RESPONSABILIDADE CIVIL
FACTOS INSTRUMENTAIS
PRESUNÇÕES LEGAIS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Sumário

I - Factos instrumentais são aqueles que se destinam à comprovação ou infirmação de factos essenciais, através de presunções judiciais; isto é, que se destinam à prova, por esse meio, dos factos que constituem a causa de pedir e as exceções.
II - Já os factos que constituem a base de presunções legais não são instrumentais, mas essenciais.
III - O credor do direito indemnizatório previsto no artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil, se quiser prevalecer-se deste regime, tem o ónus de alegar e provar que determinada coisa ou animal, cuja guarda e vigilância incumbia a outrem, lhe causou danos
IV - Já se quiser prevalecer-se do regime geral da responsabilidade civil aquiliana, esse mesmo credor terá de alegar e provar não só esses pressupostos mas também a culpa efetiva do devedor.
V - Em qualquer caso, a alegação de todos esses factos, por parte do autor, deve ser feita, em regra, na petição inicial.
VI - Pretendendo o autor, em sede de recurso, que a matéria de facto seja ampliada no sentido de nela passar a constar que determinadas obras realizadas no prédio onde deflagrou o incêndio que lhe causou danos “não foram objeto de licenciamento prévio nem de vistoria ou certificação posterior por parte de entidade competente” e que numa parte desse mesmo prédio alguns dos réus estavam a utilizá-la para receber hóspedes sem qualquer licenciamento, não pode essa pretensão ser admitida, por não se tratarem de factos instrumentais, nem terem sido alegados na altura própria.

Texto Integral

Processo n.º 1623/20.7T8VFR.P1

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Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I- Relatório
1- AA, intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra BB, CC e DD, com vista a ser ressarcida pelos danos que diz ter sofrido em consequência de um incêndio que destruiu o prédio de que é proprietária (e que identifica), incêndio esse que alega ter deflagrado no imóvel contíguo ao seu, que pertence à 1ª Ré e onde os 2.ºs RR. exploram um estabelecimento de restauração e alojamento, estando, assim, todos estes RR. obrigados ao dever de vigilância sobre tal imóvel.
Termina pedindo que os RR. sejam condenados a pagar-lhe:
a) A quantia de 115.489,06€, correspondente ao custo das obras de reparação do edifício, com juros de mora, à taxa legal, a contar da data da citação;
b) A quantia de 31.200,00€, a título de indemnização pelos danos consequentes da privação da fração “B” até à data da propositura desta ação, com juros de mora a contar da data da citação;
c) A quantia que se vier a liquidar em momento oportuno, a título de indemnização pelos danos consequentes da privação do uso da mesma fração, a partir da data da instauração desta ação.
2- Contestou a 1ª Ré rejeitando este pedido porquanto a posse do imóvel de que é proprietária está a ser exercida pelos co-Réus desde 1989, com exceção de uma sala no primeiro andar de que também tomaram posse em 1998, após transação judicial onde acordaram, ainda, a possibilidade de realização de obras pelos arrendatários nessa sala e a concordância da senhoria com as já realizadas no resto do imóvel.
Daí a responsabilidade pela conservação e vigilância do imóvel onde alegadamente deflagrou o incêndio ser dos seus arrendatários.
3- Estes, por sua vez, defenderam-se invocando a litispendência com um outro processo judicial que identificam e impugnando a pretensão da A. sustentando, em suma, que o incêndio que está em causa nestes autos se iniciou no prédio da daquela, por falta de conservação e uso indevido, e terem levado a cabo todas as obras de conservação e beneficiação do imóvel de que são arrendatários, curando pela sua segurança e cumprindo integralmente o dever de vigilância sobre o mesmo.
4- A A. respondeu, pugnando pela improcedência da exceção de litispendência.
5. Dispensada a audiência prévia e julgada improcedente a indicada exceção de litispendência, foi ainda, para além do mais, afirmada a validade e regularidade da instância e fixado o objeto do litígio.
6- Realizada a audiência final, foi proferida sentença na qual se julgou a presente ação improcedente, por não provada, e se absolveram os RR. do pedido.
Isto porque, em síntese, não foi alegada, nem provada, a culpa efetiva dos RR. na ocorrência do incêndio que causou os danos pelos quais a A. quer ser ressarcida e, por outro lado, porque os RR. produziram prova bastante de que cumpriram o dever de vigilância sobre o prédio onde deflagrou esse incêndio, ilidindo, assim, presunção prevista no artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil.
7- Inconformada com esta sentença, dela recorre a A., terminando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
“1. Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, nos termos do disposto no artigo 52 nº 2 al. a) do C.P.Civil, devem ser considerados pelo julgador na apreciação do aspecto jurídico da causa segundo as soluções plausíveis do direito.
2. Porque resultarem da instrução da causa e assumir particular relevância para a decisão de mérito, ao abrigo do disposto no artigo 5º nº 2 al. a), devem ser levados ao elenco dos factos provados os seguintes factos:
a) As obras mencionadas nos artigos 45, 46, e 49 levadas a cabo pelos Réus na parte de cima do imóvel, não foram objeto de licenciamento prévio nem de vistoria ou certificação posterior por parte de entidade competente;
b) A parte do imóvel onde deflagrou o incêndio foi cedida pela Ré e estava a ser utilizada pelos 2ºs Réus no exercício de uma actividade à revelia de qualquer licença ou licenciamento.
