CONTRATO DE SEGURO
FURTO DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I – Sem prejuízo de certas limitações nos domínios da oralidade e da imediação, o princípio da livre apreciação da prova é aplicado pela Relação com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância, impondo-se àquele tribunal superior o dever de alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento impuserem decisão diversa, alteração que também poderá operar no quadro previsto no n.º 2 do art. 662.º do CPCivil.
II – Porque o evento “furto de veículo”, enquanto risco coberto por contrato de seguro de danos, se assume como elemento constitutivo do direito de indemnização do autor, sobre este impende o respetivo ónus de prova, nos termos do preceituado no art. 342.º, n.º 1, do CCivil.
III – Ainda assim, não é de exigir ao autor, tomador do seguro, prova concludente no sentido da verificação dos elementos típicos que integram o crime de furto (subtração com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa - v. art. 203.º, n.º 1 do CPenal), bastando para o efeito prova indireta e indiciária (de primeira aparência), que pode passar pela apresentação de denúncia às autoridades policiais, em conjugação com outros elementos de prova coadjuvantes que possam conduzir à formulação de um juízo de verosimilhança relativamente àquela denúncia, não contrariado de forma relevante pelos elementos trazidos à lide pela seguradora.

Texto Integral

PROCESSO N.º 2842/20.1T8STS.P1
[Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Santo Tirso - Juiz 2]

Relator: Fernando Vilares Ferreira
Adjunto: Alberto Taveira
Adjunta: Maria da Luz Seabra

SUMÁRIO:
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ACORDAM os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:

I.
RELATÓRIO
1.
AA intentou a presente ação declarativa de condenação em processo comum contra X... - COMPANHIA DE SEGUROS, S. A., alegando, em síntese:
- Celebrou contrato de seguro com a Ré, no âmbito do qual ficou coberto, para além do mais, o risco de furto de veículo automóvel que identifica, de sua propriedade;
- O dito veículo desapareceu da sua esfera de disponibilidade em fevereiro de 2020, levando-a a denunciar a ocorrência, por furto, à Polícia de Segurança Pública;
- Tendo participado a ocorrência à Ré, esta recusou assumir qualquer dever de indemnização com base no dito contrato.
Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe:
A) a quantia de 11.850,00€ (onze mil oitocentos e cinquenta euros), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros legais a partir da citação, custas e procuradoria; e
B) a quantia de 1.000,00€, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais a partir da citação.
2.
A Ré Ageas Portugal contestou, impugnando a factualidade subjacente ao alegado furto de veículo e correspondentes prejuízos, concluindo no sentido de dever a ação ser julgada improcedente.
3.
Foi prolatado despacho saneador que julgou válida e regular a instância; procedeu-se à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova.
4.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi prolatada sentença, com o seguinte DISPOSITIVO:
“Pelo supra exposto, julga-se a ação totalmente improcedente e, consequentemente, decide-se:
A) Absolver a Ré X... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. do peticionado;
B) Condenar a Autora AA no pagamento das custas processuais.”
5.
Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, versando matéria de facto e de direito, assente nas seguintes CONCLUSÕES:
1.ª – A Recorrente interpõe o presente recurso por não se conformar com a decisão plasmada na douta sentença, na medida em que foi entendimento do Tribunal a quo de que naufragou «a comprovação do propalado furto do veículo, pelo que se postula o decaimento integral da ação».
2.ª – Atendendo aos elementos probatórios carreados para os autos sempre se dirá que os factos 4., 5. e 6. teriam de constar da matéria factual dada como provada.
3.ª – A Recorrente subscreveu, com a Recorrida, enquanto Segurada/Tomadora, um seguro de responsabilidade civil obrigatório aos 05.11.2019 (apólice nº ...), referente a um veículo automóvel Peugeot ... com a matrícula ..-XL-.., automóvel esse que havia adquirido no stand F... nesse mesmo dia.
4.ª – Para pagamento do referido veículo, cujo custo de aquisição foi de € 13.990,00, a Recorrente entregou um veículo automóvel usado no valor € 3.990,00 ao stand, a título de retoma, e os restantes € 10.000,00 ao filho BB, operando assim a compensação entre o crédito que o filho da Recorrente detinha sobre o stand, a propósito de um automóvel que este havia vendido ao stand, e o montante devido pela Recorrente ao stand pela aquisição do automóvel Peugeot.
5.ª – Em momento algum foi efetuado qualquer crédito junto do Banco 1... ou outra entidade bancária com vista ao pagamento do preço do veículo adquirido pela Requerente.
6.ª – Mais tarde, aos 24.01.2020, e a solicitação da Recorrente, o seguro em apreço passou a ter a cobertura de danos próprios, com a inclusão da cobertura furto/roubo.
7.ª – Pelo referido stand foi emitida fatura de compra e venda no valor de € 13.990,00, acompanhada de declaração de que estaria em curso o processo de título de registo de propriedade/licenciamento do aludido veículo automóvel.
