CONVICÇÃO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário

Havendo a possibilidade de discutir a matéria de facto não interessa, num primeiro momento de apreciação de um recurso, saber se a interpretação do recorrente é a correcta ou a mais correcta.
- Num primeiro momento cumpre indagar se a escolha feita pelo Tribunal a quo é uma das possíveis.
- Se se determinar que assim é não tem o Tribunal da Relação, enquanto Tribunal de revista, de sobrepor o seu entendimento ao do Tribunal da primeira instância pois que tal implicaria uma intolerável intromissão na liberdade de julgamento do Tribunal a quo.
- O erro notório na apreciação da matéria de facto, verifica-se este vício “quando se retira de um facto dado como provado uma consequência logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto provado uma consequência ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida” .
- Desdobra-se, pois, em erro na apreciação dos factos e em erro na valoração da prova produzida.
 (sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
 
I -  Relatório
Inconformada com a decisão que absolveu o arguido AC_______ da prática de crime de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170º do C. Penal, apresenta-se a recorrer perante este Tribunal da Relação a assistente, PC____, formulando, após motivações, as seguintes conclusões:
“a - Por sentença de 05/04/2022, proferida nos presentes autos, foi decidida a absolvição do Arguido AC_______ pelos crimes de crime de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170º do C. Penal, apesar das provas carreadas para os autos e da acusação formulada pelo Ministério Público,
b - A Recorrente não quer acreditar que o crime de que foi vítima fique impune, está incrédula com tanta “cerimónia” em condenar um predador sexual. Bem dizia este, “…que por ser filho de um juiz, nada me acontece…”.
c – Esta absolvição é uma violação do Estatuto da Vítima e desconsidera o próprio Art.º 67º-A, do CPP, “… Vítima: A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, directamente causado por acção ou omissão, no âmbito da prática de um crime…”.
d - Bem como da Directiva 2012/29/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2012, que que estabeleceu normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à protecção das vítimas da criminalidade.
e – O Meritíssimo Juiz a quo, com esta sentença comete um erro notório na apreciação das provas, denegando a Justiça à Recorrente, julgando esta em vez do Arguido, desmentindo e enviesando a prova da gravação áudio, peça fundamental deste processo. Não é não!
f – Relembramos que este processo voltou à fase de inquérito, por determinação do acórdão desse Tribunal da Relação de Lisboa, de 21/03/2019, porque descortinou os crimes de “ … ocorrendo falta de inquérito relativamente ao denunciado crime de perseguição p.p. pelo art.º 154ºA do Código Penal (que constitui igualmente contra- ordenação muito grave, nos termos do nº 4 do art.º 29º do Código de Trabalho), e quanto ao crime de importunação sexual p.p. pelo art.º 170º do Código Penal (que não depende de queixa e que está consubstanciado na gravação efectuada). Fica prejudicado o conhecimento da questão objecto do presente recurso por se entender que a existência de nulidade insanável prevista no art.º 119º alínea d) do CPP impõe a remessa/devolução dos autos ao MºPº para que realize as diligência relativas aos referidos ilícitos de perseguição e importunação sexual, e para que seja dado cumprimento ao estatuído na Convenção de Istambul e no Anexo à Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro, Estatuto da Vítima…”.
g – E voltando o processo à fase de inquérito, e face às provas e aos indícios, o Digno Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AC_______ pelos crimes de perseguição (p. e p. pelo Art.º 154.º-A do CP) e de um crime de importunação sexual (p. e p. pelo Art.º 170.º do CP), na forma consumada, e de um crime de coação (p. e p. pelo Art.º 154.º, n.ºs 1 e 2 do CP), na forma tentada. 
h – Com prova feita e consolidada – depoimento inicial da testemunha AD, depoimento consistente da Assistente, com fotografias, e uma gravação áudio, que captou uma parte importante da agressão e coação sexual.
i – Nos termos do Art.º 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), “…consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança…”.
j – E seguindo Carlos Pinto de Abreu, “…indícios são os factos conhecidos e aceites de onde se extrai, por inferência lógica ou pelas regras da experiência ou através de leis científicas, a verificação de um facto histórico e que é comum identificar-se por “prova indiciária” ou, também dita, “prova lógica” …”.
k – O Arguido requereu a abertura de instrução, num requerimento depreciativo para o Ministério e para a Assistente, repleto de inverdades, injúrias e deturpação dos factos, distorcendo a Lei de forma patente e maldosa.
l – Ora, perante os indícios carreados para os autos, sufragados por esse Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o Tribunal a quo limita-se a fundamentar os actos criminosos cometidos pelo Arguido, desvalorizando as provas apresentadas, e atacando o carácter e a honra da Recorrente e das suas testemunhas.
m – E nessa apreciação, o Meritíssimo Juiz recorrido atende e quase copia as teses da defesa do Arguido, considerando não provadas as declarações gravadas dos factos, desvirtuando a gravação áudio, fazendo uma interpretação subjectiva e parcial, ao arrepio do mais elementar bom senso. Basta reparar que quase todos os factos dados como não provados, constam e são audíveis na gravação apresentada.
n - Quanto à gravação áudio, prova quase inédita nestes processos, o Meritíssimo Juiz a quo alarga-se em considerações infundadas e, mais uma vez, em presunções do que não está contido, denegando factos e valor probatório. O facto de o Arguido referir que fechou as instalações, que estão sozinhos, que quer dar umas berlaitadas, ali no local do trabalho, de dizer “…se isto se sabe, estou feito…”, nada disto é suficiente como prova de coacção sexual, pois são pessoas adultas…
o – Quando, na verdade, esta prova é fundamental, pois seguindo o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12/04/2020, “…Em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais…”. 
p – Complementada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13/01/2016, quando estabelece “…I - O bem jurídico protegido [no crime de coacção] é a liberdade de decidir e de actuar: liberdade de decisão (formação) e de realização da vontade. Numa perspectiva estrutural poder-se-á dizer que a liberdade pessoal se analisa em dois âmbitos essenciais: a liberdade de decisão e de acção e a liberdade de movimento…”.
r - O erro notório na apreciação da prova, Art.º 410.º, do CPP, consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum. Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
s - Os vícios ali descritos são de conhecimento oficioso, ver Acórdão do STJ n.º 7/95 :
«É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.»., in DR, I-A Série, de 28-12-1995., são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Cf. Acórdão do STJ de 04-09-2015, in www.dgsi.pt., pois o erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
t - Na lição do Prof. Germano Marques da Silva, regras da experiência comum, “são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Tem origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade.”. In " Curso de Processo Penal", Verbo, 2011, Vol. II, pág.188.
u - Existe, designadamente, “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. - Cf. Conselheiros Leal-Henriques e Simas Santos, obra citada, 2.º Vol., pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º, pág. 182) e acórdão da Rel. Porto de 27-9-95 (C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).
v - Ora a gravação áudio constante nos autos, é demais eloquente, para poder ser desmentida sobre as reais intenções do Arguido, e que estas foram cometidas com dolo consciente da gravidade da acção e da punibilidade penal da mesma. 
w - O Meritíssimo Juiz recorrido não cumpriu a normalidade de um julgador, pois o erro grosseiro de apreciação da prova não pode passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência, que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, segundo ensina o Prof. Germano Marques da Silva. x – Assim, esta sentença de absolvição, prolatada pelo Juízo Local Criminal da Amadora – Juiz 2, deve ser revogada conforme o Art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, por considerar não provados factos já analisados e validados por esse Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Ministério Público, denegando Justiça à Assistente e absolvendo o arguido. 
