COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS
NULIDADE
SIMULAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
MEIOS PROBATÓRIOS
Sumário

1. O ónus da prova dos requisitos do negócio simulado -a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório (pactum simulationis) e o intuito de enganar terceiros (que se não deve confundir com oIntuito de prejudicar)- porque constitutivos do direito, cabe, segundo as regras gerais do ónus da prova, a quem invoca a simulação;
2. A prova desses requisitos pode ser feita por qualquer dos meios normalmente admitidos na lei: confissão, documentos, testemunhas, presunções.
3. Sendo rara a prova directa da simulação, deverá admitir-se uma prova ampla a fim de obter indícios que, segundo o que ensina a experiência comum, só se verificam na prática de actos simulados.

Texto Integral

Acordam os Juízes que compõem a 8a Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
FC__ veio propor a presente acção declarativa a seguir a forma de processo comum contra,
“…S.A.”, com sede…,
e
“ …S.A” com sede …,
pedindo, seja declarada a nulidade da compra e venda titulada pela escritura pública realizada em 17.04.2017, porque simulada, anulando-se, consequentemente, o registo da transmissão efectuado pela Ap. …, de 2017/04/20, quanto aos imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial… sob os números …..
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Realizada audiência prévia foi pelo Autor apresentado requerimento de prova em que, para além do mais e para o que importa à decisão do recurso, pediu:
«Para demonstração da matéria constante dos art.° 47, 50, 51 e 61 a 63 da PI, requer-se que a R. … junte os comprovativos do registo de beneficiário efetivo, onde constem quem são os, ou o, seus beneficiários efetivos.
Requer-se também que junte os seus IES desde a sua constituição e até a presente data;

Por fim, requer-se, sempre para prova da mesma matéria, que a R. ...junte cópias de todas as suas atas da sociedade.»
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Concedido prazo para pronúncia às RR., pelas mesmas foi apresentado requerimento, pugnando pelo indeferimento concluindo que « considera-se demonstrada a manifesta impertinência e inutilidade dos documentos requeridos pelo Autor para a demonstração dos factos que importam à decisão da causa e, consequentemente, deve o requerimento probatório aduzido pelo Autor ser indeferido, porquanto não cumpre as exigências impostas pelo artigo 429.°, n.°s 1 e 2 do CPC.»
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Foi proferido, então o seguinte despacho:
«Na presente acção o A. alega, em síntese, que é sócio da 2a Ré detendo acções representativas de 50% do seu capital social, sendo as acções representativas dos outros 50% do capital social da 2ª Ré detidas por SS__, seu cunhado, e ambos, juntamente com a mulher do segundo, NS__, são administradores da 2ª Ré.
Havendo desentendimentos entre o Autor e os restantes administradores, vieram aqueles outros em representação da sociedade 2ª Ré a transmitir à 1ª Ré, da qual era única administradora VS__, filha daqueles outros administradores da 2ª Ré, três bens imóveis, certo que nem a 2ª Ré tinha intenção de vender à Ré nem esta tinha intenção de comprar àquela tais imóveis, não tendo havido o pagamento de qualquer preço, constituindo aquele negócio afinal uma doação com o único objetivo de enganar o Autor e defraudá-lo no tocante aos seus direitos enquanto accionista da 2ª Ré, acrescendo que o ato de doação sempre seria um ato indevido/inválido na medida em que não integra o objeto social da 2ª Ré transmissária daqueles imóveis à 1ª Ré.
Com tais fundamentos, concluiu o Autor estar em causa um negócio simulado e, por conseguinte, nulo, peticionando a declaração dessa nulidade e consequente anulação do registo correspondente à transmissão.
Por sua vez as RR., em essência, sustentam a validade do negócio, alegando ter ocorrido o pagamento do respectivo preço.

