INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Sumário

I - A situação de insolvência implica uma gestão criteriosa e rigorosa do (novo) rendimento resultante da obrigatoriedade de cessão da quantia pecuniária, fixada pelo tribunal, aos credores, durante o período legal.
II - Considerando os princípios de adequação, de proporcionalidade e de equilíbrio entre os interesses contrapostos dos credores e dos insolventes, norteados pela imperiosa exigência de se assegurar uma existência condigna ao insolvente, afigura-se adequada a fixação do valor correspondente a um salário mínimo nacional acrescido de metade deste valor a uma insolvente, solteira, com um filho menor.
III - Os subsídios de férias e de natal não estão excluídos da cessão ao fiduciário na medida em que ultrapassem o montante retributivo mensal considerado minimamente digno para a subsistência do devedor.

Texto Integral

Processo n.º 2370/22.0T8VNG.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda
Adjunta: Lina Castro Baptista
Adjunto: Pedro Damião e Cunha

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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO
AA requereu a declaração de insolvência e a exoneração do restante passivo, tendo sido proferida sentença, em 31/03/2022, que a declarou em estado de insolvência.
Notificados os credores da insolvente, o MºPº e o/a administrador/a da insolvência para se pronunciarem sobre tal pedido (artigo 236º n.º 4, do CIRE) não foi deduzida oposição.
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Foi fixado à insolvente como rendimento disponível, todo aquele que exceder o valor de 1SMN+1/4 desse valor, multiplicado por 12 meses, a iniciar-se com o trânsito em julgado deste despacho, por já ter sido proferido despacho de encerramento do processo.
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Inconformada com a decisão, a Insolvente interpôs recurso finalizando com as seguintes
Conclusões
1ªO tribunal recorrido fixou à insolvente, como rendimento disponível, todo aquele que exceder o valor de 1SMN+1/4 desse valor, multiplicado por 12 meses, a iniciar-se com o trânsito em julgado deste despacho, uma vez que já foi proferido despacho de encerramento do processo.
2ªRecorre-se por se considerar que o rendimento de que a recorrente irá somente dispor, ou seja, € 881,25 (1SMN+1/4 desse valor) é manifestamente insuficiente para a satisfação das mais elementares necessidades básicas de vida da própria e do seu agregado familiar, também composto por um filho menor.
3ªSempre ressalvado o devido respeito, o supra exposto entendimento nesta matéria do tribunal recorrido é simplista e redutor, atento o real modo de vida modesto que a recorrente já levava, ainda antes da sua apresentação à insolvência, como previamente relatado na p.i. e agora reproduzido no Relatório de Insolvência, quer a nível de gastos mensais correntes e imprescindíveis, quer a nível de perspetivas futuras da insolvente.
4ªNo que concerne aos gastos mensais da recorrente, melhor discriminados no Mapa Administrativos de Gastos – cfr. pág. 5 do Relatório 155º CIRE, cerca de € 990.00 estão estes longe de se revelarem excessivos ou pródigos.
5ªSendo que parte substancial destes gastos não se resumem ao sustento apenas da Insolvente, mas também e fundamentalmente, ao sustento do seu filho menor, que integra o seu agregado familiar; portanto insuscetíveis de acrescida redução, como agora pretende o tribunal recorrido.
6ªOu seja, determinou que o rendimento da recorrente seria de um salário mínimo nacional mais um quarto desse valor, ou seja (€ 705,00 + € 176,25 = 881,25) montante este que como se vislumbra, é insuscetível de cobrir os gastos mensais e correntes, no mínimo de € 990,00 da recorrida e do seu agregado familiar, uma vez que retira cerca de € 100,00.
7ªSob pena, de, inelutavelmente, ficar definitivamente comprometido, seja o “padrão de vida familiar”, seja o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, como legalmente previsto.
8ªRecaem sobre o insolvente obrigações especiais de alimentos – art. 2015º do CC e, enquanto titular do poder paternal, recai sobre o devedor o dever de sustento – arts. 1878º e 1879º e a obrigação de contribuir para os encargos familiares – arts. nºs 1675º, nº 1, 1676º, e 1874º nº 2 do CC.
9ªNem os credores destes créditos devem ser equiparados aos demais credores da insolvência ou eventualmente ser considerados subordinados a estes últimos, sob pena de grande injustiça e desproteção jurídica.
