METADADOS
DADOS DE TRÁFEGO
FACTURAÇÃO DETALHADA
Sumário

I – A facturação detalhada referente às comunicações telefónicas integra o conceito de dados de tráfego.
II – O regime dos artigos 187.º a 189.º do CPP mantém a sua aplicação relativamente a escutas telefónicas, nomeadamente quanto à intercepção e à gravação de conversações ou comunicações telefónicas, quando verificados os requisitos previstos no n.º 1 do primeiro dos dois artigos referidos e relativamente aos crimes aí previstos.
III – O regime de extensão contido no artigo 189.º do CPP continua a ter a aplicação prática prevista no artigo 18.º da Lei n.º 109/2009, de 15-09 (“Lei do Cibercrime”).
IV – A obtenção de prova electrónica preservada ou conservada em sistemas informáticos está actualmente submetida ao regime previsto nos artigos 11.º a 19.º da Lei n.º 109/2009.

Texto Integral

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Os autos de inquérito supra referenciados, que correm termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal – 2ª secção de ..., foram remetidos ao Juízo de Instrução Criminal ... – Juiz ..., com a promoção que seguidamente se transcreve (itálico nosso, nesta como nas demais transcrições):

Remeta de imediato ao JIC, nos termos do disposto no artigo 187.º, n.º 1, al. e), 189.º, n.º 2, 269.º, n.º al. e) do Código de Processo Penal e 15.º a 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15.09., para apreciação e decisão do infra:

Nos autos denuncia-se a eventual prática de factos susceptíveis de integrarem, em abstracto, um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal praticado por telefone, por factos praticados, no período compreendido entre 08.10.2021 e 17.02.2022 inclusive, pelo utilizador do telemóvel com o cartão ...75 para o telemóvel com o cartão n.º ...94.

Afigura-se, deste modo, relevante para o prosseguimento da investigação averiguar se tal telemóvel foi utilizado no referido período pelo suspeito para enviar mensagens ao ofendido, razão pela qual promovo que se oficie as operadoras de telecomunicações celulares móveis MEO/Altice, Vodafone, Nowo e Lycamobile, NOS para que remetam aos autos:

- Facturação detalhada das mensagens/chamadas enviadas pelo n.º ...75 desde 08.10.2021 a 17.02.2022 inclusive e, caso os mesmos sejam remetidos em CD ou outro qualquer suporte informático, que seja ordenada a extração para papel.

Recebidos os autos no ..., a Mmª Juiz de Instrução Criminal proferiu despacho com o seguinte teor:

Nos autos investiga-se a prática de factos susceptíveis de integrarem, em abstracto, um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.°, n.º 1, do Código Penal, praticado por telefone, no período compreendido entre 08.10.2021 e 17.02.2022 inclusive, pelo utilizador do telemóvel com o cartão ...75 para o telemóvel com o cartão n.º ...94.

O Ministério Público entende que é relevante para o prosseguimento da investigação averiguar se tal telemóvel foi utilizado no referido período pelo suspeito para enviar mensagens ao ofendido, razão pela qual promove que se oficie às operadoras de telecomunicações celulares móveis MEO/Altice, Vodafone, Nowo e Lycamobile, NOS para que remetam aos autos a facturação detalhada das mensagens/chamadas enviadas pelo n.º ...75 desde 08.10.2021 a 17.02.2022 inclusive ao abrigo do disposto nos artigos 187.°, n.º 1, al. e), 189.°, n.º 2, 269.°, n.º al. e) do Código de Processo Penal e 15.° a 17.° da Lei nº 109/2009, de 15.09.

Cumpre apreciar e decidir:

No que toca à obtenção de dados de tráfego de conversações ou comunicações telefónicas, regeu até à entrada em vigor da Lei n.º 32/2008, de 17/07, o disposto no n.º 2 do artigo 189° do C. P. Penal, que o Ministério Público invoca como alicerce principal do que promove.