8.ª – Certo é que, entre as 17h30 do dia 12 de fevereiro de 2020 e o dia 13 de fevereiro de 2020 o automóvel da Recorrente desapareceu em plena via pública, mais concretamente na Rua ..., Santo Tirso, tendo a Recorrente prontamente procedido à denúncia do seu desaparecimento à Polícia de Segurança Pública de Santo Tirso (NUIPC Nº 76/20.4PASTS), e efetuado a respetiva participação do sucedido junto da Recorrida, a qual declinou, desde logo, o pagamento da respetiva indemnização por furto ou roubo.
9.ª – Acontece que por motivos alheios à Recorrente, à data do desaparecimento do veículo, o mesmo não se encontrava ainda registado a favor da Recorrente, pese embora a Recorrente tenha entregado ao stand todos os documentos necessários para que se procedesse ao respetivo registo.
10.ª – Contudo, tal facto em nada impossibilita que a Recorrente não seja considerada a verdadeira proprietária do automóvel e, consequentemente, que não possa beneficiar da respetiva indemnização pelo desaparecimento do mesmo no âmbito do seguro contratualizado com a Recorrida.
11.ª – Pois que no contrato de compra e venda a transmissão de propriedade é gerada pelo próprio contrato, não dependendo de qualquer ato posterior.
12.ª – O registo de veículos tem apenas efeito declarativo, com finalidade de dar publicidade aos atos, constituindo o registo de propriedade uma mera presunção iuris tantum da respetiva propriedade.
13.ª – Podendo essa presunção ser ilidida quando o adquirente, após a celebração do contrato de compra e venda, passa a assumir um comportamento, relativamente ao veículo que é normal no titular do direito de propriedade.
14.ª – Nos presentes autos, e desde o momento em que adquiriu o automóvel, a Recorrente sempre se comportou como a única e verdadeira proprietária do veículo, desde logo porque era a Recorrente que suportava todos os encargos com este, desde o seguro até ao combustível, e porque, sempre que precisava de se deslocar no dia-a-dia fazia-o utilizando aquele automóvel.
15.ª – Pelo que dúvidas não restam de que a Recorrente adotava todos os comportamentos típicos de um titular do direito de propriedade em relação ao veículo, assim se ilidindo a presunção do registo de propriedade da respetiva propriedade.
16.ª – Acresce que, atento o disposto no art. 1251º do CC, a posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
17.ª – No caso dos presentes autos, e uma vez que a presunção fundada no registo não é anterior à posse do veículo pela Recorrente será de aplicar o art. 1268º CC, nos termos do qual «o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”.
18.ª – Havendo colisão entre a presunção fundada no registo de um direito (art. 7º CRPr) e a presunção decorrente da posse (art.1268º CC) com início à data do registo ou anterior a ele, prevalece esta última.
19.ª – Assim, pese embora o veículo não estivesse à data do seu desaparecimento registado definitivamente a favor da Recorrente, certo é que ela é a única e verdadeira proprietária dele, já que prevalece a presunção da sua posse desde o momento da compra.
20.ª – Por conseguinte, sempre se deverá dar como provado o constante no ponto 4. dos factos não provados da douta sentença, o qual aqui expressamente se impugna.
21.ª – Acresce que o Tribunal a quo entendeu não estar comprovado o furto do veículo em questão, razão pela qual declinou o procedimento integral da ação.
22.ª – Como a prova da verificação do furto de um veículo é normalmente difícil de efetuar por este ocorrer de forma sub-reptícia, impõe-se ao autor não uma prova direta deste, mas sim que, tendo apresentado a respetiva queixa junto das entidades policiais, forneça ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente a essa queixa.
23.ª – Assim que a Recorrente se apercebeu do desaparecimento do veículo procedeu à participação policial do mesmo, tendo igualmente comunicado à Recorrida o sucedido para que se procedesse à ativação do seguro.
24.ª – Para além disto, as declarações de parte prestadas pela Recorrente foram prestadas de uma forma honesta, coerente e crível, já que em momento algum das suas declarações se vislumbram incongruências passíveis de colocar em causa a credibilidade das mesmas ao ponto de não constituírem um indício forte da ocorrência do furto.
25.ª – Pela conjugação do teor das mesmas com a referida prova documental mais não pode do que inferir-se de que a Recorrente foi vítima do furto do seu veículo.
26.ª – Efetuada a prova do furto do veículo, teria a Recorrida de afastar a sua responsabilidade contratualmente assumida, isto é, que pôr em causa a verosimilhança das alegações fáticas da Recorrente fundada naquela prova.
27.ª – Contudo, a prova produzida pela Recorrida não afasta a existência de um furto, já que não põe em causa a ocorrência dos factos relativos à ocorrência do furto nem às circunstâncias de tempo e lugar em que o mesmo ocorreu.
28.ª – Por conseguinte, sempre se deverá dar como provado o constante no ponto 5. dos factos não provados da douta sentença, o qual aqui expressamente se impugna.