10ªUrge concluir, como refere a doutrina e jurisprudência, que “neste âmbito, importa atender que, os fundamentos do dever de sustento (cujo objetivo é o sustento do filho menor) e contribuição para os encargos familiares, assumem como referência o “padrão de vida familiar” e não o sustento minimamente digno do devedor vertido na sub alínea i), da alínea b), do nº 3 do artigo 239º do CIRE. Não se concebendo assim, que estes valores e interesses sejam preteridos em prevalência da satisfação dos direitos dos credores da insolvência, carecendo sempre segundo a jurisprudência, de um juízo e ponderação casuística do Juiz relativamente ao montante a fixar.
11ªResulta notório, in casu, que o rendimento fixado pelo tribunal recorrido como disponível à recorrente, é manifestamente insuficiente para prover às mais elementares necessidades básicas e do seu agregado familiar, que abrange um filho menor.
12ªO tribunal recorrido deveria ter determinado à aqui recorrente um rendimento aproximado ao que efetivamente despende nos seus gastos mensais, ou seja, nunca inferior a 1SMN+1/2 (um ordenado mínimo e meio) portanto num montante de € 1.057,50, sendo o demais disponível, entregue ao fiduciário.
13ªMais devendo ser excluídos da cessão os subsídios de férias de natal.
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O Ministério Público respondeu concluindo da seguinte forma:
1. Não merece o douto despacho recorrido qualquer censura, por ter procedido a uma aplicação adequada da lei, enformada pelos critérios definidores da unidade do sistema jurídico e da coerência própria das normas relativas à insolvência e, mais concretamente, à exoneração do passivo restante.
2. Como contraponto do efeito positivo para o recorrente da extinção – por fonte legal e não pelo cumprimento, como é a norma do direito obrigacional – dos créditos que subsistam para lá do prazo legal de cinco anos, fica o recorrente sujeito a disponibilizar aos credores o que exceda a quantia necessária a assegurar o sustento minimamente digno próprio e do seu agregado familiar.
3. A determinação dessa quantia pressupõe a divisão dos rendimentos auferidos em duas partes, uma da quais intangível, que incumbe ao juiz fixar, com base nos critérios alinhavados no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), do CIRE.
4. A fixação do rendimento indisponível pressuporá uma típica redução do nível de vida desse agregado por comparação com o período antecedente à declaração de insolvência, porquanto terá sido a antecedente inadequação dos gastos incorridos face aos rendimentos disponíveis a causa da situação de insolvência.
5. Para efeitos da fixação do rendimento indisponível o juiz dispõe de apoio na generalidade das normas do ordenamento jurídico que apontam para a salvaguarda do montante relativo a, pelo menos, um salário mínimo, tal como dispõe o artigo 738.º do CPC para a execução singular, bem como do teto máximo de três salários mínimos constante do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), I), do CIRE.
6. A definição de um concreto valor dentro desse intervalo ou, em casos excecionais, acima do mesmo, atentará na imperiosa necessidade de assegurar o sustento minimamente digno do recorrente e do seu agregado familiar, aferida à luz de critérios de razoabilidade.
7. Tal razoabilidade apenas o tribunal está em condições de apreciar por via do contacto com as inúmeras situações de facto que possuem pontos de similitude e de contacto, mas também diferenças, sendo preferível a atitude do julgador que tenda para a uniformização de critérios em termos que contribuam para a igualdade dos cidadãos perante a lei, em vez da mera capitulação ao pedido do devedor baseado em despesas mais ou menos extensas e infinitamente variáveis, as mais das vezes supérfluas ou prescindíveis.
8. A circunstância de a lei empregar as expressões “razoavelmente necessário” e “minimamente digno” induz à uniformização do rendimento indisponível a fixar à generalidade dos devedores e permite desconsiderar as despesas que se invoquem como anteriormente suportadas, na medida em que, num patamar mínimo de subsistência, todos os devedores terão de ser tratados em conformidade com o princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da CRP).
9. O rendimento indisponível equivalente a um salário mínimo nacional, presentemente € 705, acrescido de ¼, ou seja, € 881,25 é razoável, adequado e permite sustento minimamente digno da recorrente e agregado familiar, e, como tal, irrazoável a pretensão da recorrente na fixação do sustento digno em valor superior, como se lhe fosse devida pelo processo qualquer prestação suplementar.