Com base nessa norma, a obtenção de tais dados será admissível desde que esteja em causa crime previsto no n.º 1 e os dados respeitem às pessoas referidas no n,º 4, ambos do artigo 187° do C. P. Penal. Não se estabelece qualquer prazo limite para o acesso a tais dados.

Com a entrada em vigor da Lei nº 32/2008, não pode continuar a sustentar-se a aplicação irrestrita do n.º 2 do artigo 189° do C. P. Penal no que toca ao acesso a todos os dados de tráfego, comunicação ou localização, nomeadamente aos guardados em bases de dados.

O legislador não ignorava a existência de tal norma do C. P. Penal, não pretendeu revoga-la, contrariá-la ou torná-la inaplicável. Visou apenas regular e limitar o modo de conservação e acesso, no tempo e quanto ao fundamento, de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações.

Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/03/2017, «( ... ) o regime dos artigos 187° a 189°, do CPP, aplica-se aos "dados sobre a localização celular", obtidos em tempo real e intercepção das comunicações entre presentes, enquanto o consagrado na Lei nº 32/2008, de 17/07, tem como âmbito de aplicação os dados que concernem a comunicações relativas ao passado, ou seja, arquivadas ( … )».

Assim a obtenção de dados conservados por operadoras de telecomunicações que se enquadrem no elenco do artigo 4° da Lei n.º 32/2008, de 17107, só podem ser acedidos nos termos admitidos por tal diploma, não podendo recorrer-se a "atalhos", como sejam a invocação do disposto no artigo 189° do C. P. Penal ou na Lei do Cibercrime, cujo artigo 11°, no seu n.º 2, estabelece cristalinamente: «as disposições processuais previstas no presente capítulo não prejudicam o regime da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho».

A Lei nº 32/2008, de 17 de Julho dispõe no seu artigo 1 ° que a referida Lei regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.

No seu art. 2°, nº. 1, al. g) encontra-se a definição de crime grave, ou seja considera-se crime grave para efeito da aplicação da referida Lei ri g) 'Crime grave', crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou de títulos equiparados a moeda, contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atas preparatórios da contrafação e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima".

Ora, no caso dos autos, investigando-se crime que não integra o catálogo de "crimes graves" para efeitos da Lei n.º 32/2008, de 17/07, não pode aceder-se aos dados conservados pelas operadoras nos termos do artigo 4° desse diploma. E, no que toca a tais dados arquivados, é inaplicável o n.º 2 do artigo 189° do C. P. Penal.

O Ministério Público invoca ainda o disposto no artigo 15° a 17° da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro.

Ora o artigo 15° refere-se à pesquisa de dados informáticos, dispondo no seu número 1 que" 1 - Quando no decurso do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência".

O artigo 16° refere-se à apreensão de dados informáticos, dispondo que "1 - Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos"

E no artigo 17.° refere-se que "Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal."

Ora face ao promovido pelo MP e tendo em consideração que o que se pretende obter são dados conservados por operadoras de telecomunicações, desde logo se verifica que os preceitos a que se fez menção não têm aplicação ao caso concreto.

Pelo exposto, indefere-se o promovido. Devolva.

Inconformado, recorre o Ministério Público, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

A. Nos presentes autos foi apresentada queixa por AA e BB porquanto, entre os dias 08.10.2021 e 17.02.2022, pessoa que identificam como sendo CC efectuou chamadas do telemóvel com o número ...75 para o seu telemóvel com o número ...94, chamadas telefónicas onde foram, pelos mesmos, audíveis expressões de teor ameaçatório, nomeadamente “que se vai juntar com o filho e com ciganos para vos apanhar e fazer a folha, que podiam todos fugir de casa que os ia encontrar seja onde fosse”, conforme resulta do auto de fls. 27 dos autos.