29. Nesse sentido, e uma vez provado a ocorrência do furto do automóvel da Recorrente entre as 17h30 do dia 12 de fevereiro de 2020 e o dia 13 de fevereiro de 2020 na Rua ..., Santo Tirso, sempre será de exigir a responsabilidade da Recorrida sobre o sinistro, cabendo-lhe, assim, a obrigação de indemnização da Recorrente no valor de € 11.850,00 (onze mil oitocentos e cinquenta euros), atento o contrato de seguro por ambas celebrado.
30.ª – Em detrimento de um evento súbito e inesperado como o furto ocorrido ao automóvel da Recorrente, esta passou a viver num estado de angústia e ansiedade diários, pois que o furto implicou, e continua a implicar, grandes incómodos e transtornos na sua vida.
31.ª – Vendo-se impossibilitada de viver o quotidiano como fazia até então, já que a ausência de veículo para se deslocar a priva de várias tarefas no seu dia-a-dia.
32.ª – Acresce que, o facto de ainda não ter sido ressarcida pela Recorrida em virtude do sinistro sofrido, o recurso à via judicial para a resolução do litígio e o prolongamento temporal do mesmo, causam na Recorrente um estado de inquietação, aflição e tormento que, mais uma vez se salienta, foram consequência direta do furto ao seu veículo e que a Recorrida sempre negou em assumir a responsabilidade.
33.ª – Por conseguinte, sempre se deverá dar como provado o constante no ponto 6. dos factos não provados da douta sentença, o qual aqui expressamente se impugna e, como efeito, ser a Recorrente compensada pelos danos não patrimoniais sofridos em valor nunca inferior a € 1.000,00 (mil euros).
6.
A Recorrida Ageas Portugal contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
II.
OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil).
Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, o que importa apreciar e decidir é, em primeira linha, se existem razões válidas para modificar a decisão da matéria de facto, e depois, caso opere alteração relevante daquela decisão, se se justifica a alteração da solução jurídica alcançada pela 1.ª instância, assente na obrigação de indemnizar por parte da Ré seguradora.
III.
FUNDAMENTAÇÃO
1.
OS FACTOS
1.1.
Factos julgados provados pela 1.ª instância
1 – Em 05/11/2019, a Autora subscreveu com a Ré um “contrato de seguro de responsabilidade civil” com referência ao veículo automóvel da marca Peugeot, modelo ... com a matrícula ..-XL-.., através da apólice n.º ..., pelo prazo até 13 de fevereiro de 2020, consignando-se como cobertura, designadamente, a de furto ou roubo, com referência ao valor de 11.850,00€ (onze mil oitocentos e cinquenta euros).
2 – Em fevereiro de 2020, a Autora declarou participar à Ré o desaparecimento do predito veículo.
3 – Por missiva datada de 17 de julho de 2020 remetida pela Ré à Autora, aquela consignou “Reportando-nos ao evento em epígrafe e na sequência da participação de furto que nos foi apresentada (…) informamos que declinamos o pagamento de qualquer indemnização.”
1.2.
Factos julgados não provados pela 1.ª instância
4 – Afigura-se registada a aquisição a favor da Autora do veículo automóvel da marca Peugeot, modelo ... com a matrícula ..-XL-...
5 – Entre o dia 12 de fevereiro de 2020, pelas 17h30, e o dia 13 de fevereiro de 2020, o sobredito veículo desapareceu do local em que a Autora o deixara estacionado, sito na Rua ..., em Santo Tirso.
6 – Em consequência do mencionado em 5), a Autora sentiu-se angustiada e com síndrome de ansiedade.
1.3.
Da impugnação da decisão em matéria de facto
1.3.1.
Segundo dispõe o art. 662.º, n.º 1 do CPCivil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
À luz deste preceito, “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”[1].
O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância, nos termos consagrados pelo art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, sem olvidar, porém, os princípios da oralidade e da imediação.
A modificabilidade da decisão de facto é ainda suscetível de operar nas situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 662.º do CPCivil.
1.3.2.
A prova é “a atividade realizada em processo tendente à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos”[2], tendo “por função a demonstração da realidade dos factos” (art. 341.º do CCivil) – a demonstração da correspondência entre o facto alegado e o facto ocorrido.
Sendo desejável, em prol da realização máxima da ideia de justiça, que a verdade processual corresponda à realidade material dos acontecimentos (verdade ontológica), certo e sabido é que nem sempre é possível alcançar semelhante patamar ideal de criação da convicção do juiz no processo de formação do seu juízo probatório.
Daí que a jurisprudência que temos por mais representativa acentue que a “verdade processual, na reconstrução possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica”, não podendo sequer ser distinta ou diversa “da reconstituição possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos e princípios e regras estabelecidos”, os quais são muitas vezes encontrados nas chamadas “regras da experiência”[3].
Movemo-nos no domínio do que a doutrina considera como standard de prova ou critério da suficiência da prova, que se traduz numa regra de decisão indicadora do nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira[4].
Para LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “pese embora a existência de algumas flutuações terminológicas, o standard que opera no processo civil é, assim, o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”. Este standard consubstancia-se em duas regras fundamentais:
(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.
