SOCIEDADE ANÓNIMA
DESTITUIÇÃO DE ADMINISTRADOR
ACÇÃO ESPECIAL
LEGITIMIDADE
Sumário

No caso de sociedades anónimas com modelo organizativo clássico, só os acionistas que representem pelo menos 10% do capital social têm legitimidade para interpor ação especial de destituição do Administrador, com fundamento em justa causa.

Texto Integral

Apelação nº 1839/21.9T8AMT.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. Os requerentes AA, BB e CC, por si e na qualidade de na qualidade de Herdeiros da Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de DD, instauraram processo especial de destituição de titular de órgão social contra A... & C.ª, S.A.” e contra EE, sua Presidente do Conselho de Administração.
Pediram os requerentes:
«I – Decretada a destituição da 2.ª R. do cargo de Presidente do Conselho de Administração da A... & C.ª, S.A.., com fundamento em justa causa por violação grave dos seus deveres de ADMINISTRADOR, devendo entregar todas as chaves de acesso às instalações da sociedade, com proibição de aceder às mesmas e de se abster de contactar com quer que seja nessas funções, bem como de assumir compromissos em nome da sociedade.
II – Nomeado a Autor CC., a título definitivo, como representante especial/administrador da sociedade A... & C.ª, S.A.;
III – Os Réus condenados a respeitar e a dar cumprimento às decisões judiciais proferidas sobre os pedidos I) e II);».
Fundamentaram o seu pedido alegando que a requerida EE, sócia e Presidente do Conselho de Administração da sociedade, praticou atos de concorrência desleal com a sociedade requerida, além de outros atos lesivos dos seus interesses, causando-lhe prejuízo, atos que justificam a sua destituição do cargo.
Em contestação, as requeridas impugnaram, motivadamente, a factualidade alegada.
Em audiência de discussão e julgamento, os requerentes desistiram do pedido de nomeação do Autor CC, a título definitivo, como representante especial/Administrador da sociedade “A... & C.ª, S.A.” e, por consequência do pedido em III no que diz respeito ao número II, desistência essa que foi homologada judicialmente.
Em sentença, a M.mª Juíza decidiu «destituir a Requerida EE do cargo de Presidente do Conselho de Administração da sociedade “A... & C.ª, S.A.”, mandato 2018/2021, por justa causa, absolvendo-se as requeridas do mais peticionado.»