Por isso os temas da prova enunciados são no sentido de demonstrar ou infirmar que o valor do preço declarado na escritura de compra e venda de 17-04-2017 não foi pago pela 1a R à 2a R.; demonstrar que a 2a R. não quis vender à 1aR. e esta não lhe quis comprar os imóveis objeto da escritura de 17-04-2017; e a demonstrar que o ato declarado na escritura de 17-04-2017 constituiu um artifício levado a cabo pelos administradores da 2ª R. e da 1ª R para esconder uma doação, com o intuito de enganar e defraudar o A. enquanto acionista da 2ª R..
O negócio em crise foi objecto de escritura pública em 17-04-2017, nela tendo os Administradores da 2ª R, que no acto intervieram em sua representação, declarado ter já recebido da 1ª R. o preço. Logo em momento anterior àquela data de 17-04-2017, não permitindo, porém, as declarações então prestadas definir em que momento tal pagamento terá ocorrido, certo, porém, que tendo a 1ª R. sido constituída em 30/11/2016 (cfr. doc. junto aos autos) tal alegado pagamento apenas poderá ter ocorrido após esse momento.
Por outro lado, e tendo até em vista o decidido pelo Tribunal da Relação em recurso que teve já lugar no âmbito desta acção, o pagamento do preço ou a sua falta constituirá tão só elemento indiciário do pacto simulatório e não bastará a prova de uma ordem de pagamento ou transferência de determinado montante para se concluir pela efectiva existência do pagamento: a ordem de pagamento pode ocorrer e ser efectivada e depois ser dado outro destino à quantia.
Por isso, afigura-se-nos revestir-se de relevo para a decisão da causa a junção pelas RR. ... e R. ... dos extratos das suas contas bancárias desde 30-11-2016 (data de constituição desta) até a presente data.
Já os demais documentos pretendidos pelos A. (nos quais o mesmo, salvo o devido respeito, poderá ver interesse face ás patentes dissidências com os outros Administradores da 2ª R.), não se mostram pertinentes nem relevantes face ao estrito objecto desta causa.
Assim, deferindo parcialmente o requerido pelo A., devem as RR juntar os extratos de todas as suas contas bancárias desde 30-11-2016 até a presente data, no mais se indeferindo o por ele pretendido.»
Inconformado com a decisão, dela vem o A. recorrer, na parte em que é indeferido o pedido de notificação da 1a R. para juntar “o comprovativo do registo do beneficiário efectivo, onde conste quem são os seus beneficiários efectivos, os IES desde a constituição e cópias de toda as actas” concluindo as alegações com as seguintes conclusões:
« i) O Autor, ora Apelante, requereu para demonstração da matéria alegada nos artigos 47°, 50, 51° e 61 a 63° da petição inicial que a Ré “...” juntasse o comprovativo do registo do beneficiário efectivo, onde conste quem são os seus beneficiários efectivos, os IES desde a constituição e cópias de toda as actas;
ii) Os temas da prova fixados não se circunscrevem a demonstrar ou infirmar que que o valor do preço declarado na escritura de compra e venda não foi pago, pois, neles encontra-se também sob prova saber se:
se 2a R. não quis vender à 1aR. e esta não lhe quis comprar os imóveis objecto da escritura de 17-04-2017 - tema 2;
se o acto declarado na escritura de 17-04-2017 constituiu um artifício levado a cabo pelos administradores da 2a R. e da 1a R. para esconder uma doação, com o intuito de enganar e defraudar o A. enquanto acionista da 2aR - tema 3;
iii) A matéria alegada nos artigos 47°, 50, 51° e 61 a 63° da petição inicial insere-
se no âmbito desses temas da prova e os requerimentos probatórios feitos são pertinentes para a demonstração de tal matéria;
iv) A demonstração de quem são os beneficiários efectivos da Ré ... é essencial para saber se a “venda” em causa não foi efectivamente um artificio para esconder uma doação e, nomeadamente, se essa doação não foi feita a sociedade controlada pelas pessoas que outorgaram na escritura em causa;
v) E a análise dos IES e das actas da ... permitirá discernir se tal sociedade é ou não um mero veículo para a realização do artificio em questão ou se, por outro lado é uma sociedade com efectiva a real actividade;
vi) Assim, tais requerimentos têm efectivo interesse para a prova da matéria de facto incluída nos temas da prova.»
Dos autos não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido e mostrando-se cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.
2. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635°, n° 4, 639°, n° 1, e 662°, n° 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.° 5°, n°3 do mesmo Código).
A única questão a decidir reporta-se à apreciação da admissibilidade do requerimento probatório do A., na parte em que requer a notificação da contraparte para juntar aos autos documentos em seu poder.
3. Fundamentação de Facto
Com interesse para a boa decisão do presente recurso importa dar como assente que, em sede de audiência prévia foi fixado como objecto do litígio, o «instituto da nulidade do negócio jurídico» tendo nessa sequência sido elencados os seguintes temas da prova:
«1- Tendente a demonstrar ou a infirmar que o valor do preço declarado na escritura de compra e venda de 17-04-2014 não foi pago pela 1a R à 2a R.;
2- Tendente a demonstrar que a 2a R. não quis vender à 1a R. e esta não lhe quis comprar os imóveis objecto da escritura de 17-04-2017;
3- Tendente a demonstrar que o acto declarado na escritura de 17-04-2017 constituiu um artifício levado a cabo pelos administradores da 2a R. e da 1a R. para esconder uma doação, com o intuito de enganar e defraudar o A. enquanto acionista da 2aR.»
4. Fundamentação de Direito