Em primeiro lugar, este critério da probabilidade lógica prevalecente – insiste-se – não se reporta à probabilidade como frequência estatística mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis.
Em segundo lugar, o que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis”[5].
Os meios de prova, enquanto “modos por que se revelam os factos que servem de fonte das relações jurídicas”[6], encontram no Código Civil os seguintes tipos: a confissão (arts. 352.º a 361.º); a prova documental (arts. 362.º a 387.º); a prova pericial (arts. 388.º e 389.º); a prova por inspeção (arts. 390.º e 391.º); e a prova testemunhal (arts. 392.º a 396.º). O art. 466.º do CPCivil acrescenta a “prova por declarações de parte”.
Nos termos do preceituado no art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
O cit. normativo consagra o chamado princípio da livre apreciação da prova, que assume carácter eclético entre o sistema de prova livre e o sistema de prova legal.
Assim, o tribunal aprecia livremente a prova testemunhal (art. 396.º do CCivil e arts. 495.º a 526.º do CPCivil), bem como os depoimentos e declarações de parte (arts. 452.º a 466.º do CPCivi, exceto na parte em que constituam confissão; a prova por inspeção (art. 391.º do CCivil e arts. 490.º a 494.º do C.PCivil); a prova pericial (art. 389.º do CCivil e arts. 467.º a 489.º do CPCivil); e ainda no caso dos arts. 358.º, nºs 3 e 4, 361.º, 366.º, 371.º, n.ºs 1, 2ª parte e 2, e 376.º, n.º 3, todos do CCivil.
Por sua vez, estão subtraídos à livre apreciação os factos cuja prova a lei exija formalidade especial: é o que acontece com documentos ad substantiam ou ad probationem; também a confissão quando feita nos termos do art. 358.º, nºs 1 e 2 do CCivil; e os factos que resultam provados por via da não observância do ónus de impugnação (art. 574.º, n.º 2, do CPCivil).
O sistema de prova legal manifesta-se na prova por confissão, prova documental e prova por presunções legais, podendo distinguir-se entre prova pleníssima, prova plena e prova bastante”[7].
A prova pleníssima não admite contraprova nem prova em contrário. Nesta categoria integram-se as presunções iuris et de iure (art. 350.º, n.º 2, in fine do CCivil).
Por sua vez, a prova plena é aquela que, para impugnação, é necessária prova em contrário (arts. 347.º e 350.º, n.º 2, ambos do CCivil). Assim será com os documentos autênticos que fazem prova plena do conteúdo que nele consta (art. 371.º, n.º 1, do CCivil), sem prejuízo de ser arguida a sua falsidade (art. 372.º, n.º 1, do CCivil), e também com as presunções iuris tantum (art. 350.º, n.º 2, do CCivil).
Por último, a prova bastante satisfaz-se com a mera contraprova para a sua impugnação, ou seja, a colocação do julgador num estado de dúvida quanto à verdade do facto (art. 346.º do CCivil). Assim se distingue prova em contrário de contraprova – aquela, mais do que criar um estado de dúvida, tem de demonstrar a não realidade do facto[8].
1.3.3.
A Apelante pretende que este tribunal reaprecie a decisão em relação aos factos julgados não provados (pontos 4. a 6.), sustentando que os mesmos são antes merecedores de juízo de prova positiva, com base na devida valoração dos meios de prova que indica.
1.3.3.1.
O Tribunal a quo julgou não provado o que se mostra descrito sob o ponto 4): “Afigura-se registada a aquisição a favor da Autora do veículo automóvel da marca Peugeot, modelo ... com a matrícula ..-XL-..”.
Para decidir assim, fez-se constar na sentença recorrida que “a certidão registal atesta que o veículo indicado nos autos não foi registado em nome da Autora”.
O Exmo. Juiz de Direito terá atendido ao documento junto com a contestação sob o n.º 4, que traduz informação emitida pela Conservatória do Registo Predial e Comercial de Vila Nova de Famalicão, em 28.02.2020, pelas 10H33M30S, data e hora em que efetivamente não se encontrava registada a favor da Autora a aquisição do veículo em causa.
Mas olvidou um outro documento importante. Falamos do documento correspondente a “certificado de matrícula”, junto com a petição inicial sob o n.º 1, como meio de prova do alegado no artigo 1.º daquele articulado.
O certificado de matrícula é, como se sabe, o documento que reúne as características identificadoras do veículo, bem como os elementos referentes à sua propriedade, constituindo o documento de identificação de um veículo, para efeitos de circulação.
Do certificado de matrícula junto com a petição inicial, que ostenta como data e hora de emissão 30.09.2020, não impugnado pela Ré, resulta a indicação da Autora AA como titular do direito de propriedade do veículo em causa.
Assim, da análise conjugada dos dois mencionados documentos, uma conclusão muito simples se impõe retirar: a aquisição do direito de propriedade sobre o veículo, em favor da Autora, foi objeto de registo na competente Conservatória após as 10H33M30S do dia 28.02.2020.