3. A decisão da matéria de facto constante do ponto 44, para além de conclusiva, não tem sustentação nos elementos de prova constantes do processo, devendo por tal ser considerada como não escrita.
4. Nos termos da lei, o facto constante no ponto 50 tem de ser comprovado por licença de utilização passada com base em vistoria feita há menos de 8 anos, e o facto constante do ponto 56 por certificação de entidade competente.
5. Os depoimentos que a douta sentença aponta em sede de motivação da decisão quanto aos pontos 50 e 56, são de pessoas amigas dos 2ºs Réus que, para além de nenhum deles ter conhecido ou verificado a parte de cima do imóvel, não têm qualquer competência técnica ou experiência que lhes permitam atestar a veracidade ou verificação daqueles factos.
6. Deve assim ser retirado do elenco dos factos provados os que constam dos pontos 50 e 56.
II- DA DECISÃO DA MATÉRIA DE DIREITO
7. O dever de vigilância a que se refere o artigo 493º nº 1 do C. Civil não se esgota na mera realização de obras de conservação ou reparação, mas também e sobretudo, na execução das obras em conformidade com as normas legais e regulamentares instituídas, e na utilização prudente do imóvel com observância das disposições legais que condicionam essa utilização.
8. Não cumpre o dever de vigilância imposto pelo artigo 493º nº 1 do C.Civil o proprietário ou detentor do imóvel que nele faz obras em violação de normas legais e regulamentares imperativas destinadas a salvaguardar a segurança de pessoas e bens.
9. Não cumpre também esse dever o proprietário que, em regime de arrendamento, cede o imóvel para nele ser exercida uma actividade comercial, sem que a sua aptidão para esse fim seja atestada por licença de utilização passada mediante vistoria há pelo menos 8 anos.
10. A execução das obras no imóvel e a sua utilização em frontal violação de normas destinadas a proteger interesses alheios, faz presumir (presunção juris tantum) a culpa do proprietário ou detentor.
11. Sendo as normas destinadas a prevenir concreto risco de dano, a sua violação faz presumir o nexo de causalidade.
12. A presunção de culpa estabelecida no artigo 493º nº 1 do C. Civil não pode ser ilidida por via de acções ilícitas que legalmente a presumem.
13. Foi violado o disposto no artigo 5º n 2 al. a) do C.P.Civil e artigo 493º nº 1 do C.Civil”.
Termina pedindo que se conceda provimento ao presente recurso e que se condenem, solidariamente, os RR. no pagamento da indemnização pelos danos por si sofridos.
8- Os RR., CC e DD, responderam pugnando pela inadmissibilidade legal deste recurso, em virtude do mesmo ser extemporâneo, por a A. tem incumprido os ónus que sobre ela impendiam para impugnação da matéria de facto.
Mas, mesmo que assim não se entenda, pedem a improcedência de tal recurso, por não se verificarem as razões esgrimidas pela A. para a modificação da decisão recorrida seja quanto à matéria de facto, seja a de direito.
Também a Ré, BB, respondeu, sustentando igualmente que a sentença recorrida não padece de qualquer erro de julgamento, seja em termos de facto, seja em termos de direito.
9- Recebido o recurso nesta instância e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Questão prévia
Como vimos, os RR., CC e DD, pugnam pela inadmissibilidade do recurso da A., em virtude desta última não ter cumprido os ónus que estavam a seu cargo para a impugnação da matéria de facto e, nessa medida, não poder beneficiar do acréscimo de tempo legalmente previsto para o efeito, o que determina a intempestividade de tal recurso.
Mas, não é assim; ou seja, não ocorre essa intempestividade.
Na verdade, independentemente de se saber se a A. cumpriu, ou não, todos os referidos ónus (o que, no caso, até merece resposta afirmativa), é hoje jurisprudência largamente maioritária que “[a] extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638º, nº 7, do CPC, para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objecto a reapreciação de prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação”[1].
Assim, porque a impugnação da A. foi baseada também nesse tipo de prova (prova presencial gravada), não se acolhe o fundamento esgrimido pelos referidos RR. para a rejeição deste recurso. É o que se decide.
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III- Mérito do recurso
A) Definição do seu objeto
Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso em apreço, delimitado pelas conclusões das alegações da impugnante [artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil (CPC)], cinge-se a saber se:
1) Deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto;
2) Deve considerar-se ilidida a presunção prevista no artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil, neste caso concreto, por realização de obras e exercício de atividade alegadamente não licenciadas, numa parte do prédio onde deflagrou o incêndio e, nesse caso, qual a medida da indemnização a que a A. tem direito.
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B) Fundamentação
a) Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
1. Encontra-se inscrito na matriz predial da União de Freguesias ..., ..., ... e ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... imóvel submetido ao regime de propriedade horizontal, composto por 4 frações autónomas destinadas a comércio ali inscrito a favor da Autora.
2. Encontra-se inscrito na matriz predial sob o artigo ... (antigo ...) da freguesia ... prédio urbano composto por casa de sobrado destinado a habitação e loja destinada a comércio que é parte do prédio descrito na competente conservatória com a descrição em livro nº..., do livro B - ..., a que corresponde a descrição ..., ali inscrito a favor da Ré BB.