Nestes Termos e nos mais de Direito que doutamente serão supridos, deve a sentença do Juízo Local Criminal da Amadora – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, datada de 05/04/2022, ser revogada por falta de fundamento e erro notório na apreciação das provas, e substituída por outra de condenação do arguido AC_______, nos termos do Código Penal e no pagamento de indemnização civil à Recorrente.
Ao assim recorrido vieram responder, quer o Ministério Público, quer o arguido.
Sustentou o primeiro que:
“1. Nos presentes autos foi o arguido AC_______, absolvido da prática, em autoria material, de um crime de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170º  
2. Inconformada com tal decisão, veio a PC____  interpor recurso assentando essencialmente no erro da apreciação da prova, na errada valoração dada a elementos de prova e na violação do Estatuto de Vítima, do artigo 67.º - A do Código de Processo Penal e da Directiva 2012/29/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2012, que que estabeleceu normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à protecção das vítimas da criminalidade 
3. É entendimento do Ministério Público que não assiste razão à recorrente. 
4. Entende o Ministério Público que na sentença recorrida não se mostra violado qualquer dos diplomas mencionados, nem se compreende a alegação da recorrente e em que medida a sentença recorrida violou o Estatuto de vítima. 
5. No que se reporta à suposta contradição entre a fundamentação da decisão e dos factos provados, considera o Ministério Público que tal não se verifica, uma vez que o teor da decisão é totalmente coerente e fundado em documentos constantes dos autos, o que invalida a alegação da recorrente, que se mostra desprovida de lógica. 
6. Pelo teor da fundamentação da sentença, é perfeitamente perceptível que o Tribunal apenas pretendeu fundamentar as razões pelas quais não conseguiu formular uma convicção segura quanto à ocorrência dos factos, que resultaram como não provados, tendo o Tribunal decidido de acordo com o princípio in dubio pro reo. 
7. O facto de a recorrente não concordar com a decisão, não significa que o Tribunal tenha desvirtuado, desvalorizado, e atacado o carácter e honra da Recorrente. 
8. O Tribunal limitou-se a fundamentar a sua decisão, com base nos elementos probatórios disponíveis, e nos termos legalmente exigíveis. 
9. Ao formular tal crítica, o recorrente mais não faz do que questionar o princípio da livre apreciação da prova p. e p. pelo artigo 127.º do Código de Processo Penal, pondo em crise a convicção adquirida pelo Tribunal sobre os factos, à luz duma interpretação muito própria da prova produzida em julgamento. 
10. O recurso, não se destina a suscitar um segundo julgamento, não havendo fundamento para o Tribunal ad quem ir à procura de nova convicção. 
11.O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão com a convicção que criou no decurso da produção de prova à qual assistiu, no decurso da audiência de julgamento, sob a impressão imediata colhida nesse momento e formada através de certos elementos visuais, de postura, comportamento e outros que não estão disponíveis ao Tribunal de Recurso, baseando-se numa valoração lógica, racional e objectiva de toda a prova que apreciou em audiência de julgamento. 
12. No que respeita à acusação deduzida pelo Ministério Público finda a fase de inquérito, importa ressaltar apenas que a pronúncia é que definiu o objecto do processo razão pela qual não fazem sentido as alegações que à acusação se reportam e aos crimes nela elencados.  
13. Não se verificando quaisquer circunstâncias alegadas, deverá negar-se provimento ao recurso interposto pela Recorrente, devendo-se manter a Douta sentença, fazendo-se assim JUSTIÇA.”
Respondeu o arguido:
“A recorrente PC____  não deu cumprimento ao disposto no artigo 412º n.ºs 3 e 4 do CPP, na medida em que não fez constar, quer da motivação quer das conclusões do recurso, qual a prova que considera relevante para a impugnação, não transcreveu as passagens da prova gravada que impõem decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo e os não indicou os respectivos minutos da gravação onde constam tais passagens.
2.º Para que o Tribunal de recurso pudesse conhecer da impugnação da matéria de facto, era necessário que a assistente PC____ tivesse dado cumprimento ao ónus previsto no artigo 412º n.ºs 2 e 3 do CPP e que o tivesse feito quer no corpo da motivação de recurso quer nas conclusões apresentadas, o que não sucede.
3.º Deve este Tribunal da Relação rejeitar o recurso interposto pela assistente PC____ (já que a impugnação da matéria de facto é a única questão suscitada naquela peça processual e esta não pode ser conhecida nessa parte afectada), por não ter sido dado cumprimento, na motivação de recuso e nas conclusões apresentadas, ao ónus previsto no artigo 412º n.ºs 3 e 4 do CPP.
4.º Em todo o caso, sempre se dirá que, em face da factualidade considerada provada pelo Tribunal a quo, sempre se verificaria caducidade do direito de queixa quanto ao crime de importunação sexual imputado ao arguido AC_______.
5.º O princípio in dubio pro reo aplica-se aos factos relevantes para a decisão sobre os pressupostos processuais, como é o caso da tempestividade do exercício do direito de queixa.
6.º Não havendo certeza quanto à data da prática dos factos – que podem ter ocorrido, de acordo com a prova produzida em julgamento num período temporal de (quase) três meses [(cfr. cd com a gravação das declarações do arguido AC_______, ocorrida na sessão de 12.11.2021, mais concretamente de 4.25 a 7.04 do interrogatório gravado), (cfr. cd com a gravação das declarações da assistente PC____, ocorrida na sessão de 20.01.2022, mais concretamente de 1.05.41 a 1.08.51 daquelas declarações gravadas) e (cfr. cd com a gravação do depoimento da testemunha AD, ocorrida na sessão de 20.01.2022, mais concretamente de 05.29 a 9.21 daquele depoimento)] –, certeza inexiste também se a queixa criminal que deu início aos presentes autos foi apresentada tempestivamente.
7.º Perante esta inultrapassável dúvida, terá necessariamente que se lançar mão do princípio do in dubio pro reo, considerando-se extemporânea a queixa criminal apresentada em 3.05.2017, com as inerentes consequências legais.
8.º A motivação probatória compete sempre ao julgador e não pode ser posta em confrontação com as convicções pessoais da recorrente PC____ , uma vez que, dentro dos apontados limites ao princípio da livre apreciação de prova, o Tribunal goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para alicerçar a decisão, nada obstando, pois, que, ao fazê-lo, dê mais credibilidade a um certo conjunto de provas em detrimento de outros, aos quais não reconheça o mesmo suporte de credibilidade.
9.º Nos termos do artigo 412º n.º 5 do CPP, o arguido mantém interesse na apreciação do recurso interlocutório apresentado por si, em 27.09.2021, e admitido por despacho proferido em 8.10.2021. 
