CONTRATO-PROMESSA
TRADIÇÃO DA COISA
POSSE
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
ACÇÃO DE SEPARAÇÃO OU DE RESTITUIÇÃO DE BENS
Sumário

I - O contrato promessa não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador;
II - A tradição da coisa prometida vender assenta na expectativa de que o contrato definitivo será cumprido, equivalendo, quando muito, à outorga ao promitente comprador de uma situação equiparável a um direito pessoal de gozo.
III - Na situação em que o promitente comprador tenha beneficiado da entrega do imóvel antes de celebrado o contrato definitivo, a qualificação da natureza da sua posse, dependerá de uma análise casuística que revele o exercício de poderes de facto sobre o bem objecto do contrato promessa, como posse em nome próprio, como nos casos excepcionais em que já se encontra paga a totalidade do preço ou em que as partes tenham o deliberado e concertado propósito de não realizar a escritura pública, e a coisa foi entregue ao promitente comprador em definitivo, como se dele já fosse.

Texto Integral

Processo n.º 1813/20.2T8AVR-E.P1
Comarca de Aveiro
Juízo de Comércio – Juiz 1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO
1. AA intentou acção de separação e restituição de bens apreendidos a favor da massa contra a MASSA INSOLVENTE DE BB, os CREDORES DA MASSA INSOLVENTE e BB, pedindo a separação da metade rústica do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial, apreendido para a Massa Insolvente, e a sua imediata restituição ao autor, com anulação do registo efectuado a favor da Massa Insolvente.
Alegou, para tanto e em suma, que foi surpreendido pela existência de uma placa de venda colocada no prédio rústico, sito no ..., lugar ..., colocada à ordem do processo de insolvência dos autos principais, sendo que tal prédio lhe pertence e não ao réu BB, pois, em 02.05.1994, celebrou com este um contrato promessa de compra e venda, segundo o qual, por quatro milhões de escudos, comprava metade do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., tendo pago dois milhões de escudos na data da outorga do dito contrato e os restantes dois milhões de escudos em 02.05.1996, tendo, inclusive, sido emitido um recibo de quitação.
Mais alegou que, por desavenças pessoais nunca foi celebrado o contrato de compra e venda, sendo que, após a celebração do dito contrato, o réu BB, promitente vendedor, colocou demarcações efetivas que separaram visivelmente as 2 metades, tendo construído na sua metade nascente a sua casa de habitação e o edifício destinado a assar leitões, contudo, tendo inscrito tal construção na matriz predial urbana sob os artigos ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Anadia sob o n.º ..., englobando também a área prometida vender.
Por fim, alegou que, desde 02.05.1994, entrou na posse da sua metade, cuidando da mesma como propriedade sua, nela exercendo actividade agrícola e florestal, cortando e vendendo pinheiros, fazendo seu o dinheiro obtido com tal venda, à vista e com conhecimento de toda a gente e sempre sem oposição de ninguém, razão pela qual adquiriu o direito de propriedade sobre tal parcela do prédio rústico, por usucapião.
Cumpridas as legais citações, apenas a credora E..., S.A. veio deduzir contestação, impugnando os factos articulados, invocando que o prédio cujo direito de propriedade é alegado pelo autor não é o mesmo das verbas apreendidas a favor da Massa Insolvente, acrescentando ainda ser esta acção mais um meio para evitar a venda do património do réu insolvente.
Terminou pugnando pela improcedência da acção.
O autor respondeu, reiterando tudo o quanto alegado na petição inicial.
Realizada a audiência prévia e frustrada a tentativa de conciliação entre as partes, foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio, enunciados os temas de prova, admitidos os meios de prova e designada data para a realização da audiência final.
Concluída esta, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo a presente ação procedente, por provada, termos em que determino a separação da Massa Insolvente do prédio identificado nos pontos 2., 5. e 11. dos factos provados, correspondente à parte poente e rústica da verba n.º 1 do Auto de Apreensão, e a sua restituição ao autor AA e, consequentemente a anulação do registo efetuada a favor da Massa Insolvente, relativamente à realidade física correspondente a tal prédio.
Custas a cargo do réu contestante.
Registe.
Notifique”.
2. Não se conformando com tal sentença, dela interpôs E..., S.A. recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
“1- Veio o Tribunal a quo decidir, da seguinte forma, “(...)julgo a presente ação procedente, por provada, termos em que determino a separação da Massa Insolvente do prédio identificado nos pontos 2., 5. e 11. dos factos provados, correspondente à parte poente e rústica da verba n.º 1 do Auto de Apreensão, e a sua restituição ao autor AA e, consequentemente a anulação do registo efetuada a favor da Massa Insolvente, relativamente à realidade física correspondente a tal prédio.”
2- A presente decisão teve por base os seguintes fundamentos: “Para a determinação da matéria de facto acima referida, a convicção do Tribunal, assentou na posição assumida pelas partes nos articulados, na prova documental , na prova testemunhal produzida em audiência, nas declarações de parte prestadas pelo autor, e no depoimento de parte do réu BB, materializado na assentada que consta da ata de 14.06.2022, analisadas conjugada e criticamente, à luz das regras de experiência, segundo juízos de normalidade e de acordo com as regras da repartição do ónus da prova aplicáveis ao caso.(...) O Tribunal valorou, ainda, as declarações de parte do autor e o depoimento de parte do réu BB, que, admitiram ter construído um muro a dividir o terreno de acordo com o contrato promessa que haviam celebrado, tendo tal divisão ocorrido entre a data da celebração do contrato promessa [02/05/1994] e a construção da casa de habitação do Réu BB [1999].”
3- Ressalvando-se o devido respeito pela opinião do Ilustre Julgador a quo, vem a Credora/Recorrente interpor recurso da Sentença proferida, porquanto crê que a sua conclusão não valora a prova documental carreada para os autos e que fazem fé-pública, não resultando em consequência a melhor interpretação e aplicação da Lei ao caso dos presentes autos.
4- AA intentou a presente ação de separação e restituição de bens apreendidos a favor da massa contra a Massa Insolvente De BB, os Credores Da Massa Insolvente e BB, pedindo a separação da metade rústica do prédio identificado no art. 1.º da sua petição inicial, apreendido para a Massa Insolvente, e a sua imediata restituição ao autor, com anulação do registo efetuado a favor da Massa Insolvente.
5- Alegou, para tanto e em suma, que foi surpreendido pela existência de uma placa de venda colocada no prédio rústico, sito no ..., lugar ..., colocada à ordem do processo de insolvência dos autos principais, sendo que tal prédio lhe pertence e não ao réu BB, pois, em 02/05/1994, celebrou com este um contrato promessa de compra e venda, segundo o qual, por quatro milhões de escudos, comprava metade do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., tendo pago dois milhões de escudos na data da outorga do dito contrato e os restantes dois milhões de escudos em 02/05/1996, tendo, inclusive, sido emitido um recibo de quitação.