3. Em 13.01.1989, o Réu CC arrematou, em hasta pública, o direito ao arrendamento e trespasse do estabelecimento de casa de pasto e seus derivados, que deu origem ao Restaurante ....
4. No dia 01 de Julho de 2018, por volta das 13:15 horas, deflagrou um incêndio no prédio referido em 2 que se propagou depois para o descrito em 1.
5. Pela Polícia de Segurança Pública foi elaborado Auto de Notícia que deu origem ao Processo de Inquérito que correu termos no Departamento de Investigação e Ação Penal – 2ª Secção de Santa Maria da Feira sob o número 1747/18.0JAPRT.
6. No âmbito desse inquérito foi feito um Relatório de Inspeção Judiciária cujo teor é do documento junto a 28-06-2021 e aqui se dá por integralmente reproduzido, resultando das suas conclusões que o incêndio teve o seu início na parte superior do prédio da 1ª Ré, propagando-se para o prédio da Autora e que a sua causa foi de origem elétrica.
7. Por consequência do incêndio toda a cobertura do edifício da Autora ficou destruída.
8. Também o local onde funcionava o estabelecimento comercial denominado ... e respetiva instalação elétrica ficaram danificados tendo o telhado de cobertura naquela parte ficado completamente destruído e o interior da fração a céu aberto.
9. A Autora tinha celebrado com a Companhia de Seguros X..., um contrato de seguro titulado pela apólice nº ... com a cobertura do risco de incêndio com o capital de 150.000,00€.
10. Na sequência da participação do sinistro, os serviços de peritagem da Seguradora fizeram uma vistoria ao prédio, orçando o custo da reparação em 173.333,82€.
11. Sob invocação da regra da proporcionalidade, a Seguradora pagou aos RR a quantia de 72.869,41€.
12. Face ao estado em que ficou o edifício da Autora, a Câmara Municipal tomou posse administrativa do mesmo, até que fossem retirados os escombros e executadas as obras de escoramento das fachadas.
13. Para proteção da via pública a Câmara Municipal colocou uma vedação assente em estrutura metálica.
14. O edifício da Autora é antigo, situando-se no centro histórico da cidade de Santa Maria da Maria.
15. O licenciamento de qualquer obra de reconstrução ou reabilitação no mesmo carece de parecer favorável da DRCN – Direção Regional de Cultura do Norte.
16. Quer a Câmara Municipal quer a DRCN impuseram que na reabilitação, ao nível das fachadas e cobertura, fosse respeitado o existente antes do incêndio. Concretamente era exigido (i) a cobertura do edifício com telha de marselha assente em estrutura de madeira; (ii) a reconstrução das três mansardas (mirantes) que existiam na cobertura, providas de janelas também com telha de marselha assente em estrutura de madeira.
17. Em 18 de Julho de 2019 foi feita a vistoria camarária às obras executadas, tendo as mesmas sido aprovadas.
18. Em 23 de Julho foi elaborado o auto de vistoria que considerou as obras conforme o projeto apresentado, propondo a anulação de todas as medidas de proteção da via pública.
19. Depois da execução dessas obras, a Autora foi interpelada para impulsionar as obras de reabilitação do edifício respeitando as condições impostas pela DRCN e Câmara Municipal quanto à execução das obras de reabilitação na cobertura e fachadas que já tinham sido projetadas e licenciadas no âmbito do processo de obras nº .../URN.
20. Para reabilitação total do edifício é necessária a execução das obras discriminadas no Mapa de Medições e Quantidades de Trabalhos elaborado pelo Arquiteto autor do projeto das obras de reabilitação submetido a aprovação camarária, cujo teor é o do documento 12 junto com a petição inicial e aqui se dá por integralmente reproduzido.
21. O custo total das obras ascende a 93,893,54€ a que acresce o IVA.
22. A fração “B” era objeto de um contrato de arrendamento celebrado com a S..., Unipessoal, Ldª que ali explorava o bar ....
23. No âmbito desse contrato, a Autora recebia a renda mensal de 1.300,00€.
24. A arrendatária deixou de pagar qualquer renda, desde a data do incêndio.
25. Os diversos equipamentos do estabelecimento ficaram completamente destruídos.
26. Enquanto a Autora não aplicou placas de sandwich na estrutura metálica construída para estabilização das fachadas, o interior da fração esteve sujeito às intempéries.
27. Após o incêndio o estabelecimento encerrou a sua atividade.
28. No estado em que se encontra a fração a Autora não pode sequer promover o seu arrendamento ou venda.
29. O Réu CC entrou na posse do arrendado referido em 3 em 11.02.1991, pela sua entrega judicial.
30. Por carta de 25.02.1991, o 2º réu comunicou à senhoria, ora 1ª ré, que se encontrava finalmente na posse do prédio.
31. O prédio encontrava-se sem condições higiénico-sanitárias, nem de segurança, e houve necessidade de fazer obras para aí poder fazer funcionar o estabelecimento comercial.
32. Só em 18.06.1993 transitou em julgado a decisão judicial de entrega do locado.
33. Só após os Réus CC e DD puderam dar início às obras no locado.
34. Por sentença de 20-06-1996, transitada em julgado, cujo teor é o do documento número 4 junto com a contestação e se dá por integralmente reproduzido foi decidido que o locado apenas foi definitivamente entregue aos RR. em 18-6-93, altura em que puderam passar a gozar sem reservas.