Por todo o exposto, a Sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer reparo, devendo ser integralmente mantida por V. Exas.”
Subidos os autos a este Tribunal, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de que: “(…) acompanha a resposta da Exma. Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância à motivação do recurso interposto pela assistente PC____ . Assim, atentos os fundamentos expostos na citada resposta, emite-se parecer no sentido de que seja julgado improcedente o presente recurso, confirmando-se a sentença proferida pelo Tribunal a quo.”
Os autos foram a vistos e à conferência.
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II - Questão prévia: a apreciação do recurso interlocutório
Na conclusão 9ª da sua resposta veio o arguido dizer que “Nos termos do artigo 412º n.º 5 do CPP, o arguido mantém interesse na apreciação do recurso interlocutório apresentado por si, em 27.09.2021, e admitido por despacho proferido em 8.10.2021”.
O referido art.º 412º nº 5 dispõe que: “5 - Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse.”
Como é bom de ver a regra aplica-se aos recorrentes. Ora, o arguido não é recorrente.
Aliás, o arguido não tem legitimidade para recorrer pois que foi absolvido.
Os recursos como aquele de que se cura só são apreciados se, no momento da sua subida, continuar a existir interesse e legitimidade para recorrer, o que manifestamente não acontece.
É verdade que da conjugação do disposto nos art.ºs 412º nº 5 e 413º nº 4, ambos do C.P.P., resultaria, numa primeira leitura, a apreciabilidade do recurso mas para que tal aconteça, repete-se, teria de existir interesse e legitimidade por parte do recorrente.
Ora, o recurso prende-se com a análise da tempestividade do pedido de indemnização civil mas o arguido foi absolvido e o recurso não é autónomo em relação ao objecto do principal. A única forma de se poder apreciar o recurso seria haver anulação da decisão, prolação de nova decisão com condenação e recurso do arguido.
Pelo exposto, não se conhece do recurso interlocutório.
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III – Do âmbito do recurso e da decisão recorrida
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do Código do Processo Penal).
No caso concreto, analisadas as conclusões recursais as questões a decidir são:
a) A impugnação da matéria de facto;
b) A existência do vício do art.º 410º n.º 2 al. c) do C.P.P.;
c) A medida da indemnização.
Para conhecimento destas questões recordemos os factos provados e não provados e a respectiva fundamentação. Assim, fez-se constar:
a) A assistente PC____ foi funcionária da empresa “G. L.“, com sede no Largo ..., na Amadora, entre Janeiro de 2001 e Junho de 2017, onde desempenhou funções com a categoria profissional de analista de 2ª, estando integrada no departamento de controlo de qualidade. 
b) Nas mesmas circunstâncias de tempo e local, o arguido AC_______ exercia as funções de responsável da produção da mesma empresa, o que ocorreu desde o ano de 2008 e até ao ano de 2019.
c) Em dia não concretamente apurado, ocorrido em data não anterior ao mês de Setembro de 2016 e até final de Novembro desse ano, o arguido encontrou a assistente sozinha no laboratório, altura em que ocorreu uma conversa entre ambos, que aquela gravou com o seu telemóvel e cujo teor consta do ficheiro áudio inserto no CD junto ao Vol. I destes autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido. 
d) Designadamente, de tal gravação consta (identificando-se a assistente como “ASS.”  e o arguido como “A”): 
ASS.: Mas o que é tu queres? 
A: … (imperceptível) … 
ASS.: O quê!
A: Uma quequinha … (imperceptível) ... 
ASS.: .. (imperceptível) … Não faças isso …  
A: Mas porquê? 
ASS.: Não me toques! 
A: Como não? 
ASS: Ah (suspiro) (imperceptível) 
ASS.: … O meu coração está a mil (imperceptível) … Ah, tá bem, tá, tá bem … (imperceptível) Não fazes nada que eu digo quando eu preciso (imperceptível) 
A: …(imperceptível) Isto faz-te assim tão mal? Como estavas com o teu marido? 
ASS.: Não é isso, mas o que é que tu queres? Mas o que é que tu queres? 
A: (imperceptível) 
ASS.: O que é que tu queres?
A: Uma queca. 
ASS.: Aqui? Aqui? 
A: Em cima da mesa, onde é que tu queres mandar uma queca?  
ASS.: Ah! (suspiro)
A: Onde é que tu querias? Queres ir para um hotel?  
ASS.: Mas porque é que queres fazer isso? (imperceptível) 
A: Eh pá porque eu gosto do teu rabinho, aí a bailar de um lado para o outro 
ASS.: Ai meu Deus! 
A: Uma quarentona, já quase cinquentona e tu também tens direito a ter um bocado de prazer. Estás excitada, não gostas de estar molhada? 
ASS.: Ai valha-me Deus! 
A: Tu não tens marido, há não sei quanto tempo, a menos que me digas que andas com outra pessoa, o que é que tu queres, queres que eu seja ainda mais explícito? … (imperceptível)… 
ASS.: Mas tu gostas de mim? 
A: Acho piada ao teu corpo  
ASS.: Gostas do meu corpo? 
A: Acho piada, quer dizer está sempre todo tapado!  
ASS.: (imperceptível …) Aí é? pelas batas, pelas batas 
A: Pois, pelas batas 
ASS.: Ahh (suspiro) (imperceptível) 
A: ... (imperceptível) … tens umas pernas jeitosas  
ASS.: Aí, não me toques (imperceptível)  
ASS.: Oh pá não, não me toques … (imperceptível) já me tens feito tão mal, tão mal, tão mal 
A: Oh pá não me venhas com mal 
ASS.: Não mistures as coisas! 
A:  Eu não tou a misturar … (imperceptível) … aqui há uma coisas que tu tens de uma vez por todas … (imperceptível) … sentido, não … (impercetptível) não responder o que não deves. Outra coisa é nós mandarmos uma berleitadazinhas de vez em quando 
ASS.: Mas tu é isso que queres, é isso que queres comigo? 
A: Então tu não queres? Mandar umas quequinhas comigo? … (imperceptível)… 
ASS.: Não, ‘tou-te perguntar se é isso que queres? 
A: Eu gostava 
ASS.: Já há muito tempo? 
A: Há algum tempo que eu te disse que gostava de te dar umas trincas 
ASS.: Ai Jesus! Mas quê? Já aqui há…há?
A: Não interesssa 
ASS.: Já há muito tempo? 
A: Há algum tempo … (imperceptível)… (imperceptível) 
ASS.: Estás parvo ou quê? 