10. A fixação do valor do sustento digno em no pretendido valor de um salário mínimo nacional acrescido de 1/2 redundaria numa clara violação do princípio da igualdade, de fonte constitucional, por tratamento desigual em situações iguais.
11. Os subsídios de férias e de Natal, porque integram o rendimento da recorrente, devem ser atendidos para efeitos de determinação do rendimento disponível.
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II—Delimitação do Objecto do Recurso
As questões decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em determinar o montante indisponível do rendimento da insolvente e saber se os subsídios de férias e de natal também estão abrangidos pela cessão ao fiduciário.
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III—FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS (resultantes das informações dos autos)
1)A insolvente é solteira e em 2018 terminou uma união de facto, da qual nasceu o seu filho menor.
2)O fim desta união causou-lhe depressão nervosa e perda de emprego.
3) A separação obrigou-a a arrendar uma casa.
4)Desde 2021 que trabalha numa perfumaria, “P... Lda”, com a categoria de caixeira de 3.ª, auferindo o ordenado mínimo nacional.
5) O agregado familiar é composto apenas pela devedora, nascida em .../.../1987, e seu filho, nascido em .../.../2017.
6) Residem em casa arrendada, pagando de renda €500,00/mês.
7) Tem gastos mensais de cerca de 990,00€: renda (500€), alimentação (€200), transportes (€130), vestuário/calçado (€90), telefones (€25) e despesas escolares (€45).
8) Não tem quaisquer bens.
9) Não beneficiou da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início deste processo de insolvência.
10) Não resulta dos autos que a insolvente incumpriu o dever de apresentação à insolvência ou se tenha abstido de se apresentar nos 6 meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo para os credores.
11) Não há elementos que indiciem a existência de culpa da insolvente na criação ou agravamento da situação de insolvência.
12) No seu certificado de registo criminal, a insolvente não tem averbada qualquer condenação.
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DIREITO
Fixados os factos relevantes para a decisão, cumpre analisá-los à luz do direito e decidir a primeira questão suscitada no recurso consistente em saber se o salário mínimo nacional acrescido de ¼ desse valor, fixado na decisão, assegura a subsistência da insolvente e do seu filho menor com um mínimo de dignidade.
A lei permite ao insolvente, pessoa singular, requerer que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante que consiste na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (cfr. art. 235.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas –CIRE).
Trata-se de uma medida especial de protecção do devedor pessoa singular que não representa grande prejuízo para os credores uma vez que os créditos já representavam um valor insignificante, dada a situação económica do devedor.[1]
Menezes Leitão, na obra citada, considera que a colocação do património futuro do devedor, durante cinco anos, afecto à satisfação dos créditos sobre a insolvência constitui um longo período.[2]
Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial a determinar que, no referido período de cinco anos de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade designada por fiduciário (cfr. art. 239.º, n.º 2 do CIRE).
E, segundo o n.º 3, al. b) i) deste preceito legal, integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com exclusão, além do mais, do sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.
Esta exclusão, segundo Luís Carvalho Fernandes e João Labareda,[3] refere-se ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar e radica na protecção constitucional da dignidade humana.
A omissão do legislador no que respeita ao limite mínimo deste conceito amplo, permite que seja avaliado e ponderado, em cada caso em concreto, as reais necessidades do insolvente e do respectivo agregado familiar.
A jurisprudência maioritária tem optado por atender, nesta matéria, a critérios objectivos adjuvantes do juízo a formular: salário mínimo nacional ou rendimento social de inserção.[4]
A referência do salário mínimo nacional fundamenta-se no entendimento que o Tribunal Constitucional tem explanado no sentido de que constitui uma remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades decorrentes da sobrevivência digna do trabalhador.
No entanto, a jurisprudência alerta para que, na decisão a proferir, impere o equilíbrio entre o interesse do credor à prestação e o interesse do devedor consistente no direito à manutenção de um nível de subsistência digno.[5]
Reportando ao caso concreto, está assente nos autos que a Insolvente aufere o salário mínimo nacional (€705,00/2022-Dec.Lei n.º 109-B/2021), o seu agregado familiar é constituído pelo filho menor, e suporta despesas no valor global mensal de € 990,00.