6- Mais alegou que, por desavenças pessoais nunca foi celebrado o contrato de compra e venda, sendo que, após a celebração do dito contrato, o réu BB, promitente vendedor, colocou demarcações efetivas que separaram visivelmente as 2 metades, tendo construído na sua metade nascente a sua casa de habitação e o edifício destinado a assar leitões,
7- Contudo, tendo inscrito tal construção na matriz predial urbana sob os artigos ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Anadia sob o n.º ..., englobando também a área prometida vender.
8- Por fim, alegou que, desde 02/05/1994, entrou na posse da sua metade, cuidando da mesma como propriedade sua, nela exercendo atividade agrícola e florestal, cortando e vendendo pinheiros, fazendo seu o dinheiro obtido com tal venda, à vista e com conhecimento de toda a gente e sempre sem oposição de ninguém, razão pela qual adquiriu o direito de propriedade sobre tal parcela do prédio rústico, por usucapião.
9- A aqui Recorrente veio deduzir contestação, impugnando os factos articulados, alegando para tanto o seguinte,
10- No artigo 1º da sua Petição Inicial, o Autor/Recorrido identifica o imóvel como sendo um prédio rústico, uma vinha, inscrito sob um outro artigo 8270º, o qual não corresponde a nenhuma das verbas apreendidas.
11- Vem ainda o Autor, aqui Recorrido referir nos artigos 9º e 21º da Petição Inicial que se trata de uma parte do prédio urbano correspondente à verba 1 do Auto de Apreensão, o qual atente-se não é composto por qualquer parte rústica, conforme resulta da certidão de registo predial e cadernetas prediais disponíveis e de consulta pública.
12- O Autor/Recorrido veio arguir ser dono e legítimo possuidor do imóvel apreendido nos autos sob a verba 1, alegando ter celebrado contrato promessa de compra e venda relativamente ao mesmo, bem como ter a respetiva posse.
13- Entende a Recorrente que tal afirmação não se reputa por suficiente para se fazer valer da propriedade, nem tão pouco da posse do bem imóvel em causa, bem como não resultou provada a liquidação do preço do alegado contrato promessa de compra e venda por parte do Autor.
14- Quer ainda o Autor fazer crer ao douto Tribunal que aguarda há 28 anos pela outorga da escritura de compra e venda, a qual apenas não se realizou por falta de comparência do Insolvente e sua cônjuge...
15- Sendo que no decurso de 28 anos e atentas as divergências familiares o Autor nunca diligenciou pelo registo do alegado contrato de promessa de compra e venda na Conservatória do Registo Predial.
16- Contrariamente dúvidas não persistem que sobre o imóvel apreendido e em causa nos presentes autos, foram registadas diversas hipotecas como garantia aos empréstimos contraídos pelo Insolvente e pela sua cônjuge junto da cedente Banco 1… (créditos cedidos à Credora), sendo à data, o imóvel da plena propriedade de ambos, conforme resulta da certidão predial.
17- Pelo que a alegada promessa de compra do imóvel não concretizada e não registada até à presente data, não tem, nem pode ter qualquer efeito legal,
18- E muito menos um efeito que cause prejuízo à aqui Credora/Recorrente que sempre esteve de boa-fé.
19- Porém, contrariamente entendeu o douto Tribunal a quo que, “Face à posição assumida pelas partes nos articulados, na prova documental , na prova testemunhal produzida em audiência, nas declarações de parte prestadas pelo autor, e no depoimento de parte do réu BB, materializado na assentada que consta da ata de 14.06.2022, analisadas conjugada e criticamente, à luz das regras de experiência, segundo juízos de normalidade e de acordo com as regras da repartição do ónus da prova aplicáveis ao caso” (...) “terá de proceder o pedido do autor, tendo este direito à separação da metade rústica do prédio identificado nos pontos 2., 5. e 11. dos factos provados [correspondente a parte da verba n.º 1 do Auto de Apreensão] e à sua restituição, com a anulação do registo efetuada a favor da Massa Insolvente, relativamente a tal metade.”
20- Ressalvando-se o devido respeito pela opinião do Ilustre Julgador a quo, vem a Recorrente interpor recurso da Sentença proferida, porquanto crê que a presente decisão fez tábua rasa da prova documental carreada para os autos e que por sua vez faz fé pública.
21- Dispõe o artigo 363.º do Código Civil o seguinte, “1. Os documentos escritos podem ser autênticos ou particulares. 2. Autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares”.
22- Decorre desta norma, de forma expressa, que a autenticidade, só pode ser conferida a um documento por autoridade pública ou oficial público, dotados de fé pública.
23- Desde logo porque a fé pública é uma prerrogativa exclusiva do Estado que, no uso dela, através dos seus agentes (notários ou outros, mas sempre oficiais públicos), confere garantias de verdade e autenticidade aos documentos (e actos) em que intervém.
24- A disposição do Código Civil a que nos reportamos, mais do que um comando legal do nosso ordenamento jurídico, é a consagração expressa de regras e princípios que emanam da própria natureza dos conceitos de fé pública e autenticidade: esta só existe se conferida por entidade dotada daquela.
25- Dentre os documentos objeto de fé pública, estão as Certidões de Registo Predial e as Cadernetas Prediais. Ambos os documentos, fazem prova da situação jurídica de um imóvel no momento em que é emitida, sendo que no caso da Certidão de Registo Predial, esta reúne e descreve os registos em vigor que dizem respeito àquele prédio.
26- Ora, da certidão de registo predial do imóvel aqui em causa, e sobre o qual estão registadas 4 Hipotecas a favor da aqui Recorrente, resulta expressamente que o artigo predial nº ... inclui tão só 2 artigos matriciais - matriz nº: … e matriz nº: ….
27- Resulta igualmente que este artigo predial, tem uma área total de 3410 M2, composto e confrontado da seguinte forma,
“a) Casa de habitação de rés-do-chão e 1º andar – 235 m2, dependencias – 124 m2, garagem – 36 m2, alpendre – 26 m2, logradouros 500 m2 e quintal – 2299 m2, com o artigo ... e V.P. de 29.897,94€; Edifício de rés-do-chão destinado a assar leitões – 190 m2, com o artigo ... e o V.P. 22.230,00€ - Norte estrada, sul CC, nascente servidão, poente DD”. Note-se que só de área destinada a “quintal” temos 2299 m2.
28- Foi com base nesta composição e bem assim, na garantia que este imóvel constituía há data da celebração dos diversos contratos de mútuo, que o Banco Cedente emprestou ao insolvente um total de 386 431,18€.
29- Como é de fácil compreensão, quanto menor fosse a garantia, menor seria o valor mutuado pelo Banco Cedente.