B. O Ministério Público considera indiciado nos autos a prática do crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, o qual foi praticado por meio de telefone (telemóvel, mais concretamente), de número ...75 para o número de telemóvel ...94, propriedade dos ofendidos;

C. Não havendo nos autos qualquer outro meio de prova que possa ser usado para chegar à identificação do suspeito e à comprovação das chamadas efectuadas e recebidas, o Ministério Público, invocando o disposto no artigo 187.º, n.º 1, alínea e), 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e artigos 15.º a 17.º da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro, promoveu a obtenção e junção aos autos “da facturação detalhada das mensagens/chamadas enviadas pelo n.º ...75 desde 08.10.2021 a 17.02.2022 inclusive e, caso os mesmos sejam remetidos em CD ou outro qualquer suporte informático, que seja ordenada a extração para papel.”, porquanto se afigura “relevante para o prosseguimento da investigação averiguar se tal telemóvel foi utilizado no referido período pelo suspeito para efectuar chamadas telefónicas para os ofendidos”;

D. Sendo tal promoção indeferida porquanto o Tribunal (Juízo de Instrução Criminal ... – Juiz ...) entendeu “Com a entrada em vigor da Lei n.º 32/2008, não pode continuar a sustentar-se a aplicação irrestrita do n.º 2 do artigo 189º do C. P. Penal no que toca ao acesso a todos os dados de tráfego, comunicação ou localização, nomeadamente aos guardados em bases de dados.  (…) Assim a  obtenção de dados conservados por operadoras de telecomunicações que se enquadrem no elenco do artigo 4º da Lei n.º 32/2008, de 17/07, só podem ser acedidos nos termos admitidos por tal diploma, não podendo recorrer-se a “atalhos”, como sejam a invocação do disposto no artigo 189º do C. P. Penal ou na Lei do Cibercrime, cujo artigo 11º, no seu n.º 2, estabelece cristalinamente: «as disposições processuais previstas no presente capítulo não prejudicam o regime da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho». Ora, no caso dos autos, investigando-se crime que não integra o catálogo de “crimes graves” para efeitos da Lei n.º 32/2008, de 17/07, não pode aceder-se aos dados conservados pelas operadoras nos termos do artigo 4º desse diploma. E, no que toca a tais dados arquivados, é inaplicável o n.º 2 do artigo 189º do C. P. Penal. Ora face ao promovido pelo MP e tendo em consideração que o que se pretende obter são dados conservados por operadoras de telecomunicações, desde logo se verifica que os preceitos a que se fez menção não têm aplicação ao caso concreto.”; não podendo, neste momento, sermos alheios ao decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19.04.2022, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 4.º, 6.º e 9.º, da referida Lei.

E. O Ministério Público considera que a sua promoção tem pleno assento nos artigos 187.º, n.º 1, alínea e) e n.º 4, alínea c) e 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, porquanto se investiga um crime de ameaça, cometido através de telefone, em que existe um suspeito; competindo ao Mmº Juiz de Instrução ordená-la, porquanto a diligência é indispensável para a descoberta da verdade, sendo impossível obtê-la por qualquer outro meio, e caso não seja determinada o Ministério Público vê coartada a investigação; a promoção encontra-se devidamente fundamentada com a descrição dos factos em causa, na inexistência de outros quaisquer meios de prova, e com a invocação das normas legais;

F. Ademais, caso ainda assim não se entendesse que o promovido tinha pleno assento nos artigos 187.º, n.º 1, alínea e) e n.º 4, alínea c) e 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, salvo melhor entendimento, sempre havia o promovido que ser deferido com assento nos artigos 2.º, alínea c), 11.º, alíneas b), c), 14.º, nºs 1, 2, 3 e 4, 15.º, n.º 1, 16.º, n.º 1 17.º e 18.º da Lei n.º 109/2009, de 15.09,

G. Pois o promovido visa a obtenção de dados de tráfego, de acordo com a definição do artigo 2.º, alínea c) da Lei n.º 109/2009, de 15.09, e que terão de ser recolhidos, ao abrigo das normas consagradas neste diploma, - e independentemente de se estar, ou não, perante ‘crime graves’, conforme definidos no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) da Lei 32/2008 de 17 de Julho, irrelevando o teor do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 -, mormente do disposto nos artigos 11.º, alíneas b), c), 14.º, nºs 1, 2, 3 e 4, 15.º, n.º 1, 16.º, n.º 1 17.º e 18.º.