2. Inconformada com tal decisão, dela apelou a requerida EE, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«I. A sentença recorrida ao julgar a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, decidindo destituir a Requerida EE do cargo de Presidente do Conselho de Administração da sociedade “A... & C.ª, S.A.”, mandato de 2018/2021, por justa causa, incorreu em erro de julgamento de facto e de direito, pelo que deve ser revogada.
II. No decurso das duas sessões de julgamento [28 de fevereiro e 18 de março] o tribunal estendeu-se em considerações e comentários, interrompendo sucessivamente as declarações das partes e das testemunhas, ouvindo-se mais a si próprio, e durante muito mais tempo, do que ouviu os sujeitos e intervenientes processuais, afastando-se dos comandos consagrados nos artigos 6º, 7º e 602º do CPC.
III. Ao longo das sucessivas intervenções o tribunal afirmou repetidas vezes que a utilidade da acção estava prejudicada, que a situação de facto pressuposta na petição afinal não existia e desde momento anterior ao início do processo, sugerindo uma determinada solução de direito.
IV. Da transcrição efectuada das intervenções da Exmª Juiz [1] em audiência [e que se dão por reproduzidas para efeitos de conclusões] decorre que o tribunal não soube preservar-se, e preservar a integridade da prova, incorrendo numa indevida miscigenação (a) de opiniões pessoais, (b) de pré-juizos pessoais e societários, e (c) de antecipação na apreciação da prova, quando apenas esta, e após encerrada a audiência, deveria servir para a decisão da causa.
V. Efeito nocivo que turvou o processo de deliberação e de fundamentação levando à prolação de sentença que desconsidera as realidades (a) da natureza e estrutura eminentemente familiar da sociedade requerida, e (b) do conhecimento efectivo detido pelos requerentes das situações que serodiamente alegaram e conduziram à destituição da requerida.
VI. A prova documental, por declarações e testemunhal [2], especificadamente identificada e transcrita na alegação de recurso [e que se dá por reproduzida para efeito de conclusões] impõe alteração (a) dos factos provados, (b) dos factos não provados, e, em especial, (c) dos factos da oposição relativamente aos quais a instância recorrida omitiu integralmente qualquer pronúncia.
VII. Os factos provados 20 e 21 devem ser eliminados da matéria fixada porquanto (a) estão formulados na negativa, (b) contêm errada sugestão de ser legalmente exigível reunião de accionistas para que uma sociedade anónima participe no capital de outra sociedade, (c) de ser também exigível que se comunique por escrito a distribuição do capital da sociedade a constituir, mas sobretudo porque (d) a matéria é irrelevante para a decisão de mérito e (e) introduz “ruido” na discussão.
VIII. A redacção do facto provado 24 deve ser alterada para:
24. O Requerente CC esteve presente numa reunião realizada em 15 de junho de 2021, nas instalações da sociedade requerida onde foi abordado o modelo de negócio da sociedade “X..., Lda.”, criada em 10 de janeiro de 2020.
IX. Os factos provados 28 e 29 devem ser eliminados da matéria fixada por não respeitarem (a) nem o sentido normal de todas as declarações produzidas em audiência, (b) nem o significado objectivo dos documentos 8 e 17 da oposição, que atestam a complementaridade das actividades das sociedades A... e X..., de acordo com um modelo de negócio, resultando da prova como conclusão necessária exclusão de situação de concorrência efectiva ou sequer potencial.
X. A redacção do facto provado 32 deve ser alterada para:
32. Os Autores não responderam, apesar da insistência que lhes foi efectuada por mail de 3 de dezembro de 2019, enviado pela Ré EE para os sobrinhos CC e AA.
XI. Os factos não provados considerados na sentença [e que indevidamente influenciaram a fundamentação da sentença] devem pura e simplesmente ser eliminados do texto da decisão por não corresponderam a alegação de qualquer das partes.