A: Mostra lá 
ASS.: Estás parvo ou quê? Eu tenho filhos … impercetpível … 
ASS.: … imperceptível … estou a ficar maluca 
A: … imperceptível … 
ASS.: Estás parvo ou quê? … imperceptível … 
ASS.: … imperceptível … é que não … imperceptível … 
ASS.: AC_______, por favor, dá-me espaço
A: … imperceptível … 
ASS.: Ahh (suspiro) … imperceptível … 
ASS.: … imperceptível … local de trabalho, bolas 
A: … imperceptível … local de trabalhomas isto é como se fosse … imperceptível … … imperceptível … 
ASS.: Dá-me espaço 
A: Eu dou-te espaço … imperceptível … 
ASS.: Estas coisas não acontecem no meu local de trabalho, fico tão nervosa, tão nervosa … imperceptível… 
ASS.: … imperceptível … Está calado, … imperceptível … do meu filho  … imperceptível … 
ASS.: Por favor … imperceptível … em mim … imperceptível … por amor de Deus, pá 
A: … imperceptível … 
ASS.: Oh pá eu estava a gravar uma coisa destas? Bolas, ias tu para a rua e ia eu
A: … imperceptível … 
ASS.: … imperceptível … mas fazer uma coisa destas a alguém eu não faço 
A: … imperceptível …. 
ASS.: … imperceptível … É indiferente, eu quero-me ir embora, quero ir embora … imperceptível … Eu tenho que me ir embora que os meus filhos têm natação hoje … imperceptível … 
A: … imperceptível … 
ASS.: Olha não te desculpes de mim por favor, isso … imperceptível … eu sou uma pessoa séria … imperceptível … Sou séria a 100 por cento, sou a melhor a 100 por cento e as pessoas pensam logo … imperceptível … de mim … impercetpível … estou um bocadinho em desacordo. E respondo, respondo porque … imperceptível … fico ofendida, magoada e ninguém pensa em mim, ninguém pensa em mim, percebes? 
A: … imperceptível  
ASS.: Fazer mal a alguém Deus me livre, nunca fiz mal a ninguém … imperceptível … 
ASS.: Sim pá, mas é assim, eu sou emotiva, sou emotiva, eu sei que sou emotiva, mas não faço mal a ninguém 
A: … imperceptível … mas não podes dizer o que quiseres … impercptível … 
ASS.: … mas não faço mal a ninguém, juro-te, juro-te que não faço mal a ninguém 
A: … imperceptível … ficou completamente lixado contigo … imperceptível… 
ASS.: … imperceptível … Sim, mas porque é assim ó AC_______   … imperceptível … 
ASS.: … imperceptível … mas pusemos … imperceptível … de manhã, não pusemos … imperceptível … de manhã é que pusemos … imperceptível … eu não escondo que … imperceptível … 
A: Tens de aprender a … imperceptível … 
ASS.: Ah (suspiro) … imperceptível … Tchau, até amanhã … imperceptível … 
e) Actualmente a assistente encontra-se desempregada, residindo com os seus pais em casa destes, sendo os mesmos e outros familiares quem lhe presta apoio económico e financeiro. 
f) Reside ainda com os seus dois filhos, de 13 e 19 anos de idade, beneficiando o primeiro de prestação alimentícia por via do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, no valor mensal de 150,00€.
g) Actualmente o arguido exerce actividade laboral como supervisor de produção, do que aufere cerca de 1.500,00€ mensais. 
h) Reside sozinho em casa adquirida com recurso ao crédito bancário, suportando o pagamento de uma prestação mensal de cerca de 300,00€.
i) Tem dois filhos, de 10 e 12 anos de idade os quais residem com a respectiva progenitora, suportando o arguido prestações alimentícias devidas aos mesmos no valor total de 460,00€ mensais.
j) O arguido suporta ainda o pagamento de metade da prestação mensal atinente à aquisição da habitação onde residem os filhos, no valor de 300,00€ mensais.
k) Tem, como habilitações literárias, licenciatura em Engenharia de Produção Industrial. 
l) O arguido não possui condenações criminais registadas. 
(…) Factos não provados 
Não se provou que: 
1. O arguido exercia a qualidade de superior hierárquico da assistente. 
2. O dia referido nos factos provados ocorreu na terceira semana de Novembro de 2016. 
3. Nessa data o arguido, com a sua força física, agarrou a assistente tentando beijá-la, o que esta conseguiu evitar.  
4. Nessas circunstâncias o arguido proferiu as expressões referidas nos factos provados enquanto insistentemente tentava tocar no corpo da assistente e esta o desviava e forçava a parar.  
5. Como consequência da actuação do arguido neste dia, a assistente ficou com marcas no seu rosto e pescoço.  
6. Com a sua conduta, o arguido para satisfazer os seus institutos sexuais, ao formular proposta sexual à assistente e, bem assim, compelindo e obrigando a mesma a ter consigo um contacto físico, quando a apalpava, agarrava, tentava beijar e até a sujeitava a comentários de natureza sexual sobre o seu corpo, bem sabendo que o fazia contra a vontade desta - que por todas as vezes o repeliu e lhe disse para a deixar em paz, porque não estava interessada em qualquer envolvimento de natureza sexual com este - quis e conseguiu forçar a assistente a indesejado contacto de natureza sexual e atingiu-a na sua liberdade, agredindo-a na sua esfera sexual. 
7. Em tudo agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei penal. 
8. Desde princípios de 2015 que o arguido perseguiu a assistente, dentro do seu local de trabalho, com insinuações sexuais, propostas de encontros, piadas obscenas, apalpões e tentativas de abraços e beijos, a que a assistente resistiu, tentando desviar-se, considerando este assédio uma brincadeira. 
9. O arguido, face à recusa da assistente em aceitar as suas propostas obscenas, começou a perseguir profissionalmente a mesma, de forma a criar um mau clima de trabalho para ela. 
10. Para o efeito, fez participações e queixas à chefia directa da assistente, por alegada incompetência desta e pelos mais simples motivos, aproveitando falhas naturais cometidas pela assistente, devido ao seu excesso de trabalho. 
11. Apesar de fugir de se encontrar a sós com o arguido, a assistente foi avisada por este que só pararia e as “coisas ficariam bem...” se a mesma consentisse a ter relações sexuais com o arguido. 
12. A assistente precisava do emprego para puder sustentar a família e se fizesse queixa à Administração da empresa, seria muito difícil acreditarem nela, pois colocava em causa elemento próximo da mesma administração e de certeza não lhe dariam ouvidos. O seu desespero aumentou ao longo do tempo, provocando-lhe angústia, desespero e medo pela sua integridade física e profissional.
13. Por isso a assistente optou por contar o que se passava ao seu amigo, Dr. AD, seu antigo colega na empresa e perfeito conhecedor desta.  
14. Este amigo da assistente ao encontrar o arguido na rua pediu-lhe para deixar a assistente em paz, pois estava a dar cabo da vida dela. A resposta que teve foi um sorriso e um
“... vou ver isso...”. 
15. Na ocasião referida nos factos provados o arguido pretendia consumar o coito no próprio momento, mesmo contra a vontade da assistente, com premeditação, com nítido desrespeito pela autodeterminação sexual desta e do seu local de trabalho, bem como da confiança que sabia ter da Administração do G. L. SA.
16. Com a desconfiança do arguido, ao ver o telemóvel em cima da bancada e da assistente ter dito que esperava uma chamada telefónica do filho mais velho, o arguido deixou sair a assistente das instalações, a pedido insistente desta, que estava num estado alterado e com marcas no rosto e pescoço, provocadas pelo arguido na tentativa, acima referida, de a agarrar e beijar. 
17. Sempre preocupada com a sua família e o seu sustento, a assistente procurou desde então não se encontrar a sós com o arguido e evitando qualquer contacto com este. 