Pelo exposto, há que julgar provado o facto em apreço, com a dita clarificação, passando assim a constar do elenco dos factos provados:
- “A aquisição do direito de propriedade a favor da Autora sobre o veículo automóvel da marca Peugeot, modelo ... com a matrícula ..-XL-.., encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel desde data ulterior a 28.02.2020 pelas 10H33M30S”.
1.3.3.2.
Fez-se constar também na decisão recorrida, como não provado, sob o ponto 5): “Entre o dia 12 de fevereiro de 2020, pelas 17h30, e o dia 13 de fevereiro de 2020, o sobredito veículo desapareceu do local em que a Autora o deixara estacionado, sito na Rua ..., em Santo Tirso”.
O Tribunal de que vem o recurso justificou que “ante as declarações manifestamente inconsistentes da Autora AA e das testemunhas BB, CC, DD e EE, nos termos preditos, suscitaram-se dúvidas insanáveis que determinaram a sucumbência desta matéria fática”.
Não podemos de modo algum acolher a valoração feita pela 1.ª instância em torno dos meios de prova produzidos sobre a matéria em apreço.
Escutada integralmente a gravação da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, nenhuma razão válida se nos apresenta para infirmar as declarações prestadas pela Autora, no sentido da ocorrência da factualidade em questão, corroborado pelo depoimento da testemunha BB, filho da Autora, e tendencialmente pelo depoimento da testemunha CC.
Nas declarações que prestou, a Autora deixou esclarecidas as circunstâncias em que utilizava o veículo desde o momento em que o adquiriu, por compra, ao “stand F...”, assim como as circunstâncias de tempo e lugar em que o deixou estacionado na altura do “desaparecimento”, pormenorizando que por volta das 22H00 do dia 12 de fevereiro o veículo ainda se encontrava estacionado no lugar onde, por volta das 17H00 desse mesmo dia, o deixara estacionado, em conformidade com o avistamento que fez a partir da janela de sua casa.
Um certo nervosismo patenteado pela declarante não é bastante, a nosso ver, para descredibilizar o relatado pela Autora, de resto não contrariado minimamente pela produção de qualquer outro meio de prova relevante, resultando antes apoiado pelo depoimento da testemunha BB, filho da Autora, que demonstrou ter acompanhado de perto toda a situação, desde a compra do veículo (cujos contornos deixou bem esclarecidos) até ao seu desaparecimento, assim como pelo depoimento da testemunha CC, empregada de balcão em estabelecimento próximo da residência da Autora, na parte em que demonstrou relacionar-se socialmente com a Autora, dando conta de que conhecia desde há algum tempo o veículo em questão como sendo utilizado pela Autora, e que numa manhã de fevereiro de 2020, a Autora se lhe dirigiu, questionando se tinha visto o seu carro ser rebocado por alguém desde o lugar que lhe indicou como sendo o do respetivo estacionamento, e que quando nessa manhã entrou ao trabalho, por volta das 7H00, o veículo não se encontrava no lugar apontado pela Autora. Tais depoimentos testemunhais, não obstante a mencionada relação de parentesco, mostram-se prestados em termos que não nos merecem reparo quanto à credibilidade.
De assinalar é também a circunstância de a Autora, no dia 13 de fevereiro de 2020, pelas 12h53, se ter apresentado na Esquadra da PSP de Santo Tirso a comunicar o desaparecimento do veículo, nos termos que constam do documento junto com a petição inicial sob n.º 3, correspondente a “Auto de Denúncia”, comportamento que só reforça o sentido e credibilidade dos demais meios de prova que referimos.
Da leitura que fazemos da motivação da convicção do Tribunal a quo, em conjugação com o que conseguimos extrair da discussão da causa, e em especial em sede de audiência de julgamento, aparentemente o Tribunal a quo ter-se-á deixado enredar numa teia de dúvidas mormente em torno das circunstâncias que envolveram a compra do veículo pela Autora ao stand “F...”.
Não vislumbramos razões para tal.
Com suporte documental nos autos, designadamente declaração de venda com data de 05.11.2019 e fatura-recibo, correspondentes aos documentos nºs 1 e 2 juntos pela Autora com o requerimento de 09.12.2020 (Ref.ª Citius 27571946), fatura aquela identificada no Portal das Finanças (e-fatura) nos termos do documento junto pela Autora com o requerimento de 25.01.2021 (Ref.ª Citius 27970132), ficha de inspeção e relatório de diagnóstico da viatura reportados a 5.11.2019, remetidos aos autos pelo C..., S. A. a solicitação do Tribunal, documentação apresentada por “F..., Lda., no seguimento do determinado pelo Tribunal já no decurso da audiência de julgamento (cfr. despacho exarado na respetiva ata de 24.02.2022), os contornos do negócio resultaram ainda melhor esclarecidos não só pela Autora e seu filho, mas também pelas testemunhas DD, sócia-gerente e sócio, respetivamente, do dito stand, em termos de não nos suscitarem dúvidas razoáveis acerca da realização da compra e venda nos termos alegados pela Autora, e subsequente utilização da viatura pela mesma na convicção de ser proprietária, independentemente das vicissitudes relacionadas com anteriores negócios sobre o mesmo veículo, correspondentes registos na CRA e demora do registo no que respeita à aquisição pela Autora.