XII. Da matéria da Oposição devem ser aditados aos factos provados os números: 9, 10, 11, 18, 22, 25, 31, 32, 33, 37, 43, 44, 45 e 46, que resultaram provados tanto pelas declarações da testemunha comum, FF, quer pelas declarações prestadas pelas administradoras da Requerida, GG e EE, quer pelos documentos citados.
Sem prescindir,
E independentemente da alteração da matéria de facto,
XIII. A procedência parcial da acção, com destituição da Requerida e Recorrente EE do cargo de Presidente do Conselho de Administração da sociedade “A... & C.ª, S.A.”, mandato de 2018/2021, emerge da errada consideração de terem sido violados os deveres fundamentais de cuidado e de lealdade, consagrados no artigo 64º, nº 1, als. a) e b) e o princípio de proibição da concorrência, consagrado no artigo 254º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais, constituindo tal violação justa causa de despedimento, para os efeitos previstos no artigo 257º, nºs 1, 4 e 6 do mesmo compêndio substantivo.
XIV. As necessidades de constituição de uma nova sociedade comercial, e de segmentação das actividades industrial e comercial, dava resposta aos diferentes ciclos de uma e outra, mitigando os riscos de os resultados da A... serem negativamente impactados pelos resultados da comercialização.
XV. Assim visto e demonstrado não se identifica violação de dever de cuidado para com a sociedade e ou para com os sócios.
XVI. A constituição da nova sociedade e a prossecução do novo modelo de negócio foi (a) contemporaneamente conhecido de sócios e colaboradores, (b) desenvolvido nas mesmas instalações, (c) com afectação de trabalhadores por áreas, (d) com repartição efectiva de custos, (e) incluindo quanto à remuneração dos órgãos sociais, (f) com faturação pela A... à X... em função do volume de negócios, e (g) com visibilidade total da ligação entre ambas as sociedades, como resulta do “logotipo”, incluído nas próprias faturas, nos cartões de visita, no site da empresa e nas redes sociais, com a menção “X... by A...”.
XVII. Assim visto e demonstrado não se identifica violação de dever de lealdade para com a sociedade e ou para com os sócios.
Acresce que,
XVIII. Por decisão da administração de setembro de 2021, registada e dada a conhecer aos Requerentes em outubro de 2021, e, portanto, muito antes de em dezembro de 2021 ter sido instaurada a presente acção, teve lugar a transmissão da totalidade do capital da X... para a esfera patrimonial da A....
XIX. Procedimento que reforça a percepção de que a Recorrente não se desviou dos deveres fundamentais do cargo que, assim, não violou, nem agiu contra os interesses da sociedade.
XX. Toda a actuação da Recorrente EE teve por escopo o desenvolvimento e a protecção efectiva do negócio da A..., negócio segmentado, mas desenvolvido articuladamente entre as sociedades, no que se apresentava, e continua a apresentar, como modelo de negócio que melhor responde às especificidades das actividades industrial e comercial desenvolvidas.
XXI. No caso resulta excluída pratica concorrencial, proibida ou não proibida.
XXII. Devendo reconhecer-se e declarar-se que as condutas da Recorrente AA, ainda que ingénuas, ou até porque ingénuas, não importam a violação, com dolo ou com culpa grave, de quaisquer deveres da administradora para com a sociedade ou para com os sócios.
XXIII. Pelo que a sentença recorrida ao considerar verificada causa justificativa da destituição, violou, por errada subsunção e aplicação, o regime legal dos artigos 64º, nº 1, als. a) e b), 254º, nº 1 e e 257º, nºs 1, 4 e 6 do CSC.
Termos em que deve ser revogada a sentença recorrida, absolvendo-se a Recorrente EE do pedido de destituição do cargo de Presidente do Conselho de Administração da sociedade “A... & C.ª, S.A.”, mandato de 2018/2021. Como é de Direito e de Justiça!

3. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. OS FACTOS
Foram os seguintes os factos considerados na douta sentença:

FACTOS PROVADOS
1. A sociedade “A... & C.ª, S.A.” foi constituída em 03.05.1982, inicialmente como sociedade por quotas, com o objeto social de atividade de representações de equipamento para obras públicas, com sede social no Lugar ... ... ..., concelho de Amarante, com o capital social de 500.000,00 euros, inicialmente de 200.000 euros, dividido em duas quotas, uma de valor nominal de 133.501,20 euros, pertencente aosócio DD, e outra de valor nominal de 66.498,80 euros, pertencente à sócia GG, sendo ambos os sócios casados entre si, no regime de comunhão geral, obrigando-se a sociedade com a intervenção do sócio gerente DD.
2. A sociedade “A... & C.ª, S.A.” foi transformada em sociedade anónima, em 15.10.2009, passou a obrigar-se pela assinatura do administrador DD ou pela assinatura conjunta de dois outros administradores sendo a estrutura da administração constituída por um Conselho de Administração por 1, 3 ou 5 membros, com duração dos mandatos de 4 anos, tendo sido nomeados como Presidente do conselho de administração DD, e como vogais EE e DD, que cessou funções por óbito em 06.12.2011.
3. Em 08.05.2013 a sociedade “A... & C.ª, S.A.” passou a obrigar-se pela assinatura de qualquer administrador ou pela assinatura de um procurador nos termos do respetivo mandato, sendo expressamente vedado à administração obrigar ou delegar poderes que possam obrigar a sociedade em atos e contratos estranhos aos negócios da sociedade; sendo obrigatória a assinatura do Presidente do Conselho de Administração para os seguintes atos: tomar de arrendamento, trespasse, ou exploração qualquer estabelecimento, prédio ou fração autónoma, bem como alterar ou rescindir os respetivos contratos, alienar, onerar e trocar qualquer estabelecimento, incluído a sede social, adquirir, permutar ou alienar prédios, viaturas, equipamentos e estabelecimentos comerciais, contrair empréstimos ou outros tipos de financiamento e realizar outras operações de crédito que não sejam vedadas por lei, designar as pessoas que devem representar a sociedade em órgãos sociais de sociedades em que participe, representar a sociedade em juízo ou fora dele, ativa ou passivamente, podendo propor e seguir quaisquer ações; passando a estrutura da administração a ser composta por um mínimo de dois membros e a duração dos mandatos em quadriénio, tendo sido designado Presidente do conselho de administração DD, e como vogal EE para o quadriénio de 2013 a 2016.
4. Em 15.10.2009, por via de divisões e transmissões de quotas e ulterior unificação de quotas, o capital social da sociedade “A... & C.ª, S.A.” passou a estar dividido nas seguintes quotas: uma no valor nominal de 265.000,00 euros pertencente ao sócio DD, outra de valor nominal de 140.000 euros, pertencente à sócia HH, outra no valor nominal de 45.000 euros, pertencente à sócia EE, outra de valor nominal de 45.000 euros, pertencente ao sócio DD, outra de valor nominal de 5.000 euros, pertencente à sociedade “M..., S.A.”.
5. Em 02.01.2018 foram designados para integrar o Conselho de Administração da sociedade “A... & C.ª, S.A.” para o quadriénio de 2018/2021, como Presidente EE e como Vogal HH.
6. A sociedade “X..., Lda.” foi constituída em 11.01.2020, com o objeto social de comércio de equipamento e acessórios para a industria transformadora nomeadamente para a industria extrativa, construção e engenharia civil; desenvolvimento de projetos para equipamentos industriais; prestação de serviços de serralharia mecânica e outros, com sede social Travessa ..., ... ..., concelho de Amarante, com o capital social de 10.000,00 euros, dividido em quatro quotas, uma de valor nominal de 1.000 euros, pertencente à sócia “A... & C.ª, S.A.”, outra de valor nominal de 4.000 euros pertencente à sócia II, outra de valor nominal de 4.000 euros pertencente ao sócio JJ, e outra de valor nominal de 1.000 euros pertencente à sócia EE; obrigando-se a sociedade com a intervenção de um gerente e tendo sido nomeada gerente, por deliberação de 10.01.2020, a sócia EE.
7. Em 07.10.2021 foram averbadas as transmissões das quotas pertencentes aos sócios JJ, II e EE, no capital social da sociedade “X..., Lda.”, para a sociedade “A... & C.ª, S.A.”.
8. A sociedade “A... & C.ª, S.A.” dedica-se ao fabrico e reparação de instalações de britagem e lavagem de inertes, ao fornecimento de acessórios de desgaste para britadeiras, moinhos cónicos e de impacto, de acessórios para reparação de máquinas de equipamentos de britagem, transporte e crivagem.
9. II e JJ são filhos da Requerida EE.
10. A Requerida EE é remunerada na sociedade “A... & C.ª, S.A.”.
11. A Requerida EE é remunerada na sociedade “X..., Lda.”.
12. No dia 21.09.2021, a Requerida EE enviou aos Requerentes uma mensagem de correio eletrónico (e-mail), com o seguinte teor: “Boa tarde BB, CC e AA,
É necessário realizarmos as AG da A... & C, S.A., para aprovação de contas referentes aos anos de 2019 e 2020.
Para V/ conhecimento envio cópia da documentação que hoje seguiu pelo correio.