18. Vendo fracassadas as suas intenções libidinosas, o arguido aumentou obsessivamente a perseguição à assistente, colocando em causa a sua dignidade e brio profissional. 
19. No entanto, talvez temeroso de uma reacção por parte da assistente, o arguido acabou, em Fevereiro de 2017, por convencer a Administração da empresa G. L., SA a instaurar um processo disciplinar com intenção de despedimento contra a assistente, o que aconteceu, pois a Administração da G. L. promoveu um despedimento colectivo, em cuja lista constou a assistente, o arguido e mais sete pessoas, que foram escolhidas por este último. 
20. Utilizando motivos económicos falaciosos como pretexto para este processo colectivo, esse despedimento colectivo ficou concluído em Dezembro de 2017, e a assistente foi incluída por ter tido três processos disciplinares e ter revelado incompetência no processo de auditoria de qualidade, sendo completamente omissa quanto ao processo de assédio sexual e moral.
21. Com este despedimento a administração da sociedade pretendeu abafar o processo de assédio sexual e moral cometido contra a assistente, bem como as suas repercussões nas restantes trabalhadoras, clientes e fornecedores.
22. Este despedimento provocou na assistente, divorciada com dois filhos menores a cargo, uma forte depressão, angústia e desespero, bem como no seu agregado familiar. 
23. A assistente sofreu uma depressão nervosa com todos estes acontecimentos. 
(…) Motivação da decisão de facto 
 A convicção do Tribunal quanto à factualidade provada assentou na análise crítica e ponderada da prova produzida, apreciada à luz das regras da experiência comum, em especial atento o teor das declarações prestadas pelo arguido nos termos dos artigos 141º, nº 4, alínea b), e 357º, nº 1, alínea b), ambos do C. Processo Penal (cfr. fls. 693), bem como as por si prestadas em audiência, as declarações da assistente, os depoimentos de AD, MC e MO, fotogramas de fls. 11-14 e 130-131, cópia de processo disciplinar de fls. 132 a 209, organogramas de fls. 221 a 223 e ficheiros de gravação áudio contidos no CD junto no Vol. I dos presentes autos. 
O arguido, em audiência, prestou declarações quanto aos factos que lhe eram imputados, como o havia feito perante JIC, relatando, no essencial, a mesma versão dos acontecimentos. 
Em síntese, declarou ter trabalhado na mesma empresa que a assistente (G. L., SA), entre 2008 e 2019, aí coincidindo até ao ano de 2018, altura em que a assistente foi despedida, sendo que esta já ali exercia funções quando o arguido foi contratado. 
Afirmou que entre ambos se foi gerando uma relação de amizade pessoal e de intimidade, ainda que não do tipo amoroso, mediante o que era normal e aceite por ambos manterem conversas com referências a expressões de cariz sexual, existindo um ambiente de “flirt”, mas que nunca extrapolou para contactos físicos de natureza sexual. 
Disse ainda que não desempenhava funções de superior hierárquico da assistente, acontecendo apenas que detinha um cargo de maior importância no organograma da empresa, mas associado ao sector da produção e não da qualidade, no qual laborava a assistente, departamento esse que possuía um responsável próprio, a quem esta respondia, MC, ademais descrevendo a correlação existente entre os departamentos em causa, pugnando que não envolvia a assistente reportar directamente ao arguido, nem este deter sobre ela poderes de direcção, supervisão, ou disciplinares. 
No mais, confirmou a ocorrência do contacto referido no despacho de pronúncia, mas situando-o temporalmente entre os meses de Setembro/Outubro de 2016, ao final do dia, altura em que já não estariam mais pessoas no interior das instalações da empresa. 
Reconheceu ainda que a conversa que ocorreu entre ambos, pese embora admitir não ser adequada para o local de trabalho, teve, contudo, um teor semelhante a anteriores que tinha tido com a assistente e relativamente às quais esta nunca tinha mostrado desconforto, antes delas participando, e sendo certo que essa conversa específica teve um teor mais alargado do que o que consta da gravação junta aos autos, que apenas a reproduz parcialmente. 
De resto, recusou peremptoriamente ter tentado beijar a assistente, ou que a tivesse agarrado, ou que tenha, por qualquer modo, imposto a sua presença física à mesma pela força. 
Invocou ainda ter compreendido mais tarde a exaltação que a assistente, então, a espaços, verbalizou, de modo surpreendente para o arguido, porquanto utilizou a argumentação de que o mesmo a perseguia e assediava sexualmente como meio de defesa num processo disciplinar que posteriormente lhe foi movido, já no ano de 2017, sendo certo que já tinha sido alvo de outros em datas anteriores em que não referiu tal circunstância. 
Por seu turno, a assistente apresentou uma completamente distinta versão dos eventos, que sustentou substancialmente na referida gravação, que invocou considerar ser prova evidente e inabalável do modo como o arguido agiu perante si nessa ocasião, tal como o fazia desde o ano de 2015, por razões que a mesma desconhece. 
Disse também que sempre recusou aceder ou anuir aos comportamentos de perseguição e assédio sexual do arguido perante si, que envolviam constantes ameaças de conseguir que fosse despedida caso não “fodesse” consigo, motivo pelo qual, por receio de tal acontecer e dada a sua situação económica dependente dos rendimentos do trabalho, a assistente nada denunciou anteriormente à sua entidade patronal ou colegas de trabalho, até que, finalmente, o arguido logrou os seus intentos e conseguiu que fosse instaurado o processo disciplinar que culminou no despedimento da declarante. 
Explicou ainda que entre ambos sempre existiu um relacionamento estritamente profissional, sem qualquer tipo de intimidade física ou de linguagem, contactando com o arguido exclusivamente em ambiente laboral, o que não sucedia com este, o qual fazia constantes propostas e comentários sexuais à assistente, chegando mesmo a procurá-la fora do local de trabalho e sem que a mesma alguma vez tivesse justificado esse comportamento, por actos ou palavras. 
Descreveu ainda as circunstâncias e termos em que ocorreu a conversa gravada dos autos naquilo que se recorda, bem como os demais  comportamentos físicos do arguido, acrescentando que nesse dia, ocorrido no final do ano de 2016, por alturas de Novembro, ao conseguir “fugir” daquele, logo no exterior da empresa contactou um seu amigo e advogado, AD, o qual foi ter consigo e a quem reproduziu a gravação e mostrou as marcas que os avanços físicos do arguido lhe provocaram no pescoço, explicando o que se tinha passado.  
Diga-se, desde já, que tais foram as versões apresentadas por arguido e assistente, descritas de modo muito sintético, mas que, no essencial, espelham o respectivo antagonismo. 
Importa também dizer que, quanto às circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreu a conversa referida no despacho de pronúncia e constante da gravação junta aos autos, nenhuma outra prova foi produzida, designadamente por via dos testemunhos prestados por AD, MC e MO, evidenciando todos total ausência de razão de ciência nesse âmbito.