Por todo o exposto, justifica-se a modificação da decisão da matéria de facto na parte em apreço, passando a constar também no elenco dos factos provados o seguinte:
- “Entre o dia 12 de fevereiro de 2020, pelas 22h00, e o dia 13 de fevereiro de 2020, pelas 07H00, o sobredito veículo desapareceu do local em que a Autora o deixara estacionado, sito na Rua ..., em Santo Tirso”.
1.3.3.3.
Que a Autora se sentiu pelo menos angustiada com o dito desaparecimento do veículo, para além de se inscrever na normalidade do acontecer em situações semelhantes, constitui expressão do que a Demandante declarou em audiência de julgamento, não posto em causa pela produção de qualquer outro meio de prova.
Quanto ao alegado “síndrome de ansiedade”, por assumir contornos que só a ciência médica é capaz de dilucidar, não nos é possível criar convicção minimamente segura quanto à sua verificação.
Termos em que, nesta parte, julgamos justificar-se também a inclusão no elenco dos factos provados do seguinte:
- “Em consequência do desaparecimento do veículo automóvel, a Autora ficou angustiada”.
1.3.3.4.
Com base na posição assumida pelas partes nos articulados, documentos carreados para os autos e meios de prova pessoal a que já nos referimos, por interessar à decisão das questões de direito controvertidas, justifica-se, sem necessidade de diligências complementares, a ampliação do elenco dos factos provados, de modo a que no mesmo passe também a constar:
- Em 05.11.2019, a Autora declarou comprar e F..., Lda. declarou vender o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo ..., matrícula ..-XL-.., pelo preço global de 13.990,00€.
- A referida vendedora deu quitação do pagamento do preço e entregou o veículo à Autora que passou a utilizá-lo nas suas deslocações quotidianas.
- No âmbito do contrato de seguro celebrado entre a Autora e a Ré, com referência à cobertura de “furto ou roubo”, foi convencionada a franquia de 2% sobre o valor de 11.850,00€ (conforme doc. n.º 2 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido).
- À data de 05.11.2019 a aquisição do direito de propriedade encontrava-se registada na Conservatória do Registo Automóvel a favor de DD, sócia e gerente da referida sociedade F..., Lda.
- No dia 13 de fevereiro de 2020, pelas 12h53, a Autora denunciou o dito desaparecimento do veículo à Polícia de Segurança Pública, Esquadra de Santo Tirso, dando origem ao NUIPC n.º 76/20.4PASTS, conforme “auto de denúncia” correspondente ao documento n.º 3 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido.
1.4.
Factos julgados provados em conformidade com as alterações operadas por via deste recurso
1.4.1 – Em 05.11.2019, a Autora declarou comprar e F..., Lda. declarou vender o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo ..., matrícula ..-XL-.., pelo preço global de 13.990,00€.
1.4.2 – A referida vendedora deu quitação do pagamento do preço e entregou o veículo à Autora que passou desde então a utilizá-lo nas suas deslocações quotidianas.
1.4.3 – Em 05.11.2019, a Autora subscreveu com a Ré um “contrato de seguro de responsabilidade civil” com referência ao dito veículo automóvel, correspondente à apólice n.º ..., que nas datas de 12 e 13 de fevereiro de 2020 se encontrava em vigor, abrangendo designadamente a cobertura de furto ou roubo, com referência ao valor de 11.850,00€ (onze mil oitocentos e cinquenta euros), com franquia de 2% sobre este valor, a suportar pela tomadora do seguro - cf. doc. n.º 2 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido.
1.4.4 – Entre o dia 12 de fevereiro de 2020, pelas 22h00, e o dia 13 de fevereiro de 2020, pelas 07H00, o sobredito veículo desapareceu do local em que a Autora o deixara estacionado, sito na Rua ..., em Santo Tirso.
1.4.5 – No dia 13 de fevereiro de 2020, pelas 12h53, a Autora denunciou o dito desaparecimento do veículo à Polícia de Segurança Pública, Esquadra de Santo Tirso, com a tipificação de crime contra a propriedade, dando origem ao NUIPC n.º 76/20.4PASTS, conforme “auto de denúncia” correspondente ao documento n.º 3 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido.
1.4.6 – Em fevereiro de 2020, a Autora declarou participar à Ré o desaparecimento do predito veículo.
1.4.7 – Por missiva datada de 17 de julho de 2020 remetida pela Ré à Autora, aquela consignou: “Reportando-nos ao evento em epígrafe e na sequência da participação de furto que nos foi apresentada (…) informamos que declinamos o pagamento de qualquer indemnização.”
1.4.8 – Em consequência do desaparecimento do veículo automóvel, a Autora ficou angustiada.