Pretende o A. que lhe seja deferido o pedido de notificação da Ré, “...” para proceder à junção aos autos do comprovativo do beneficiário efectivo, onde conste quem são os seus beneficiários efectivos e os IES desde a data da constituição, e bem assim, de cópias de todas as actas.
Visa com tal prova documental, demonstrar a matéria alegada sob os arts.47°, 50°, 51°, e 61° a 63°, da petição inicial, temas esses contidos nos pontos 2 e 3 dos temas da prova.
Apreciando e decidindo.
Na presente acção pretende o A. seja declarada a nulidade de uma compra e venda titulada por escritura pública, porque simulada, devendo, consequentemente, ser anulado o registo de transmissão.
O pedido principal nestes autos formulado consiste, pois, no pedido de nulidade da escritura de compra e venda invocando-se, para fundamentar tal pedido de nulidade, a simulação do negócio.
O art. 240°, n°1, do C.Civil, define negócio simulado como aquele em que, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, há divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante.
O art. 241°, n°1 do mesmo diploma legal, determina que "quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado".
Destes preceitos, tem a doutrina defendido a necessidade da verificação simultânea de três requisitos para que haja um negócio simulado: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório (pactum simulationis) e o intuito de enganar terceiros (que se não deve confundir com o intuito de prejudicar).
O ónus da prova de tais requisitos, porque constitutivos do respectivo direito, cabe, segundo as regras gerais nesta matéria, a quem invoca a simulação. Cfr. art.342° do CCivil.
Assim, para no caso concreto se poder concluir pela existência de um negócio simulado, terão de provar-se factos integradores dos requisitos enunciados.
A prova desses requisitos pode ser feita por qualquer dos meios normalmente admitidos na lei: confissão, documentos, testemunhas, presunções.
A prova da simulação nunca é tarefa fácil e muitas vezes a prova é feita à custa de meros indícios levando à consideração de presunções naturais ou judiciais. Apuram-se indícios, hipóteses ou aparências, valorizam-se máximas da experiência, juízos de probabilidade e de lógica.
Seguindo os ensinamentos de Luís Filipe Pires de Sousa, «Na prova directa, o procedimento probatório consiste na contrastação empírica directa do enunciado fáctico que se prova. Diversamente, na prova indirecta o procedimento probatório permite alcançar o facto que se prova a partir de outro ou outros factos mediante um processo inferencial.» Cfr. “Prova por Presunção no Direito Civil”, Almedina, 2013-2a ed. Pág.23.
Chamou-se à colação a prova por presunção por, efectivamente, ser muito rara a prova directa da simulação.
Considera-se aqui o expendido no Ac.STJ, de 19.01.2017; disponível in www.dgsi.pt: «aqueles que efectuam contratos simulados ocultam os seus propósitos e intenções, não manifestando publicamente a sua vontade de simular, antes se esforçando em tornar verosímil o que há de aparente e fictício no acto que praticam» (...) «há quase sempre que recorrer para a demonstrar a um conjunto de factos conhecidos, tais como as condições pessoais ou patrimoniais dos outorgantes, as relações em que eles se encontram entre si, os factos que precedem a realização do acto jurídico, as circunstâncias em que foi celebrado, o seu próprio conteúdo e finalmente os factos posteriores à celebração, mas com eles relacionados. Destes factos, que se conhecem, se deduzirá a simulação que se pretende demonstrar. Dentre esses factos constituirão indícios aproveitáveis aqueles que, segundo o que ensina a experiência comum, segundo o que normalmente acontece na vida, em regra só se verificam, quando se praticam actos simulados».
Feitas as considerações que se impunham sobre a dificuldade da prova em acções como a presente, cumpre decidir se deve ser deferido o pedido do A. relativo à junção aos autos dos supra mencionados documentos.