Por conseguinte, restou ao Tribunal apreciar o teor da referida conversa na parte gravada e reproduzida em audiência em confronto com as supra referidas versões antagónicas dos acontecimentos e estas entre si, bem como à luz da demais prova produzida e das regras da experiência e da lógica, no sentido de procurar determinar se alguma delas patenteava um superior grau de credibilidade. 
E, diga-se, perante o contexto probatório disponível, o Tribunal não logrou alcançar tal esclarecimento de modo seguro, denotando-se segmentos de verosimilhança e inverosimilhança, quer no declarado pelo arguido, quer no declarado pela assistente, e do que resultou a impossibilidade de se formar uma convicção segura de que os factos ocorreram para além do que se deu como provado e daí resultando não provados os assim considerados. 
Ainda de modo relativamente perfunctório, é pertinente mencionar que uma parte substancial dos factos não provados é atinente a alegações constantes do pedido de indemnização civil apresentado nos autos e que apenas foram incluídos em tal acervo dado poderem – caso se provassem - contextualizar a actuação do arguido descrita no despacho de pronúncia, mas sendo certo que nunca poderiam relevar do ponto de vista jurídico-penal por relação aos demais crimes que tais factos poderiam preencher, atenta a delimitação do objecto do processo resultante de tal despacho. 
Designadamente, quanto ao arguido, cumpre dizer que do próprio teor da referida conversa resulta que proferiu expressões à assistente de cariz notoriamente sexual e que lhe propôs relacionarem-se sexualmente, verificando-se que aquela, em geral num tom de voz elevado, além de suspiros e interjeições de aparente enfado e outros de natureza que não se logrou apurar, fez afirmações em abstracto ilustrativas de tal recusa, mas também outras aparentemente incompatíveis com esta e que não se logrou entender o respectivo propósito. 
Na verdade, ouvida a gravação (e sem procurar truncar ou adjectivar as afirmações de um e de outro, como se julga decorrer do teor do despacho de pronúncia, bem como, diga-se, do pedido de indemnização civil), constatou-se que, ressalvadas algumas deficiências áudio da própria gravação que tornaram imperceptíveis algumas expressões, o respectivo teor foi o que resultou provado na alínea d) dos factos provados. 
E, face a tal teor, verifica-se, ab initio, que a gravação em causa não reproduz a integralidade da conversa, iniciando-se já no respectivo decurso. 
Verifica-se também que, como já se referiu, além do mais, o arguido disse à assistente que pretendia manter relações sexuais com a mesma, que gostava do seu corpo e que procurou convencê-la a tanto, sendo que também resulta que parte do por si afirmado correspondeu a respostas a frequentes perguntas daquela sobre o que o arguido queria, a questões que visavam confirmar se o mesmo gostava do seu corpo, bem como outras que procuravam resposta sobre há quanto tempo tal acontecia.
Simultaneamente, a assistente foi verbalizando que não queria que o arguido lhe tocasse, que queria que o mesmo lhe desse espaço e algumas de aparente surpresa por estar a acontecer tal conversa no seu local de trabalho e que pretendia ir-se embora, nomeadamente por ter de levar os filhos à natação. 
Importa notar que na redução a escrito das expressões proferidas por cada um não se mostrou possível formular conclusões quanto às reais emoções subjacentes, nomeadamente no que atém à assistente, sendo que foram desta as expressões de teor mais determinável por força do tom de voz utilizado e por aparente maior proximidade do telemóvel que utilizou. 
Na verdade, uma parte muito substancial do que o arguido disse não se mostrou possível apurar, dado que este evidenciou, em geral, um tom de voz calmo e baixo, em oposição a alguma exuberância de tom da assistente, incluindo no que atém a alguns suspiros e interjeições relativamente frequentes.
 Por seu turno, também é de realçar que, no seu tom de voz e na entoação por si dada, tais expressões, suspiros e interjeições, considerando as regras da experiência, mostraram-se ao Tribunal como oscilantes, ora aparentando desconforto, repulsa e zanga, ora denotando alguma aceitação e tom de voz calmo e sereno, sendo certo que no conjunto da referida conversa foi possível detectar diferentes sentidos linguísticos nessas entoações e que a mesma foi perdendo intensidade de referência às palavras do arguido à medida que evoluiu das afirmações sexuais deste e das questões colocadas pela assistente para que as concretizasse, para um debate sobre aparentes temas laborais, culminando com a assistente a dizer que se ia embora, o que fez.
 Aqui chegados, impõe-se igualmente referir que, mesmo tendo em conta alguma falta de memória justificada em face do lapso de tempo decorrido, em audiência, a assistente referiu algumas circunstâncias inusitadas sobre alguns dos termos de que disse recordar-se, bem como outras em que, por via do que foi possível extrair da referida gravação, não se evidenciaram demonstradas, ao que acresce a assistente ter revelado um discurso muitas vezes conclusivo e insistente, falando de modo por vezes demasiado efusivo, o que não se mostrou totalmente compatível com uma descrição sincera dos acontecimentos. 
Desde logo, cumpre salientar que quanto a condutas anteriores do arguido sobre si, nomeadamente em contexto laboral, mediante o que afirmou que já a tinha apalpado em reuniões de trabalho na presença de outras pessoas, nenhuma prova foi produzida nesse sentido, sendo antes declarada tal circunstância como desconhecida para MC e MO, sendo que ambas referiram ter estado presentes em algumas de tais reuniões de trabalho.
 Acresce dizer-se que também no que atém ao facto da assistente ter sido despedida em consequência de actos deliberados do arguido nesse sentido e que este detinha uma relação privilegiada com membros da administração da empresa em que trabalhavam, nada se provou, antes se mostrando que tal versão, além da própria invocação da assistente, não está sequer indiciada no teor da cópia de processo disciplinar que a mesma juntou aos autos de fls.
132 a 207. 
Também no que se refere ao arguido ser seu “superior hierárquico”, julga-se que a mera referência da assistente nesse âmbito se mostrou insuficiente quanto aos termos em que o declarou, quer à luz dos organogramas da empresa de fls. 221 a 223, quer por via dos depoimentos de MC – que declarou ser quem exercia esse papel junto da assistente – e de MO – que declarou ser subordinada do arguido e não ser colega da assistente – mas, essencialmente, considerando as regras da experiência e da lógica no quadro das afirmações coincidentes do arguido e assistente nesse âmbito. 
De facto, mostrou-se claro que ambos laboravam em departamentos diferentes da mesma empresa, os quais, porém, tinham questões operacionais comuns, sucedendo-se à produção o controlo de qualidade e, por isso, havendo interdependência.
Contudo, ficou patente que a assistente não reportava directamente ao arguido num sentido hierárquico stricto sensu, pese embora de um modo geral se poder concluir que aquele detinha uma categoria profissional mais elevada e, por isso, eventual maior “peso” ou importância na gestão que a administração entendesse fazer dos trabalhadores ou das queixas que apresentassem entre eles ou relativamente a determinados departamentos. 
De todo o modo, a assistente pugnou responder directamente ao arguido e, mediante a prova produzida tal invocação não se mostrou possível confirmar além daquela subordinação mais geral que se verifica com habitualidade em estruturas empresariais.