1.4.9 – A aquisição do direito de propriedade a favor da Autora sobre o veículo automóvel da marca Peugeot, modelo ... com a matrícula ..-XL-.., encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel desde data ulterior a 28.02.2020 pelas 10H33M30S”.
1.4.10 – À data de 05.11.2019 a aquisição do direito de propriedade sobre o dito veículo encontrava-se registada na Conservatória do Registo Automóvel a favor de DD, sócia e gerente da referida sociedade F..., Lda.
2.
OS FACTOS E O DIREITO
2.1.
Da relação jurídica estabelecida entre as partes
Os factos provados evidenciam o estabelecimento de uma relação jurídica entre Autora e Ré, assente num acordo subordinado a um conjunto de condições, desde logo nos termos que constam do documento n.º 2 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido, tendo por objeto o veículo automóvel da marca Peugeot, modelo ..., matrícula ..-XL-.., no âmbito do qual a Ré assumiu a cobertura de danos decorrentes de furto/roubo do veículo, enquanto a Autora se obrigou a pagar o prémio correspondente.
O acordo celebrado entre as partes configura um contrato de seguro, por corresponder inequivocamente ao conteúdo típico previsto no art. 1.º do Regime do Contrato de Seguro (RCS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril: “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
Por via do princípio da liberdade contratual (cf. art. 405.º do CCivil), o contrato de seguro rege-se, em primeira linha, pelas estipulações negociais que não sejam proibidas por lei; subsidiariamente pelas disposições do RCS; e, ainda subsidiariamente, pelas disposições da lei comercial e da lei civil (cf. arts. 4.º e 11.º do RCS).
Partindo da classificação dos seguros que os distingue em seguros de danos e seguros de pessoas[9], à luz das condições estabelecidas no contrato em causa, podemos afirmar sem qualquer dificuldade, que na parte em que foi convencionada a cobertura de danos próprios do veículo em caso de furto ou roubo, estamos perante um seguro de danos, previsto em especial pelo legislador no Título III do RCS.
Podendo ter por objeto “coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais” (art. 123.º do RCS), o seguro em causa respeita a uma coisa: veículo automóvel.
2.2.
Da indemnização por perda do veículo decorrente de furto ou roubo
Sem questionar a validade e vigência do contrato de seguro, a Ré recusou indemnizar a Autora por não reconhecer a ocorrência do evento aleatório alegado, traduzido em furto ou roubo do veículo automóvel objeto daquele contrato.
Porque o evento “furto ou roubo do veículo” se assume inquestionavelmente como elemento constitutivo do direito pretendido fazer pela Autora, sobre esta impende o respetivo ónus de prova, nos termos do preceituado no art. 342.º, n.º 1, do CCivil.
Mas, a questão fundamental que se nos coloca passa por saber se os elementos típicos que integram o crim de furto (subtração com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa - v. art. 203.º, n.º 1 do CPenal) devem ser efetiva e inequivocamente demonstrados pelo tomador de seguro para poder exigir da contraparte, a seguradora, a indemnização estipulada no contrato, ou se basta antes uma prova indireta e indiciária (de primeira aparência), que pode passar pela apresentação de denúncia às autoridades policiais, em conjugação com outros elementos de prova coadjuvantes que possam conduzir à formulação de um juízo de verosimilhança relativamente àquela denúncia.
É por demais sabido que o crime de furto de veículo automóvel é praticado, em regra, de forma oculta, para evitar que o seu autor ou autores sejam responsabilizados criminalmente.
Atendendo à dificuldade ou mesmo impossibilidade de o tomador do seguro provar, numa ação cível destinada a obter uma indemnização emergente do contrato de seguro, todos os elementos típicos do crime de furto, o que carece de investigação criminal demorada, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem considerado suficiente, para esse efeito, a prova indireta e indiciária com as características que deixámos apontadas supra, desde que a seguradora não consiga afastar tal prova de primeira aparência[10].
No caso dos autos, da factualidade julgada provada e descrita sob os respetivos pontos 1.4.1), 1.4.2), 1.4.4) e 1.4.5), para além de se retirar a qualidade da Autora como legítima possuidora do veículo em questão nos dias 12 e 13 de fevereiro de 2020, resulta com toda a clarividência o desaparecimento do mesmo veículo nas circunstâncias de tempo e lugar apuradas, ocorrência que a Autora denunciou às autoridades policiais no próprio dia em que tomou dela conhecimento.
Tal factualidade é bastante, na esteira da jurisprudência que deixámos citada e que acolhemos sem reservas, para podermos afirmar a ocorrência do evento infortunístico “furto de veículo automóvel”, para efeitos de cobertura pelo contrato de seguro firmado entre Autora e Ré, tanto mais que esta, não obstante as suspeitas apontadas, não logrou demonstrar o quer que seja com o mínimo de relevância para se poder imputar à Autora qualquer comportamento fraudulento, ou então para afastar a prova de primeira aparência da ocorrência daquele evento.