No que concerne especificamente sobre a questão das despesas, subscrevemos a interpretação no sentido de que não tem qualquer apoio legal a consideração de que o rendimento estritamente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar deva corresponder às despesas por ele suportadas.[6]
Acrescentando-se a ideia, comungada pela jurisprudência maioritária, que o devedor insolvente terá de ajustar o seu nível de vida à nova situação, ou seja, terá de compatibilizar as despesas com as condições económicas resultantes da necessidade de satisfação dos créditos.
Por conseguinte, as despesas que não contendem com a sobrevivência da recorrente e de seu filho, têm de ser reduzidas ao máximo possível em conformidade com o princípio de responsabilização perante os credores.
É importante notar que o total das despesas acima descritas é superior ao vencimento mensal da Insolvente, o que desde logo impõe que sejam reduzidas.
Assim, tendo em consideração os princípios de adequação, proporcionalidade e de equilíbrio entre os mencionados interesses contrapostos, sem esquecer o princípio da dignidade humana, fixa-se o valor equivalente a um salário mínimo nacional e meio do rendimento da insolvente a ser excluído da cessão aos credores, na linha, aliás, de casos semelhantes decididos recentemente no Tribunal da Relação do Porto.[7]
A segunda questão, discutida de forma divergente na jurisprudência, consiste em saber se devem ser excluídos da cessão os subsídios de férias e de natal.
Os subsídios de férias e de natal são considerados prestações complementares destinadas a retribuir o trabalhador, em alturas do ano em que os gastos são mais elevados, com um acréscimo monetário destinado justamente a permitir a satisfação dessas necessidades.
Nesta linha de raciocínio podemos concluir, acompanhando o Acórdão desta Relação de 09/12/2022[8] e em conformidade com a maioria da jurisprudência[9], que se trata de prestações que acrescem à retribuição mensal e que, por isso, não são imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do devedor/insolvente, pelo que os mesmos têm de ser, na medida em que ultrapassam o valor do salário fixado a título de rendimento disponível incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.
Não está em causa, como se explicou no Acórdão desta Relação, de 28/10/2021,[10] o direito do trabalhador ao gozo de férias e de festejar o natal mas sim a imposição de adequação e controle de gastos nas épocas festivas em função dos seus recursos económicos sem colocarem em risco o mínimo indispensável a uma vivência condigna.
Por estes motivos, procede parcialmente o recurso interposto pela Insolvente.
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V-DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso, e em consequência, fixam como rendimento disponível o que exceder o valor equivalente a uma vez e meia do salário mínimo nacional, mantendo-se o mais decidido.
Custas pela Insolvente, na proporção de metade, sem prejuízo do apoio judiciário.
Notifique.

Porto, 8/11/2022
Anabela Miranda
Lina Baptista
Pedro Damião e Cunha
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[1] Cfr. Luis Manuel Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2015, Almedina, pág. 305.
[2] Cfr. ob.cit., pág. 306.
[3] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 788, Quid Juris.
[4] v. a título de exemplo, deste Tribunal da Relação de Guimarães os Acs. de 15.05.2014 e 07.08.2014 e os Acs. de 12.06.2012, 12.05.2014 e 16.09.2014 do Trib. Relação do Porto disponíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Acórdão do Trib. Rel. Guimarães de 07.08.2014, disponível na base acima referida.
[6] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.09.2014.
[7] Cfr. entre outros o recente Ac.Rel. Porto de 24/01/2022 disponível em www.dgsi.pt.
[8] Disponível em www.dgsi.pt.
[9] Cfr. Acs. Rel.Porto de 07/05/2018, 23/09/2019, 18/11/2019, 24/03/2020, 26/10/2020, 29/04/2021, 01/03/2021 e 28/10/2021; Acs, Rel.Guimarães de 17/05/2018, 17/12/2018 e 23/05/2019; Em sentido contrário, Acs, Rel. Porto de 22/05/2019 e 15/06/2020; Acs.Rel.Coimbra de 13/05/2014, 17/03/2015, 04/02/2020, disponíveis em www.dgsi.pt.; A relatora, face ao princípio de tratamento igualitário de situações similares, reconsiderou a sua anterior posição-art.º8.º/3 do CC.
[10] Disponível em www,dgsi.pt.