Por outro lado, quanto à concreta conversa dos autos, a assistente, além do mais, relatou que, ao aperceber-se da chegada do arguido e “aterrorizada” face às anteriores condutas deste, decidiu colocar o seu telemóvel a gravar o que estava a acontecer, o que conseguiu fazer por o ter ao pé de si e sem que o arguido se inteirasse. 
Contudo, nesta parte a assistente não logrou explicar em que concreto momento e de que concreto modo colocou o referido telemóvel a gravar, invocando recordar-se apenas que o fez através do símbolo das fotografias, sendo que não possuía especiais conhecimentos sobre o funcionamento daquele. 
Ora, apesar de se mostrar compreensível que a assistente já não se recordasse dos concretos movimentos, ainda assim mostrou-se pouco credível que o tivesse feito através do referido símbolo das “fotografias”, o qual, normalmente, está associado à aplicação de recolha de imagens e vídeo, mas não especificamente de som, sendo que a gravação em causa nos autos é, apenas, um ficheiro de som. 
Em suma, nesta parte, não se sabendo qual o concreto telemóvel da assistente e o seu modo de funcionamento e apesar de não se poder deixar de admitir que possuía uma aplicação de uso imediato para gravação de som, ainda assim tal não se revelou totalmente compatível com as regras da experiência.
 A assistente referiu ainda que o arguido fez afirmações que não se mostrou possível aferir se constam da gravação dos autos – mas aparentam não constar – como ter anunciado a assistente de que tinha ligado os alarmes para se certificar que estava “à vontade” e saberia se alguma pessoa entrasse ou saísse, sendo certo que, aparentemente ouvindo-se a assistente a sair, não se ouvem alarmes. 
É certo que o arguido pode ter afirmado essa circunstância e que ao fazê-lo não fosse verdade, mas, de todo o modo, a mesma não resultou demonstrada por outra via que não o afirmado pela assistente. 
Ainda quanto a expressões do arguido insusceptíveis de verificar, a assistente relatou que este lhe disse “hoje não escapas, vou-te foder” - o que não se logrou ouvir – que a própria lhe disse “Não” várias vezes em afirmação definitiva, ao que aquele respondia com ameaças – o que também não se logrou ouvir, sendo que os “nãos” da assistente foram sempre acompanhados de outras palavras, como “não faças isso”, “não me toques” – e que repetiu diversas vezes que queria ir buscar os filhos – o que apenas se logrou ouvir uma vez, possivelmente duas, mas em número inferior ao invocado. 
 Neste âmbito não se pode igualmente deixar de salientar que a assistente pugnou que o relacionamento por si mantido com o arguido foi sempre estritamente profissional e sem qualquer grau de proximidade no trato social. 
Ora tal alegação resulta claramente desmentida na referida gravação, em que ambos se trataram sempre na segunda pessoa do singular, ao que acresce referir-se que mediante a descrição conjunta da assistente, por via das expressões que relatou do arguido e pelos avanços físicos deste, poder-se-ia conjecturar uma iminente violação física desta, ilação que, porém, não se julga poder retirar do efectivo teor da conversa ocorrida, nomeadamente atenta a ambiguidade de sentidos emocionais decorrente do modo como a assistente foi entoando as suas expressões e considerando as alterações de tom de voz que manifestou e o tipo de linguagem que utilizou, muitas das vezes revelando uma postura de zanga e agressividade pouco compatível com o referido “terror”, o qual também não se logrou associar ao modo como a mesma abandonou o local dos factos, dizendo ao arguido “Tchau, até amanhã”. 
Ainda no que atém a incongruências da versão factual pugnada pela assistente, importa também dizer que se mostrou pouco compreensível a sua alegada conduta logo após a ocorrência dos factos.
Nesta parte, a assistente referiu que saiu das instalações da empresa em manifesta perturbação emocional e com marcas físicas no pescoço decorrentes do arguido a ter tentado beijar à força, tendo optado por telefonar ao seu advogado e amigo AD, que ali se deslocou e a quem contou o sucedido, tirando as fotografias que constam de fls. 11 a 14. 
Disse ainda que acabou por não se deslocar de imediato à PSP e que já não sabe dizer quantas vezes ali se deslocou para denunciar o arguido, pelo que também não sabe explicar porque a queixa dos autos foi apresentada em Maio de 2017, sendo que os factos ocorreram em Novembro de 2016. 
Ora, não se logrou compreender esta última circunstância, maxime considerando a pessoalidade sempre invocada pela assistente e que não foi produzida prova quanto à existência de outros processos em que a assistente figurasse como queixosa contra o arguido e tendo em conta que os presentes autos se iniciaram mediante a queixa de fls. 3 e segs. e sem qualquer intervenção policial. 
De todo o modo, quanto à assistente se ter recorrido de terceiro de confiança, julga-se que as regras da experiência e da lógica não impedem considerar tal actuação como parte da normalidade do acontecer, mas quanto à altura do dia em que tal sucedeu e as referidas fotografias foram retiradas, suscitaram-se sérias dúvidas no Tribunal, atenta a luminosidade retratada para o fim de um dia de meados ou final de Novembro e cuja intensidade se denotou pouco compatível com a produção de luz de um flash integrado em telemóvel ou em máquina fotográfica de uso corrente não profissional. 
Neste segmento é também de referir que ouvido AD e apesar do mesmo ter procurado confirmar a versão da assistente, o seu depoimento não se revelou inteiramente credível ao Tribunal, desde logo em face das dúvidas que a versão da assistente suscitou, mas também porque tal testemunha apresentou alguma limitação na espontaneidade como depôs, suscitando reservas no que atém à existência de possíveis laços emocionais com a assistente, sendo certo que o seu percurso de auxiliar na elaboração de defesa no processo disciplinar junto aos autos e da queixa que impulsionou os presentes autos na pendência do mesmo, também se mostraram compatíveis com tal tipo de ligação. 
Posto isto, julga-se que apesar de algumas expressões do arguido serem dotadas de idoneidade abstracta para constituírem propostas e comentários de cariz sexual indesejados pela assistente, a generalidade do sentido linguístico que resultou da audição da conversa ocorrida entre ambos, perante a indefinição do tipo de relacionamento existente anterior e contemporâneo àquela, não permitiu ao Tribunal conferir-lhe o sentido pugnado pela assistente com a segurança necessária, para o que contribuiu, também, a existência das suas versões antagónicas sem que qualquer delas fosse respaldada por elementos probatórios idóneos objectivos, maxime decorrentes dos testemunhos prestados. 
Ou seja, apesar de denotar uma postura relativamente desresponsabilizante por parte do arguido e que no áudio disponível nos autos é dado verificarem-se indícios de aproximação física à assistente e mesmo contactos efectivos, por outro lado o depoimento da assistente não se mostrou verosímil em segmentos substanciais e o teor da própria conversa também não se julga constituir, por si só, prova cabal de que no seio do seu relacionamento como adultos, o arguido formulou propostas de teor sexual ou constrangeu a assistente a contacto de natureza sexual mediante expressões ou actos idóneos a importunar esta última, ou que fossem mantidas contra a sua vontade. 