Melhores Cumprimentos
EE”
13. Ao e-mail remetido em 21.09.2021, a requerida juntou em anexo os seguintes documentos: Relatórios de gestão relativos aos exercícios de 2019 e 2020, Contas de Exercício relativas aos exercícios de 2019 e 2020, Certificação legal de contas relativas aos exercícios de 2019 e 2020, Pareceres do Fiscal único relativo aos exercícios de 2019 e 2020, Lista com indicação de outras sociedades em que os membros dos órgãos da administração exercem cargos.
14. Do documento denominado “Contas Ano 2020 A... & Companhia, S.A., a páginas 8 verso e 9 está consignado o seguinte: “O negócio da venda de acessórios de manutenção e desgaste não apresenta estes ciclos longos e o seu ponto critico é a disponibilidade e capacidade de entrega. É um negócio que tem apresentado um crescimento sustentado. O objetivo para esta área de negócio é atingir os 2,5 milhões de euros nos próximos anos. Este ano o negócio atingiu, em 2020, o montante de 2,145 milhões de euros. Entre 2016 e 2020 a venda de acessórios apresentou um crescimento de 75 % (...) Todo este enquadramento e reconhecimento origina que a relação com os nossos clientes não seja uma relação de fornecedor – cliente, mas uma relação de “partner” e “adviser” face à especificação e conhecimento do negócio. No ano de 2021, este negócio irá ser transferido para uma nova empresa, X..., Lda., participada pela A... e pelos seus acionistas e constituída em 2020.”
15. A herança aberta por óbito de DD mantém-se por partilhar.
16. Os Requerentes também são herdeiros da herança aberta por óbito de DD.
17. A requerida EE aufere uma remuneração mensal no montante de 2 500 euros que, desde agosto de 2021, é paga em partes iguais pelas sociedades “A... & C.ª, S.A.” e “X..., Lda.”.
18. Na sua atividade, a sociedade “X..., Lda.” utiliza as instalações pertencentes à sociedade “A... & C.ª, S.A.”, designadamente a parte do escritório e o mesmo telefone.
19. Como contrapartida da utilização referida em 18, a “X..., Lda.” paga à “A... & C.ª, S.A.” 2,5% da sua faturação.
20. Antes da constituição da sociedade “X..., Lda.” não existiu qualquer reunião formal de acionistas nem do Conselho de Administração da “A... & C.ª, S.A.” para ser deliberada a entrada da sociedade requerida no capital social da “X...”.
21. Antes da constituição da sociedade “X..., Lda.” não existiu qualquer comunicação escrita a dar conhecimento da distribuição do capital social nos moldes constantes do ato constitutivo da sociedade aos Requerentes AA, BB e CC.
22. O Requerente CC esteve presente na Assembleia Geral Ordinária da sociedade “A... & C.ª, S.A.”, em 12.10.2021, onde foram aprovados os ... e 2020.
23. O Requerente CC trabalha para a sociedade “A... & C.ª, S.A.” desde 18 de maio de 2020.
24. O Requerente CC esteve presente numa reunião realizada em 15 de junho de 2021, nas instalações da sociedade requerida onde foi abordada a criação da sociedade “X..., Lda.”.
25. II e JJ não entregaram qualquer quantia sua, a título de entradas, para o capital social da sociedade “X..., Lda.”.
26. II e JJ não receberam qualquer quantia pela cedência das respetivas quotas no capital social da sociedade “X..., Lda.” à “A... & C.ª, S.A.”.
27. II e JJ não tomaram quaisquer decisões referentes à sociedade “X..., Lda.”, por si próprios, mas em obediência à requerida EE.
28. Parte dos clientes da “X..., Lda.” transitaram da A... & C.ª, S.A.”.
29. Os trabalhadores da “X..., Lda.” transitaram da “A... & C.ª, S.A.”, designadamente, II.
30. A Requerida EE remeteu ao Requerentes CC e AA, em 20.11.2019, um e-mail com a proposta de criação de uma nova sociedade para reestruturação da sociedade “A... & C.ª, S.A.”, prevendo-se que esta fosse dividida em duas empresas, ficando a atual com a produção e reparação de equipamentos de britagem e a nova empresa a criar com o comércio de acessórios, sendo a participação na nova sociedade nas proporções atuais dos sócios na “A... & C.ª, S.A.”: Avó – ½+1/3 do capital, Filha – 1/6 e filho 1/6.
31. A Requerida EE remeteu ao Requerentes CC e AA, em 21.11.2019, um e-mail a dar nota de um erro no 3.º slide do e-mail de 20.11.2019, devendo ler-se: Avó – ½+1/6 do capital, Filha – 1/6 e filho 1/6.
32. Até 03.12.2019, os Requeridos CC e AA não tinham respondido à Requerente EE.
33. Em 30.06.2021 o Requerente CC já tinha conhecimento da criação da sociedade “X..., Lda.”.
34. Em 10 de setembro de 2021, reuniu o Conselho de Administração da sociedade “A... & C.ª, S.A.” tendo deliberado adquirir a totalidade das quotas representativas do capital social da sociedade “X..., Lda.” pelo preço igual ao do respetivo valor nominal.
FACTOS NÃO PROVADOS
a) Que os Requerentes tivessem tomado conhecimento da intenção de constituição da sociedade “X..., Lda.” com a distribuição do capital social nos termos constantes do ato constitutivo antes da constituição da sociedade e ainda durante o ano de 2019.
b) Os autores conheceram e quiseram a constituição da sociedade “X..., Lda.” com a distribuição a distribuição do capital social nos termos constantes do ato constitutivo.