35. Ali foi dado por provado que o Réu requereu o licenciamento para obras – em 8-11-1993 e que em 16.03.1994 foi concedida tal licença.
36. Bem como se julgou provado que de imediato o 2º e 3ª ré contrataram a execução das obras com o empreiteiro que se iniciaram cerca de 8 dias depois.
37. Em 16.02.1996 foi emitido alvará de abertura do estabelecimento de restauração.
38. Após, em data não apurada, os Réus CC e DD finalizaram as obras e o restaurante começou a funcionar.
39. A Ré BB propôs nova ação judicial que correu termos sob o número n.º 103/97 no 1º Juízo Cível do Tribunal de Santa Maria da Feira, em que voltou a pedir que fosse decretada a resolução do contrato de arrendamento e o 2º e 3ª ré condenados a despejar o locado.
40. Neste processo, em 06.03.1998, veio a ser feita uma transação, cujo teor é o do documento número 5 junto com a contestação e aqui se dá por integralmente reproduzido.
41. Nessa transação, o contrato de arrendamento manteve-se e passou a fazer parte do mesmo uma sala situada no 1º andar do imóvel e foram os Réus a autorizados a fazer obras nessa sala bem como a senhoria bem como a mesma declarou a sua concordância com as obras antes realizadas pelos réus no arrendado, quer as interiores, quer as exteriores.
42. Ali acordaram ainda as partes que aqui segundo Réu podia afetar esta sala ao exercício do fim contratualmente fixado, bem como sublocá-la para qualquer fim lícito e legal.
43. Após o que os segundos Réus fizeram novas obras no imóvel.
44. Ao longo dos anos foram várias as obras por eles efetuadas no locado a fim de o manter sempre em bom estado de conservação e funcionamento.
45. Para substituição da instalação elétrica antiga, foram colocadas calhas, por fora das paredes em pladur, onde corriam os novos cabos elétricos.
46. As instalações elétricas antigas permaneceram por detrás das novas paredes em pladur, mas desativadas, sem qualquer tipo de corrente.
47. O contador antigo, há anos desativado, permaneceu no local.
48. Os Réus montaram, em data não apurada, um salão para banquetes e festas, no terreno de logradouro a norte.
49. Em data não concretamente apurada não satisfeitos com o estado em que se encontravam as águas furtadas, também aí efetuaram obras consistentes na renovação de todo o espaço, construção de duas casas de banho, substituição de janelas e portas.
50. Desde que foram efetuadas estas obras, as águas furtadas ficaram renovadas e aptas receber hóspedes.
51.Os quartos não dispunham de casa de banho privada, nem de ar condicionado.
52. Durante a Viagem Medieval, dada a localização do prédio eram muito procurados.
53. Em 2017 os Réus CC e DD, efetuaram algumas obras de restauro e conservação nas águas furtadas.
54. Contrataram o Sr. EE, especialista em reparações, para restaurar tudo o que fosse necessário nestes quartos.
55. O mesmo andou a reparar as águas furtadas, durante cerca de um mês, após o seu horário laboral, tendo feito vários concertos e manutenções.
56. As suas instalações elétricas e aparelhagens estavam em bom estado de conservação.
57. A Ré BB nunca verificou o estado de conservação do prédio descrito em 2 ou zelou pela sua manutenção.
58. E nunca foi notificada pelo Réu CC para proceder a quaisquer obras, fossem elas de reparação ou mera conservação.
59. No dia e hora do incêndio, o Restaurante ... levava a cabo a sua atividade servindo refeições.
60. Não falhou o fornecimento de luz ao estabelecimento ....
61. A dada altura, alguém que estava na feira do velho veio avisar que saía fumo do telhado dos prédios.
62. O Réu CC dirigiu-se às suas águas furtadas,
63. No cimo das escadas, olhou pela claraboia, e daí viu muito fumo e labaredas.
64. Após o incêndio, era possível ver as dezenas de fios espalhados pelo bar Escadas
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b) Na mesma sentença não se julgou provado que:
a) Apenas na montagem da cozinha, pela empresa A..., Lda., o 2º e 3ª Ré gastaram cerca de 100.000,00€ (cem mil euros).
b) A dada altura, colocaram ares condicionados em todo o restaurante e no salão para banquetes, o que provocou mais um melhoramento no locado.
c) Para reforçar a instalação elétrica os Réus colocaram cabos elétricos tipo 2,5 para as caixas e para as tomadas colocaram cabos elétricos tipo 1,5.
d) O incêndio que a 1 de Julho de 2018 destruiu o prédio da aqui Ré, deflagrou no prédio da Autora.
e) O incêndio deflagrou de uma ponta de cigarro que alguém deixou a arder nas águas furtadas sobre o estabelecimento ....
f) Essas águas furtadas eram antigas, com partes no interior em madeira tendo ocorrido um curto-circuito decorrente do mau estado de conservação da instalação elétrica por falta de cuidados na sua manutenção.
g) Ao fim de semana o bar ... trabalhava até às 04:00-05:00
h) No momento referido em 62, o Réu CC percorreu todas as divisões, mas não viu qualquer fogo ou sinal de fumo nas mesmas.