30- Contudo da certidão de registo predial resultava (e resulta) que o bem imóvel aqui em causa, na composição supra transcrita, era propriedade plena dos Insolventes. pelo que o Banco Cedente confiando na informação registada celebrou com os Insolventes diversos contratos de mútuo.
31- Face a todo o supra exposto, mutuado o valor de 386 431,18€, e estando em dívida há data da reclamação de créditos o valor de € 320.528,84, não pode a Recorrente aceitar que o Tribunal a quo, venha agora reduzir a sua garantia, com base na prova testemunhal produzida nos autos.
32- Premiando o Tribunal a quo a inércia do Recorrido e prejudicando tão só a aqui Recorrente/Credora!
33- Recorde-se que o Banco Cedente quando celebrou com o Insolvente os contratos supra referidos, exigindo o imóvel aqui em causa como garantia, teve por base a informação pública sobre este bem.
34- Da referida certidão não resultava, tal como não resulta, qualquer registo referente à Promessa de Compra e Venda celebrada entre o Recorrido e o Insolvente.
35- Note-se que o contrato promessa é a “convenção pela qual alguém se obriga a celebrar um certo contrato” (cfr. artigo 410.º do Código Civil - “CC”).
36- Quanto, através desse “certo contrato”, que as partes se obrigaram a celebrar se transmite a propriedade de um bem imóvel mediante um preço, estamos perante a figura do Contrato Promessa de Compra e Venda de um Bem Imóvel (“CPCV”).
37- Devemos ter presente que, em qualquer circunstância, o CPCV não tem por efeito a transmissão da propriedade do bem a que respeita. Este efeito apenas se obtém com a celebração do contrato prometido, ou seja, da escritura de compra e venda.
38- Por outro lado, como qualquer contrato de natureza obrigacional, o CPCV apenas gera efeitos entre as partes que o celebram.
39- Consequentemente, por natureza, o CPCV não pode ser oposto a um terceiro, o que significa que nenhum dos contraentes poderá fazer valer um direito resultante desse CPCV perante outro que não o seu co-contratante.
40- Na presente ação de separação e restituição de bens apreendidos a favor da massa instaurada por AA, o Autor, aqui Recorrido, pede a separação da metade rústica do prédio identificado no art. 1.º da sua petição inicial, apreendido para a Massa Insolvente, e a sua imediata restituição, com anulação do registo efetuado a favor da Massa Insolvente,
41- O presente pedido tem por base o alegado CPCV e a alegada posse que daiì adveio, sendo que a sentença recorrida decidiu que “terá de proceder o pedido do autor, tendo este direito aÌ separação da metade rústica do prédio identificado nos pontos 2., 5. e 11. dos factos provados [correspondente a parte da verba n.º 1 do Auto de Apreensão] e aÌ sua restituição, com a anulação do registo efetuada a favor da Massa Insolvente, relativamente a tal metade.”
42- A presente decisão sustenta-se neste CPCV que não pode ser oponível a terceiros e a demais prova testemunhal. O que não se aceita nem tem cabimento legal.
43- A lei prevê que mediante o preenchimento de determinados requisitos possa ser atribuída uma eficácia acrescida ao CPCV, permitindo, designadamente, que ganhe uma força jurídica que ultrapassa a mera relação entre as partes e atinja também terceiros. Juridicamente, esta “eficácia acrescida” designa-se por “eficácia real”.
44- Nos termos do número 1 do artigo 413.º do CC, “aÌ promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis, ou móveis sujeitos a registo, podem as partes atribuir eficácia real, mediante declaração expressa e inscrição no registo”. No caso do CPCV, a eficácia real deveraì constar de escritura pública, pois essa eì a forma exigida para o contrato prometido. A promessa deve ser, ainda, registada.
45- E neste caso o direito resultante desse CPCV transforma-se num “direito real de aquisição”, gozando, por isso, de sequela sobre o bem, característica própria dos direitos reais.
46- Pelo exposto, num CPCV com eficácia real o promitente comprador adquire um direito real de aquisição sobre o bem imóvel em causa, independentemente de quem seja o seu proprietário na mesma data.
47- Recorde-se que o CPCV em causa nos presentes autos não foi sujeito a registo, nem tão pouco ficou provado o pagamento do preço, conforme se retira da Sentença recorrida.
48- Desta feita, como pôde o Tribunal a quo fazer tábua rasa de factos notórios como são os registos públicos, e bem assim ignorar que o comprovativo de pagamento foi elaborado apenas com o propósito de ser junto a estes autos?
49- No demais, sublinhe-se que são feitas diversas referências aÌ Usucapião, mas esclareça-se desde já que, o Autor aqui Recorrido intentou uma Acção De Separação E Restituição De Bens, que corre em apenso aos autos de insolvência, não peticionando o reconhecimento da aquisição da propriedade com base na Usucapião mas sim “a separação da metade rústica supra identificada, do acervo de bens apreendidos a favor da massa insolvente, e a sua imediata restituição ao a., com a anulação do registo efetuado a favor da massa insolvente”.
50- Desta feita não pode vir o Tribunal a quo reconhecer um direito cujo reconhecimento não foi peticionado, sendo a presente sentença nula nessa parte. Logo, não pode o Tribunal concluir que “dúvidas não restam de que o autor adquiriu por usucapião parte do prédio”.
51- A usucapião eì um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo (arts. 1287.º e 1316.º do CC) que depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse. Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se aÌ data do início da posse (art. 1288.º do CC), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (art. 1317.º, al. c), do CC).
52- O Recorrido alega que desde e 2 de Maio de 1994 que tem a posse da alegada “parte rústica” do imóvel aqui em discussão. Mas em 28 anos não registou o contrato promessa de compra e venda. Não celebrou a escritura e segundo sabe a Recorrida, não iniciou qualquer acção declarativa para reconhecimento de aquisição da propriedade por usucapião, nem tão pouco recorreu a um notário para fazer uma escritura de justificação notarial.
53- Porém, contrariamente aÌ Lei, decidiu o Tribunal a quo premiar a inércia do Autor/Recorrido dando-lhe razão e julgando “a presente ação procedente, por provada, termos em que determino a separação da Massa Insolvente do prédio identificado nos pontos 2., 5. e 11. dos factos provados, correspondente aÌ parte poente e rústica da verba n.º 1 do Auto de Apreensão, e a sua restituição ao autor AA e, consequentemente a anulação do registo efetuada a favor da Massa Insolvente, relativamente aÌ realidade física correspondente a tal prédio”.
54- O que a Recorrente não aceita e se questiona -Em que medida foi protegida a posição da Credora/Recorrente que confiando nos instrumentos públicos e na informação que estes publicam, celebrou contratos de mútuo com o Insolvente em contrapartida de serem prestadas garantias reais, nomeadamente, hipotecas voluntárias sobre imóvel aqui em causa?