Por conseguinte, face a todo o contexto probatório acima enunciado, não foi possível ao Tribunal formar uma convicção segura quanto à ocorrência dos factos que, a final, resultaram como não provados, assim se decidindo por força do princípio in dubio pro reo, estruturante do nosso direito penal. 
Quanto às actuais condições pessoais e económicas do arguido e da assistente, tiveram-se em conta as declarações que prestaram. E quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido, teve-se em conta o teor do respectivo CRC junto aos autos.”
*
IV - Do mérito do recurso
Como é sabido, e resulta do disposto nos art.º 368º e 369º ex-vi art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do Código do Processo Penal.
Por fim, das questões relativas à matéria de Direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas pelo recorrente.
Assim, as questões a decidir são as referidas supra e pela ordem ali constante.
A primeira questão suscitada e que cumpre conhecer prende-se com a valoração da prova que levou à convicção que o arguido não cometeu factos subsumíveis ao crime de importunação sexual.
Em sede de recurso para o Tribunal da Relação, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: quer por arguição dos vícios a que faz referência o art.º 410º nº 2 do C.P.P. (a chamada revista alargada), quer pela impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o art.º 412º nº 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
No primeiro caso os vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugados com as regras de experiência comum – sem possibilidade apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo – visto tratarem-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna e não ao erro de julgamento relativamente á apreciação e valoração da prova produzida.
No segundo caso a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova registada e produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art.º 412º do Código do Processo Penal.
De acordo com este normativo, sempre que se pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa e as provas que devem ser renovadas.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados. 
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. 
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ªinstância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.). 
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412° do C.P.P.). (…).” ( Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28).
Contudo, como se lê no Ac. do S.T.J. de 12.06.2008, proc. 4375/07, 3ª, acessível em www.stj.pt  (jurisprudência/Sumários de Acórdãos), a possibilidade de sindicância de matéria de facto sofre no entanto quatro tipos de limitações: 
- “desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;
- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.”
No caso, a recorrente não indica os pontos da matéria de facto que, em seu entender, foram mal julgados nem as provas que, também na sua perspectiva, imporiam decisão diversa.
Na verdade, a assistente, à semelhança de fases anteriores do processo exibe a gravação como prova inequívoca da comissão do crime. Para a recorrente o simples facto da existência da gravação e do seu conteúdo não deixam margens para dúvidas.
Acontece que este argumento não é um argumento de facto de per se. É um argumento de interpretação de facto.
O facto é a gravação e o seu conteúdo. O conteúdo foi dado como assente. O teor da gravação está provado. 
O que a recorrente discorda é a interpretação que o Tribunal fez de tal conteúdo.
Cumpre, no entanto, deixar claro este aspecto do recurso e que, infelizmente, é recorrente nos recursos interpostos perante este Tribunal que é a convicção de recorrentes que este Tribunal, porque Superior, pode sempre e sem mais impor o seu entendimento da prova à instância inferior.
De facto assim não é.
Havendo a possibilidade de discutir a matéria de facto não interessa, num primeiro momento, saber se a interpretação do recorrente é a correcta ou a mais correcta.
Num primeiro momento cumpre indagar se a escolha feita pelo Tribunal a quo é uma das possíveis.
Se se determinar que assim é não tem o Tribunal da Relação, enquanto Tribunal de revista, de sobrepor o seu entendimento ao do Tribunal da primeira instância pois que tal implicaria uma intolerável intromissão na liberdade de julgamento do Tribunal a quo.
Ora, a interpretação feita pelo Tribunal a quo é uma das possíveis. Nada na apreciação feita foge aos cânones do art.º 127º do C.P.P.. O tribunal esforça-se por analisar cada uma das versões e explica porque é que não consegue sobrepor uma à outra. O Tribunal não diz que a versão do arguido é aquela que lhe mereceu credibilidade mas também explica porque não consegue afirmar a veracidade da versão da assistente e daí resulta a dúvida.
Nada se pode apontar à decisão nesta parte posto que a mesma radica na convicção íntima do julgador devidamente fundamentada e explicada.
A recorrente invoca ainda um vício do art.º 410º nº 2 do C.P.P., a saber, o erro notório na apreciação da prova.
Como a própria recorrente refere e resulta do corpo do art.º 410º do C.P.P. estes erros têm de resultar do texto da decisão recorrida sem recurso a qualquer tipo de prova externa.
O erro notório na apreciação da matéria de facto, verifica-se este vício “quando se retira de um facto dado como provado uma consequência logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto provado uma consequência ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida” . Desdobra-se, pois, em erro na apreciação dos factos e em erro na valoração da prova produzida. 
Verifica-se, igualmente, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis.
A notoriedade do erro (sendo este a ignorância ou falsa representação da realidade) exigida pela lei traduz-se numa incongruência que “há-de ser de tal modo evidente que não passe despercebida ao comum dos observadores, ao homem médio (...), ao observador na qualidade de magistrado, dotado de formação e experiência adequadas a um tribunal de recurso. Esse erro há-de ser evidente aos olhos dos que apreciam a decisão e seus destinatários, sem necessidade de argúcia excepcional (...)”
Este vício, como aliás os demais referidos no art.º 410º nº 2 do Código do Processo Penal, são resultantes da decisão recorrida por si ou em conjugação com as regras da experiência comum.
As regras da experiência “são noções da experiência comum, aquele conjunto de noções, informações, regras, máximas, apreciações, que representam o património da cultura média que habitualmente se designa como “senso-comum” (Taruffo, La motivazione della sentenza civile, Padua, 1975, p. 242). O juiz deve formular as regras sem se basear em critérios pessoais arbitrários, escolhendo de modo correcto qual, de entre as diversas regras da experiência, é aplicável ao caso concreto, tendo em conta as particularidades deste. Deve aplicar a regra que melhor se adapte ao caso em questão, e decidir segundo a sua consciência, o bom senso e a sua experiência da vida. Como lhe prescreve o artigo 127º (livre apreciação da prova) do Código do Processo Penal: salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Ora, do texto da decisão, considerando a selecção de factos provados e não provados, não existe nenhuma incongruência entre os diversos factos e nada do afirmado está notoriamente errado pois que, repete-se, tudo radicou na interpretação que foi feita do teor da gravação (argumentos que analisamos supra e que aqui não têm lugar dado o vício em análise).
Assim sendo, não se verifica o vício apontado.
E não se verificando nenhum vício, permanecendo inalterados os factos segue-se que a decisão de Direito está correcta e estando correcta não se pode alterar a decisão no que tange ao pedido de indemnização civil.
Improcede, assim, o recurso.
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V - Dispositivo
Por todo o exposto, acorda-se nesta 3ª secção do Tribunal da Relação em:
a) Não conhecer do recurso interlocutório interposto pelo arguido;
b) Negar provimento ao recurso interposto pela assistente, mantendo, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas no recurso interlocutório pelo arguido as quais se fixam no mínimo.
Custas no recurso final pela assistente que se fixam em 3 (três) U.C.’s
Notifique.
 
Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pelos Venerandos Juízes Adjuntos
 
 
Lisboa e Tribunal da Relação, 12 de Outubro de 2022
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Alfredo Gameiro Costa 
Rosa Vasconcelos