i) Quando se preparava para regressar e descer as escadas, olhou para o topo da parede meeira com o edifício contíguo, onde existia uma claraboia, e deu conta que do outro lado, estavam a lavrar enormes labaredas, que consumiam as águas furtadas do bar ....
j) Durante os grandes eventos realizados na cidade, como por exemplo a Viagem Medieval, que levavam à capacidade máxima de utilização do locado o restaurante e os quartos de hospedagem ficavam lotados nunca houve, em nenhum ano, qualquer problema relacionado com as instalações elétricas e aparelhagens
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3- Análise dos fundamentos do recurso
Como vimos, a presente ação foi julgada improcedente porque na sentença recorrida se considerou, por um lado, que a A. não alegou nem provou a culpa efetiva dos RR. na ocorrência do incêndio que causou os danos pelos quais a mesma quer ser ressarcida e, por outro lado, porque os RR. produziram prova bastante de que cumpriram o dever de vigilância sobre o prédio onde deflagrou esse incêndio, ilidindo, assim, a presunção prevista no artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil.
A A., neste recurso, não contesta o primeiro fundamento. Aliás, expressamente reconhece a referida falta de alegação que, segundo diz, se ficou a dever ao desconhecimento, pela sua parte, de que “as obras no imóvel, designadamente, a instalação eléctrica, foram executadas à revelia de qualquer licenciamento prévio e vistoria posterior, e a sua utilização no exercício de uma actividade sem licença de utilização que atestasse a aptidão do imóvel para aquele fim”.
O que contesta, diversamente, é o critério usado na referida sentença para considerar ilidida a dita presunção. Admite como certo que não deva “exigir-se ao proprietário ou detentor, vinculados ao dever de vigilância, uma prova cabal de todo o estado do imóvel à data do incêndio que excluísse completamente a possibilidade de se considerar que o incêndio teve origem em qualquer defeito”, o que se traduziria, na prática, na objetivação da responsabilidade prevista no artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil, mas, como alega, “o aligeiramento da exigência probatória, quer quanto ao objeto da prova e quer quanto aos meios da sua produção, não pode ser levado ao ponto de, na prática, determinar a perda de normatividade do artigo 493º nº 1 do C. Civil”.
E, por isso mesmo, coloca as seguintes questões que diz querer ver respondidas por este Tribunal:
“1. Cumpre o dever de vigilância o proprietário ou detentor que faz no imóvel obras em frontal violação de normas legais e regulamentares instituídas no propósito da salvaguarda da segurança de pessoas e bens?
2. Age com diligência no cumprimento do dever de vigilância o proprietário que faz ou consente na realização de obras clandestinas no imóvel e cede a sua em regime de arrendamento para o exercício de uma actividade comercial sem que a aptidão do imóvel para tal fim esteja atestada pela licença de utilização legalmente exigível?”
Não cumpre. É a resposta que claramente defende[2].
Para obter essa resposta, no entanto, com referência a este caso concreto, a A. começa por pedir a ampliação da matéria de facto provada.
Assim, pede que se aditem a essa matéria estas afirmações:
“- As obras mencionadas nos artigos 45, 46, e 49 levadas a cabo pelos Réus na parte de cima do imóvel, não foram objeto de licenciamento prévio nem de vistoria ou certificação posterior por parte de entidade competente;
- A parte do imóvel onde deflagrou o incêndio foi cedida pela Ré e estava a ser utilizada pelos 2ºs Réus no exercício de uma actividade à revelia de qualquer licença ou licenciamento”.
Estes são factos que, no entender da A., são instrumentais e resultaram da discussão da causa, pelo que, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, al. a), do CPC, são passíveis de ser levados oficiosamente em consideração pelo tribunal.
O que interessa saber, assim, antes de mais, é se, efetivamente, aqueles são factos instrumentais.
Vejamos.
Factos instrumentais são aqueles que se destinam à comprovação ou infirmação de factos essenciais, através de presunções judiciais- artigos 349.º e 351.º, do Código Civil; isto é, que se destinam à prova, por esse meio, dos factos que constituem a causa de pedir e as exceções (artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPC). Ou, dito por outras palavras, que “servem para a prova indiciária dos factos essenciais, porquanto através deles se poderá chegar, por via de presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes”[3]. No entanto, como alertam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[4], esta característica de instrumentalidade abarca apenas os factos que possam servir para a formação da convicção sobre os demais factos (designadamente por via do uso de presunções judiciais), devendo distinguir-se dos que sirvam para integrar presunções legais (v.g. em matéria de responsabilidade civil extracontratual, da posse ou do regime da filiação). Neste quadro, tais factos são “essenciais, devendo ser alegados em conformidade (artº 5º, nº 1) e ser objeto de pronúncia positiva ou negativa na sentença”.