Criada em 2007 pela Portaria n.° 208/2007, a IES -informação empresarial simplificada-, agrega num único acto o cumprimento de quatro obrigações legais: entrega da declaração anual de informação contabilística e fiscal, registo da prestação de contas, prestação de informação de natureza estatística ao Instituto Nacional de Estatística e prestação de informação relativa a dados contabilísticos anuais para fins estatísticos ao Banco de Portugal. Com a introdução da IES, toda a informação que as empresas têm de prestar relativamente às suas contas anuais passou a ser transmitida por via electrónica, num único momento e apenas a uma única entidade.
Ora, assente que ficou a dificuldade da prova da simulação e considerando a natureza da informação constante da IES, cremos ser de conveniência para a descoberta da verdade a junção aos autos da IES da 1a R. referentes ao ano correspondente àquele em que foi celebrada a escritura pública e o pagamento do preço e, bem assim, ao ano imediatamente subsequente.
Do mesmo modo, e visando o mesmo propósito, considerando que Registo Central de Beneficiário Efectivo pretende identificar todas as pessoas que controlam uma empresa, fundo ou entidade jurídica de outra natureza, sendo obrigatório para todas as entidades constituídas em Portugal ou que aqui pretendam fazer negócios, obviamente será útil para a prova dos temas 2 e 3, podendo por essa via apurar-se se a 2a R. não quis vender à 1a R. e esta não lhe quis comprar os imóveis objecto da escritura de 17-04-2017 e bem assim, demonstrar que o acto declarado na escritura de 17-04-2017 constituiu um artifício levado a cabo pelos administradores das Rés para esconder a alegada doação, com o intuito de enganar e defraudar o A..
Apreciemos, agora, o pedido de junção das actas da sociedade.
Pretendendo o Autor, fazer prova dos factos constantes do arts. 47, 50 e 51 da PI, ou seja, provar a ausência de pagamento do preço, a falsidade das declarações de compra e venda constantes da escritura e, a ausência de vontade em comprar e vender os imóveis, tal prova não se alcançará das actas da sociedade, até porque, a decisão de celebração do negócio de compra e venda em causa, não carece, atento o objecto da sociedade, de ser deliberado em assembleia de sócios/accionistas. Cfr. art.373° do CSC..

Entende-se, pois, que a sua junção, não permitiria infirmar o pagamento do preço declarado na escritura de compra e venda de 17.04.2017 nem, demonstrar a falsidade das declarações negociais emitidas pelas partes.
Assim, entende-se que o pedido de junção das actas não demonstra qualquer utilidade para a prova da factualidade controvertida, prevista nos temas da prova. A simulação alegada, a intenção dos contraentes, não se há-de provar com o que tomou forma nas actas da sociedade.
Assim, procede parcialmente o recurso, na medida em que, revogando a decisão proferida em 1a instância, de determina seja a Ré notificada para, em prazo a fixar, proceder à junção aos autos do comprovativo do beneficiário efectivo, onde conste quem são os seus beneficiários efectivos e os IES relativos ao ano da celebração da escritura e pagamento/recebimento do preço e ao ano imediatamente subsequente.
No mais se mantém o decidido.

5. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 8a Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, determinam a notificação da 1ª R., para juntar aos autos em prazo a fixar, comprovativo do beneficiário efectivo, onde conste quem são os seus beneficiários efectivos e os IES relativos ao ano da celebração da escritura e pagamento/recebimento do preço e ao ano imediatamente subsequente.
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Custas a cargo das partes, na proporção de 1/5 para a apelante e 4/5 para a apelada.
Notifique.
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LISBOA, 3/11/2022
ANA PAULA OLIVENÇA
RUI PINHEIRO DE OLIVEIRA
FERREIRA DE ALMEIDA