55- No demais, sempre se diraì que com a confirmação da presente sentença a Recorrente não aceita sequer como hipótese o cancelamento das suas hipotecas sobre a parte restituída ao aqui Recorrido atento o consagrado direito de sequela.
56- Face a todo o supra exposto, andou mal o Tribunal quando julgou procedente o pedido do Autor, aqui Recorrido, não aplicando correctamente o direito e não fazendo a costumada justiça.
57- Em suma, o Tribunal a quo ao julgar, “a presente ação procedente, por provada, termos em que determino a separação da Massa Insolvente do prédio identificado nos pontos 2., 5. e 11. dos factos provados, correspondente aÌ parte poente e rústica da verba n.º 1 do Auto de Apreensão, e a sua restituição ao autor AA e, consequentemente a anulação do registo efetuada a favor da Massa Insolvente, relativamente aÌ realidade física correspondente a tal prédio”, estaì a contrariar o disposto nos artigo 363º do Código Civil consubstanciando a sentença recorrida numa violação a uma norma imperativa que não permite derrogações.
58- Pois que, não se poderá sacrificar o cumprimento de tais normas, em razão de um não exercício de um direito, por parte do seu titular (registo do CPCV por parte do Autor aqui Recorrido).
59- No demais, com a presente sentença estaì o Tribunal a quo a impedir a liquidação na insolvência do bem apreendido e propriedade plena dos insolvente, sobre o qual recai a hipoteca a favor da aqui Recorrente, prejudicando, o seu direito a ser ressarcida.
60- Posto isto, a sentença agora recorrida contraria também, o artigo 686º nº 1 do Código Civil que dispõe que, “1. A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”.
61- Face a todo o supra exposto entende a Recorrente que o Tribunal teria andado bem, caso tivesse julgado improcedente o pedido de separação da Massa Insolvente do prédio identificado nos pontos 2., 5. e 11. dos factos provados e mantendo o registo efectuado a favor da massa insolvente, com as suas legais consequências
Nestes termos e nos mais de direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deverão V.Exas. julgar procedente a presente apelação e revogar o teor da douta sentença:
Julgando improcedente o pedido de separação da massa insolvente do prédio identificado nos pontos 2., 5. e 11. dos factos provados e mantendo o registo efectuado a favor da massa insolvente, com as suas legais consequências; [...]”.
O apelado apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se se mostram verificados os pressupostos da usucapião como forma originária de aquisição do direito de propriedade pelo autor da parcela que integra o imóvel apreendido para a massa insolvente.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A. Foram os seguintes os factos julgados provados pela primeira instância:
1. Por sentença proferida a 22/06/2020, transitada em julgado a 13/07/2020, foi declarada a insolvência de BB.
2. No âmbito dos autos de apreensão de bens, que constituem o apenso C, o Administrador de Insolvência apreendeu o prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Anadia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Anadia sob o n.º ..., composto por casa de habitação de rés-do-chão e 1.º andar [235 m2], dependências [124 m2], garagem [36 m2], alpendre [26 m2], logradouro [500 m2] e quintal [2299 m2], que se encontra inscrito na matriz predial urbana sob o art. ... da freguesia ..., bem como por edifício de rés-do-chão destinado a assar leitões [190 m2], que se encontra inscrito na matriz predial urbana sob o art. ... da freguesia ....
3. O prédio referido em 1. tem as seguintes confrontações: a Norte com a estrada, a Sul com CC, a Nascente com servidão e a Poente com DD.
4. Em data não concretamente apurada, mas posterior à apreensão referida em 2., foi colocada uma placa no prédio referido em 2., indicativa de que este se encontra à venda à ordem do processo de insolvência, que constitui o processo principal.
5. No dia 02/05/1994, no Cartório Notarial de Anadia foi reconhecido um documento epigrafado de “Contrato de promessa de compra e venda”, celerado entre o réu BB e a sua então mulher EE, na qualidade de primeiros outorgantes, e o autor, na qualidade de segundo outorgante, estes declararam:

«1.º
Os primeiros outorgantes são donos e legítimos possuidores do seguinte prédio: uma vinha, no sítio do ..., lugar ..., freguesia ..., concelho de Anadia, confinando do Norte com estrada, do Sul com CC, do Nascente com caminho e de Poente com DD, inscrito na matriz sob o n.º ....
2.º
Os primeiros outorgantes prometem vender livre de quaisquer encargos ou ónus metade do prédio acima mencionado, pelo valor de quatro milhões de escudos (4.000.000$00), sendo essa metade do lado Poente.
3.º
Nesta data, os primeiros outorgantes, receberam da mãe do segundo outorgante, a quantia de dois milhões de escudos (2.000.000$00), como sinal e princípio de pagamento, referente ao prédio aqui prometido vender, dando ao segundo outorgante total quitação.
4.º
Desde já, os primeiros outorgantes dão ao segundo outorgante a posse e domínio do prédio constante do artigo 1º e 2º deste contrato, podendo nele fazer todas e quaisquer benfeitorias que achar por bem.
5.º
Tanto os primeiros outorgantes, como o segundo outorgante estipularam aceitar reciprocamente a possibilidade de execução específica do presente contrato, nos termos do artigo 830.º do Código Civil.»
6. Nunca chegou a ser celebrada a respectiva escritura de compra e venda o prédio referido em 5. em virtude de, entretanto, terem ocorrido desavenças familiares entre a então mulher do réu BB e a restante família, na qual se inclui o autor, devido a partilhas.
7. Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre 02/05/1994 e 1999, o autor e o casal promitente vendedor, o réu BB e a sua então mulher EE, colocaram demarcações efectivas, que separam visivelmente as duas metades do prédio referido em 5., tendo estes dois últimos construído, na metade nascente, a sua casa de habitação e o edifício destinado a assar leitões, inscrevendo tal prédio urbano na matriz da freguesia ..., concelho de Anadia sob o artigo ..., no ano de 1999.
8. Ao proceder à inscrição na matriz e no registo na Conservatória do Registo Predial da casa de habitação e do edifício destinado a assar leitões, o réu BB e EE não rectificaram a área, nem as confrontações em relação ao prédio rústico referido em 5., mantendo-as similares.
9. O prédio referido em 5. pertenceu a AA, pai do autor e avô da então mulher do réu BB, tendo sido inscrito na matriz no ano de 1966.
10. Desde data não concretamente apurada, mas que se situa, pelo menos, entre 02/05/1994 e 1999, o autor vem cuidando da metade do prédio referido em 5. como propriedade sua, nela exercendo actividade agrícola e florestal, cortando e vendendo pinheiros, fazendo seu o dinheiro obtido com tal venda, à vista e com conhecimento de toda a gente e sempre sem oposição de ninguém.