5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as QUESTÕES A DECIDIR:
· Como questão prévia, da legitimidade dos Requerentes
· Reapreciação da matéria de facto
· Erro de julgamento na subsunção dos factos ao direito

5.1. Questão prévia: da legitimidade dos Requerentes
Já nesta Relação, tendo-se suscitado a ilegitimidade dos Requerentes (questão que não tinha sido suscitada nos autos), foram as partes notificadas nos termos e para os efeitos do art.º 3º nº 3 do CPC.
Apenas os Requeridos se pronunciaram, concordando com a ocorrência da exceção.
Como regra geral, a legitimidade constitui um pressuposto processual, e «(…), exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o.» [3]
Assim, a legitimidade das partes será apurada em função do pedido e da causa de pedir pois só em função desses dois elementos é possível averiguar do interesse direto, da utilidade ou prejuízo resultantes da ação.
Enquanto pressuposto processual ela integra uma qualidade pessoal, uma certa posição da parte no processo.
Trata-se duma exceção dilatória de conhecimento oficioso, pelo que se impõe ao Tribunal: art.º 571º nº 2, 576º nº 2, 577º al. e) e 578º, todos do CPC.
Quer o interesse direto e a utilidade/prejuízo terão de ser aferidos em função da causa de pedir e pedido formulados pelo Autor, a versão fáctica por ele trazida aos autos.
A presente ação é uma ação especial de destituição de titular de órgão social, instaurada nos termos do art.º 1055º do CPC.
Analisados os autos, verifica-se que são 3 os Requerentes, que instauraram a ação “por si e na qualidade de HERDEIROS da Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de DD”.
A sociedade cuja Administradora se pretende destituir (A... & C.ª, S.A.) é uma sociedade anónima, com um capital social de 500 mil euros.
Ora, a acionista “herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD” é titular de 9 mil ações, representantivas de 45 mil euros.
Daqui decorre que as ações da herança (e dos Requerentes) correspondem apenas a 9% do capital social da A... & C.ª, S.A.
A estrutura organizativa (corporate governance) das sociedades comerciais pode obedecer a um de 3 modelos, o modelo clássico, o modelo anglo-saxónico e o modelo dualista: art.º 278º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
No caso, olhados os estatutos da A..., cabe-lhe a denominada orgânica tradicional ou modelo clássico, que João Calvão da Silva define assim: «O sistema tradicional ou sistema clássico de estruturação do governo societário baseia-se na distinção entre um órgão de gestão (conselho de administração ou administrador único) e um órgão de controlo (conselho fiscal ou fiscal único).» [4]
Ora, sobre a destituição dos membros do conselho de administração das sociedades anónimas desse modelo organizativo, refere o art.º 403º nº 3 do CSC: “Um ou mais acionistas titulares de ações correspondentes, pelo menos, a 10% do capital social podem, enquanto não tiver sido convocada a assembleia geral para deliberar sobre o assunto, requerer a destituição judicial de um administrador, com fundamento em justa causa”.
Resulta, pois, claro que sendo a destituição requerida por acionistas, a lei só concede legitimidade para o efeito a uma percentagem mínima, fixada em 10%. [5]
Sucede que a sociedade em causa, A..., tem um capital social de 500 mil euros.
Os Requerentes instauraram a ação enquanto herdeiros da acionista “herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD”, a qual é titular de 9 mil ações (€ 45000,00).
Daqui decorre que as ações da herança (e dos Requerentes) correspondem apenas a 9% do capital social da A... & C.ª, S.A.
Consequentemente, os Requerentes não podiam acionar a destituição da Administradora, por falta de legitimidade.
Consequentemente, nos termos do art.º 278º nº1 al. d) do CPC, julgam-se os Requerentes parte ilegítima, pelo que se absolvem os Requeridos da instância.

5.2. Face ao que acaba de se decidir, fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas no recurso.

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, no provimento da apelação, ainda que por fundamentação diversa, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto julgar os Requerentes parte ilegítima, absolvendo-se os Requeridos da instância.
Custas do recurso a cargo dos Requerentes.

Porto, 10 de novembro de 2022
Isabel Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
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[1] Ficheiros áudio: 20220228150928_3780400_2871649.wma (depoimento de GG), 20220228160537_3780400_2871649.wma (depoimento de EE) e20220318094541_3780400_2871649.wma (depoimento de JJ).
[2] Aditando-se aos da nota anterior a remissão para o ficheiro áudio com o depoimento da testemunha FF, com a designação 20220318094541_3780400_2871649.wma.
[3] Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 51.
[4] João Calvão da Silva, “Responsabilidade Civil dos Administradores não Executivos, da Comissão de Auditoria e do Conselho Geral e de Supervisão”, artigo inserido nas Jornadas em Homenagem ao Professor Doutor Raúl Ventura, A Reforma do Código das Sociedades Comerciais, Almedina, 2007, pág. 108.
[5] Neste sentido, Coutinho de Abreu, “Curso de Direito Comercial”, vol. II, Almedina, 5ª edição, pág. 593; Rui Pinto Duarte, “defesa Judicial de Direitos Societários”, in Estudos em Honra de João Soares da Silva, Almedina, pág. 745.