H. Pelo exposto, o Tribunal (Juízo de Instrução) ao ter decidido como decidiu violou o disposto nos artigos 153.º, n.º 1, do Código Penal, dos artigos 187.º, n.º 1, alínea e) e n.º 4, alínea a) e 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, e dos artigos 2.º, alínea c), 11.º, alíneas b), c), 14.º, nºs 1, 2, 3 e 4, 15.º, n.º 1, 16.º, n.º 1 17.º e 18.º, da Lei n.º 109/2009, de 15.09.

Nestes termos e nos demais de Direito deve o D. Despacho proferido pelo Juízo de Instrução Criminal do Tribunal da Comarca ... e do qual se recorre, ser revogado e substituído por outro D. Despacho que ordene a realização das diligências promovidas pelo Ministério Público junto das operadoras de telecomunicações móveis Vodafone, Altice, Meo, Lycamobile e Nowo.

            Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto, acompanhando a argumentação desenvolvidas pelo M.P. em 1ª instância, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que no caso vertente a única questão de que fundamentalmente importa conhecer é a de saber se estando em causa a prática de um crime de ameaça, p. p. pelo art. 153º, nº 1, do Código Penal, pode a facturação detalhada referente às comunicações telefónicas estabelecidas entre o suspeito e a vítima ser requisitada à operadora para efeitos de investigação criminal.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            A lei nº 41/2004, de 18 de Agosto, na alínea d) do nº 1 do artigo 2º define como «Dados de tráfego» quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações eletrónicas ou para efeitos da faturação da mesma e prevê expressamente, no respectivo art. 6º, o tratamento de dados de tráfego necessários à facturação dos assinantes e ao pagamento de interligações.

            A Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, não inovou nesta matéria, antes acolheu a definição de dados de tráfego constante da Lei 41/2004, já que se limitou a dispor que para efeitos daquele diploma, eram considerados «Dados», os dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador (art. 2º, nº 1, al. a), da Lei nº 32/2008).

            Ulteriormente, a lei nº 109/2009, de 15 de Setembro, veio definir, para os efeitos dessa mesma lei, como «dados de tráfego», os dados informáticos relacionados com uma comunicação efectuada por meio de um sistema informático, gerados por este sistema como elemento de uma cadeia de comunicação, indicando a origem da comunicação, o destino, o trajecto, a hora, a data, o tamanho, a duração ou o tipo do serviço subjacente (art. 2º, al. c).

            Abreviando razões, diremos que os elementos solicitados pelo Ministério Público integram indiscutivelmente o conceito de dados de tráfego tal como definidos em qualquer das versões normativas a que aludimos.

            A questão colocada no recurso, tal como acima foi identificada, consiste em saber se, estando em causa a prática de um crime de ameaça, p. p.  pelo art. 153º, nº 1, do Código Penal, pode a facturação detalhada referente às comunicações telefónicas estabelecidas entre o suspeito e a vítima ser requisitada à operadora para efeitos de investigação criminal.

            Vejamos, num primeiro momento, o particular condicionalismo histórico e legislativo que antecedeu a publicação da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, por recurso a parcial transcrição do Acórdão desta Relação de Coimbra, do ora relator, proferido no processo nº 135/09.4JAAVR-A.C1, de 09/12/2009 [1]:

            A Constituição da República Portuguesa dispõe, no art. 34º, nº 4, que “é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”, norma que está em conformidade com o disposto relativamente ao direito à protecção da vida privada no art. 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

            A directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, veio impor aos Estados-Membros que garantam os direitos e liberdades das pessoas singulares no que respeita ao tratamento de dados pessoais, nomeadamente, o seu direito à privacidade, com o objectivo de assegurar a livre circulação de dados pessoais na Comunidade. Como se pode ler no seu considerando nº 11, os princípios presentes nesta directiva precisam e ampliam os princípios contidos na Convenção do Conselho da Europa, de 28 de Janeiro de 1981, relativa à protecção das pessoas no que diz respeito ao tratamento automatizado de dados pessoais.

A Directiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas (Directiva relativa à privacidade e às comunicações electrónicas), transpôs os princípios estabelecidos na directiva 95/46/CE para regras específicas do sector das comunicações electrónicas. O nº 1 do art. 15º desta directiva enumerou as condições em que os Estados-Membros podem restringir o âmbito dos direitos e obrigações previstos na directiva 95/46/CE, estatuindo que “Os Estados-Membros podem adoptar medidas legislativas para restringir o âmbito dos direitos e obrigações previstos nos artigos 5.º e 6.º, nos n.ºs 1 a 4 do artigo 8.º e no artigo 9.º da presente directiva sempre que essas restrições constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional (ou seja, a segurança do Estado), a defesa, a segurança pública, e a prevenção, a investigação, a detecção e a repressão de infracções penais ou a utilização não autorizada do sistema de comunicações electrónicas, tal como referido no n.º 1 do artigo 13.º da Directiva 95/46/CE. Para o efeito, os Estados-Membros podem designadamente adoptar medidas legislativas prevendo que os dados sejam conservados durante um período limitado, pelas razões enunciadas no presente número. Todas as medidas referidas no presente número deverão ser conformes com os princípios gerais do direito comunitário, incluindo os mencionados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º do Tratado da União Europeia” - Directiva transposta para a ordem jurídica nacional pela Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto.

Na declaração de 25 de Março de 2004 sobre a luta contra o terrorismo, o Conselho Europeu encarregou o Conselho de proceder à análise de propostas relativas ao estabelecimento de regras sobre a conservação de dados de tráfego das comunicações pelos prestadores de serviços, reafirmando em 13 de Julho de 2005, na Declaração em que condenou os ataques terroristas em Londres, a necessidade de aprovar rapidamente medidas comuns relativas à conservação de dados de telecomunicações.

Ulteriormente, a Directiva nº 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, alterou a Directiva nº 2002/58/CE, deixando claro, no considerando nº 25, que não é prejudicado o poder dos Estados-Membros de adoptarem medidas legislativas respeitantes à utilização dos dados e ao acesso aos mesmos por parte das autoridades nacionais por eles designados e que as questões que se prendem com o acesso das autoridades nacionais aos dados conservados de acordo com esta directiva no contexto das actividades enumeradas no nº 2 do art. 3º da Directiva 95/46/CE não são abrangidas pelo direito comunitário  - O referido art. 3º, nº 2, dispõe que “A presente directiva não se aplica ao tratamento de dados pessoais: - efectuado no exercício de actividades não sujeitas à aplicação do direito comunitário, tais como as previstas nos títulos V e VI do Tratado da União Europeia, e, em qualquer caso, ao tratamento de dados que tenha como objecto a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado (incluindo o bem-estar económico do Estado quando esse tratamento disser respeito a questões de segurança do Estado), e as actividades do Estado no domínio do direito penal; - efectuado por uma pessoa singular no exercício de actividades exclusivamente pessoais ou domésticas”. O objecto da directiva 2006/24/CE foi, aliás, linearmente vertido no respectivo art. 1º, aí se consignando que “A presente directiva visa harmonizar as disposições dos Estados-Membros relativas às obrigações dos fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações em matéria de conservação de determinados dados por eles gerados ou tratados, tendo em vista garantir a disponibilidade desses dados para efeitos de investigação, de detecção e de repressão de crimes graves, tal como definidos no direito nacional de cada Estado-Membro”.