11. O prédio referido em 5. corresponde à mesma realidade física do prédio referido em 2.
B. E considerou não provados os seguintes factos:
a. No dia 02/05/1996, o autor entregou em numerário ao réu BB, a restante quantia de 2.000$00 (dois milhões de escudos), tendo este último emitido o correspondente recibo de quitação.
b. Apesar de se encontrarem reunidas todas as condições e demais documentação para a realização da respectiva escritura de compra e venda, tal escritura, nunca chegou a ser celebrada, por falta de comparência dos promitentes vendedores.
c. O prédio referido em 5. era da titularidade da mãe do réu BB e, após a morte desta, passou para a titularidade deste último.

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
De acordo com o artigo 1.º do CIRE, “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”.
Já do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, (pontos 3 e 6) se podia retirar: “o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.
É, assim, objectivo fundamental do processo de insolvência assegurar a satisfação, tão eficiente quanto possível, dos direitos dos credores.
A regra “par conditio creditorum” que caracteriza o processo de insolvência enquanto execução universal, e que encontra arrimo no citado artigo 1.º do CIRE, garantindo a participação de todos os credores no processo, assegura um tratamento igualitário dos mesmos, mas de acordo com a qualidade dos créditos de que são titulares[1], constituindo a reclamação de créditos, a liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente e o pagamento aos credores as manifestações processuais mais significativas dos objectivos prosseguidos pelo processo de insolvência, enquanto tramitação unitária (processo principal onde é decretada a insolvência, e seus incidentes e apensos, todos regulados no CIRE).
A verificação de créditos[2], integrando a epígrafe genérica do Título V do mencionado diploma, compreende os vários procedimentos destinados ao apuramento do passivo do devedor, cujo pagamento se há-de processar no âmbito da liquidação do activo.
No Capítulo I do aludido título, denominado “Verificação de Créditos”, acha-se regulamentada, nos artigos 128.º a 140.º, a primeira fase, tida por inicial ou ordinária, da reclamação, reconhecimento e graduação de créditos, direccionada para todos os créditos sobre a insolvência, independentemente do seu fundamento ou natureza.
No espaço temporal fixado na sentença declaratória da insolvência – até ao máximo de 30 dias[3] – é dada oportunidade aos credores da insolvência de reclamarem os seus créditos, sendo as reclamações apresentadas[4] autuadas e apreciadas num único apenso[5].
O mencionado Título prevê ainda, no seu Capítulo III, a designada “Verificação Ulterior de Créditos”, fase de natureza extraordinária e posterior àquela inicial, prevenindo a eventual existência de credores que, por falta de conhecimento atempado, não reclamaram os seus créditos no momento inicial fixado para o efeito, não se exigindo qualquer superveniência desses créditos ou direitos em relação ao prazo normal para apresentação das reclamações[6].
Ao reconhecer-se a possibilidade de esses credores poderem ainda reclamar os créditos que têm sobre a insolvência assegura-se a regra do “par conditio creditorum”, permitindo que todos os credores possam, em igualdade de oportunidade, possam concorrer ao produto da liquidação do activo.
Nesse pressuposto, estabelecia o n.º 1 do artigo 146º do CIRE, na versão anterior à introduzida pelo artigo 2.º da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, que “findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor (…)”, estabelecendo o n.º 2, alínea b) daquele diploma, na mesma versão, que a reclamação[7] “só pode ser feita no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência” ou “nos seis meses subsequentes” a tal facto – na versão da mesma norma introduzida pelo artigo 2.º, da citada Lei 16/2012.
Estabelece hoje o artigo 146.º, n.º 1 do CIRE que “findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de ação proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, efetuando-se a citação dos credores por meio de edital eletrónico publicado no portal Citius, considerando-se aqueles citados decorridos cinco dias após a data da sua publicação”.
A reclamação ulterior de créditos é feita por meio de acção, que segue a forma de processo comum, sendo apensada ao processo de insolvência[8].
No caso vertente, por via da acção proposta, o autor reclama a separação da metade rústica do prédio que identifica no artigo 1.º da petição inicial, apreendido para a Massa Insolvente, e que a mesma lhe seja imediatamente restituída, com anulação do registo efectuado a favor da Massa Insolvente.
Alega, para o efeito, que, há mais de 26 anos, ou seja, desde 2 de Maio de 1996, data em que celebrou com BB e esposa, EE, um contrato promessa de compra e venda, mediante o qual estes prometeram vender-lhe metade do prédio rústico de que eram proprietários inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., correspondente ao lado poente do mesmo, se encontra na posse da referida parcela, a qual vem exercendo, sem interrupção, publicamente, de forma pacífica e de boa fé, referindo o autor que “…se não for por outro título, adquiriu o direito de propriedade, sobre a parcela do prédio rústico, por Usucapião, título de aquisição originário que aqui expressamente se invoca para todos os legais e devidos efeitos”.
Resulta demonstrado nos autos, entre o mais, que:
- Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre 02/05/1994 e 1999, o autor e o casal promitente vendedor, o réu BB e a sua então mulher EE, colocaram demarcações efectivas, que separam visivelmente as duas metades do prédio referido em 5., tendo estes dois últimos construído, na metade nascente, a sua casa de habitação e o edifício destinado a assar leitões, inscrevendo tal prédio urbano na matriz da freguesia ..., concelho de Anadia sob o artigo ..., no ano de 1999.
- Ao proceder à inscrição na matriz e no registo na Conservatória do Registo Predial da casa de habitação e do edifício destinado a assar leitões, o réu BB e EE não rectificaram a área, nem as confrontações em relação ao prédio rústico referido em 5., mantendo-as similares.
- O prédio referido em 5. pertenceu a AA, pai do autor e avô da então mulher do réu BB, tendo sido inscrito na matriz no ano de 1966.
- Desde data não concretamente apurada, mas que se situa, pelo menos, entre 02/05/1994 e 1999, o autor vem cuidando da metade do prédio referido em 5. como propriedade sua, nela exercendo actividade agrícola e florestal, cortando e vendendo pinheiros, fazendo seu o dinheiro obtido com tal venda, à vista e com conhecimento de toda a gente e sempre sem oposição de ninguém.
- O prédio referido em 5. corresponde à mesma realidade física do prédio referido em 2.
Embora refira a recorrente – ponto 20.º das conclusões de recurso – que “a presente decisão fez tábua rasa da prova documental carreada para os autos e que por sua vez faz fé pública”, a mesma não impugnou a decisão relativa à matéria de facto pelo que, não havendo motivo para esta instância de recurso proceder à sua modificação oficiosa, o acervo factual dado como provado e transposto para a sentença aqui escrutinada se deve ter como definitivamente assente.