Ou seja, nos casos em que há presunções legais, os pressupostos de facto em que as mesmas assentam são essenciais, “impondo-se que sejam objeto de um juízo probatório específico, valendo então como factos essenciais e não apenas como instrumentais. Por exemplo, a propósito dos danos causados por edifício que ruir, por vício de construção ou defeito de conservação, o art. 491º 1 do CC presume a culpa do proprietário ou do possuidor. Este é um caso em que a ilação firmada depende de um juízo probatório específico acerca da posse ou da propriedade, condição necessária para ser acionada a presunção legal”[5]. E o mesmo se diga da situação contemplada no artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil, em que a lei presume a culpa do obrigado ao dever de vigilância de coisas ou animais causadores de danos, se verificados os pressupostos de facto aí previstos; ou seja, a posse ou detenção dessas coisas ou animais causadores de danos, por parte de outrem, que tinha o dever de guarda ou de vigilância sobre os mesmos. Como aí se prescreve, “[q]uem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”. É necessária, assim, por parte de quem pretenda prevalecer-se do direito indemnizatório previsto neste preceito, a prova dos pressupostos de facto já indicados. Só depois, perante eles e tendo em conta o disposto nos artigos 349.º e 350.º, do Código Civil, se pode retirar a ilação prevista na lei. A menos que, como esta prescreve (artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil), o obrigado ao dever de vigilância prove “que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”. Mas, o que interessa, por agora, acentuar é que os referidos pressupostos são integrados por factos essenciais.
Já se o credor desse direito indemnizatório pretender prevalecer-se do regime geral da responsabilidade civil aquiliana, previsto no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, terá de provar não só aqueles pressupostos mas também a culpa efetiva do devedor. É o que resulta do disposto no artigo 487.º, n.º1, do Código Civil.
Ora, tendo presente este enquadramento, o que verificamos, no caso em apreço, é que a A., quando instaurou esta ação, não se socorreu deste último regime. Alegou, na petição inicial, a ocorrência do incêndio que atingiu o seu prédio (artigos 7.º a 11.º), os danos que o mesmo lhe provocou (artigos 12.º a 60.º), mas conclui apenas que os RR. devem ser responsabilizados pela reparação de tais danos porque, sendo a 1ª Ré proprietária e o 2.º R. arrendatário do prédio onde esse fogo deflagrou, tinham o dever de o vigiar e manter bem conservado. Como tal, depois de transcrever o disposto no artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil e dois arestos jurisprudenciais (artigos 61.º a 65.º), conclui que os RR. devem ser condenados no pedido. Isto é, conclui nesses termos porque considera que, procedendo deste modo, cumpre todos os ónus de alegação que a lei lhe impõe, competindo aos RR., nos termos do artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil, a prova de que agiram sem culpa. Não faz qualquer alusão, portanto, à culpa efetiva dos RR.
Ora, o que a A. pretende com o aditamento dos apontados factos é a demonstração dessa culpa; ou, pelo menos, como agora alega, demonstrar que os RR. não agiram diligentemente, uma vez que as obras que levaram a cabo na parte de cima do locado, “não foram objeto de licenciamento prévio nem de vistoria ou certificação posterior por parte de entidade competente”; “sendo que a parte do imóvel onde deflagrou o incêndio foi cedida pela Ré e estava a ser utilizada pelos 2ºs Réus no exercício de uma actividade à revelia de qualquer licença ou licenciamento”.
Estamos, portanto, perante factos novos. E, ao contrário do que a A. agora pretende fazer crer, não são factos instrumentais, tendentes à demonstração dos factos principais por si inicialmente alegados, mas outros factos; seja, repetimos, no sentido de comprovar a culpa efetiva dos RR.; seja com o objetivo de contrariar a versão destes de que agiram diligentemente no exercício do seu dever de guarda e vigilância sobre o prédio onde deflagrou o incêndio.
E, como factos novos que são, com estas características, não podem ser admitidos.
A lei é bem clara a este propósito. Compete ao autor, na petição inicial, alegar “os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões que servem de fundamento à ação” – artigo 552.º, n.º 1, al. d), do CPC. Se o não proceder desse modo e ressalvadas os factos supervenientes (artigo 588.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), já não o pode fazer depois (principio da preclusão). A menos que se trate de contra-exceções cuja alegação é admissível em sede de resposta à contestação (artigo 3.º, n.º 4, do CPC). Mas, fora dessas hipóteses, todos os factos principais devem ser alegados na petição inicial[6].
Consequentemente, porque os referidos factos não são instrumentais, nem foram oportunamente alegados pela A. (inclusive, se fosse caso disso, por via de articulado superveniente, se, como diz, os desconhecia anteriormente), não podem os mesmos, nesta fase, ser admitidos.
Prosseguindo na nossa análise, verificamos que a A. também pretende que seja dada como não escrita a afirmação contida no ponto 44, dos Factos Provados. Isto é, que ao longo dos anos foram várias as obras efetuadas pelos RR. no locado, a fim de o manterem sempre em bom estado de conservação e funcionamento. O que a A. tem por vago e conclusivo.
Ora, sem prejuízo de se reconhecer que esta afirmação se pode reputar de genérica, por não discriminar as concretas as obras a que se reporta, esse não é motivo para determinar a sua exclusão dos factos provados, visto que a lei não o prevê, nem consente.
De resto, nem sequer o prevê para as afirmações conclusivas[7]. Mas, em relação a estas, posto que não sejam de cariz jurídico e encerrem em si mesmas a solução para o litígio, o que importa averiguar é se têm algum substrato relevante para o acervo dos factos com interesse para a correta decisão da causa, ou não[8].
Ora, no caso em apreço, é manifesto que a afirmação indicada tem esse interesse. Ou seja, tem interesse para aquilatar se efetivamente os RR. diligenciaram pela boa conservação do locado. E, nessa medida, deve ser mantida no elenco dos factos provados.