Surge então a Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, resultante de imperativo decorrente do art. 15º, nº 1, da Directiva nº 2006/24/CE – que impunha a sua transposição para o direito interno dos Estados-Membros o mais tardar até 15 de Setembro de 2007 [2] e que veio regular a conservação e a transmissão de dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e pessoas colectivas, bem com dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, indicando expressamente que procedia à transposição da última directiva citada – também por imposição do art. 15º, nº 1, da Directiva 2006/24/CE.

No que ao caso vertente concerne, importa exclusivamente apurar se ocorre obstáculo legal à requisição dos dados pretendidos pelo M.P. para efeitos de investigação criminal, estando em causa crime que não se inclui nos crimes de “catálogo” previstos no art. 2º, nº 1, al. g), da Lei 32/2008 (como também se não inclui, aliás, nos catálogos previstos na Lei nº 109/2009).

A obtenção da prova digital tem actualmente a sua regulamentação repartida por três diplomas legais:

- O Código de Processo Penal (artigos 187º a 190º);

- A Lei n.º 32/2008, de 17/07 (que regula a conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas);

- A Lei n.º 109/2009, de 05.09 (Lei do Cibercrime).

Importa ainda ter presente o estatuído na Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto, que transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.

Releva ainda o conhecimento do recente Acórdão do Tribunal Constitucional, de 19/04/2022 [3].

Trata-se, pois, fundamentalmente, de harmonizar e compatibilizar os apontados diplomas legais, na parte em que permanecem em vigor, o que do ponto de vista metodológico obriga a ter em consideração os princípios fundamentais da interpretação jurídica, havendo necessariamente que aceitar que o legislador, ao elaborar cada um deles, conhecia a legislação já existente sobre o tema e soube exprimir correctamente o seu pensamento.

Nesta linha de raciocínio há que concluir que o art. 189º, nº 2, do CPP, dispondo que a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo, que valia irrestritamente para a investigação dos crimes previstos no art. 187º, nº 1, do CPP, com a entrada em vigor da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, sofreu uma primeira compressão, tendo deixado de ser aplicável à recolha de provas que implicassem o acesso a dados de tráfego e de localização. Relativamente a tais dados, a Lei 32/2008 veio dispor com clareza que A conservação e a transmissão dos dados têm por finalidade exclusiva a investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes (cfr. art. 3º, nº 1), incluindo-se no elenco dos crimes graves, por força do disposto no art. 1º, nº 1, apenas os previstos na al. g) do respectivo art. 2º, nº 1.

Já na vigência da Lei nº 32/2008 e no período que antecedeu a entrada em vigor da Lei nº 109/2009, continuavam a ser passíveis de acesso para efeitos de investigação criminal, nos casos legalmente admissíveis, os dados preservados pelas operadoras telefónicas e de serviços telemáticos, ainda que guardados em bases de dados digitalizadas, não incluídos nos ficheiros destinados à conservação de dados no âmbito da Lei nº 32/2008, que tinham que estar obrigatoriamente separados de quaisquer outros ficheiros para outros fins. Eram, pois, acessíveis os dados autonomamente preservados pela operadora para o desempenho da sua atividade comercial, para efeitos de contacto com os respectivos clientes, publicidade, facturação e cobrança. É o que resulta da interpretação conjugada dos arts. 1º e 3º, nºs 1 e 2, em confronto com o nº 3 do art. 3º, todos da Lei nº 32/2008.

Com a ulterior publicação da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro, o regime processual das comunicações telefónicas previsto nos arts. 187º a 190º do CPP, deixou de ser extensível ao correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, uma vez que o acesso a esse tipo de prova passou a ter uma regulamentação própria. Nesta medida, a necessária compatibilização dos diplomas em vigor, na harmonia do sistema, deve fazer-se pela forma seguinte:

- O regime dos artigos 187º a 190º do Código de Processo Penal mantém a sua aplicação relativamente a escutas telefónicas, nomeadamente, quanto à interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas, quando verificados os requisitos previstos no nº 1 do art. 187º e relativamente aos crimes aí previstos.