Reclama o autor a separação e restituição da metade rústica do prédio que identifica no artigo 1.º da sua petição inicial, apreendida para a massa insolvente como parte integrante do prédio inscrito no artigo ...., cujo direito de propriedade adquiriu através do instituto da usucapião.
Segundo o artigo 1287.º, do Código Civil, “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.
Ou seja, a usucapião comporta uma forma originária de constituição de direitos reais, através do reconhecimento jurídico duma situação de facto, exigindo, para o seu preenchimento, dois requisitos ou pressupostos, cuja verificação cumulativa é necessária para que o instituto possa produzir efeitos.
O primeiro desses requisitos pressupõe uma situação de posse relativamente a um direito real de gozo, designadamente direito de propriedade.
O segundo requisito reporta-se ao decurso dessa situação de posse por um certo lapso temporal, variável de acordo com verificação concreta das circunstâncias previstas nos artigos 1294.º e seguintes do Código Civil.
A posse caracteriza-se pelo “poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”[9]. Adquire-se, designadamente, “pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito”[10] e “pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta”[11].
Para o preenchimento da usucapião como facto aquisitivo, a posse tem de ser pública e pacífica[12], apenas influindo as demais características no prazo necessário para a sua constituição.
A posse, enquanto facto aquisitivo, pressupõe a reunião de dois elementos: a) um elemento material – o corpus –, traduzido nos actos materiais praticados sobre a coisa, no exercício de poderes sobre a mesma; b) um elemento psicológico – o animus -, consubstanciado na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos materiais praticados.
A circunstância da lei fazer depender a existência da posse destes dois elementos, confronta o possuidor com a necessidade de comprovar o preenchimento dos mesmos. Só a posse assim demonstrada releva para efeitos aquisitivos através do instituto da usucapião.
Note-se, porém, que o exercício dos actos materiais que se traduzem no corpus faz presumir a existência do animus[13].
Trata-se, todavia, de uma presunção legal tantum juris, susceptível, por isso, de ser ilidida pela prova do contrário[14].
É, de resto, o entendimento que se extrai do Assento do STJ de 14/05/96[15], e que continua em vigor, agora com a natureza de acórdão uniformizador de jurisprudência.
Como se defende no mencionado Acórdão do STJ, de 24.10.2006, “…como nos casos de aquisição unilateral do direito não há causa, ou antes, não há um negócio jurídico que defina a vontade, não há uma causa concreta, o Código estabeleceu uma presunção de causa, dizendo que "em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto" (art. 1252.º, n.º 2, do C.Civil). Esta presunção da existência do animus só pode ser ilidida pela demonstração de que os actos praticados são por sua natureza insusceptíveis de conduzir à posse – são actos facultativos ou são actos de mera tolerância. (Cfr. MANUEL RODRIGUES, A Posse – Estudo de Direito Civil Português, 4.ª edição, revista, anotada e prefaciada por FERNANDO LUSO SOARES, Coimbra, 1996, pp. 192 e 195)”.
O artigo 1263º, alínea a) do Código Civil determina que “a posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito”.
Com isso se significa que “exige-se, em primeiro lugar, uma prática reiterada dos actos materiais (…). O essencial (…) é que os actos aquisitivos, variáveis de caso para caso, se dirijam ao estabelecimento de uma relação duradoura com a coisa, não bastando um contacto fugaz, passageiro (Henrique Mesquita, Lições cit., pág. 97”[16].
Resulta da factualidade apurada que o autor desde data não concretamente apurada, mas compreendida, pelo menos, entre 02.05.1994 e o ano de 1999, vem exercendo um poder de facto sobre parcela correspondente a metade do prédio mencionado no ponto 5., dela cuidando como tratando-se de propriedade sua, nela exercendo actividade agrícola e florestal, cortando e vendendo pinheiros, fazendo seu o dinheiro obtido com tal venda, à vista e com conhecimento de toda a gente e sempre sem oposição de ninguém.
Ou seja, na sequência do contrato promessa de compra e venda referido no ponto 5. dos factos, sem nunca ter sido celebrado o correspondente contrato prometido por falta de outorga da escritura que o deveria formalizar, o autor vem mantendo a ocupação da parcela objecto do referido contrato, praticando actos materiais em relação à mesma, nela exercendo actividade agrícola e florestal.
Resta saber se, não obstante a prática desses actos materiais, reiterada no tempo, o mesmo exerceu posse em nome próprio.
Escreve, a propósito, Durval Ferreira[17]: “…também se qualifica a posse em nome próprio (proprio domine) e pose em nome alheio (alieno domine). Quando a posse é directa e imediata, o titular exerce a posse em nome próprio. E exerce-a com animus dominandi, animus domini, animus sibi habendi, animus possidendi, afectio possidendi (…).
Quando a posse é indirecta ou mediata, o detentor - como intermediário daquele que é possuidor indirecto ou imediato, será possuidor em nome alheio”.
O artigo 1253.º do Código Civil, definindo a “mera detenção”, prevê, na sua alínea c) que “são havidos como detentores ou possuidores precários os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem”.
O contrato promessa não tem, em regra, eficácia translativa, sendo o seu objecto a prestação de um facto positivo, ou seja, a realização do contrato prometido, podendo aquela eficácia ser-lhe atribuída se o contrato respeitar a imóveis ou móveis sujeitos a registo e as partes lhe atribuírem, expressamente, eficácia real e levarem ao registo[18].
Daí o entendimento unânime de que o contrato promessa, por si só, não é susceptível de transmitir a posse, sendo o promitente comprador, nas situações em que houve tradição da coisa, mero possuidor em nome alheio, por força de um outro acordo negocial, “exterior” ao próprio contrato promessa. Como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2011[19], “é que – sendo evidente e incontroverso que tal tradição da coisa prometida vender, assente na pressuposição e expectativa de que será cumprido o contrato definitivo, equivalendo, quando muito, à outorga ao promitente comprador de uma situação equiparável a um direito pessoal de gozo (cfr. Ac. de 17/04/07, proferido pelo STJ no P. 07A480), apenas desencadeará normalmente uma situação de mera detenção, enquadrável no art. 1253º do CC, possuindo aquele interessado o imóvel em nome do proprietário/promitente vendedor, sem que tal envolva a transmissão a seu favor da posse sobre o imóvel – poderá naturalmente ocorrer, nomeadamente, uma situação de inversão do título da posse, prevista no art. 1265º do CC, susceptível de desencadear supervenientemente a aquisição de posse – verdadeira e própria – por parte do – até então – mero detentor”.
Pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.06.2016[20]: “Desde já se diga que a orientação largamente maioritária e reiterada é a de que o contrato-promessa, em tais condições (sem eficácia real), não é suscetível de, só por si, transmitir a posse da coisa ao promitente-comprador, admitindo-se, porém, que tal possa acontecer, em determinadas situações excecionais, casuisticamente ponderadas em função do conteúdo do negócio e das circunstâncias concomitantes à sua celebração ou das vicissitudes que se lhe seguiram, como são, por exemplo, os casos em que tenha sido paga a totalidade do preço, em que tenha sido concertado o propósito de não realizar a escritura do contrato definitivo para evitar despesas, sendo a coisa entregue ao promitente-comprador a título definitivo, ou ainda em caso de ocorrência da inversão do título de posse.
(…)
É sabido que a celebração de um contrato-promessa de compra e venda protrai para momento posterior a realização do contrato prometido, só deste decorrendo o efeito típico de transmissão da propriedade da coisa, nos termos dos artigos 408.º, n.º 1, 879.º, alínea a), e 1317.º, alínea a), do CC, não tendo assim aquele contrato-promessa eficácia translativa.
Neste quadro, tendo a coisa prometida vender sido logo entregue pelo promitente-vendedor ao promitente-comprador, tal entrega traduzir-se-á numa aquisição derivada da posse, nos termos previstos na alínea b) do artigo 1263.º do CC, a qual se presume, por força do n.º 2 do artigo 1257.º do mesmo Código, que continua em nome de quem a começou, ou seja, do promitente-vendedor. Nestas circunstâncias, o promitente-comprador ficará investido na situação de mero detentor, enquadrável no art.º 1253.º do CC, ainda que, dada a sua expectativa de realização do contrato definitivo, se lhe reconheça a titularidade de um direito pessoal de gozo, de base contratual, mais precisamente o acordo respeitante à traditio.
(…)
Não obstante isso, a sobredita presunção da continuação da posse em nome do promitente-vendedor pode ser ilidida no sentido de que a vontade das partes fora a de transferir, desde logo, para o promitente-comprador por razões especificas - nas ditas situações excecionais -, a título definitivo, a posse da coisa correspondente ao direito de propriedade.”
Já o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.09.2008[21] defendia que “a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio.
O contrato promessa de compra e venda de um prédio, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador.
Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração da escritura de compra e venda, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando numa situação de mero detentor ou possuidor precário.
Os poderes que o promitente comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, nem paga a totalidade do preço, não são os correspondentes ao direito do proprietário adquirente (…).
A posse em nome próprio do promitente comprador pressupõe a prova da inversão do título da posse em que aquele se encontrava, que terá de ser efectuada por oposição aos promitentes vendedores e levada ao conhecimento destes, em virtude da posse em nome próprio não ter sido originariamente conferida aos autores”.
E segundo o acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 12.04.2018[22]: Por regra, tal como ensina Antunes Varela [...], o contrato promessa, sendo um negócio meramente obrigacional, não transmite, por si só, a posse ao promitente-comprador. Mesmo nos casos em que ocorre a tradição da coisa, antes da celebração da escritura definitiva de compra e venda, o promitente-comprador, adquirindo, embora, o corpus possessório, não adquire o animus possidendi, ficando, por isso, investido na qualidade de mero detentor ou possuidor precário. Todavia, esta regra não é absoluta. Com efeito, e como nos dá conta o Acórdão do STJ de 23.05.2006 [..], vem sendo entendimento deste Supremo Tribunal, que «a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio» [..]. Quer isto dizer que, casos existem, em que a posse resultante da tradição da coisa pode assumir todas as características que definem a posse verdadeira e própria, a que alude o art. 1251º do C. Civil, juntando ao corpus também o animus correspondente ao direito real em causa [..]. Nas palavras do Acórdão do STJ, de 19.04.2012 (revista nº 299/05.6TBMGD.P1.S1) «excepcionalmente, a tradição material da coisa a favor do promitente-comprador pode conferir a posse, para efeitos de usucapião, como sucede nas hipóteses em que a tradição ocorre, após o pagamento da totalidade do preço, acompanhada da intenção de transmitir, em definitivo, o direito prometido, e passando o promitente-comprador, consequentemente, a actuar uti dominus da coisa entregue”.
De entre a doutrina mais consolidada sobressai a posição de Pires de Lima/Antunes Varela[23] quando esclarecem “(…) o contrato promessa de compra e venda não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador. O contrato promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário. São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício do direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse”.
Segundo o artigo 1290.º do Código Civil, “os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título”.
E de acordo com o artigo 1265.º do mesmo diploma legal, “a inversão do título de posse dá-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse”.
Vale dizer, “a inversão do título de posse, nos termos do art. 1265º do Cód. Civil supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio. A uma situação sem relevo jurídico especial vem substituir-se uma posse com todos os seus requisitos e com todas as consequências legais. Esta inversão pode dar-se por dois meios: por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía, ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse. No primeiro meio - oposição -, torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía, devendo o detentor tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial, quer extra-judicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito - cfr. A. Varela e P. de Lima, em anotação ao art. 1265º do seu Cód. Civil, 2ª ed.”.[24]
Ou seja: “a inversão do título da posse, pelo primeiro meio consignado no artº 1265º do C.C., oposição categórica, de modo a sobrepor-se à aparência representada pelo título, tem de traduzir-se em actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem”.[25]
Diz-se na sentença recorrida: “É certo que um contrato promessa de compra e venda não é suscetível de transmitir para o promitente comprador a posse, já que, consistindo esta no «poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real» [cfr. art. 1251.º do Código Civil], o que normalmente sucede é o contrato promessa transmitir apenas o elemento material – corpus -, mas não o elemento psicológico – animus - da posse verdadeira e própria.
Contudo, a verdade é que há muito tempo vem sendo aceite pela doutrina e pela jurisprudência que, em determinadas hipóteses, a posse exercida pelo promitente comprador que detém a coisa é uma posse boa para usucapião e suscetível, portanto, de levar à aquisição do direito de propriedade, justamente por se mostrar em concreto revestida do mencionado elemento psicológico, isto é, da intenção de agir como dono da coisa [neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/09/2008 (proc. n.º 08A19889, de 12/03/2009 (proc. n.º 09A0265), de 05/06/2012 (proc. n.º 4944/04.2TVPRT.P1.S1) e de 11/09/2012 (proc. n.º 4436/03.7TBALM.L1.S1), todos disponíveis para consulta in www.dgsi.pt]”.
E acrescenta a mesma sentença: “E, a realidade é que é esta a situação que se verifica no caso sub judice, pois o autor, desde data não concretamente apurada entre 02/05/1994 e 1999, cuida da metade do prédio prometido vender como propriedade sua, nela exercendo atividade agrícola e florestal, cortando e vendendo pinheiros, fazendo seu o dinheiro obtido com tal venda, à vista e com conhecimento de toda a gente e sempre sem oposição de ninguém, factos estes que, no seu conjunto, são, em nosso entender, demonstrativos de que se considera [e são considerados, inclusive pelo promitente vendedor] donos dessa metade.
