em 21.01.2025.

16) A não entrega do locado à Requerente (livre de pessoas e bens) está a determinar a esta um atraso na execução das obras previstas para o local em questão.

17) Daí decorrendo prejuízos decorrentes da dificuldade em cumprir o prazo de realização das obras licenciadas.

18) Acrescida da dificuldade em contratar os trabalhos de demolição do imóvel (e posterior remoção dos escombros), por isso que a equipa que estava ajustada, atento o atraso na entrega do locado, foi iniciar uma outra obra, e os outros profissionais disponíveis também.

19) Por entrarmos no estio, a Requerente não conseguirá (até ao final do Verão), contratar outros profissionais para executar tais trabalhos, o que atrasará irremediavelmente a execução da empreitada que a Requerente pretende executar.

20) A tudo acresce o aumento sucessivo e quase exponencial dos preços de mão-de-obra e (sobretudo), dos materiais a utilizar nas obras a executar (o que é do conhecimento comum e suficientemente transmitido pelos meios de comunicação social).

21) Por isso que, quanto mais tarde for entregue o locado, mais tarde começam as obras e mais caras as mesmas vão ficar.

22) A Requerida é uma sociedade comercial por quotas, que presta serviços de actividade funerária, incluindo funerais sociais; comércio a retalho de artigos funerários; comércio a retalho de flores naturais e artificiais e plantas; e comércio a retalho de produtos de cera.

23) A Requerida encontra-se sediada e instalada nos imóveis cuja entrega lhe é agora solicitada e aqui é procurada por vasta clientela que vem angariando desde há cerca de 28 anos.

24) Do produto do negócio da Requerida vivem os seus sócios gerentes, os empregados e respectivas famílias que não têm outra fonte de subsistência.

25) As rendas encontram-se integralmente pagas e em dia, sendo que, uma vez que a Requerida se recusou a receber as rendas, por carta de Janeiro de 2022, a Requerida informou a Requerente que passava a depositá-las numa conta bancária a esse fim destinada.


*

No caso, a Requerente funda o seu direito à entrega do locado, por considerar que, de forma válida e eficaz, opôs-se à renovação do contrato de arrendamento, celebrado com a Requerida, classificando tal contrato como contrato a termo certo, com prazo de um ano, renovável automaticamente.

As partes aceitam que o fim do contrato é comercial, excluído do regime dos arrendamentos rurais; aceitam ainda que o regime aplicável ao tempo da sua formação (1994) é o “vinculístico”, aquele que não admitia ao senhorio o direito de oposição à renovação do contrato (denúncia).

Face àquela data, o contrato foi celebrado antes da alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro.

Não foi alegado pelas partes que se tenha procedido à transição do contrato para o NRAU, nos termos do disposto nos artigos 50º e seguintes da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro.

Conforme jurisprudência do S.T.J., acórdão de 5.12.2017 (proc.2955/15), em www.dgsi.pt, que aceitamos, os contratos de arrendamento urbano, para fins não habitacionais, celebrados até ao momento em que a lei passou a permitir a celebração de contratos com duração limitada, ou seja, até 1995 (DL n.º 257/95, de 30-09), eram contratos sem prazo certo.

A oposição à renovação é exclusiva dos contratos de prazo certo.

Sendo o contrato dos autos de 1994, logo sem prazo certo, o mesmo está sujeito às disposições transitórias dos arts. 27 a 29 do NRAU, por força das quais não se admite a denúncia pelo senhorio (senão em situações excecionais, não aplicáveis ao caso).

Nestes contratos, como se retira da lei, não se aplica a alínea c) do artigo 1101 do Código Civil.

(No mesmo sentido, acórdãos da R. Porto, de 23.2.2010, proc. 74/08, e da R. Évora, de 15.1.2015, proc. 2955/15, no sítio digital referido.)

Sendo assim, no caso, a provada denúncia (ou oposição à renovação) pelo senhorio é juridicamente irrelevante.

            O Tribunal recorrido utiliza ainda a seguinte argumentação, subsidiariamente relevante:

“No presente caso, ainda que os contratos aqui em causa tenham a indicação de um prazo de um ano «(…) considerando-se prorrogado por igual período e nas mesmas condições, enquanto por qualquer das partes não for denunciado nos termos legais (…)» entende-se que os mesmos não podem ser classificados como de “duração limitada”, por duas ordens de razões. Senão vejamos. Desde logo, verifica-se, pela análise dos documentos transcritos em 3) e 4) que os mesmos constituem minutas de contratos de arrendamento para fins habitacionais que foram aproveitados para arrendamento para fins comerciais, rasurando-se a palavra “habitação” e escrevendo-se em cima “armazém” ou “escritório”. Isto terá acontecido, certamente, porque, em 1994 (ano em que tais contractos foram celebrados), não existiriam minutas de contratos de arrendamento para fins não habitacionais que previssem um prazo de duração, pois tal não era legalmente exigível. Destarte, como acima se encontra explicado, antes da alteração do RAU, através do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro, só aos contratos de arrendamento para fins habitacionais é que era exigível a estipulação de um prazo, nos termos do disposto no artigo 98º. Mais a mais, da cláusula do contrato que estabelece que «o prazo de arrendamento é de um ano de um ano, prorrogável por iguais e sucessivos períodos», não decorre qualquer indicação, ainda que implícita, de que as partes pretenderam que o contrato celebrado pudesse ser denunciado livremente pelo senhorio, findo que fosse o prazo indicado, mas apenas e só que o prazo de um ano é prorrogável por iguais e sucessivos períodos, o que de resto é o normal nos contratos de duração indeterminada os quais implicam a renovação automática e ilimitada do vínculo contratual.” (Fim da citação.)

(Ainda sobre a interpretação da cláusula do prazo, ver acórdão da R. Lisboa, de 3.3.2011, proc. 4498/06, relativamente aos pontos 8 e 9 do seu sumário.)

Por fim, embora tenha ficado demonstrado que a Requerente pretende efetuar obras no espaço dos locados que implicam, inclusivamente, a demolição dos edifícios ocupados pela Requerida, verifica-se que não foi esse o objeto da discussão e não foram respeitadas as formalidades previstas no artigo 1103º do Código Civil.


*

Decisão.

Julga-se improcedente o recurso e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente, vencida (art.527º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Coimbra, 2022-10-25


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Rui Moura)