As vicissitudes em torno do registo de aquisição do direito de propriedade sobre o veículo em causa, desde logo traduzidas nos factos vertidos nos pontos 1.4.9) e 1.4.10), nenhum relevo assumem a ponto de contrariar o juízo probatório que deixámos afirmado supra, apresentando-se antes consentâneas com a prática do comércio jurídico em situações idênticas, suficientemente explicadas e justificadas pelos seus intervenientes, como deixámos vincado em sede de apreciação da impugnação da matéria de facto.
Por todo o exposto, impõe-se-nos que concluamos no sentido de que assiste à Autora o direito a ser indemnizada pela Ré, com base em responsabilidade contratual derivada do contrato de seguro firmado, computando-se o valor indemnizatório pelo furto do veículo em 11.613,00€, levando já em consideração a subtração de 237,00€ ao capital seguro (11.850,00€) título de franquia convencionada.
Para além do dito capital de 11.613,00€, assiste à Autora o direito a receber da Ré juros de mora, no caso contabilizados desde a citação (porque só assim o pediu), até integral pagamento (arts. 804.º, 805.º, n.º 1 e 806.º, n.ºs 1 e 2, todos do CCivil).
A argumentação esgrimida pela Ré sob os arts. 28.º a 31.º em matéria de mora não assume qualquer pertinência no caso dos autos, atendendo desde logo à posição intransigente assumida pela Ré desde sempre no sentido de recusar qualquer responsabilidade indemnizatória (cf. ponto 1.4.7) do elenco dos factos provados).
Com efeito, recusar a prestação de indemnização com fundamento na não ocorrência do sinistro e, em simultâneo, defender a mora da Autora no facultar dos documentos do veículo enquanto elementos necessários para pagamento da indemnização, é algo que se apresenta manifestamente contraditório nos seus próprios termos, sendo certo que a condenação da Ré nesta ação, no pagamento do dito capital à Autora, de nenhum outro pressuposto depende a não ser os que deixámos já afirmados.
2.3.
Da indemnização por danos não patrimoniais
O facto de a Autora ter ficado angustiada em consequência do desaparecimento do veículo automóvel não lhe dá o direito a receber da Ré qualquer montante a título de reparação por danos não patrimoniais, pela simples razão de que semelhantes prejuízos de modo algum se podem considerar compreendidos no complexo obrigacional assumido pela Ré por via do contrato de seguro em causa.
Sendo manifesta a inexistência de fonte legal ou convencional para a obrigação que a Autora imputa à Ré neste domínio, impõe-se a improcedência da pretensão da Autora.
IV.
DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, na parcial procedência do recurso, decidimos:
a) Alterar a decisão da matéria de facto nos termos que deixámos vertidos supra;
b) Revogar a decisão recorrida em matéria de direito;
c) Julgar a ação parcialmente procedente e, consequentemente, condenar a Ré a pagar à Autora o capital de 11.613,00€ (onze mil seiscentos e treze euros), acrescido de juros de mora contados à taxa legal desde a citação até integral pagamento;
d) Absolver a Ré quanto à parte restante do pedido deduzido pela Autora; e
e) Condenar Autora e Ré no pagamento das custas deste recurso e da ação na proporção do respetivo decaimento (arts. 527.º, nºs 1 e 2 do CPCivil, e 1.º do RCProcessuais).

***
Porto, 8 de novembro de 2022
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Vilares Ferreira
Alberto Taveira
Maria da Luz Seabra
__________________
[1] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, Coimbra, 2020, p. 332.
[2] Cf. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, Lex, 1995, p. 195.
[3] Cf. Ac. do STJ de 06.10.2010, relatado por HENRIQUES GASPAR no processo 936/08.JAPRT, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, O Standard de Prova no Processo Civil e no Processo Penal, janeiro de 2017, acessível em http://www.trl.mj.pt/PDF/O%20standard%20de%20prova%202017.pdf.
[5] Ob. cit.
[6] Cf. TOMÉ GOMES, Um olhar sobre a prova em demanda da verdade no Processo Civil, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, n.º 3, 2005, p. 152.
[7] Cf. CASTRO MENDES, Do Conceito de Prova em Processo Civil, Ática, 1961, Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p. 413.
[8] Cf. PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, 12.ª edição, Almedina, 2015, p. 293.
[9] Classificação assumida pelo Regime Jurídico do Contrato de Seguro, cf. PEDRO ROMANO MARTINEZ e outros, Lei do Contrato de Seguro, Anotada, 4.ª Edição, Almedina, 2020, p. 432.
[10] Veja-se, neste sentido, a título de exemplo: Ac. da RP de 10.01.2022, relatado por PEDRO DAMIÃO E CUNHA no processo 6509/18.2T8MTS.P1; Ac. da RG de 16.05.2019, relatado por PAULO REIS no processo 3164/17.0T8VNF.G1; Ac. da RL de 22.11.2018, relatado por PEDRO MARTINS no processo 18262/17.2T8LSB.L1-2; e Ac. da RG de 11.07.2013, relatado por ANA CRISTINA DUARTE no processo 2135/12.8TBBRG.G1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.