Importa referir que a posse do autor, na sequência da tradição material da metade poente do prédio prometido vender, foi, como se extrai dos factos dados como provados, uma posse em nome próprio, com corpus e animus possidendi, tal como definida no art.º 1251.º do Código Civil, tendo na sua origem a celebração de um contrato promessa e compra e venda e que, por isso mesmo, conduziu à aquisição originária do direito de propriedade através de usucapião, pois, para além de não existir qualquer laço ou relação desta posse com posses anteriores, a mesma assenta exclusivamente na natureza intrínseca dos poderes efetivamente exercidos pelo autor, cumprindo o decurso do lapso de tempo legalmente imposto”.
Reconhecendo que o contrato promessa de compra e venda não transmite para o promitente comprador o elemento subjectivo da posse [“animus possidendi”], mas apenas o “corpus”, a sentença recorrida concluiu, sem justificar, que no caso em apreço o autor, na sequência da tradição da metade do imóvel objecto do contrato promessa, e com origem na celebração desse mesmo contrato, passou a exercer uma posse em nome próprio, o que conduziu à aquisição originária do direito de propriedade através do instituto da usucapião.
Sendo entendimento da doutrina e da jurisprudência que o contrato promessa de compra e venda de um prédio, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador, que, apesar da entrega da coisa antes da celebração do contrato definitivo de compra e venda, apenas adquire o corpus, mas não o animus possidendi, ficando numa situação de mero detentor ou possuidor precário, mal se compreende que a sentença impugnada tenha, sem outra razão, concluído que o autor, na sequência da entrega da parcela objecto do contrato promessa de compra e venda, passou a exercer uma posse em nome próprio, agindo com verdadeiro animus possidendi.
O desconhecimento acerca da situação concreta que rodeou a celebração do negócio e a intenção das partes que presidiu a essa celebração, e posterior tradição da coisa objecto do contrato promessa, impede que se possa concluir pela verificação – excepcional – das condições necessárias ao exercício da posse em nome próprio pelo promitente comprador[26].
Com efeito, nem o autor efectuou o pagamento total do preço convencionado para a transacção do terreno, nem dos termos do contrato promessa e das circunstâncias que envolveram o negócio se pode extrair que com a sua celebração e tradição do imóvel quiseram os titulares do direito de propriedade transmitir para o promitente comprador a posse correspondente ao direito de propriedade de que aqueles eram titulares[27].
E, no caso, não se mostra verificada a inversão do título da posse, cujos pressupostos, de resto, nem sequer se mostram alegados.
Note-se que a tradição da coisa objecto de contrato-promessa de compra e venda não representa necessariamente a inversão do título da posse. Significa tão somente que o proprietário consentiu que, na sequência da celebração de tal contrato, o promitente comprador passasse a usufruir da coisa. O promitente comprador só adquire o animus possidendi quando, de forma inequívoca, passe a exercer um domínio sobre a coisa como titular de um direito de propriedade, contra quem actuava como dono dessa mesma coisa, em oposição a este, o que pressupõe necessariamente que o mesmo disso tenha conhecimento.
Desta forma, não se podendo sufragar o entendimento acolhido na sentença recorrida de que se mostram reunidos os pressupostos da usucapião necessários à aquisição originária pelo autor da parcela por ele identificada no artigo 1.º da petição inicial, haverá o recurso de proceder, com a consequente revogação da sentença recorrida.
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Síntese conclusiva:
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Nestes termos, acordam os juízes desta Relação, na procedência da apelação, em revogar a sentença recorrida.
Custas: a cargo do apelado.

Porto, 10.11.2022
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
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[1] Carvalho Fernandes, “Efeitos substantivos privados da declaração de Insolvência”, em “Estudos sobre a Insolvência”, pág. 199.
[2] Antes designada por verificação do passivo.
[3] Artigo 36º, alínea j) do CIRE.
[4] Qualquer credor que queira obter pagamento do crédito que tem sobre a insolvência, terá de o reclamar no respectivo processo, como decorre do artigo 128º, nº3 do CIRE.
[5] Artigo 132º do aludido diploma.
[6] Luís Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 2011, 3ª ed., Almedina, pág. 253.
[7] Ao contrário do que sucede com a separação ou restituição de bens, cujo direito pode ser exercido a todo o tempo.
[8] Artigo 148º do CIRE.
[9] Artigo 1251º do Código Civil.
[10] Artigo 1263º, a) do Código Civil.
[11] Artigo 1258º do Código Civil.
[12] Artigo 1297º, a contrario, do Código Civil.
[13] Neste sentido, acórdãos do STJ de 25/02/93, Proc. 82887, da 2.ª secção e de 05/05/2005, Proc. 1078/05, da 7.ª secção.
[14] Acórdãos do STJ, já citados, de 10.11.2005 e de 24.10.2006.
[15] Publicado no DR, II S, de 24/6/96.
[16] Pires de Lima/Antunes Varela, “Código Civil anotado”, vol. III, pág. 26; cf. ainda Menezes Cordeiro, “A Posse – Perspectivas Dogmáticas Actuais”, pág. 103, 104
[17] “Posse e Usucapião”, Almedina, 3ª ed., pág. 141.
[18] Artigos 410.º, n.º e 413.º do Código Civil.
[19] Processo 899/04.1TBSTB.E1.S1, www.dgsi.pt.
[20] Proc. 99/05.6TBMGD.P2.S2, www.dgsi.pt.
[21] Processo nº 08A1988, www.dgsi.pt
[22] Processo n.º 584/12.0TCFUN-B.L1.S1 www.dgsi.pt.
[23] Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª ed., pág. 6/7; no mesmo sentido, cfr. Vaz Serra, in R.L.J. Ano 109º-314 e Ano 114º-20, e Calvão da Silva, BMJ nº 349-86, nota 55.
[24] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.2007, processo nº 06A4199, www.dgsi.pt.
[25] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.10.2009, processo nº 151/2001.S1, www.dgsi.pt.
[26] Tanto mais que nem sequer se mostra comprovado o pagamento total do preço, nem o autor alega que não era intenção das partes celebrarem o contrato definitivo, “não sendo invocada factualidade que, a provar-se – com o prosseguimento do processo – permitisse concluir que com a entrega da fracção houvera intenção daquela ser transmitida em definitivo”- acórdão da Relação de Lisboa de 31.10.2013, proc.º 6075/08.7TCLRS.L1-2, www.dgsi.pt.
[27] Cfr. Acórdão do STJ de 11.12.2008, processo nº 08B3743, e da Relação do Porto de 24.10.2011, processo nº 299/05.6TBMGD.P1, ambos em www.dgsi.pt.