E, a tal não obsta a circunstância de, como refere a A., a motivação de facto da sentença recorrida ser “omissa quanto à explicitação das partes dos depoimentos em que se sustentou para concluir o que consta do ponto 44 do elenco dos factos provados”.
Na verdade, nem nada na lei exige essa explicitação (cfr. artigo 607.º, n.º 4, do CPC), nem a sentença recorrida deixou de enunciar os motivos para julgar provada esta e as outras asserções que se reportam às obras levadas a cabo no arrendado (mencionadas nos pontos 38 e 43 a 56). Pelo contrário, enunciou-os em termos que julgamos legalmente satisfatórios[9].
Daí que a referida afirmação se deva manter inalterada no capítulo onde se encontra.
Seguidamente, coloca a A. em causa os factos enunciados nos pontos 50 e 56, do capítulo dos Factos Provados.
Refere-se no primeiro destes pontos (ponto 50), o seguinte: “Desde que foram efetuadas estas obras, as águas furtadas ficaram renovadas e aptas receber hóspedes”.
E, acrescenta o ponto 56, que “[a]s suas instalações elétricas e aparelhagens estavam em bom estado de conservação”.
Entende a A. que estes factos devem ser julgados não provados. Isto porque, em síntese, nem se encontra junto aos autos “o projecto ou termo de responsabilidade e/ou certificação da entidade competente, e a licença de utilização a atestar a aptidão daquela parte do imóvel para a actividade comercial que nela estava a ser exercida”, como exige a lei, nem dos depoimentos presenciais por si indicados resulta a prova daqueles factos. Além disso, “relativamente às aparelhagens eléctricas na parte dos quartos, para além de não ter sido feita qualquer prova quanto ao seu estado de conservação, tal como consta do Relatório da Polícia Judiciária junto na lª sessão da audiência de julgamento, pouco tempo antes de ocorrer o incêndio, o Réu marido foi chamado pelo hóspede de um dos quartos para lhe dar conta de que um aparelho de TV não funcionava”. Daí que pugne pela não prova daqueles factos.
Sobre esta pretensão é importante começar por ter presente que a aptidão e bom estado de conservação que aqui estão em causa não são conceitos cujo preenchimento esteja necessariamente dependente da atividade administrativa. Pode um imóvel encontrar-se em bom estado e, ainda assim, pelos mais variados motivos, não estar certificada oficialmente a sua aptidão para o fim a que se destina. O que importa, portanto, mais do que a aptidão e boa conservação administrativamente reconhecidas, é a correspondência desses atributos à realidade.
O que, no caso em apreço e em relação às águas furtadas, se deve ter por comprovado, uma vez que, estando já demonstrado que aí foram realizadas obras que passaram pela renovação de todo o espaço, pela construção de duas casas de banho, pela substituição de portas e janelas (ponto 49), por vários concertos e manutenções (ponto 55), e tendo sido afiançado, por exemplo, pela testemunha, FF, que o R., CC, era muito cuidadoso na conservação deste espaço e que lá hospedava pessoas (o que este R. também acabou por reconhecer), nunca tendo havido qualquer queixa, como se deduz do depoimento da testemunha, GG, e, pelo contrário, toda a gente dizia que estava tudo muito bem, ou, no dizer da testemunha, HH (filho do Sr. EE, que realizou as obras no ano de 2017 e que viu os espaços antes e depois delas), “impecável”, se pode concluir, em articulação com as apreciações feitas pelas demais testemunhas indicadas na sentença recorrida (II, JJ, KK, LL), ainda que não só sobre este espaço, que as ditas águas furtadas estavam aptas para receber hóspedes. Aptas, obviamente, dentro de um contexto sem grandes exigências de qualidade e conforto, como ficámos convencidos. Mas, ainda assim, aptas para assegurar a satisfação das necessidades básicas da hospedaria.
Por conseguinte, o referido ponto 50, será mantido, com a sua atual redação, no capítulo dos Factos Provados.
Já em relação à afirmação constante do ponto 56, entendemos que a sua redação deve ser parcialmente modificada. Isto porque a prova produzida a propósito das aparelhagens elétricas foi nula ou incipiente, desconhecendo-se, em rigor, quais sejam aquelas que, à data, estavam nas águas furtadas. De modo que essa é uma referência que deve ser retirada daquele ponto. Já quanto ao mais, ou seja, quanto ao bom estado de conservação das instalações elétricas, o mesmo deve ser mantido inalterado, uma vez que não estando em causa o bom funcionamento, mas, antes, o bom estado de conservação das ditas instalações e estando, por outro lado, já demonstrado que foram feitas diversas intervenções a esse nível (pontos 44 a 47), é possível concluir, em articulação com os demais depoimentos presenciais já referidos, mas designadamente e sobretudo, com o da testemunha, FF (que tem formação em eletricidade e esteve coletado pelo exercício dessa atividade), que não está comprovado qualquer erro grosseiro de julgamento, a esse nível. Ou seja, deve manter-se no capítulo dos factos provados a afirmação constante do ponto 56, no sentido de que “[a]s suas instalações elétricas estavam em bom estado de conservação”.