- O regime de extensão previsto no art. 189º do CPP continua a ter a aplicação prática prevista no art. 18º da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro.

- A obtenção de prova electrónica preservada ou conservada em sistemas informáticos está actualmente submetida ao regime previsto nos artigos 11º a 19º da Lei 109/2009, de 15/09.

Sustentámos em acórdão anterior [4] que estando em causa a obtenção de prova por «localização celular conservada», visando nomeadamente a obtenção dos dados previstos no artigo 4º, n. º1, da Lei 32/2008, de 17/07, o regime aplicável era o previsto na Lei 109/2009 conjugado com a Lei nº 32/2008, sendo aplicável o disposto nos arts. 3º e 9º deste último diploma [5].

O crime em investigação não se enquadro no catálogo dos crimes que admitiriam o acesso aos dados de tráfego preservados.

É certo que o regime legal do acesso, para efeitos de investigação criminal, aos dados digitalizados preservados nas bases de dados das operadoras foi, porventura, mais longe do que o próprio legislador terá querido, inviabilizando ou, pelo menos, dificultando consideravelmente a investigação de crimes cuja gravidade ou dificuldade de prova recomendaria um tratamento diverso. Se é pacífico que o perigo resultante da devassa de dados informaticamente preservados deve exigir cuidada atenção e protecção legal, não poderá ignorar-se que a tendência para a quase total informatização verificada no mundo contemporâneo, seja no tecido empresarial, na administração pública, ou nas próprias associações de finalidade lúdica, veio colocar a coberto de um regime particularmente exigente o acesso a informação relevante para a investigação criminal que, a pretexto da protecção da reserva da vida privada, desacautelou a investigação de um tipo de criminalidade de mediana relevância no panorama geral, mas com grande impacto nos cidadãos por ela afectados; reflexões que não invalidam, no entanto, a conclusão alcançada relativamente à questão de fundo.

A questão suscitada é, no essencial, idêntica à que tratámos no recurso nº 419/19.3JALRA-A.C1 [6], e ainda que repensada a questão à luz da recente declaração de inconstitucionalidade, a que acima nos reportámos, assim como à luz da jurisprudência mais recente desta Relação, não vemos razão para divergir da decisão que tomámos no recurso acima identificado.

Em conclusão, e como resulta de tudo o que se expôs, o despacho recorrido não é passível de censura, havendo que confirmá-lo.

DISPOSITIVO:

Nos termos expostos, acordam nesta secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Sem taxa de justiça, por dela estar isento o M.P.


*

Coimbra, 23 de Novembro de 2022

(texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

Jorge Miranda Jacob (Relator)

(Maria Pilar Oliveira (1ª Adjunta)

(José Eduardo Martins (2º Adjunto)





[1] - Disponível para consulta em www.dgsi.pt/jtrc
[2] - Limitação temporal que não foi observada, o que parece ser frequente. A prestigiada revista “Sciences Humaines” publicou, aliás, no nº 209 – Novembro de 2009, um artigo subordinado ao título “Europe: comment les États contournent les régles”, da autoria de Benoit Richard, em que identifica Portugal como um dos países do grupo negligente no estádio de transposição das directivas comunitárias. O artigo em questão segue de perto o estudo de Emmanuelle Falkner, “Les mondes de conformités”, publicado em “Les Cahiers européens”, Centre d`études européennes, Julho de 2009, nº 2/2009.
[3] - Acórdão nº 268/2022, de 19 de abril de 2022, em que o Tribunal Constitucional decide:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição;
b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.
[4] - Acórdão de 12/02/2020, proferido no recurso nº 419/19.3JALRA-A.C1
[5] - O tema está particularmente desenvolvido no Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 20/01/2015, proc. nº 648/14, .6GCFAR-A.E1, disponível para consulta em www.dgsi.pt/jtre
[6] - Decisão não publicada por o processo a que respeitava se encontrar em segredo de justiça.