Concluída que está, assim, a reapreciação da matéria de facto, é altura de nos debruçarmos sobre a questão de saber se, ao contrário do que se decidiu na sentença recorrida, não se deve considerar ilidida a presunção prevista no artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil, e, consequentemente, devem os RR. ser responsabilizados pela reparação dos danos que a A. teve com este incêndio.
Pois bem, o único argumento que a A. apresenta neste recurso para obter esse resultado, é, como decorre das perguntas que inicialmente nele formulou e das conclusões acima transcritas (cls. 7ª a 12ª), que foram realizadas obras ilegais no locado (por falta de licenciamento prévio e de posterior vistoria e aprovação administrativa) e que o mesmo foi destinado, numa das suas partes, a uma atividade para a qual não estava licenciado, não podendo, portanto, considerar-se demonstrado o cumprimento do dever de vigilância que sobre os RR. impendia, nem ilidida a dita presunção.
Acontece que, como resulta do já exposto, as referidas faltas de licenciamento administrativo não lograram ficar provadas; desde logo, porque não foram oportunamente alegadas.
Nessa medida, não pode essa razão servir de base quer ao alegado incumprimento obrigacional imputado aos RR., quer à consequente manutenção da referenciada presunção.
De resto, mesmo que assim não fosse, sempre se poderia questionar, como já adiantámos, se essas alegadas faltas de licenciamento significam, sempre e necessariamente, a falta de aptidão e conservação do prédio onde deflagrou o incêndio para as atividades nele desenvolvidas. Pode um imóvel, na verdade, encontrar-se em bom estado de conservação e ser substantivamente idóneo para o fim a que se destina e, ainda assim, pelas mais variadas razões, essas qualidades não estarem administrativamente reconhecidas.
Seja como for, no entanto, certo é que não foram oportunamente alegadas, nem consequentemente provadas, as faltas de licenciamento já referidas. Como tal, mantem-se perfeitamente válida a conclusão que já extraímos, no sentido da inviabilidade da argumentação da A., no sentido de lhes associar o incumprimento do dever de vigilância dos RR. e a inerente ilisão da presunção de culpa estabelecida por lei.
Daí que, porque outros argumentos não foram adiantados para questionar o mérito da sentença recorrida, o que nela foi decidido só possa mantido, improcedendo, assim, o presente recurso.
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IV- Dispositivo
Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
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- Em função deste resultado, as custas deste recurso serão pagas pela A. – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Porto, 8.11.2022
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda
Lina Baptista
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[1] Ponto 3 do sumário do Ac. STJ de 28/04/2016, processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[2] Cfr. cls. 8ª e 9ª, por exemplo.
[3] Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 3ª edição, Almedina, pág.372.
No mesmo sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 4ª edição, Almedina, pág. 37.
[4] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 30.
[5] Paulo Pimenta, ob. cit. págs. 375 e 376.
[6] Como se refere no Ac. do STJ de 15/09/2022 (Processo n.º 188/20.4T8ADV.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt), “[a]o propor uma ação, o demandante formula uma pretensão fundada, por imposição de uma substanciação, numa causa de pedir que exerce a função individualizadora do pedido formulado, assim conformando o objeto do processo (artigo 552.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil). Essa causa de pedir é constituída pelos factos principais constitutivos da situação jurídica que o demandante pretende fazer valer como justificativa da pretensão deduzida, sendo a qualificação jurídica desses factos periférica à causa de pedir.
Este objeto inicial do processo, definido pelo pedido e respetiva causa de pedir, só pode vir a ser modificado, ampliado ou reduzido por iniciativa das partes ou do tribunal, nos termos e modos previstos e definidos na lei processual. Não o tendo sido e não se encontrando o tribunal perante situações que permitem o conhecimento oficioso de determinadas questões, o tribunal só pode ocupar-se das questões suscitadas pelas partes (artigo 608.º e 615.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil), ou seja só pode decidir sobre o mérito do pedido formulado, julgando a causa de pedir que o individualiza, estando-lhe vedada a apreciação de qualquer outra causa de pedir que não tenha resultado das regras que permitem a modificação ou ampliação da causa de pedir original”.
Evidentemente que esta proibição não se estende à qualificação jurídica dos factos provados, na qual o tribunal é soberano (artigo 5.º, n.º 3, do CPC). Mas, não é disso que se trata, na situação presente.
[7] Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, em Anotação ao Ac. STJ de 28/09/2017, Blog do IPPC (Jurisprudência (784) – 05/02/2018 -, consultável em https://blogippc.blogspot.com/
[8] Neste sentido, Ac. STJ de 14/07/2021, Processo n.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt
[9] Afirmando que “a prova das que foram ali descritas decorreu dos depoimentos conjugados do Réu CC que as descreveu de forma coerente e segura e consentânea quer com os factos dados por provados no processo referido em 34, no que tange às obras mais antigas, quer com os depoimentos de II, JJ, KK, LL, MM, GG, FF clientes ou funcionários do Restaurante ... que descreveram que estava em bom estado de conservação e confirmaram as obras que os segundos Réus ali faziam amiúde, para reparação e manutenção do edifício”. E que “HH também ele cliente e filho de EE, confirmou que o seu falecido pai ali levou a cabo obras de reparação e manutenção na zona das águas furtadas em 2017, durante cerca de um mês em horário pós-laboral”.